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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.5 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2013
ARTES
Um conto de fadas às avessas
Joana de Vilhena Novaes; Ricardo Mendes Barros
IPós-Doutora em Psicologia Social. Pesquisadora e Psicoterapeuta do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS) da PUC-Rio. E-mail: joanavnovaes@gmail.com
IIDesenhista industrial. Licenciado em Educação Artistica (UFRJ/UCAM). E-mail: ricky.barros@hotmail.com
Shrek é um filme norte-americano do gênero animação computadorizada, dirigido por Andrew Adamson e Vicky Jenson e estrelando as vozes de Mike Myers, Eddie Murphy, Cameron Diaz, e John Lithgow. O filme, baseado no conto de fada Shrek, de William Steig, foi o primeiro a ganhar o Oscar de melhor filme de animação, uma categoria introduzida em 2001.
Por que analisar um sujeito que vive isolado no meio de um pântano e ainda por cima ostenta claras tendências antissociais? Em tempos de "corpolatria" exacerbada, sob o paradigma da religião do culto ao corpo e ode à sociedade do espetáculo, - qual o fascínio exercido pelo personagem de um ogro gordo e verde, que não ostenta qualquer atrativo estético?
Talvez a resposta às nossas indagações resida no fato de tratarmos aqui de uma obra caracterizada pela forma crítica, contudo, cheia de humor, como aborda as relações entre personagens de distintas classes sociais, enriquecidas com nuances do mundo interno e subjetivo dos diversos atores. Além disso, a falta de caráter dos "príncipes encantados" e, sobretudo, o romance entre dois anti-heróis, tornam inevitáveis as referências à cultura pop atual e, igualmente, propõe uma visão crítica e acurada no tocante ao fenômeno social de moralização da beleza, visto que a mocinha e seu herói salvador são figuras subversivas por não encarnarem os ditames estéticos atuais.
A feiura é, atualmente, uma das mais presentes formas de exclusão social, e como tal, uma importante forma de agenciamento de subjetividade. Tomando a gordura como uma das atribuições mais representativas de feiura na cultura atual, apontamos para os processos de exclusão vividos por aquelas que a sustentam. Talvez aqui estaria justificada a tendência ao isolamento do nosso protagonista, que viu sua solidão ameaçada quando o governante de Duloc, Lord Farquaad, decide expulsar todas as criaturas mágicas para a floresta. Com uma crença inequívoca acerca do julgamento moral depreciativo que supunha partir dos outros seres da floresta, Shrek erigiu um sólido mecanismo de defesa contra a frustração de um olhar que supunha ser acusatório e muito pouco generoso. Causar medo parece então ter sido a saída do personagem.
Vivemos numa civilização em que as representações do que é ser belo, veiculadas pela mídia, acabam por transmitir discursos e saberes, que indicam como devemos ser. Amplamente disseminadas, essas imagens são carregadas de significações que produzem verdades, indicando formas de pensar, de sentir e conhecer, que por sua vez, ensinam ao sujeito os modos de ser e estar na sociedade e na cultura em que está inserido. Nos ensinam, igualmente, a quem devemos classificar como estranho e, portanto, excluí-los por não enquadrarem-se na forma como estamos habituados a entender a beleza e a ordem, - tão necessárias para a organização do mundo tal qual o conhecemos.
Nesse sentido a mídia, por ser um meio de produção e reprodução de informações, onde circulam concepções de gênero, classe social, sexualidade e raça- reafirma-se enquanto uma instância educativa. Portanto, para além da sua função de entretenimento, este artefato cultural deve ser considerado como um importante local de formação cultural e disseminação dos valores hegemônicos. Nesse sentido, o midiático transformou-se em um dispositivo pedagógico diretamente relacionado à formação das identidades, reproduzindo conceitos sobre os mais variados aspectos da vida associativa e que valorizam determinados padrões e comportamentos em detrimento de outros.
Sabe-se que o pensamento Moderno tem como marco a compreensão da diferença como um desvio do padrão de normalidade o que, por conseguinte, redundaria na criação do patológico como categoria formalizada e instituída. Marcados por estereótipos, quase sempre relacionados à incapacidade, improdutividade e/ou doença, os grupos desviantes foram vítimas de discriminações e preconceitos, sendo, na maioria das vezes, isolados em instituições especializadas, como nas escolas especiais, por exemplo.
Voltemos nesse momento à ficção em questão. A ausência de uma instituição total que encarcerasse o protagonista, não fazia, contudo, sua condição menos opressora, posto que partirmos da premissa que mesmo na vastidão da floresta, Shrek estava aprisionado, - assombrado pelo espanto que a sua imagem causava nos outros habitantes daquele lugar. Não à toa, sua trajetória o leva a um terreno pantanoso, no qual imperam, até certo ponto da narrativa, a desesperança e a crença na imutabilidade de uma realidade enfadonha e solitária. Mas o filme aponta também para um outro modelo pautado no princípio do padrão mais contemporâneo, o vinculado ao princípio da diversidade. É o que ilustra a fala do personagem do burro falante na fábula. Este á amigo de Shrek, que uma vez sem vontade de voltar ao local onde vivia, tenta convencer o ogro a deixá-lo ficar em sua companhia. Nesse sentido, as palavras do animal nos parecem representativas do argumento apresentado: "por favor, eu não quero voltar para lá, é muito chato ser considerado anormal".
Palavras que nos parecem partir da premissa de que todos são diferentes e que, portanto, não haveria padrão de normalidade. O personagem do burro falante é apresentado com a clara noção de que, em seu lugar de origem, todos o consideravam anormal. Contudo, agora em seu novo lugar sentia-se livre ao lado de Shrek, posto que ali o consideravam perfeitamente ajustado. Além de expressar a ideia de exclusão social, o discurso do burro aponta para algo ainda muito importante: o ato de resistência, observado no fato de negar se incorporar àquela avaliação moralmente depreciativa, associada ao lugar de diferenciação. E é justamente por não ter hospedado dentro de si um discurso opressivo que o personagem pôde, novamente, sentir-se integrado ao cenário externo.
Ora, Shrek só consegue libertar-se da prisão na qual está condenado vivendo apartado de todos, sozinho no pântano, quando se insurge decidindo exercer uma função distinta da Besta Fera, temida por todos. Entretanto, quando ao contrário, o dominado hospeda dentro si os preconceitos que lhe foram atribuídos, assimilando o discurso dominante de maneira acrítica, tem-se um eficiente instrumento de dominação, que dispensa a força física, posto que aprisiona o sujeito alimentado pelo seu próprio sentimento de insuficiência e inadequação, sendo, por isso, uma estratégia de regulação muito mais eficaz.
Com uma abordagem afiada no tocante à temática dos estigmas relacionados à aparência, o desenho apresenta uma grande riqueza de diálogos nesse sentido, como revela a cena em que Shrek se queixa das pessoas o julgarem antes mesmo de conhecê-lo. Com isso, o personagem reafirma a crueldade e injustiça presentes no olhar preconceituoso que o imaginário social demonstra lançar em relação à feiura: "Olha, não sou eu que tenho problemas, ok? É o mundo que parece ter um problema comigo. As pessoas olham para mim e: Ah! Socorro! Um ogro enorme e horrível! Elas me julgam antes de me conhecerem".
Considerando que a arte imita a vida e vice e versa, no caso do filme, assim como na vida real, os personagens interpretam a condição de "ser ogro" como um estigma. A imagem de Shrek parece, automaticamente, disparar nos outros personagens do filme a imediata associação da sua figura com o estereótipo de uma figura má. Sendo assim, julgam Shrek antes mesmo de conhecê-lo, como se todos os ogros e ogras possuíssem as mesmas características pessoais.
Outra ruptura trazida pelo filme diz respeito à aceitação da diferença. No filme, é superada a ideia de que para ser feliz é preciso ajustar-se à norma, deixando de ser diferente pela correção dos "desvios" ou pela união a seus iguais. Ao contrário da fábula do "Patinho Feio" em que o personagem se transforma num belo cisne, anulando a diferença entre os irmãos e ele, em "Shrek", o burro falante alcança a felicidade ao tornar-se livre para viver junto aos que não o tratam como desviante, não precisando, dessa forma, juntar-se a outros burros falantes, nem, tampouco, sendo necessário deixar de falar para ser integrado aos outros burros, - as suas características individuais foram mantidas.
Resta saber, por que a princesa Fiona não se transformou em humana após libertar-se do feitiço? Por que precisou manter-se ogra, como Shrek, para ficarem juntos? Estaria aí, sendo produzido o sentido de que a felicidade só pode ocorrer entre iguais? Fica a nossa indagação....
Recebido em: 03/03/2013
Aprovado em: 06/06/2013
Filme: "Shrek". Produzido pela Dream World Animation, Estados Unidos, 2001.