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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.22 no.spe Rio de Janeiro  2022  Epub 27-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2022.71757 

DOSSIÊ PSICOLOGIA, POLÍTICA E SEXUALIDADES: CRISES, ANTAGONISMOS E AGÊNCIAS

Racismo, Trauma Colonial e Agência Crítica: Fórum Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro

Racism, Colonial Trauma, and Agency: The State Forum of Black Women in Rio de Janeiro

Racismo, Trauma Colonial y Agencia Crítica: Fórum Estadual de Mujeres Negras del Río de Janeiro

Jacqueline de França Neto* 

Psicóloga, graduada pela Universidade Federal de Pernambuco, mestre em Relações Étnico-Raciais pela Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca- CEFET/RJ. Pesquisadora integrante do ORI - grupo de estudo e pesquisa em raça, gênero e sexualidade/CNPq.


http://orcid.org/0000-0002-4923-7434

Fátima Lima** 

Professora do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada PIPGLA/UFRJ. Professora do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais/ CEFET/RJ.


http://orcid.org/0000-0002-9449-2514

Luiza Rodrigues de Oliveira*** 

Professora do Departamento de Psicologia da UFF, dos programas de pós-graduação em psicologia e de pós-graduação em ensino de ciências da natureza da UFF. Coordenadora do LALIDH-oralidades. Participante do CDINN -Coletivo de Intelectuais Negras e Negros do país.


http://orcid.org/0000-0003-2264-1258

*Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca - CEFET, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

**Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Macaé, RJ, Brasil

***Universidade Federal Fluminense - UFF, Niterói, RJ, Brasil


RESUMO

A relação entre racismo, subjetividade e o trauma colonial tem, cada vez mais, ocupado os debates no campo dos estudos e pesquisas em Psicologia. Este artigo tem como foco os processos de subjetivação, levando em consideração a relação entre racismo, gênero e o trauma colonial, bem como as agências possíveis que emergem nas vidas das mulheres negras ativistas. Adotando a interseccionalidade enquanto lente epistemológica e metodológica negra, os discursos e práticas de mulheres que fazem parte do Fórum Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro assumem aqui o protagonismo, compondo um espaço perpassado por agências políticas de re-existência e reivindicação de falas, escutas e ações de mulheres negras. Pode-se considerar, a partir da atuação no Fórum, que a consciência e a participação em uma instituição coletiva política feminina negra atuam como forças impulsionadoras, tanto em espaços públicos, pressionando o poder do Estado, quanto formando as mulheres negras nos/para espaços microcapilares e cotidianos. Foi possível perceber como a agência das mulheres negras possibilita formas de devolver o trauma colonial ao mundo através de uma mística quilombola coletiva pelo bem viver.

Palavras-chave: raça; racismo; mulheres negras; trauma colonial e agência.

ABSTRACT

The relationship between racism, subjectivity and colonial trauma has increasingly been debated in the field of studies and research in Psychology. This paper focuses on the processes of subjectivation, taking into account the relationship between racism, gender, and colonial trauma, as well as the possible agencies that emerge in the lives of black women activists. We adopt intersectionality as a black epistemological and methodological lens. The discourses and practices of women who are part of the State Forum of Black Women of Rio de Janeiro assume the leading role in this study, creating a space permeated by political agencies of re-existence and demand for black women’s voices, listening, and actions. It can be considered, from the performance in the forum, that consciousness and participation in a collective black female political institution act as a driving force both in public spaces, as pressure on the power of the State, as well as preparing black women for microcapillary and everyday spaces. Therefore, it was possible to perceive how the agency of black women can return the colonial trauma to the world through a collective mystic quilombola for “good living”.

Keywords: race; racism; black women; colonial trauma and agency.

RESUMEN

La relación entre racismo, subjetividad y trauma colonial ha ocupado cada vez más los debates dentro del campo de estudios y investigaciones en Psicologia. Este artículo tiene por foco los procesos de subjetivación, tomando en cuenta la relación entre racismo, género y trauma colonial, así como las agencias críticas posibles que emergen en la vida de las mujeres negras activistas. Tomando la interseccionalidad como lente epistemológica y metodológica negra, los discursos y prácticas de mujeres que hacen parte del Fórum Estadual de Mujeres Negras de Rio de Janeiro asumen aquí el protagonismo, formando un espacio, permeado por agencia política de re-existencia y reivindicación de palabras, escuchas y acciones de mujeres negras. Se puede considerar a partir de la actuación en el Fórum que la consciencia y participación en una institución colectiva política femenina negra, actúan como fuerzas impulsoras tanto en espacios públicos, presionando el poder del Estado, así como formando mujeres negras en y para espacios microcapilares y cotidianos. Fue posible percibir como la agencia crítica de mujeres negras posibilita formas de devolver el trauma colonial al mundo a través de una mística cimarrona colectiva por el bien vivir.

Palabras clave: raza; racismo; mujeres negras; trauma colonial y agencia.

Mulheres Negras, Processos de Subjetivação e o Trauma Colonial

“PORQUE SE O MUNDO, QUE É MEU TRAUMA, NÃO PARA NUNCA DE FAZER SEU TRABALHO, ENTÃO SER MAIOR QUE O MUNDO É MEU CONTRATRABALHO.” (Mombaça, 2017, para. 79-80.)

Em letras maiúsculas, sem modificar a expressão linguística da intelectual e performer Mombaça (2017), iniciamos apontando que a responsabilidade do trauma, a partir da lente racial antinegra, não é de quem o sente, mas sim de quem o produz, ou seja, o mundo. Como ele não para nunca de fazer o seu trabalho - produzir e reatualizar o racismo -, escrever sobre e contra isso representa um contra-trabalho, inclusive epistêmico-metodológico. Destacamos que a referência utilizada sobre trauma se refere às experiências singulares que só podem ser entendidas a partir da coletividade representada pela/o sujeita/o negra/o, experiência essa marcada pela brutalidade e por uma violência necessária, que forjam e mantêm as vidas negras (Wilderson III, 2017, 2021) na dimensão de morte social (Patterson, 2008).

Falar de mulheres negras e traumas coloniais é pensar a reencenação da violência racial, observando os seus efeitos ao nosso redor. A linha do tempo que subscreve o período escravocrata faz a sua re-montagem na atualidade, engendrando e retroalimentando os sistemas de morte das vidas negras, necessários à saúde psíquica e ao bem estar do resto da humanidade (Wilderson III, 2017, 2021). A questão que reside no coração deste artigo é pensar como, por dentro das experiências traumáticas, vivenciadas pelas mulheres negras marcadas pela relação entre negritude e morte social, a possibilidade de agência, através do ativismo, pode ser pensada como uma disrupção capaz de friccionar a cadeia da violência racial genderizada sobre corpos e subjetividades femininas negras.

Destarte, a vida das mulheres negras é atravessada por diversos marcadores sociais e dinâmicos da diferença que reencena muitas vezes um passado colonial escravocrata e patriarcal. No contexto brasileiro, dizer-se uma ‘mulher negra’ é um caminho que se percorre habitando diversas encruzilhadas que, dependendo do ponto referencial do olhar, pode fixar ou fluir a experiência de estar viva. O olhar da brancura, entendido enquanto uma forma sistêmica de poder, tende a imobilizar a mulher negra em um sistema de exploração e opressão desdobrado, no mínimo, em “uma tríplice discriminação (social, racial e sexual)” (Gonzalez, 2020, p. 217).

Para falar de trauma colonial e de como ocorre sua aproximação com a realidade das mulheres negras, basta olharmos para os lugares que elas ocupam na sociedade brasileira. Ao observarmos os dados do “Dossiê: mulheres negras e justiça reprodutiva: 2020-2021”, iniciativa da organização da sociedade civil Criola (2021), nota-se que as violências contra as mulheres negras se agravaram com a pandemia da Covid-19. O documento traz análises qualitativas baseadas em percentuais nacionais e dados específicos da situação das mulheres negras no estado do Rio de Janeiro em dimensões de direitos humanos, segurança alimentar, violência doméstica, violência sexual, desemprego, vulnerabilidade social, saúde mental, entre outros. Uma das conclusões do dossiê ressalta que a experiência de ser uma mulher negra no cenário crítico da cidade do Rio de Janeiro duplica sua exposição à violência, quando comparada à situação das mulheres brancas.

No que diz respeito à pandemia de Covid-19, um ponto de atenção importante é que o isolamento social não foi uma alternativa possível à população negra, devido à falta de proteção social e à exposição à violência policial. As mulheres negras, em particular as trabalhadoras domésticas, foram expostas à violência da experiência colonial do cativeiro, em que muitas se viram proibidas de retornarem a seus lares e familiares sob ameaça de perderem os trabalhos, que, em alguns casos, eram a única fonte de renda. Essa dimensão cotidiana do racismo, além dos aspectos estruturais e institucionais, interessa-nos particularmente na medida em que o termo cotidiano se refere ao fato de que essas experiências não são pontuais. Como nos afirma Kilomba (2019, p. 80), “o racismo cotidiano não é um ataque único ou um evento discreto, mas sim uma constelação de experiências de vida, uma exposição constante ao perigo, um padrão contínuo de abuso . . .”. Essa é a sistemática da violência racial, numa reencenação contínua do passado colonial, lócus de emergência do que chamamos ferida/trauma colonial, seus efeitos duradouros e perturbadores ao corpo e à organização psíquica individual e coletiva.

Em vista disso, a ferida social que é tensionada pela repetição da violência do racismo é o ponto de encontro com o fenômeno do trauma, que além de físico, é econômico, cultural e psicológico, perturbando a dimensão histórica, espacial e temporal. A ferida do presente ainda é a ferida do passado e vice-versa; o passado e o presente entrelaçam-se como resultado (Kilomba, 2019).

Por conseguinte, muito antes da publicação de “Memórias da plantação” em língua portuguesa, a intelectual negra Beatriz Nascimento (Gerber & Nasimento, 1989), ao se referir ao drama do negro no Brasil, já denunciava o não reconhecimento no Brasil da pessoa negra - o homem e a mulher - principalmente a mulher negra, que, muitas vezes, ficou fora da categoria mulher por esta referir-se às mulheres brancas, e da categoria raça, que quase sempre se refere ao homem negro - como centrais na nossa problemática, configurando-se uma ferida que precisa ser revisitada de forma historicamente autêntica para ser solucionada. O drama que Beatriz denuncia é o trauma colonial que Kilomba (2019) investiga, trauma que se instala na/o sujeita/o negra/o através do choque do não reconhecimento da sua humanidade sendo posto fora da vida social, política, subjetiva e intersubjetiva.

É nesse emaranhado de significados fundantes da nacionalidade colonial brasileira que está a mulher negra, e por isso também a necessidade dessa sociedade de negá-las, já que a negação como um mecanismo de defesa do ego tenta excluir aquilo que faz parte de nós. E esse é um dos principais “contratrabalhos” - parafraseando mais uma vez Mombaça (2017) - do FEMNegras/RJ: incluir direito ao bem viver da pretitude feminina, sem exclusão social, cultural, econômica, psíquica e afetiva.

Ao trazer à cena a agência de mulheres negras ativistas como uma resposta ao drama/trauma que nos constitui - racialização pelo olhar do branco -, este artigo remete ao que Gilroy (2004) nomeia de consciência dissidente; não afirmando nem uma subjetivação antagonista e nem uma subjetivação reativa, mas uma subjetividade produzida no enfrentamento da identidade imposta a negras e negros, na apreensão de si “não mais pelos olhos do colonizador” (Flor et al., 2020, p. 1293), mas pelo sentido de pertencimento que se dá na experiência vivida do negro, anunciada por Fanon (2008), e muito bem afirmada por Nascimento (1974/2018).

Frantz Fanon (2008) e Nascimento (1977/2018) são, respectivamente, o psiquiatra anunciando a impossibilidade da subjetivação sem o aterramento da história (sociogenia) e a historiadora convocando os campos psis para o “fortalecimento psíquico” (Nascimento, 1977/2018, p. 138). Subjetivação (identidade, consciência) é constituída não pelo trauma do objeto para sempre perdido, não pela identificação com o outro da linguagem e não pela determinação da estrutura social, mas pelo pertencimento e pela agência. Há, portanto, uma grande novidade aqui e ela é epistemológica: na vivência histórica e cultural - e somente ali - é possível encontrar as possibilidades de desalienação, desvendando os processos psicossociais que circunscrevem a vida do povo negro (Silvério, 2020). Trata-se de uma experiência histórica, cultural, territorializada na herança existencial contada e reatualizada pela agência do povo preto. Desse modo, chamamos aqui de ativismo a persistência das mulheres negras de não se acomodarem a um lugar de subordinação, violência e esquecimento. Ser ativa nos seus processos de vida e não apenas se contentar com a sobrevivência é a principal reivindicação enquanto negra.

É por isso que anunciamos como foco os chamados processos de subjetivação, pois se configuram, nas obras de Nascimento (1977/2018), de Fanon (2008) e de muitas/os outras/os, como condição do entendimento de que subjetividades negras têm o princípio de “tornar-se” em um enfrentamento a uma das máximas do pensamento ocidental - o solipsismo do sujeito. Além disso, quando anunciamos a interseccionalidade entre raça e gênero, vamos ao encontro dos feminismos negros que vêm desnaturalizando subjetividade (Collins & Bilge, 2021).

Dessa forma, Lima (2019) nos provoca ao convocar uma clínica que reflita sobre esses corpos que não estão sendo considerados por questões relacionadas a uma formação política da ética do cuidado, entre as quais o cuidado nas clínicas psis, que têm como sustentação epistemologias euroamericocentradas no imperativo da brancura. “Para que serve mesmo a nossa formação profissional, a formação e a aposta clínica? A serviço de quem e do que está a produção e a atuação de uma práxis clínica? Como nos implicamos na enorme tarefa e no labor que é inventar outra ideia de homem e, consequentemente, um outro mundo? . . .” (Lima, 2019, p. 73).

Partindo da citação acima, no mínimo, uma interpelação do campo dos estudos e pesquisas em psicologia precisa se fazer presente, a partir das experiências de mulheres negras, privilegiando a relação entre racismo, subjetividade e o trauma colonial. Reafirmamos, mais uma vez, que o trauma colonial/racial não é da/o sujeita/o negra/o ou das coletividades negras, mesmo essas sendo interrogadas, o tempo todo, a responder por ele. O trauma é do mundo colonizado e neocolonizado e a/o sujeita/a negra/o entra em contato com ele na travessia do atlântico e na experiência da diáspora africana. É, portanto, uma produção histórica e subjetiva. Mas a/o sujeita/o negra/o também transformou essa “falta”, esse roubo, essa pilhagem, essa perda de imagem em capacidade de conquistar a si a nova terra, a simbologia das suas crenças e a construção de uma memória que precisa ser evocada e transmitida. A esse movimento Achille Mbembe nomeou como consciência negra do negro marcada por um “. . . gesto de autodeterminação, modo de presença perante a si mesmo, olhar interior e utopia crítica . . .” (Mbembe, 2018, p. 62). É importante assinalar esse movimento, pois a agência negra, como tomada por nós, encontra-se ligada ao movimento histórico e afrodiaspórico. As respostas e ações das comunidades negras, em especial das mulheres negras, só é possível na relação direta com a violência racial. É na própria violência racial, em sua permanência (pois é impossível para as vidas negras se livrarem dela), que a agência emerge como possibilidade de ação na permanência, na tentativa de esgotamento ou de uma disrupção dessa violência. Essa capacidade de desejar no impossível é o que Moten (2020), no seu artigo “A resistência do objeto: o grito de Tia Hester”, vai chamar de “pretitude”, isto é, a fuga da sujeição, que podemos interpretar, neste texto, como a teimosia do FEMNegras/RJ de reexistir frente à morte social das mulheres negras.

O Fórum Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro: Reexistências Negras

A organização de mulheres negras, em forma de reexistência e luta, encontra-se presente em cenários brasileiros desde os tempos da escravização através de levantes e insurgências que contaram com a participação das mulheres. No Brasil, a partir da segunda metade da década de 1970, a força de formulações de conhecimentos teóricos acerca do movimento de mulheres negras cresceu, visibilizando-se enquanto espaço político. Com a necessidade de erguer a voz e de se impor enquanto sujeito político autônomo, as mulheres negras exigiram que as suas dificuldades fossem ouvidas, traçando um caminho importante na busca pela emancipação de seus corpos e mentes (Gomes, 2017).

Nesse processo de organização, o FEMNegras/RJ consiste em um espaço de articulação e debate político com o objetivo de fortalecer e dar visibilidade às causas e reivindicações das mulheres negras organizadas em diversos espaços da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Atuando e tomando enquanto base um processo de transformação e justiça social, empenha-se em promover intervenções de caráter político-educativo, dando notoriedade às lutas, as dores e as persistências cotidianas das mulheres negras.

Esse é um lugar, entre outros, que as mulheres negras elegeram como seu, para impulsionar o seu próprio movimento negro. É uma instituição sem fins lucrativos, criada em 1987 por mulheres que já militavam no Movimento Negro Unificado (MNU) e no Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro (GMN/RJ), que almejam trabalhar as suas demandas e reivindicar politicamente os seus próprios direitos e da comunidade negra dentro da sociedade. Atualmente, possui uma coordenação ampliada com o objetivo de dar horizontalidade às decisões enquanto coletivo. A coordenação ampliada é composta por 45 mulheres, representantes dos seguintes municípios: Rio de Janeiro, Magé, Guapimirim, Duque de Caxias, Mesquita, Nova Iguaçu, São Gonçalo, Niterói, Itaboraí, Maricá, Petrópolis, Santo Antônio de Pádua, Queimados, Nilópolis, São João, Campos e Miracema. Uma possível ampliação dessa coordenação vem sendo planejada para mais localidades, como: Belford Roxo, Angra dos Reis, Paraty, Volta Redonda, São Pedro da Aldeia e Cabo Frio. Com suas ações regionalizadas, é difícil mapear o alcance e a totalidade de mulheres negras que fazem parte do FEMNegras/RJ. As formas de participar e adentrar ao movimento não passam por nenhum processo de burocratização, basta apenas se disponibilizar a participar das atividades, debater as temáticas e construir mudanças em seu território através de partilhas de experiências e processos coletivos.

Olhando para o passado e reverenciando a história, observamos um período de luta anterior à criação do FEMNegras/RJ que é preciso reconhecer e citar. Foram realizados dois encontros importantes: o Encontro Nacional de Mulheres Negras, em 1950, e o Encontro de Mulheres Negras, em 1983. Ambos os eventos eram de participação livre entre os gêneros e raças, e foram organizados pelas mulheres negras militantes do Rio de Janeiro, inseridas tanto no Conselho Nacional de Mulheres do Teatro Experimental do Negro (TEN) e, mais tarde, pelo Grupo de Mulheres Negras (GMN/RJ), coordenado por Adélia Azevedo, Joselina da Silva, entre outras ativistas e intelectuais negras.

Esse movimento político de mulheres negras que se inicia em 1950 no estado do Rio de Janeiro é o princípio do caminho que vai culminar no FEMNegras/RJ, em 1987. Devido à movimentação e ao fortalecimento do Encontro de Mulheres Negras de 1983, é estruturado e realizado em Moquetá (Nova Iguaçu) o primeiro Encontro Estadual de Mulheres Negras (1987), cujo fator principal se caracteriza pela participação exclusiva de mulheres negras da capital e do interior do Rio de Janeiro, sendo homens negros (movimento negro) e mulheres brancas (movimentos feministas) proibidos de participar, o que representa a necessidade dessas mulheres em serem autônomas em suas implicações políticas. O encontro estadual acontece fora da capital com perspectivas de avançar e impulsionar as redes de mulheres negras por todo estado do Rio de Janeiro, projetando também a organização do grande primeiro Encontro Nacional de Mulheres Negras, com a participação exclusiva de mulheres negras, que aconteceria em 1988, em Valença (Silvério, 2020).

Com tantas décadas de história, de luta e conhecimento vivo em movimento, o FEMNegras/RJ (re)existe para além daquilo que se pode ver. Os corpos que compõem essa caminhada são diversos e unidos, sentem a necessidade da aproximação como forma de força e proteção, e assim o fazem. São essas mulheres negras: de favela, periferia, quilombolas, refugiadas, indígenas, profissionais de saúde, da assistência social, professoras, acadêmicas, empregadas domésticas, empreendedoras, ambulantes, mães, lésbicas, bissexuais, transexuais, jovens, adultas, idosas, enfim, com todas as multiplicidades de ser mulher e negra.

O movimento de mulheres negras é responsável por gerar, manter e ensinar comunidades inteiras, por isso a urgência de manutenção da vida como princípio de futuro. São delas os gritos fortes pelo fim do genocídio do povo negro, como também são delas os gritos fortes pelo início de estruturas antirracistas de liberdade. Se a branquidade ainda olha para nós, mulheres negras, como subalternas, fortalecendo as imagens de controle (Collins, 2019), é na persistência racial que esse discurso não se sustenta, pois o quilombo, como lugar de acolhimento, já foi descoberto por elas na nossa atualidade. Insistir em um movimento político como uma persistência negra feminina é ver no acesso aos direitos a manutenção de emoções e afetos sobre si e sobre os seus Segundo Bell Hooks (2019, p. 63): “amar a negritude como resistência política transforma nossas formas de ver e ser e, portanto, cria as condições necessárias para que nos movamos contra as forças de dominação e morte que tomam as vidas negras”.

Pensando exatamente nesse lugar da persistência das mulheres negras e nas suas formas de atuar, ao longo deste texto, as falas e os sentidos produzidos pelo FEMNegras/RJ serão articulados com os processos de trauma colonial arraigado na sociedade. Falar das dores, mas também das ressignificações que as fortalecem, é o que faz valer todo o caminho.

Trajetórias Metodológicas

Partindo de uma metodologia interseccional, termo criado pela intelectual Crenshaw (2004), mas já utilizado como um olhar analítico crítico por pensadoras como Davis (2017), e no caso do contexto brasileiro, pela intelectual negra Lélia Gonzalez, é que as narrativas das mulheres negras ativistas do FEMNegras/RJ serão apresentadas, analisadas e discutidas. Lélia Gonzalez (2020) em suas reflexões, analisou as intersecções entre racismo e sexismo como uma sobreposição de lentes para dar conta da complexidade da vida das mulheres negras. A interseccionalidade como instrumento de transformação, pensando raça, classe, gênero e sexualidade, principalmente inseridos no contexto político, alarga o olhar para as experiências das mulheres negras bem como a compreensão das nossas lutas ativistas.

Nesse sentido, a interseccionalidade não pode ser pensada sem um entendimento de subjetividade como identidade, tal como anunciam Collins e Bilge (2021). O que tem sido a constituição das críticas à interseccionalidade é também o encontro dessa ferramenta de análise com a psicologia e com os movimentos de mulheres negras do Brasil. As críticas estão muito bem localizadas na academia a partir da ideia de que se trata de identidade como sinônimo de substancialização da formação subjetiva, de sujeito solipsista, ou ainda que definem as identidades como “apego ferido” que não faz avançar os oprimidos pela repetição dos traumas e culpabilização dos opressores. No entanto, Collins e Bilge (2021) citam, para além da academia, os movimentos sociais e a agência dos povos pretos, um deles o movimento de mulheres negras no Brasil, como determinantes para a noção mais complexa de interseccionalidade. E é exatamente isso que muda o sentido de subjetivação e de identidade.

Assim, assumimos o compromisso com uma metodologia que convoca a teoria e a experiência de vida, ambas implicadas na construção de saberes centrados, em que tomam como eixos analíticos as narrativas das mulheres negras enquanto coletivas e experiências vividas no ‘em comum’. A visão de mundo dotada de experiência, a compreensão de vários fenômenos e da atuação na modulação das condições de vida das mulheres negras foram cruciais na observação e na construção analítica. A escrevivência dessas mulheres negras militantes é uma experiência coletiva sobre habitar um corpo negro e gerar sentidos fundantes que envolvem não só a subjetividade negra, mas também o local de nacionalidade (Evaristo, 2020. p. 31).

O núcleo do FEMNegras/RJ analisado foi o da capital do Estado do Rio de Janeiro. Acompanharam-se as atividades e ações do FEMNegras/RJ durante a pandemia da Covid-19 através do trabalho de campo observacional online (via plataformas digitais: Google Meet e Zoom) e pelas lives nas redes sociais oficiais do FEMNegras/RJ no Facebook, através das reuniões de organização e das partilhas de diálogos cujo objetivo foi entender a dinâmica de funcionamento, a movimentação e o engajamento dessa rede de comunidade genuinamente implicada. Anotações, que constituem as fontes das análises aqui presentes, foram realizadas e arquivadas.

Inicialmente, foram selecionados os eventos que se apresentavam com mais relevância no período de 2020-2021, devido à divulgação, à participação e à articulação. Os eventos observados foram: a Pauta Preta, a Pauta Preta Livre e o Fórum Permanente de Diálogo de Mulheres Negras Marielle Franco, este último realizado em parceria com a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ). A Pauta Preta e a Pauta Preta Livre se caracterizam como uma roda de diálogo entre as mulheres negras, as comunidades negras, a sociedade e os órgãos públicos. A Pauta Preta surgiu em 2020 como espaço virtual em que a campanha “Violência contra a mulher é crime” se desenvolveu, abrindo espaço para o diálogo responsável entre homens, mulheres e o Estado sobre essa opressão que se agravou no período de isolamento pandêmico. Diante da adesão e da efetividade da campanha, desdobra-se a Pauta Preta Livre, uma roda agora exclusiva para as mulheres negras que acontece de maneira semanal, sendo um meio de comunicação, denúncia, informação e formação do movimento político do FEMNegras/RJ, principalmente em meio ao contexto pandêmico.

Ressaltando as considerações acima, o caminho metodológico percorrido se deu primeiramente pela observação das atividades das pautas, separando as narrativas de experiências políticas cotidianas que tinham a intenção de promover mobilizações em relação às práticas racistas genderizadas. O segundo passo, após obter essas narrativas, foi construir um processo analítico e interpretativo das escrevivências militantes. Foram realizadas entrevistas individuais remotas com oito mulheres autodeclaradas negras, responsáveis pela administração da organização do projeto da “Pauta Preta Livre” do FEMNegra/RJ. As entrevistas foram fundamentais para compreendermos alguns processos de sofrimentos e re-existências coletivas que o movimento político de mulheres negras consegue alcançar e oferecer cuidado social e subjetivo. A aproximação com as interlocutoras ocorreu também através do ambiente virtual, os procedimentos de planejamento das entrevistas seguiram um roteiro guia e seus conteúdos gravados em áudio foram transcritos. Os processos de observação e das entrevistas compõem todo o escopo metodológico analítico, bem como as discussões teóricas se atrelam às memórias e vivências, sendo assim refletiram-se os processos de potência de vida feminina negra do FEMNegras/RJ.

A seguir, encontram-se algumas informações básicas das entrevistadas, como suas profissões, idade e tempo de participação na militância no FEMNegras/RJ. Foram 8 (oito) entrevistadas, duas com mais de 20 anos de ativismo na FEMNegras/RJ; com as seguintes profissões: técnica administrativa, professora do ensino fundamental e professora universitária, pedagoga, psicóloga, jornalista, cantora, empreendedora; idades entre 26 e 57 anos.

Optamos por não identificar nominalmente as participantes, que assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), respeitando as conjecturas éticas do trabalho, como um modo de preservar as informações sensíveis cedidas.

A Busca pela Mística Quilombola: O FEMNegras/RJ e as Possibilidades de Agências Femininas Negras

A militância enquanto agência política de vida é uma marca nas narrativas de mulheres militantes no FEMNegras/RJ. Essa dimensão aparece sobressalente, principalmente quando foram convocadas a falar sobre as suas percepções em relação ao racismo, demonstrando como práxis militantes negra são pertinentes tanto na percepção dos processos de subalternização quanto na concretização de atos insurgentes. É perceptível o caráter de formação emancipador, na medida em que faz ver e dizer, através de processo político-educador racial, formas de agir contra a colonialidade, ressaltando aqui as reações em relação à dimensão traumática da colonialidade.

Portanto, tomamos a dimensão da agência política das mulheres ativistas enquanto mística quilombola, no sentido em que mística evoca uma ideia ou um pensamento inspirador. Para falar de quilombos, é importante falar de ciclos que não se encerram propriamente em si, mas que re-existem em outras formas de agências. Apresentar o FEMNegras/RJ como um quilombo é perceber a implicação dos ritos de passagem de fugas que as vidas negras enfrentam até hoje. Se antes o quilombo tinha a necessidade de terra - e terra é tudo aquilo que assenta o corpo, a mente, a ancestralidade, a continuidade -, hoje o quilombo urbano instituído pelas mulheres negras tem a necessidade de legitimar o seu pertencimento à terra no sentido mais profundo, o direito de viver neste mundo, porque só há este mundo e todas/os temos o direito de a ele pertencer.

Nascimento (2019) fortalece essa noção quando afirma que um dos princípios do quilombismo é “considerar a terra uma propriedade nacional de uso coletivo” (Nascimento, 2019, p. 305). É pensando a partir das produções sobre o quilombo de Beatriz Nascimento (Gerber & Nascimento, 1989; Nascimento, 2021), Nascimento (2019) e Santos (Nêgo Bispo) (2015), em conversas com as narrativas de vida produzidas pelas mulheres negras militantes do FEMNegras/RJ, que a representatividade simbólica do quilombo se mantém como uma busca do reconhecimento da população negra como nação, como sujeito social e subjetivo.

Os quilombos têm uma história de consciência de vida, de estratégias ético políticas de reafirmação de si, com a vida negra ressignificada na pretitude como substantivo próprio, com nome e sobrenome. É a busca pela confluência, em que “nem tudo que se ajunta se mistura, ou seja, nada é igual” (Santos, 2015, p. 89), afirmando a mobilização das humanidades nas diversas etnias africanas e na pluralidade dos povos indígenas (povos originários). O quilombo é um movimento de resistência cultural negra que tem seu fundamento na fuga, na ruptura do seu apagamento; alimentando a percepção de si mesmo e do seu grupo como sendo capaz de desejar uma outra vida que não é regida pelo sujeito branco colonizador. A fuga do negro é uma afirmação consciente em ação daquilo que o mundo branco não conseguiu destruir.

No que se refere aos quilombos enquanto unidades territoriais e políticas, a mulher tinha um papel primordial nesse ponto da luta pela emancipação e nas formações dos quilombos, conforme Nascimento, “cabia a mulher sustentar a fuga” (Gerber & Nascimento, 1989, n. p.), alimentar os guerreiros e manter o bando arquitetado. A fuga como uma saída possível para a liberdade que as mulheres negras gestaram e ainda gestam por suas comunidades faz parte das ações do FEMNegras/RJ, que se mobilizam para que as famílias que habitam as comunidades e favelas e não têm o que comer alimentem-se, protejam-se e se organizem para que estejam aptas à grande fuga, que é sobreviver ao mundo racista e não sucumbir à morte social. A fuga é de dentro para fora e de fora para dentro, é promover e/ou encontrar furos possíveis de ser, que nos arremesse em outro tipo de vida. É preciso que cada pessoa coletiva quilombola perceba a necessidade subjetiva e física da fuga, e tenha esse propósito como uma agenda política.

Nas histórias de vida das mulheres entrevistadas pode-se ver narrativas cuja agência se constrói desde cedo em movimentações políticas que antecedem a entrada no FEMNegras, por exemplo, experiências com o movimento estudantil, com as religiões de matrizes africanas, com o movimento negro católico, com o movimento negro evangélico, com o movimento de comunidades e favelas etc., com todos esses aspectos se encontrando entrelaçados. O fragmento da entrevistada 4 exemplifica o atravessamento subjetivo e político que a agência coletiva de mulheres negras em territórios de ativismo possibilita:

O Fórum tem implicações relacionadas à minha vida, quando eu falo que o Fórum é um espaço de encontro, é um espaço também que me alimenta... É um espaço que me oxigena, é um espaço onde eu também não me sinto tão solitária nessa luta. É um espaço onde me impulsiona para ir para além, para transbordar do que está ali. A gente tem ali histórias de mulheres que vêm da organização de casas de santo, de grupos de paróquias, de sindicatos e a gente vai vendo como é que esses encontros fazem com que a gente consiga transbordar essas nossas experiências e a gente consiga também se encontrar nessas experiências. . . (Entrevistada 4).

Essa característica implicada na militância no FEMNegras/RJ é um ponto central que confere pertencimento e sentido à construção e à desconstrução que se aprende e que se ensina nesse espaço de formação política, mas também de reformulação subjetiva. Mbembe (2020), a partir da sua compreensão fanoniana, nos faz refletir que “a luta não é espontânea. É organizada e consciente. [...] Fruto de uma “decisão radical”. Ela tem ritmo próprio.” (Mbembe, 2020, p. 145). Assim, a luta das mulheres negras, cada vez mais organizada e consciente, antecede uma tomada de responsabilidade com a vida negra de maneira pública. Todas as narrativas chegaram carregadas de um tom de voz imperativo, sentimentos de pesar, revolta e principalmente de um inconformismo que se traduz em mobilização. As entrevistadas apresentaram uma consciência política do que significa a violência racial genderizada, as suas implicações na sociedade em que vivem e os desafios de lidar com essa desumanização na qual “o negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa e o espírito em mercadoria” (Mbembe, 2018, p. 21).

As narrativas das entrevistadas 3, 4 e 5 apresentam pontos importantes das construções do FEMNegras/RJ na sua aposta política de resposta a estrutura racista e sexista:

O Fórum por formar... por fazer esse trabalho de formação, a gente volta para a sociedade mulheres pensantes, mulheres com domínio do que pode, o que não pode, quem pode e o que pode fazer, sabe! Então assim, eu acho que a resposta do Fórum para a sociedade, frente a esse racismo, é de fato formar diversas mulheres de diversas esferas, de meninas, desde as mais velhas a de fato fazer frente com esse racismo. (Entrevistada 3).

As mulheres negras do FEMNegras/RJ estão anunciando a quebra, a sua luta, a sua persistência, uma fuga que é muitas vezes lida como infinita ou como um continuum ditando uma forma de habitar o mundo. São essas mulheres negras militantes que ainda guardam consigo o sentido da persistência que se diz com o corpo, que para anunciar é preciso ter vivido na quebra, ou seja, na construção de algo novo ao mesmo tempo que recebem as forças contrárias da colonialidade. A narrativa da entrevistada 3 remete a esse algo novo que está sendo criado por elas, expondo ao mundo uma ética de vida que as forjem como detentoras de autonomia, algo que, historicamente, lhes foi negado.

Assim, devolver o trauma ao mundo racista é um trabalho de descolonização, não um trabalho findo, mas um exercício constante por dentro da historicidade do mundo. A aglutinação que a ferida traumática (racismo) causa também convoca uma resposta a quem foi ferido, por isso a urgência de fazer frente contra o racismo, como foi relatado acima pela militante, ainda que essa seja uma reação movida também pelos “usos da raiva” (Lorde, 2020, p. 155).

Faz parte também da devolução desse trauma colonial insistir na persistência da consciência da quebra da colonialidade e, nesse sentido, a noção de agência política é um fomento que provém um solo de possibilidades para que soluções sejam arquitetadas para a entrada das mulheres negras e das comunidades negras ao tão desejado bem viver. A narrativa a seguir se mostra oportuna para mostrar que a vida das mulheres negras, ainda que subjugada e ostensiva à subordinação, é derivada pela ânsia da transformação, o que implica todos os seus esforços subjetivos, sociais e políticos para uma moção coletiva preta.

A nossa resistência em querer viver, em querer viver bem e acreditar que as coisas podem melhorar, eu acho que já é uma estratégia de sobrevivência. Porque ainda acreditar, apesar de todo esse contexto que a gente tem, com todo esse contexto político, todo esse contexto social-económico, a gente ainda acredita. A permanência na luta é também uma questão de não deixar essa esperança acabar. As mulheres elas vão criando estratégias dentro das suas possibilidades para ir para o enfrentamento [...]. (Entrevistada 4).

A continuidade histórica da vida negra é o que está sendo estrategicamente planejado no interior dos nossos quilombos (Nascimento, 2021), ou seja, dentro do FEMNegras/RJ em tantas repercussões de bocas e vozes femininas negras, ressaltadas pela entrevistada 4. O quilombo enquanto sistema social alternativo organizado pelos negros se reatualiza pelas comunidades e favelas; pelos movimentos de mulheres negras, por grupos de pesquisas acadêmicos e performances artísticas negras; nas ideologias ético-políticas emancipadoras etc. Ao que se percebe pelas tantas articulações e tentativas de autoafirmação da história do negro no Brasil, o quilombo transcende o seu lugar institucional e adquire no campo do simbólico múltiplas possibilidades de criar uma definição de identidade nacional positiva do negro. Essa positivação pela via da agência ético-política também tem a função de reinscrever processos de subjetivação.

Para as mulheres negras, uma das prováveis respostas e construção de possíveis em relação à sujeição racial se torna plausível através da militância, perpassando a oportunidade de construir alicerces com os instrumentos institucionais do Estado, no intuito de garantir uma existência social passível de futuro e qualidade de vida, que costura a ética do bem viver. A partir de Souza (1983), é possível também atribuir à agência política um lugar de privilégio quando se remete a transformação da história. Mesmo diante de compreensões diversas sobre o sentido da prática política, a autora afirma, principalmente quando se refere às militâncias negras, que “seu exercício é representado para o negro como o meio de recuperar a autoestima, de afirmar sua existência, de marcar o seu lugar” (Souza, 1983, p. 44). Pautando esse lugar que produz e estabelece transformações através do poder público, a narrativa da entrevistada 5 se situa não só na compreensão do trabalho do FEMNegras/RJ como benéfico para o próprio coletivo, mas também para a sociedade à qual esse coletivo feminino negro pertence, desenvolve-se e mobiliza.

O Fórum vem na perspectiva de trazer esse olhar do processo do racismo à tona, de alertar, de conversar, de permitir essa conversa entre as mulheres para que primeiro se perceba. O Fórum vem chamando a atenção, falando sobre isso, mas sobretudo também pautando, adentrando os espaços de poder. Uma coisa é a gente fazer política enquanto sociedade civil, mas a gente também precisa pautar os espaços de política públicas, os espaços de políticas para mulheres, os espaços de poder. Não é à toa que o Fórum, por exemplo, tem cadeira no Conselho Estadual de Direitos da Mulher, porque ali também vai pautar aquele espaço para quando pensar política da mulher, mas incluindo a mulher preta e falando dos processos de racismos, criando campanhas, palestras, debates naquele lugar. Nos espaços dos conselhos de saúde, porque é necessário pensar na saúde dessa mulher preta e o quanto a saúde dessa mulher preta vai ser afetada por conta desse racismo. Criar como criou um fórum permanente de discussão dentro da ALERJ, porque você discutir pelo lado de dentro, com quem tem o poder da caneta. São ações importantes no combate a esse racismo. (Entrevistada 5).

A compreensão do ato de devolver o trauma, para as mulheres do FEMNegras/RJ, passa pelo sentido de recuar diante das imagens oferecidas sobre si, e forjar, nas persistências políticas, outra imagem que possa engendrar e espalhar mitos positivos sobre a história do seu povo. A imagem, a necessidade de ser visto e que todos também o vejam atuando pelo sistema do bem viver, faz parte da descolonização do eu. Kilomba (2019), ao reler a descolonização como um processo de independência e autonomia da pessoa negra, refere-se ao desfazer da dinâmica do racismo cotidiano que se traduz em: perceber/olhar -> palavra/nomear -> fragmentar/ agredir -> ferida -> encarcerada na fantasia (Kilomba, 2019, p. 224). Beatriz Nascimento (Gerber & Nascimento, 1989), também se refere ao restabelecimento da imagem do corpo negro como uma imagem de um corpo histórico que precisa se livrar das amarras da colonialidade para conhecer autenticamente os seus mitos.

As mulheres negras do FEMNegras/RJ também ensaiam essa busca da mística quilombola através do fortalecimento de uma identidade política coletiva negra, as devolutivas ao trauma colonial cotidiano narrado por elas têm a incumbência de descarregar o fardo racista no mundo. Segundo Kilomba (2019a), “escrever é . . . uma maneira de ressuscitar uma experiência coletiva traumática e enterrá-la adequadamente” (Kilomba, 2019, p. 224).

Considerações Finais: Pelo Bem Viver

A busca pela mística quilombola tange as modulações emocionais, afetivas e mentais que sustentam as estratégias de cuidado narradas acima. A militância de mulheres negras, apesar de ser feita em conjunto e ter seus ganhos, ainda escancara sofrimentos psíquicos de diversas ordens decorrentes do racismo genderizado e cotidiano. O FEMNegras/RJ é esse lugar que assume uma identidade quilombola comprometida com a fuga da violência do trauma, sendo esse ato um princípio subjetivamente importante, já que o desejar a liberdade também requer se perceber como sujeita/o livre. É o lugar também dos rituais das agências, como: a Marcha das Mulheres Negras, as Pautas Pretas Livres, a campanha “Eu voto nas pretas”, do Fórum permanente de diálogos na ALERJ, das diversas ações comunitárias. São rituais que se destinam a promover o debate e a prática do bem viver em sua integridade.

O existir do corpo das mulheres negras, como vimos ao longo deste texto, passa a ser impregnado de subjugação e servidão no mundo ocidental, tendo a experiência da plantação como um conjunto de sentidos atemporais que as enclausuram até hoje nas suas formas de viver. Entender essa história pode ser um portal de saída do sentido da vida negra e a construção autêntica de ser para todos. E é nos movimentos negros que essa construção de vida positiva acontece, é relembrando que a história do negro deixa de ser só a da escravidão, torna-se a história da abolição, das revoltas, do entendimento de se ser detentor de direito. O FEMNegras/RJ é esse lugar onde se chega respeitando a história das lutas, como diz a entrevistada 1, “não é eu por eu, é eu e o movimento”.

Por sua vez, esse posicionamento indica que usufruir do bem viver é um movimento para todas, não apenas para algumas/alguns, como se institui desde a relação transatlântica. Estabelecer elos entre a historicidade negra e as suas agências se mostra como um avanço na busca da longevidade e da preservação da memória da vida negra. Portanto, pensar processos de subjetivação é também pensar no corpo enquanto marcador de linguagens, nesse sentido, a saúde mental é assimilada como um aspecto multifatorial que influencia diretamente espaços psicossociais, nos quais a mulher negra reivindica o bem viver, como exemplo, no seu âmbito familiar, mercado de trabalho, educação, saúde, ciência e em qualquer caminho pelo qual deseje construir sua trajetória preta.

Notas

Financiamento: A pesquisa relatada no manuscrito foi financiada pela bolsa de mestrado da primeira autora (CEFET/RJ-31022014 no. Processo153010).

Agradecimentos

As autoras agradecem ao Fórum Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro e ao Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca- CEFET/RJ, pela contribuição e ao incentivo à pesquisa.

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Recebido: 13 de Maio de 2022; Revisado: 25 de Julho de 2022; Aceito: 01 de Agosto de 2022

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