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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.7 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2015
https://doi.org/10.18370/2176-4891.2015v1p52
ARTIGOS TEMÁTICOS
Transexualidade e sexuação: o que pode a psicanálise
Transsexuality and sexuation: what can psychoanalysis
Elisabeth da Rocha Miranda
Psicanalista. Doutora pela UERJ. Professora do Curso Especialização em Psicologia Clínica (PUC-RJ). Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. E-mail: bethrm@uol.com.br
RESUMO
Neste trabalho, discutimos a posição do transexual em contraponto ao discurso capitalista e à ciência. No texto, questionamos tal posição antes da possibilidade de mudança do corpo promovida pelas novas técnicas cirúrgicas e perguntamo-nos: em um tempo anterior a essa oferta cirúrgica não havia sujeitos transexuais? Como disse Lacan, a oferta cria a demanda e o resultado dessas intervenções não livram o sujeito da castração que é simbólica e marca uma inadequação estrutural entre corpo e sexo social.
Palavras-chave: transexualidade; discurso capitalista; ciência; castração.
ABSTRACT
In this work we discuss the position of the transsexual as opposed to the capitalist discourse and to science. In this text, we question the transsexual's position by new surgical techniques and ask: in a time before this surgical supply, were there not transsexual subjects? As Lacan said, the supply creates the demand and the outcome of these interventions, on the one hand, do not free the neurotic subject of castration, which is symbolic, and marks a structural mismatch between body and social gender, on the other hand, also does not operate the castration for a psychotic subject. Although in some instances it may function as a substitutive.
Keywords: trans sexuality; capitalist discourse; science; castration.
Especialmente durante os últimos cinquenta anos, temos visto acirrar-se o debate sobre a discordância dos sexos, dominando cada vez mais a cena atual. O movimento feminista - mas não só, pois há outros movimentos que também reivindicam novas formas de sexualidades - impulsionou o desenvolvimento de muitos estudos em torno do questionamento do laço entre os mecanismos de controle da sexualidade e os sistemas de poder. Esses movimentos de "liberação sexual" promoveram importantes modificações jurídicas e políticas das estruturas familiares. À psicanálise concerne este debate em torno da sexualidade, de suas interpretações e modalidades.
Freud trouxe à luz a sexualidade como desnaturalizada e sempre infantil, postulando para o mundo o que ele mesmo chamou "a peste" ou a maldição do sexo. A natureza é para o humano perdida desde sempre e é pela linguagem que nos inserimos na partilha dos sexos como homem ou mulher e não pela anatomia. A determinação inconsciente da sexualidade, oriunda da inserção da estrutura da linguagem no organismo do vivente, deixa aberta a pergunta sobre a maneira com que cada sujeito lida com o amor, o desejo e o gozo. Há uma falha central que é de estrutura e para a qual existem respostas coletivas que variam no decorrer da história da humanidade, e há respostas sintomáticas que são singulares a cada sujeito. O fenômeno da transexualidade é bem antigo e paradoxalmente bem atual, pois está na base das concepções atuais de gênero e sexo.
O desejo de mudar de sexo existe muito antes de surgir o termo "transexualidade". Recordemos a história do Abade de Choisy (1644-1734), que se foi aos poucos transformando em uma grande dama. Utilizando-se apenas de adereços como vestidos, colares e outros enfeites femininos, chegou a fazer-se chamar de Condessa de Barres, sem, no entanto, querer mudar seu corpo e nem sua escolha objetal - as meninas. A mitologia grega com os deuses Cibele, Átis e Hermafrodito tentou dar conta do desejo de mudar de sexo, das anomalias físicas e também do fenômeno da transexualidade, ou seja, do que escapa ao significante, ao simbólico e se presentifica no corpo como real.
Retomar alguns registros históricos sobre o assunto ajuda-nos a situar a questão. Então vejamos.
Deve-se ao alienista francês Jean Etienne Esquirol (1772-1840) o primeiro caso de transexualidade relatado e registrado, mas é a Richard von Krafft-Ebing que devemos o estabelecimento de uma escala de inversões sexuais que vão do "hermafroditismo psicossexual" até a "metamorfose sexual paranoica". A respeito da metamorfose sexual paranoica, lembramos que, em 1910, Freud em seu texto "Puntualizaciones psicoanalíticas sobre um caso de paranoia (Dementia paranoides) descrito autobiográficamente" (1911[1910]), descreve minuciosamente o delírio do presidente Schreber no qual este afirmava ser a mulher de Deus e que seria fecundado por Ele para dar à luz uma nova raça. A clínica confirma, conforme postulado por Freud, que a psicose induz a feminização, ao empuxo à mulher; mas o transexualismo é algo específico, é um fenômeno que apresenta o sentimento de estar em um corpo errado, trocado, sentimento que não comparecia no delírio do presidente Schreber. Se o presidente Schreber em seu delírio acomodava pouco a pouco sua imagem a uma forma de mulher era para aceder aos desígnios divinos. Em seu delírio, ele era a mulher de Deus e afirmava que seus seios cresciam sem nenhuma questão com a forma física na realidade do corpo.
No século XIX, dava-se aos casos de transformação da identidade sexual o nome de travestismo ou hermafroditismo ou intersexualidade, o que comprova a dificuldade que havia para se definir cada caso em sua essência. Foi necessário o advento da medicina genética para que, em 1956, fosse identificada definitivamente a fórmula cromossômica do homem (XY) e a da mulher (XX), a determinar o "sexo genético", e assim se estabelecessem distinções claras entre o hermafroditismo, o travestismo, as anomalias genéticas e o verdadeiro transexualismo.
O termo "transexual" foi introduzido por Harry Benjamin (1885-1986)1 nos anos 1950. O autor propõe, para aliviar o sofrimento moral dos pacientes, um tratamento hormonal e uma experiência de vida social, durante um prazo de seis meses, nos moldes do sexo desejado. Caso o desejo persistisse, a cirurgia para troca de sexo seria proposta.
O psicanalista Robert Stoller (1924-1981), em seu livro Sex and Gender (1958), propõe pela primeira vez uma classificação desse distúrbio. Posteriormente, Stoller foi influenciado pela teoria Kleiniana e pela Self Psychology e fez do transexualismo um problema de identidade e não de sexualidade. Para o autor, é transexual uma pessoa anatomicamente normal que tem o sentimento de pertencer ao sexo oposto e deseja mudar de sexo, porém ciente de seu sexo biológico, sem a manifestação de distúrbios delirantes.
Vários estudiosos do assunto comentaram a obra magistral de Stoller, entre eles Elisabeth Badinter, filósofa e feminista francesa, que postula uma indiferença político-social entre os sexos. Com uma leitura lacaniana, Catherine Millot denominou a posição do transexual como hors-sex, fora do sexo. Para a autora, na mulher, o desejo de ser amada como um homem é mais frequentemente decorrente de um processo neurótico de tipo histérico; já, no homem, a vontade de ablação do órgão peniano consiste mais frequentemente em uma identificação psicótica com A Mulher que não existe, ou seja, com a totalidade. É preciso, contudo, estarmos atentos, porque, como demonstra Lacan com o uso das fórmulas da sexuação propostas por ele no livro 20 O Seminário mais ainda... em 1972-1973, as mais variadas posições de gozo são possíveis. Assim, para os sujeitos neuróticos, a histeria não abrange toda a questão do transexualismo e para os sujeitos psicóticos, que nessas fórmulas estariam fora da partilha sexual, fora do sexo, o delírio do transexualismo também não impede o surto psicótico. É fato que no transexualismo o sujeito tem por essência, uma insatisfação radical com a forma física, mesmo para aqueles que se submetem à cirurgia. Os transexuais operados permanecem insatisfeitos, justo porque "não é isso".
Este trabalho propõe um cuidado com a escuta desses sujeitos e aposta na possibilidade de haver através de uma análise a aceitação maior da forma física, independente da posição sexual que por sua vez independe de tal forma. Muitas vezes, ao transexual basta a mudança de sexo na certidão de nascimento, o que lhe garante a equivalência ente sua identidade sexual e a social. No entanto, para os sujeitos psicóticos, o transexualismo e o recurso às cirurgias podem servir de suplência à foraclusão do significante Nome-do-Pai, mas pode também desestabilizar o sujeito. Então vejamos.
Fui surpreendida, em minha prática clínica, por uma jovem de 19 anos que veio ver-me com uma demanda precisa: queria um atestado psicológico que autorizasse a realização da tão sonhada cirurgia de ablação dos seios. Dizia precisar de alguém que a escutasse e entendesse que ela não é uma mulher.
Estou aqui porque preciso de uma indicação cirúrgica e me disseram que você poderia me dar. Sabe o que é ser um homem e ser obrigado a viver em um corpo de mulher? Quero me livrar dos seios para ter um pouco de dignidade, onde já se viu um homem com seios? Isso é monstruoso.
Essa afirmação é de uma certeza cristalina. Sabemos, no entanto, que a clínica com sujeitos neuróticos prima justo por certa vacilação quanto à posição sexuada. O neurótico não tem certeza a respeito de sua identificação sexual. Não quero dizer que ele vacile diante da pergunta do Outro - homem ou mulher? - mas sim que o sujeito se apresenta com inquietações quanto ao que é ser um homem e uma mulher. Frequentemente, ouvimos queixas como: "sou mulher, mas não sei o que fazer com isso". "O que se espera de uma mulher? O que é ser um verdadeiro homem?" "Estarei à altura de ser um verdadeiro homem?" Questões legítimas na medida em que a significação fálica nos dá apenas um parecer ser homem ou mulher. Trata-se de semblante, somos semblantes e assim velamos o real do sexo, real do gozo.
A certeza de Rafaela de que era um homem fez-me pensar, de início, que pudesse se tratar de um sujeito psicótico. A psicose é uma estrutura que comparece com frequência nos transexuais, nos quais se observa o empuxo à mulher preconizado por Lacan. A literatura comprova que na estrutura psicótica a transexualidade pode funcionar como suplência mantendo a estabilidade do sujeito. Vale ressaltar, contudo, que não há suplência que tenha a eficácia de manter o sujeito estabilizado porque a estrutura sempre comparece.
A esse respeito, ensina-nos um transexual que trabalhava como cabeleireira:
Quando adolescente, meus pais adotivos me internaram duas vezes, depois que botei seios e me assumi como sou, uma mulher, me acalmei. Muitas amigas operadas surtaram e isso me dá medo, não vou me arriscar, piro e perco o bofe.
Os transexuais psicóticos podem beneficiar-se da cirurgia de mudança de sexo por encontrar aí um período de estabilização, mas isso não é uma regra, pois a cirurgia pode também desencadear um surto psicótico.
No decorrer das duas entrevistas, Rafaela pareceu-me um sujeito histérico, visto que algo de sua fantasia neurótica pode ser entrevisto. A pergunta histérica - sou homem ou sou mulher? - não passa pela inadequação entre gênero e corpo. O corpo histérico é o lugar onde se representa a vida sexual do sujeito denunciando seu sintoma. As histéricas bancam os homens e vice-versa sem que haja a necessidade de mudanças no sexo biológico. Seria então Rafaela um sujeito neurótico que apresenta o sintoma da transexualidade? Rafael, como esse sujeito se autonomeia, relata o terrível sofrimento que o acompanha desde a infância:
Eu sempre fui um menino com dificuldades de ser aceito nos grupos. Adoro futebol, mas nunca consegui pertencer a um time ou ter uma turma, ou não me chamavam ou me excluíam por eu não ter uma aparência de menino.
Sua tragédia - como ele se refere ao fato de ter nascido em um corpo errado - chegou ao insuportável na adolescência:
Eu não sofria tanto por não namorar as meninas, outros meninos também não namoravam, o pior era a vergonha de menstruar, de ter seios que escondia com todas as minhas forças. Nunca mais fui à praia, piscina. Vivia me escondendo de mim mesmo porque meu corpo me causava raiva e horror. Tomei hormônios e me livrei dos sangramentos e agora quero me livrar desses peitos.
Rafael tem tal convicção do erro da natureza do qual foi vítima, que seu único interesse é a cirurgia, sua técnica, seus resultados e principalmente como consegui-la. Percebendo que eu não poderia ajudá-lo em seu objetivo de dar-lhe um laudo psicológico não voltou mais ao consultório. Como a oferta do analista é a de se propor a conduzir uma análise e como Rafaela/Rafael não tinha uma demanda de análise e sim de um laudo, não pude ajudá-lo/a.
Vale observar que, para Rafaela, bastava "mudar de fachada", como dizem alguns sujeitos transexuais, já que ela queria apenas parecer homem.
Os avanços da medicina e da técnica cirúrgica e os estudos endocrinológicos permitem-nos perguntar: antes desses avanços, não havia transexuais? Eles conseguiam obter orgasmo sexual com a genitália com a qual nasceram? O ódio ao órgão viril, o pênis, e a existência deste impediam que esses sujeitos, para além da forma de seus corpos, se sentissem mulheres? A presença de seios impedia que as biologicamente mulheres se sentissem homens? O que é ser uma mulher? Ou um homem? Até que ponto o discurso capitalista, contaminando a ciência, promete um corpo que se adéque à posição sexuada do sujeito, se é que tal adequação é possível? Essas perguntas trazem em si a resposta, ou seja, a posição sexuada de um sujeito não está na forma física. Como já dissemos o sentimento de pertencer ao outro sexo presente na transexualidade é tão antigo quanto a sexualidade humana (GREEN, 1969), mas o que é novo é a possibilidade de "mudar de sexo" graças às novas técnicas cirúrgicas e à endocrinologia.
A oferta cria a demanda, e o discurso capitalista é voraz em sua fúria de promover a ciência que a cada ano faz surgirem novas técnicas para mais e mais cirurgias, oferecendo à modernidade um circo de horrores, cruel ao prometer um ideal impossível.
Considerando-se que o corpo é esculpido pela linguagem e habitado por um sujeito do inconsciente, quando se diz eu tenho um corpo, diz-se porque é a linguagem que dá esse corpo. É um corpo marcado, erogenizado pelo outro que transmite a linguagem. O filhote humano nasce em uma prematuração neurológica que tem seus efeitos no a posteriori, e o símbolo, como ordem da linguagem antecede a ela, logo é pelo viés da imagem do corpo que se dá a primeira subjetivação do ser humano. O primeiro eu é corporal, diz-nos Freud. O corpo apresenta-se como carne a ser significantizada pelo Outro da linguagem, para tornar-se um corpo deserto de gozo, um corpo na medida em que é perda. A partir daí, o real existe fora: o simbólico - lugar do Outro, do tesouro de significantes e da falta - também está aí a priori. É no imaginário, a partir do simbólico e do real, que o sujeito se vê, por uma primeira vez, como um esboço de Eu.
Lacan dizia em 1972:
Desde o nascimento, existe uma diferença inata e muito natural entre o menino e a menina [...] Essa pequena diferença corresponde ao que há de real no fato de que, na espécie que se autodenomina Homo sapiens, os sexos parecem dividir-se em dois números mais ou menos iguais de indivíduos [...]. Esses indivíduos se distinguem bem mais cedo do que se espera. No entanto, é preciso reconhecer que somos nós que os distinguimos, não são eles que se distinguem (LACAN, 1971-1972, p. 15-16).
O filho do homem é recebido com dizeres tais como: "Ah! é um verdadeiro homenzinho, logo se vê que é completamente diferente da menina" (LACAN, 1971-1972, p. 16). Essa distinção foge à lógica, uma vez que, para se reconhecer como ser falante, é preciso rejeitar essa distinção, e isso se dá através das identificações; e ainda, é só porque o ser é falante que existe o complexo de castração. O tipo característico do homem e da mulher se constituirá a partir de algo completamente diferente, a saber, da consequência, do preço que terá adquirido, no desenrolar da vida, a pequena diferença (LACAN, 1971-1972, p. 16). Desenrolar que se dá com ou sem a vivência edípica.
Essa pequena diferença é precisamente o que é recusado ou reivindicado na transexualidade e, para resolver o problema, esses sujeitos recorrem às cirurgias e à endocrinologia. Trágico equívoco na medida em que, da pequena diferença, o que importa são as consequências, ou seja, as identificações, as provas, o "experenciar", o viver a experiência dessa pequena diferença.
Nesse ponto, retomo ao que Lacan em seu Seminário ...oupire chama de "erro comum". Lacan diz que :
para aceder ao outro sexo, é necessário pagar o preço, o da pequena diferença, que passa enganosamente para o Real, por intermédio do órgão, justamente no que ele deixa de ser tomado como tal, e, ao mesmo tempo, revela o que significa ser órgão. Um órgão só é instrumento por meio disto em que todo instrumento se baseia: é que ele é um significante. É como significante que o transexual não o quer mais, e não como órgão. No que ele padece de um erro, que é justamente o erro comum. A paixão do transexual é a loucura de querer livrar-se desse erro, o erro comum que não vê que o significante é o gozo e que o falo é apenas o significado. Existe apenas um erro, que é querer forçar pela cirurgia o discurso sexual, que na medida em que é impossível, é a passagem pelo real (LACAN, 1971-1972, p. 17).
Erro do discurso comum, do discurso dominante sobre a sexualidade que confunde o órgão com a função. O falo é o significante que dá a significação, mas o gozo é da ordem da letra, da marca que comporta o real sexual.
Os ditos tratamentos pela via de cirurgias e hormônios falam de certa onipotência médica que pensa poder adequar o corpo ao gênero e corrigir um erro da natureza, precisamente no campo da sexualidade, onde toda determinação é essencialmente desnaturalizada, lembremos Freud, em 1905, em seus "Três ensaios sobre a sexualidade". Pertencer a um sexo é uma questão significante. Se não há o significante que represente a mulher no inconsciente, tampouco há o significante que represente o homem, há um só operador que permite a partir do inconsciente dar conta da diferença sexual - e esse operador é o falo.
Consideremos três propostas de elaboração na teoria psicanalítica da diferença entre os sexos: a primeira proposta é de Freud, quando marca a diferença entre o ter e não ter -castrado/não castrado; a segunda é a diferença entre o ter e o ser, postulada por Lacan nos anos 1958/1960; e a terceira é a diferença que Lacan introduz com a lógica de um gozo todo e do não-todo fálico. Se a realidade do inconsciente é a realidade sexual, nem toda realidade sexual passa pelo significante. Assim, em 1958, Lacan sustenta que se todo analisável é sexual, não todo sexual é analisável, quer dizer: há um real da sexualidade que não passa pelo simbólico, que é traumático e permanece no registro do real escapando tanto à questão de gênero como de sexo, mas que, no entanto, é marcado pelo gozo no real do corpo/carne e que independe da forma física e determina uma forma de gozo.
Geneviève Morel (2002) evoca uma "anatomia analítica" para diferenciar sexo, gênero e sexuação. O termo "gênero" refere-se a uma construção social do que são a masculinidade e a feminilidade, segundo as normas e ideais da sociedade. O sexo masculino x feminino refere-se à anatomia, ao registro civil.
Com os seus "Três ensaios sobre a sexualidade", Freud ensina-nos que nos constituímos como perversos polimorfos e que a pulsão é sempre parcial. Não há o objeto príncipes da pulsão, ele é o que há de mais variável - Freud nos ensina, assim o que vai determinar a posição sexuada de um sujeito é sua forma de gozar.
Lacan propõe o campo do gozo e emprega o termo sexuação, colhido da biologia, para acentuar a dimensão de processo de tal função sexual. A sexuação para Lacan é a especificidade das relações do sujeito com o gozo.
Os transexuais cuja estrutura é psicótica, na qual há a foraclusão do significante nome-do-pai, estariam fora da partilha dos sexos. Na neurose, a certeza de ser homem ou mulher é assegurada pela fantasia, e o sujeito, transexual ou não, estará ou do lado esquerdo das fórmulas da sexuação, lado de um gozo fálico, masculino; ou do lado direito, não-todo fálico, feminino. Logo, não há a possibilidade de um terceiro sexo como pleiteia a teoria Queer. Essas posições não dizem respeito ao gênero, mas à posição sexuada de um sujeito, posição de gozo. Sendo assim nada impede que um sujeito do sexo anatômico masculino, de gênero igualmente masculino, experimente um gozo feminino e se coloque na posição feminina.
Por que, então, a questão transexual de corpo trocado, se o acesso às posições feminina e masculina é aberto a todos, e independente da forma anatômica? As fórmulas da sexuação são as fórmulas das identificações sexuais. Em tempos atuais, há uma exacerbação do trans que se comprova com a teoria Queer entre outras. Esses movimentos propõem uma concepção sexual que faz da relação gênero/sexo algo que se pode mudar como se muda de roupa. Na origem dessas teorias, estaria uma oposição à norma heterossexual predominante e à dominação masculina? A norma hetero e a dominação masculina sempre se sentiram ameaçadas pelo feminino, pelo que escapa à norma fálica.
Sabemos que a imagem do corpo não é simbolizada de todo e comporta um real indizível que atormenta o sujeito. O horror ao pênis que alguns transexuais revelam é, na verdade, horror à ereção, forma de gozar masculina, presentificação do desejo no macho. A imagem do órgão viril ereto revela para o transexual um real insuportável que ele não simboliza. Alguns transexuais afirmam que não necessitam da ablação do pênis, basta o tratamento com hormônios para que não tenham ereção.
Freud diz que não se nasce mulher, torna-se; mas tampouco se nasce homem, é preciso construir, pela via dos semblantes, um parecer ser homem ou mulher. Um transexual masculino, ao construir-se como mulher, sabe mais o que é ser mulher do que qualquer outra mulher demonstrando que o suposto original é apenas uma construção. Não há uma identidade sexual de base, ao sujeito dividido, acrescentar-se-ão os atributos masculinos ou femininos, mas nenhum atributo proporcionará uma identidade sexual. A identidade é construída é "a cristalização das identificações" (16/11/76), das fixações de gozo, da inserção da castração, de sua negação, sua recusa radical ou de seu desmentido. Há em torno do significante falo a construção de semblantes do ter ou do ser e os transexuais fazem um parecer ser mulher ou homem para esconder o que são, sabendo que não são: eles seriam o semblante por excelência.
Lea T., modelo e transexual, em entrevista a Marília Gabriela, ao ser perguntada se tinha conhecimento de que após a cirurgia de ablação do pênis perderia a sensibilidade por problemas mecânicos, responde que sim, mas não lhe importa o orgasmo sexual, e acrescenta: "vou gozar de ser mulher". "Gozar de ser mulher" para esse sujeito, não é experimentar o gozo outro que pode acontecer a qualquer um - independente da anatomia - que se coloque no lugar do significante da falta no Outro, mas sim gozar de "não ter mais o atributo masculino para esconder e aí sim ser uma mulher por inteiro". Sabemos que as mulheres, uma a uma, gozam falicamente, ou seja, do lado masculino e podem experimentar o gozo outro do lado não-todo fálico, ou seja do lado feminino. Não se trata, portanto, de ser uma mulher do lado não-toda que certifica que nenhuma mulher é Toda, mas sim de ser a Mulher, aquela que Lacan afirma não existir.
A posição transexual consiste na tentativa e no sentimento de se querer toda, inteiramente mulher, mais mulher que todas as mulheres e valendo por todas - é o que nos mostram os chamados SHE-Male que se dizem e se sentem superiores às mulheres biológicas. No caso de sujeitos psicóticos, querer ser a Deusa Branca, a Mulher que não existe, nas fórmulas da sexuação, pode funcionar como suplência. Poderíamos paradoxalmente colocá-la do lado masculino onde há a exceção, onde existe o "ao menos um" que não está submetido à castração, lugar do Pai freudiano da horda primitiva - e por aí compreendemos que a Mulher é um dos nomes do Pai.
Se, como os próprios sujeitos neuróticos e transexuais afirmam, eles sabem que não são mulheres e também não se sentem homens, estariam eles fora da partilha, nem do lado homem nem do lado mulher na tentativa de fazer existir a mulher que não existe? Não há um saber prévio a respeito da sexualidade. Se há partilha dos sexos, e o saber de que se trata no inconsciente é o não-saber sobre o sexo, não há saber sobre essa partilha, há semblante. Se, por um lado, o real do sexo escapa ao saber, por outro, há um saber fazer com esse real através do semblante de ser homem ou mulher.
Outra entrevistada, a igualmente transexual e modelo Carol Marra, afirma que seu namorado, um político gaúcho, precisou ser muito homem para assumi-la como sua mulher. Será que eles também sabem o que é ser muito homem?
Na década de 1970, o preconceito era muito acirrado, mas o discurso capitalista que promove o "consuma-se" sustentava o sonho das cirurgias ainda precárias e mutilantes realizadas para os brasileiros, na maioria das vezes no Marrocos. Hoje, na Tailândia, onde as cirurgias são igualmente comuns e costumam ser bem-sucedidas: o preconceito permanece, pois os transexuais tornaram-se a atração maior pelo fascínio que exercem. Chamados de "seres raros" ou "Lady-Boy", eles são a cereja do bolo na prostituição local e internacional em que ganham dinheiro para poder continuar a série de cirurgias transformadoras que tornam o corpo feminino para então se tornarem "verdadeiras mulheres". Já as mulheres transexuais, por não poderem se identificar à Mulher, ficam impossibilitadas de serem mulheres.
No jornal O Globo (edição de 17/4/2015), a cantora transexual Patrícia Ribeiro nascida Nuno Miguel, fala em entrevista concedida ao jornal, sobre a cirurgia de ablação do pênis realizada em Portugal, sua terra natal. Entre outras coisas, afirmou que a operação jurídica foi a mais dolorosa porque:
precisou ficar nua diante de um médico legista, que ela não conhecia, para comprovar que seu corpo era idêntico ao de uma mulher biológica. Uma semana antes do julgamento de seu direito de ser juridicamente uma mulher, foi aprovada a lei para mudança de identidade. "Hoje, já nem precisa fazer a cirurgia, qualquer transexual (masculino) que apresente um relatório pode ter no seu documento o registro do sexo feminino".
Em outro momento, responde: "eu sou mulher, desde criança eu guardava dinheiro para comprar maquiagem e roupas. Não tenho nada de masculino, talvez temperamento, sou afirmativa".
Esses ditos exemplificam o que já dissemos com Lacan: masculino e feminino são apenas semblantes, máscaras construídas, roupas, maquiagem ou ainda temperamento afirmativo que este sujeito supõe ao masculino. Sentir-se homem ou mulher é uma questão de, através da cristalização das identificações, encontrar uma identidade. Felizmente hoje, em Portugal, basta que o sujeito se declare homem ou mulher e prove que vive como tal para ter o registro civil adequado ao seu "parecer ser".
Não se trata, no transexual, da certeza de se sentir homem ou mulher em um corpo trocado, a certeza de que se trata é que o remédio para o mal-estar dos transexuais seria a cirurgia e a endocrinologia. O desejo do transexual é abolido em prol da posição de objeto do gozo do Outro da ciência. Esses sujeitos acreditam que, trans-formados, conseguiriam abolir o mal-estar inerente ao ser de fala que por definição é inadequado, fruto de uma subversão da natureza.
A literatura sobre o assunto e, especialmente, a clínica comprovam que o pós-cirúrgico não livra transexuais neuróticos de certa inadequação imposta pela castração, que é simbólica e coloca-nos a possibilidade de um gozo limitado e sempre inadequado na medida em que nunca é o que se espera, não importando qual forma física habitemos e muito menos qual o objeto escolhamos. Aqui a cirurgia não tem efeitos sobre o mal estar que é psíquico. Se considerarmos um sujeito psicótico, que recorra à cirurgia de ablação do pênis na tentativa de se sentir fisicamente uma mulher e assim aplacar a angústia e como querem alguns autores evitar o surto psicótico, também não terão sucesso porque a castração física não opera simbolicamente e não há uma suplência que sustente o sujeito definitivamente, pois como já disse a estrutura sempre comparece. Ademais a própria cirurgia nem sempre se estabelece como suplência.
Fica a aposta na psicanálise, que pode levar um sujeito a sustentar suas escolhas e se situar como homem ou mulher independente da forma de seu corpo, e também o cuidado com as intervenções cirúrgicas.
Nota:
(1) Harry Benjamin, médico alemão que imigrou para os EEUU e autor do livro The transexual phenomenon. New York: Julian Press, 1966.
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Recebido em: 11/12/2014
Aprovado em: 02/04/2015