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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.3 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2011
ARTES
Estilo x pejorativismo (psicanálise, cinema e poesia)
Bruno Abreu de Mello Campos
Psicanalista, Professor e Membro Associado da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, Professor da Universidade Santa Úrsula (Pós-Graduação e Graduação), coordenou cursos de Psicanálise e Cinema na PUC-Rio, em Cabo Frio e em Niterói
A insistente tendência humana ao maniqueísmo cria um efeito de "metástase" na capacidade de perceber de forma aberta a diferença. Criar um espaço interno capaz de receber a diferença, num tempo muito anterior às positivações e negativizações, pressuporia uma diferenciação de si.
O intervalo entre a percepção e a valoração carece de provocações a fim de ser alargado, povoado, habitado. A obra de arte poderia, aqui, produzir um efeito de interessante perturbação na tendência à pressa de "compreender e concluir" (tal como colocado por Lacan em seus Escritos). A disruptiva afetação da arte permitiria ao "instante de ver" um desdobramento em perplexidade, com duração estendida, suportada.
O cinema de Wim Wenders, por exemplo, oferece esse espaço alargado, planos de silêncios ou sonoridades de fundo. Exemplo disto é a cena de "Estrela Solitária", em que o protagonista, um pai ausente, vive uma noite inteira de sonhos, pensamentos e alucinações, enquanto a câmera o circunda sentado num sofá quebrado em meio ao "lixo" jogado pelo filho. Wenders dejeta o personagem, provocando um espaço de projeção ao espectador, onde este pode receber e sentir essa emoção-dejeto até sua ultimidade. Ao ser entrevistado em "Janela da Alma" (Brasil; 2002), Wenders coloca que a maioria dos filmes apresenta imagens emendadas, não disponibilizando esse intervalo à existência em imersão por parte do público.
Esse questionamento é brilhantemente discutido no texto "O Estranho" (obra-prima freudiana). Ao comentar um conto de Hoffmann ("O Homem de Areia"), Freud analisa estranhamentos principalmente enquanto "secretamente familiares". Esta interpretação é fundamental para inibir a tentação onipotente de considerarmos uma "abertura ao novo" em estado de pureza (Lacan talvez nomeasse isto de delírio de autonomia). A conexão com alguma familiaridade seria, portanto, condição de possibilidade para qualquer contato com a diferença.
Tomando essas questões como pontos de partida, chegamos ao filme "Nome Próprio", de Murilo Salles. Leandra Leal (ótima no papel) vive uma escritora de moradia supostamente errante. A cada novo apartamento, repete algumas atitudes específicas: anda nua pela casa, escreve nas paredes, bebe bastante, transa supostamente de forma promíscua, se complica para pagar o aluguel até ter que sair.
Em várias exibições, o filme provocou intensas afetações, desde conversas revelando incômodos em voz alta, até saídas muito antes do final. Muitos viram a protagonista como uma pessoa "perdida, desvinculada, desregrada, descontrolada". Um dejeto humano, errante, nômade.
Se articulássemos o filme a certas partes da obra de Bukowski, ou à de Baudelaire, poderíamos talvez discutir a potência subversiva da indigência, ou até sua estetização glamourizada.
A proposta, aqui, no entanto, endereça-se à pejorativização do nomadismo da personagem de Murilo Salles. O in-cômodo causado por seu modo de vida, muito antes de ser apenas opinião, revela, talvez, uma a-versão prévia em espectadores não necessariamente considerados "típicos moralistas", ou qualquer estereótipo de "indisponibilidade ao novo". Daí um dos vários motivos para considerarmos o filme uma obra de arte com especial capacidade de alargar ou de estreitar o espaço entre o instante de receber/ver/perceber, e os tempos de compreender e concluir/valorar. Neste sentido, tanto alargar quanto estreitar esse intervalo seriam a mesma afetação. O que diferiria, aqui, seria o potencial de suportabilidade ante a perplexidade.
Seguramente, o alargamento, como dito anteriormente, não deveria ser idealizado. Isto, pois a proximidade à estranheza (Real) não é passível de se manter "desencapada". Ao se abrir espaço ao "novo", cedo ou tarde o sujeito o incorpora, o apadrinha, acomodando o novo morador.
Em "Nome Próprio", a personagem poderia ser vista em grande potência se pensássemos um "nomadismo enquanto residência fixa", nada deixando a dever à capacidade de sedimentação ou de vinculação. Portanto, a qualidade de nomadismo não precisaria ser pejorativizada, e nem tampouco glamourizada (enquanto antiestagnação).
Chegando então à questão-título, uma das interpretações possíveis quanto à repulsa causada pela personagem trazida por Murilo Salles, diria respeito às inúmeras barreiras que dificultam o acesso à "simples possibilidade" de olhar para seu modo de vida como um estilo. Se o nomadismo puder também ser visto como "não sintomático em si", se as marcas que a protagonista deixa nas paredes dos apartamentos e as marcas que carrega em seu corpo puderem ser dignificadas ao nosso olhar, e se, sobretudo, suportarmos por algum tempo a mais a Real angústia e a perplexidade diante da diferença, talvez possamos libertar a personagem do estereótipo de perdida, e recebê-la com o status de Um Nome Próprio. Des-perdidos, talvez, ficássemos nós.
Outros filmes: Só Dez por Cento é Mentira - A Desbiografia Oficial de Manoel de Barros; Dzi Croquettes; Moscou.
REFERÊNCIAS:
BAUDELAIRE, C. (2009). "Espanquemos os pobres". In:______ Pequenos Poemas em Prosa. Rio de Janeiro: Record. [ Links ]
BUKOWSKI, C. Factotum. Rio de Janeiro: L&PM EDITORES, 2007. [ Links ]
FREUD, S. (1969) ESB das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (1919) "O estranho". [ Links ]
KANT, I. (2009) "A paz perpétua: um projeto filosófico" In:______ . A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70. [ Links ]
LACAN, J. (1998). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (1945) "O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada". (1953) "Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise". [ Links ]
Rio, 25/05/2011.