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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.3 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2011

 

RESENHAS

 

A clínica da fantasia

 

 

Laéria Fontenele

Psicanalista,Diretora do Corpo Freudiano - Seção Fortaleza. Professora do Curso de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia da UFC. Coordenadora do Laboratorio de Psicanálise da UFC. Membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste

 

 

O recalque originário resulta para o psiquismo da criança na instauração
dessa matriz psíquica: a fantasia. Esta, por sua vez, vai fazer com que aquilo que era
empuxo ao gozo, como diz Lacan - pulsão de morte, empuxo em direção à morte -, seja freado e passe a ser uma região na qual a pulsão de morte é sexualizada.

(Marco Antonio Coutinho Jorge, 2010, p.78)

Resenha do livro: "Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan. Vol.2: A clínica da fantasia JORGE, Marco Antonio Coutinho. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, 292 pp.

Um dos mais importantes nomes da Psicanálise Brasileira, o psicanalista e médico psiquiatra Marco Antonio Coutinho Jorge, lançou recentemente o segundo volume dos Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan, onde se dedica às tramas conceituais que embasam a clínica psicanalítica. Nesse volume, a fantasia é definida como resultante da articulação entre o inconsciente e a pulsão, o que dessa forma dá prosseguimento ao tratamento dado a esses conceitos no primeiro volume dessa série.

 

 

Nesse seu novo livro, o autor nos relembra, logo ao final de sua introdução, que "Como dizia Lacan, o psicanalista sério não se reconhece pelo rosto sisudo e postura fechada mas pelo fato de que faz série, isto é, insiste com seu desejo numa determinada direção, retirando dele sua garantia subjetiva" (p.13). Eu diria que, não apenas, o seu novo livro sobre a clínica da fantasia faz série ao seu primeiro, garantido o seu lugar na transmissão da psicanálise no Brasil, como ele mesmo, pelo direcionamento do seu desejo vem fazendo série ao longo de sua trajetória como psicanalista, tanto pelas análises que tem empreendido em seu percurso, como pela transferência de trabalho que tem despertado em colegas de diversos estados do país, as quais se edificam em torno do estudo de Freud com Lacan. Tal traço está presente nesse seu novo livro e se dá a ver através da elegância estilística com que transmite, de forma simples e informada, questões extremamente complexas envolvidas no tratamento das neuroses, perversões e psicoses. Dentre elas, merece destaque a dimensão traumática do real, em relação à qual se erguem a fantasia, o sonho, o delírio e a imaginação. Essas são as formas diferenciais com que contam os humanos para lidar com o osso de suas existências e que apresentam em comum a proteção desses contra o sem sentido. A fantasia, no entanto, pode ter destinos diferentes: pode servir para promover a nossa homeostase psíquica e, também, levar à criação artística e à grandes inventos, mas pode, ao contrário promover sofrimento psíquico e mesmo prejuízos à sociabilide humana quando serve à fabricação de graves sintomas. Tais questões atestam por si mesmas a importância do que Marco Antonio Coutinho Jorge nomeia de clínica da fantasia.

Esse livro, que tem por centro a reflexão sobre essa clínica, visa de uma forma geral, investigar "uma das mais antigas questões postas por Freud:que seria de nós sem o amor?" A relação entre o desejo,a fantasia, o amor e o gozo, são abordados em sua enlace com o sofrimento psíquico e o seu tratamento.

Tendo por fio condutor a importância da descoberta freudiana acerca do papel exercido pela fantasia em nossa realidade psíquica e de seu desdobramento ao longo de sua obra, bem como na retomada que faz dela Jacques Lacan, ao propor, no segundo momento de seu ensino, à luz de seu conceito de objeto a, que o tratamento psicanalítico conduza à travessia da fantasia que aprisiona o desejo do neurótico, o livro se divide em três partes.

A primeira delas é dedicada aos nexos entre fantasia e pulsão sexual, esta entendida como a primeira subversão freudiana que possibilitou o desenvolvimento do que o autor aí chama de "O ciclo da fantasia", que se iniciaria em 1906, e sucederia o "Ciclo do inconsciente", ocorrido, segundo ele, entre 1900 e 1905, com a progressiva formalizaçao do conceito de inconsciente. Segundo a teia argumentativa desse capítulo, o ciclo da fantasia se prolongaria até 1911 e seria responsável pelo início de um novo ciclo, denomidado de "Ciclo da técnica", onde Freud teria colhido as consequencias do desenvolvimento do conceito de fantasia para fundementar a técnica psicanalítica, na qual ocupa um lugar fundamental seus artigos sobre o início e a condução da cura analítica e sobre o papel nela desenpenhado pela transferência. São trabalhadas, ainda, como sintoma e fantasia se entrecruzam e sobre os dois polos da fantasia, que por sua vez engendram a discussão acerca da relação entre amor e gozo.

 

 

Na segunda parte do livro, o autor traça os impactos da " segunda subversão freudiana", qual seja, a descoberta da pulsão de morte e suas tácitas e estranhas relações com os obstáculos que se erguem à cura analítica. Tal conduziria a uma renovação da técnica analítica por Freud, devido aos acréscimos produzidos em relação à construçao da fantasia. Além disso, nessa parte do livro, a relação entre amor e morte são magistralmente tratados, bem como a relação entre pulsão de morte, o masoquismo e o gozo. Demonstra-se, então, que a fantasia na sua relação com o prazer serveria de mediação entre o prazer e o seu mais além. Tal pressupõe que se considere haver a oposição entre prazer e gozo, o que demonstra estar a fantasia ligada não mais à Coisa - seu núcleo real - mas ao objeto a. Diz o autor quedevido a essa ligação se dá a sexualização da pulsão de morte por meio da "erogeneização dos orifícios corporais, que são zonas privilegiadas de troca com o Outro e sobre as quais a demanda do Outro incide" (p.145)

Fechando o livro, a magnífica parte que nos fala do despertar do sentido, o qual nos levaria a despertar para o real, para o sem sentido. Com isso, nos leva a pensar sobre a importância clínica do efeito de sentido real, ao qual Lacan se refere no terceiro momento do seu ensino, prolongando a reflexão sobre a cura para além da travessia da fantasia, para além dos efeitos de sentido simbólico e imaginário.Ressalto aqui a brilhante análise que faz o autor da escrita de Clarice Lispector, na qual segundo ele haveria o exercício reiterado da experiência do despertar. Clarice, em se valendo do ordinário do cotidiano com que é feita a vida dos homens e dos sentidos que condensa tão fortemente, consegue, segundo Marco Antonio, atingir a mais radical essência do humano.

Todos esses tópicos, essenciais ao entendimento clínico, o autor nos apresenta fazendo-se valer de sua rica experiência clínica, bem como de sua sensibilidade cultura literária e estética, a qual refaz e renova constantemente o direcionamento de seu desejo e a sua série.

 

 

Recebido em: 03 de abril de 2011

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