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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.6 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

O discurso imagético de Glauco Rodrigues

 

The imagistic discourse of Glauco Rodrigues

 

 

Carlos Augusto VianaI; José Rogério SantanaII

IProfessor-assistente do Curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará (UECE); doutorando em Educação na Universidade Federal do Ceará (FACED / UFC); ocupa a cadeira nº 3 da Academia Cearense de Letras. Ensaísta e poeta. E-mail: ca.viana@terra.com.br
IIDoutor em Educação pela UFC e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, com linha de pesquisa no NHIME - Núcleo de História e Memória em Educação pela FACED /UFC; coordena o Grupo de Pesquisa BioDigital do Instituto UFC Virtual. Poeta e artista plástico. E-mail: Rogerio@virtual.ufc.br

 

 


RESUMO

Partindo do pressuposto de que as composições de Glauco Rodrigues portam, em seu discurso, um elo entre o olhar e o pensamento, este ensaio visa analisar as falas que se evolam de sua arte. Para tanto, empregamos o método interpretativo, tendo por base o intrínseco textual, aqui tomado como o feixe de mensagens construídas pelo pictórico. O estranhamento, presente na obra do artista plástico, vai também em direção à intertextualidade e à intratextualidade - diálogos com a tradição e com a sua própria tessitura discursiva -, numa síntese eu e mundo, numa dissolução de fronteiras.

Palavras-chave: Glauco Rodrigues; Imagem; Discurso.


ABSTRACT

On the assumption that the compositions of Glauco Rodrigues carry, in his discourse, a link between the eye and the thought, this essay aims to analyze the lines that exhale of his art. To this end, we employ the interpretive method, based on the intrinsic verbatim, here taken as the beam of messages built by the pictorial. The strangeness, present in the work of the artist, goes toward the intertextuality and intratextuality - dialogues with the tradition and with its own discursive texture - in a self-world synthesis, a dissolution of frontiers.

Keywords: Glauco Rodrigues; Image; Discourse.


 

 

A arte é uma linguagem carregada de significados em seu mais alto grau de expressão. Gravita, portanto, numa atmosfera que, ao mesmo tempo, alumbra e espanta os que, por sobre qualquer composição, em quaisquer recursos expressivos - pintura, literatura, música, fotografia, cinema, escultura etc. - lançam um olhar perscrutador. As composições de Glauco Rodrigues (serigrafia, litográfica, design gráfico e pintura) carregam, em seu discurso, uma ponte que se estende entre o olhar e o pensamento; quer dizer, vê-las, contemplá-las é, indelevelmente, ser impulsionado a uma reflexão, a uma releitura das manifestações do real: "Olhar uma pintura é como fazer uma viagem - uma viagem com muitas possibilidades, incluindo a emoção de compartilhar as concepções de outra época" (CUMMING, 2010, p. 6).

 

O belo

As reflexões acerca do belo, em vasos comunicantes com as que envolvem as questões relacionadas ao bem e ao verdadeiro, suscitaram, ao longo dos tempos, inúmeras concepções. Não à toa, tudo isso foi delineado. Consoante Lima (1973, p.13), a política e a ética cuidam do bem; a lógica e a metafísica, do verdadeiro; e a estética, do belo. Nesse sentido, uma luz, mesmo tênue e arquejante, palmilhando os obscuros corredores da condição humana, diz do homem e de sua hora. São essas as falas que se evolam da arte de Glauco Rodrigues, a serem, neste ensaio, perquiridas pelo método interpretativo, a partir do intrínseco textual - este tomado como o feixe de mensagens construídas pelo pictórico.

 

A abertura

 

 

A arte não é a realidade, mas a representação desta. (Não foi isto que nos quis dizer aquele cachimbo de René Magritte: "Ceci n'est pas une pipe"?) Na serigrafia, sob o título "São Sebastião", de 1997 (Imagem I), deparamos, em primeiro plano, a imagem do Santo, não em decrepitude, mas em altivez: impassível, ante a sanha das flechas que lhe lancetam o coração, o flanco direito e a coxa esquerda. Essas três flechas, simetricamente distribuídas, formam diversos triângulos, considerando-se as linhas que partem de seu centro. Na base da formação da pirâmide, está o triângulo: se equilátero, simboliza a divindade, a harmonia, a proporção; retângulo, liga-se a Terra, segundo a leitura de Platão. Nos jogos dessa geometria, entrelaçam-se o sagrado e o profano (CHEVALIER & GREERBRANT, 1989). Não é a santidade a vitória do espírito sobre a carne?

A poesia está em todo lugar, pois toda criação artista, quando no ápice de sua expressão, desemboca no estado poético. É exatamente nesse momento que se instaura a função poética: o espanto de dar-se com o que se inscrevia, até então, como inefável. É o que os formalistas russos sintetizaram como sendo o estranhamento, implicando este a exigência de um tempo maior no exame da obra de arte, isto é, o desafio de uma leitura. A função poética, como se percebe, concentra-se na mensagem: a sua produção é fruto de uma elaboração, mesmo ainda que resulte de um estado entre a inconsciência e a consciência, já que a arte não existe no vazio, tampouco deste advém.

Desse estranhamento, banha-se essa criação de Glauco Rodrigues. Ao fundo da peça "São Sebastião", um mais demorado olhar levará o contemplador da composição, por elipses mentais, a deparar a beleza plástica do litoral carioca, em sua expressão natural, sem a intervenção do homem: é simplesmente uma metonímia da cidade representada, assim, pela presença dos morros. O Santo, em vez de uma tradicional cruz, está cravado a uma árvore decepada; e, a partir daí, muitas indagações se inscrevem: o sangue do mártir cobriu o azul do céu? O tom rosa é fruto do abraço entre o vermelho e a brancura das nuvens? E, a partir da concepção de "obra aberta", de Umberto Eco (1988), segundo a qual, a arte não é um universo fechado em si mesmo, mais especulações: as cores verde e rosa, tão intensas, são as da Mangueira? E o vermelho e o negro do tecido que lhe cobrem o sexo, as cores do Flamengo? Samba e futebol como as expressões profanas da cidade do Rio de Janeiro?

Na serigrafia "São Sebastião", o artista plástico Glauco Rodrigues explorou, em jogos de armar, isto é, o revelar e o esconder, toda a força simbólica do sangue. De maneira mais nítida, o sangue escorre, ainda no início de seu jorro, em forma triangular, de diversas partes do corpo, sem que, no entanto, isto aponte qualquer expressão de dor, pois não há contorções no corpo. Por outro lado, concentra-se, também, o sangue nos olhos de São Sebastião; dentro deles, encontra-se como que coalhado, como se aludisse a um sofrimento indelével, inesgotável; enfim, o sofrimento dos mártires, cujo sacrifício do corpo purifica a alma. Trata-se, portanto, do sofrimento de uma interioridade, ou seja, vai em direção às profundezas do eu.

 

Caminhos de uma experiência

Percorrendo os quadros da exposição, intitulada "O Universo Gráfico de Glauco Rodrigues" em homenagem ao artista, falecido em 2004, depara-se o exímio cuidado com que o curador Antonio Cava procurou organizá-la. (A abertura dessa retrospectiva deu-se no dia 4 de dezembro de 2012, às 20h, na Caixa Cultural Fortaleza - Galerias 1 e 2, na Av. Pessoa Anta, 287 - Praia de Iracema, e a exposição aí permaneceu até o dia 6 de janeiro de 2013). De sala a sala, veem-se as ondulações do tempo, e, assim, os diversos caminhos por que o artista gaúcho construiu a expressão de sua arte. Diversos momentos de sua vida, bem como da própria história de nosso país, são, então, intensamente vivenciados. O passado e o presente, num fluxo e refluxo, falam das coisas e dos seres com a verdade de um compromisso: o da leitura da inserção do homem na vivência cotidiana, quer de cidades, quer do próprio país como um todo.

 

Corredores da memória

Principalmente no ano de 1997, Glauco Rodrigues compôs uma série de serigrafias que recuperam, através dos filamentos da memória, a sua juventude em Bagé, no Rio Grande do Sul - ele nasceu em 1929. São cenas da vida no campo, seus usos e costumes, os elementos configuradores de uma cultura singular: o vestuário, os cavalos, hábitos alimentares, mobiliário, fragmentos de arquitetura e da paisagem natural.

Se em 1952, aos 23 anos, Glauco Rodrigues compusera três linoleogravuras, (duas em preto e branco; uma, em cores, com o destaque para o vermelho e o verde) explorando traços firmes, em formas mais compactas, agora, em 1977 (passaram-se, assim, uns vinte e cinco anos), os traços, predominantemente mais finos, são formas interrompidas, assim como os rios do Nordeste que, em seca, cortam as linhas do seu curso:

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria (MELO NETO, 1999, p.99).

É como se, imprecisa, a memória fosse composta por uma sucessão de vazios: em "Bagé, 1953 - Corrida de Cancha Reta 6", serigrafia datada de 1977 (Imagem II), um homem, em plano americano, no ar, montado em um invisível cavalo; um quase meio cavalo, sem o cavaleiro - uma comitiva na imprecisão de um espaço:

 

 

Já em "Bagé, 1953 -Corrida de Cancha Reta 2", também de 1977 (Imagem III), esparge-se a sugestão de uma estância, da qual não se vê a casa, tão somente uma presumida estrebaria - e, além, um homem que, solitário, prepara o alimento, talvez também para outros, sugeridos pela presença de bancos e de cadeiras: o tempo e suas artes de embaçar as palavras e as coisas.

 

 

Explosão das cores

Entre os anos de 1966 e 1989, Glauco Rodrigues, tanto em serigrafia quanto em litografia, deu relevo às cores, empenhado na construção de tipos e de cenas cotidianas que, inscritos no espaço físico e cultural da cidade do Rio de Janeiro, traduzissem, a partir da extensão de sentido advinda da força da metonímia, também o modo de ser do povo brasileiro.

São, portanto, cenas de carnaval - festa popular que desfaz as fronteiras entre o sagrado e o profano -, com suas personagens singulares, fruto da inversão de valores; tipos como o do malandro ou a moça da praia etc. O tom de brasilidade faz-se mais imperioso pela imagem recorrente de papagaios e elementos configuradores da nossa subjetividade: o viver nos outros, o cultivo da alegria, o sonho com a riqueza - mas associada esta à ausência de esforços; neste último caso, ressaltem-se a litografia "A deusa da fortuna", de 1987, com as fortes tintas da alegoria, bem como a litografia "Sebastião", de 1987 (Imagem IV).

 

 

Com esta, a serigrafia "São Sebastião", de 1997, estabelece uma intratextualidade; na medida em que, na presente imagem, o crucificado não tem rosto, e, ao fundo, predominam as cores preta e marrom. Assim, perdendo o rosto, isto é, a identidade, "Sebastião" é a representação alegórica do povo brasileiro, a carregar, às costas, o fardo do descaso e do abandono, sob a inexaurível indiferença, seja esta de ditadores ou de democratas.

 

Revistas e discos

Glauco Rodrigues, entre os anos de 1959 a 1962, empregou o seu talento na criação de capas para a Revista Senhor. E o que mais assoma dessa parceria, entre o criador e o meio de comunicação, são as soluções visando a uma harmonia absoluta entre a imagem da capa e o conteúdo das matérias de miolo; ganha relevo, ainda, a capacidade de renovação constante ao longo das edições.

Empregou também o seu talento para a ilustração de capas de discos; dentre estas, destacam-se as do compositor e cantor João Bosco: respectivamente, "Caça à raposa" (1975); (Imagem V) e "Galos de Briga" (1976) (Imagem VI).

 

 

 

 

No primeiro, ladeado por um papagaio e por um homem do povo empunhando um violão, encontra-se um crucificado; desta vez, não mais um santo, mas um brasileiro comum, de cujos olhos escorrem lágrimas e não sangue; este jorra, por sua vez, do corpo, não mais por causa de flechas, mas por balas, como denúncia dos anos de chumbo da ditadura civil e militar; e um detalhe: o braço esquerdo - a esquerda associada, à época, pelos resistentes, ao sonho da igualdade e da liberdade - está amarrado a um tronco verde por uma corda. No segundo, o pé do galo, com seus esporões de aço, por um lado, e a tenacidade de São Jorge, por outro: tudo é observado por um olho, pleno de poder onisciente, fixo e poderoso, que perlustra a cena geral de violência, mas também de resistência.

 

Rio de Janeiro

Entremos, agora, no salão da exposição de Glauco Rodrigues, dedicado, de maneira mais delimitada, à leitura que o artista fez da cidade do Rio de Janeiro. Correspondendo ao que, mais propriamente fez o paulista Oswald de Andrade (1978) na reconstrução da História do Brasil, Glauco Rodrigues recupera o próprio percurso da cidade do Rio de Janeiro: de sua fundação, em 1565, aos tempos da contemporaneidade. Sucedem-se vistas da cidade no século XVIII; os tempos dos Vice-Reis; a era de Dom João VI; o Primeiro Reinado; o Segundo Reinado; a República Velha; a Revolução de 30; o Estado da Guanabara etc. Há cenas que aludem ao samba, ao carnaval, ao futebol - este, de modo bem sutil, pois, em vez do calor de uma partida num estádio, o que se vê é a imagem de um torcedor, com a Bandeira do Brasil enrolada ao corpo, gritando com euforia: "Gol!!!"

 

Considerações finais

A superposição de um texto a outro, ou seja, um conjunto de relações explícitas ou implícitas que as criações artísticas realizam entre si, corresponde ao fenômeno da intertextualidade, como uma das configurações da arte contemporânea. Evidentemente que, desde o longe, os textos, em diversas modalidades, já conversam entre si, todavia, é tal procedimento um recurso mais intenso na pós-modernidade.

Na Série "Cânticos dos Cânticos do Rei Salomão", de 1967, os textos do Rei poeta sofrem a intervenção de cores fortes, - especialmente o verde e o vermelho, com realce, na pintura, das formas femininas da atualidade. Da pintura flui, em equilíbrio com o texto, a sensualidade das formas; as moças (Imagem VII) ora sugerem práticas esportivas (pois o vôlei e a natação assomam numa superposição de planos), ora, em óculos e biquínis, lazer, praias e expressões de erotismo.

 

 

Glauco Rodrigues, em 1987, cria, em sua galeria de tipos brasileiros, a litografia "Mamãe Abaporu", numa releitura dos princípios antropofágicos dos modernistas de 1922. Na litografia "D'Après Almeida Jr.", de 1979 (Imagem VIII), revisita o quadro "O derrubador brasileiro", de Almeida Jr. Agora, em vez da serenidade de quem descansa, com o cigarro aceso, empós um árduo trabalho, o brasileiro, homem do povo, chora, numa comovente desolação.

 

 

Por fim, de volta ao Rio Grande do Sul, por meio de serigrafias e litografias, no fluxo e refluxo do esquecimento e da memória, Glauco Rodrigues deixa-se tomar pela imperiosa força de sua cidade natal. Ocupa-se, agora, da recriação de ginetes, de acampamentos (Imagem VII), e, através dessas composições, percebe-se a intrínseca relação entre o homem e os elementos da natureza; bem como a determinação no tocante à conservação de crenças e de valores. Glauco Rodrigues é o Brasil e somos todos nós: uno e diverso.

 

 

Referências bibliográficas:

ANDRADE, O. de (1978) Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira        [ Links ]

CUMMING, R. (2010) A arte em detalhes. Trad. Maria da Anunciação Rodrigues. São Paulo: Publifolha.         [ Links ]

ECO, U. (1988) Obra aberta. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

CHEVALIER, J. & GREERBRANT, A. (1989) Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.         [ Links ]

LIMA, L. C. (1973) Estruturalismo e teoria da literatura. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

MELO NETO, J. C. de (1999) Poemas pernambucanos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 11/04/2014
Aprovado em: 09/07/2014