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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.7 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2015
https://doi.org/10.18370/2176-4891.2015v1p61
ARTIGOS TEMÁTICOS
O enigma dos sintomas: proposição para uma escuta psicanalítica e política do sofrimento no trabalho
The mystery of symptoms: proposition for a psychoanalytical and political listening of suffering at work
Thomas PérilleuxI; Ana Magnólia MendesII
IProfessor de Sociologia na Universidade Católica de Louvain, Centro de pesquisas interdisciplinares em Democracia, Instituições, Subjetividade (CriDIS-IACCHOS). Membro da Associação Freudiana da Bélgica. Membro associado ao CITES - Clínica do Trabalho. thomas.perilleux@uclouvain.be
IIProfessora do departamento de Psicologia Social e do Trabalho da Universidade de Brasília (UNB) Coordenadora do Laboratório de Psicodinâmica e Clínica do Trabalho (UNB). anamag.mendes@gmail.com
RESUMO
A ideia central do artigo é enunciar uma política do sintoma como um caminho possível para fundamentar a proposição de uma escuta clínica crítica e psicanalítica do trabalho. Apesar de apresentar fragmentos de dois atendimentos na Bélgica e no Brasil, não existe o propósito de realizar uma análise clínica exaustiva dos casos, mas usá-los para ilustrar como o enigma dos sintomas atravessa a fala e a escuta do sofrimento na prática em clínica do trabalho. Pretende elucidar os caminhos para decifrar esses enigmas e revelar seus destinos, partindo do pressuposto de que esse percurso está contaminado pela posição subjetiva, política e ética do clínico do trabalho.
Palavras-chave: trabalho, sofrimento, sintomas, escuta psicanalítica.
ABSTRACT
The aim of the paper is to enunciate a politics of symptom as a possible way to support the proposition of a critical clinical and psychoanalytical listening work. Despite having two treatment fragments in Belgium and Brazil, there is not the purpose performing an exhaustive analysis of clinical cases, but using them to illustrate how the puzzle of symptoms through the speaking and listening suffering in practice in clinical work. Aims to elucidate the routes of these puzzles and reveal their destinations, on the assumption that this route is contaminated by the subjective, policy and ethics position of the clinical work.
Keywords: work, suffering, symptoms, psychoanalytic listening.
Tomamos como ponto de partida a urgência de discutir as práticas que vêm articulando a escuta analítica à clínica do trabalho. Como clínicos, pensamos ser fundamental a posição de ouvir o testemunho do sujeito, nomear os eventos traumáticos que ele narra, desbanalizar as violências que se passaram por fatos ordinários do trabalho e denunciar o que não pode passar por "normal". Para tanto, é essencial discutir práticas em clínica do trabalho que vêm articulando esta problemática e, particularmente, a política dos sintomas(1) e o lugar do clínico do trabalho. É essencial que o clínico do trabalho ocupe um "lugar vazio", necessário para que o sujeito acesse uma parte de sua própria verdade de modo a se inscrever de maneira diferente no laço social. É função do clínico reconhecer e traduzir o enigma do sintoma para o sujeito a partir da revelação política da sua trajetória.
O ser humano está sujeito ao sintoma. É um sujeito sintomático.
Os trabalhadores buscam atendimento na clínica do trabalho quando vivenciam diferentes sintomas decorrentes de um sofrimento produzido pela violência dos modelos de gestão praticados nas organizações de trabalho. Desse modo, justifica-se a análise do sintoma, como ponto tanto de partida como de chegada, na escuta clínica do sofrimento, a análise de sua trajetória política (1).
Os sintomas revelados são, na maioria das vezes, de caráter fisiológico, tais como a fadiga, os distúrbios de sono, a exaustão, o ganho ou a perda de peso, a queda de cabelo, os problemas respiratórios ou digestivos. São também apresentados sintomas organizacionais, como, por exemplo, o absenteísmo, o assédio moral, a violência contra os outros ou contra os instrumentos de trabalho. Podemos considerar ditos sintomas como expressões de patologias sociais, no sentido de A. Honneth (2007), S. Haber (2010) ou H. Rosa (2012), ou seja, processos que minam "o tipo de relação consigo mesmo e com o mundo, sem a qual a vida perde o valor e qualidade" (RENAULT, 2008, p. 86).
Falar de sintomas como patologias sociais conduz-nos à posição contrária à medicalização das causas sociais da opressão, uma vez que, a partir desse posicionamento é que se abre caminho para uma eventual politização do sofrimento. Na clínica do trabalho, a distinção entre um sofrimento "normal" e um sofrimento "patológico" tem um impacto politico: o sofrimento é indiscutivelmente "psíquico" do ponto de vista do sujeito, mas ele também pode ser qualificado como "social" pelo "contexto institucional onde ele emerge, assim como pelos seus determinantes" (VANDECASTEELE, LEFEBVRE, 2006, p. 138). Essa ideia guia a discussão central sobre as origens e os destinos políticos do sintoma.
Desse modo, o desafio para os clínicos é não tratar o sintoma como um problema à espera de solução, mas como um enigma que clama por uma decisão.
O que é um sintoma? De acordo com a etimologia, é um "colapso", um "evento infeliz", um "acidente", uma "coincidência" e, especialmente, "uma coincidência de sinais". Na linguagem comum, é uma desordem que faz sofrer e que clama por resolução. Na linguagem médica, é a manifestação objetiva ou subjetiva, de uma doença ou de uma disfunção. O sintoma permite detectar um problema - do corpo ou do pensamento - associado a um estado mórbido; seu desaparecimento assina a cura médica.
Essa é uma clínica inspirada pela psicanálise subvertida. Freud afirmava que "a fronteira não era entre doença e saúde" (1984, p. 122) e que podemos dizer "sem medo de contradição, que nós somos todos doentes, isso quer dizer neuróticos, uma vez que as condições para a formação do sintoma existem igualmente em seres humanos normais" (FREUD, 2001).
O lugar do sintoma muda, portanto, radicalmente. Na prática analítica, é, sobretudo, "um malestar que se impõe a nós, além de nós, e nos interpela" (NASIO, 1992, p. 15). Um ato involuntário, produzido além de toda intenção, que nós descrevemos sempre com palavras singulares:
- é uma maneira de exprimir meu sofrimento, em detalhes às vezes inesperados;
- não tem sentido, mas leva-me a formular uma teoria para compreender meu mal-estar;
- é endereçado a um outro, em quem suponho certo poder de compreensão e de intervenção;
- esse endereçamento é perdido se o sintoma fala, mas a sua mensagem não foi entendida - permanecendo, de certa maneira, ilegível.
Freud dizia que o sintoma era um dizer, um Bilderschrift: uma escrita da imagem. Fórmula estonteante! O sintoma escreve de forma imagética a verdade do desejo inconsciente do sujeito. É uma questão de "ler" essa verdade mais do que de erradicar o sintoma.
Na realidade, Freud coloca-nos diante de um enigma. Em seus estudos sobre a histeria, ele argumenta que "cada sintoma tem um sentido e está intimamente relacionado com a vida do sujeito" (FREUD, 2009, p. 179). O sintoma porta uma mensagem que não foi escutada. As dores, o corpo sofrente "fala" (FREUD, 1975, p. 117). Os sintomas têm sua "palavra a dizer" (Ibid., p. 240). Eles manifestam as feridas do sujeito. À luz da clínica do trabalho, nós podemos acrescentar que eles dizem também da maneira como as contradições sociais tomam forma. Cada sintoma é, de longe, singular e subdeterminado: ele se refere a diversos fatores e, por vezes, a muitos significados.
"Com o tempo, ele pode se transformar seus significados" (STRYCKMAN, 2001, p. 21).
É uma dimensão na qual insiste também J. Lacan, desde o início de seus ensinamentos. Um sintoma é um elemento do discurso pelo qual o sujeito do inconsciente se exprime, um "símbolo escrito na areia de[a] carne" (LACAN, 1966, p. 280). "Estou cheio", "Meu trabalho me sufoca", "Isso fica no meu estômago": o sintoma manifesta a inscrição de um significante no corpo (Lacan dizia que o sintoma é "o efeito do simbólico no real").
Freud, porém, assim como Lacan, também afirmou a existência de sintomas que não seriam portadores de qualquer sentido: eles se repetem de maneira mecânica e não têm sentido, mesmo que possam ser "reduzidos a eventos típicos, por assim dizer, comuns a todos os seres humanos" (FREUD, 2001, p. 327; DE SAINT-JUST, 2013, p. 82).
Freud fala dos "sintomas típicos" de cada patologia: a conversão somática na histeria, o deslocamento para um objeto externo na fobia, o pensamento obsessivo na neurose obsessiva, o fetichismo na perversão, os fenômenos elementares na psicose. Esses sintomas são opacos, eles não têm sentido além de indicar um conflito psíquico e um compromisso entre as "representações reprimidas e repressoras".
Em sua repetição, eles não têm sentido, mas sim uma função: sustentar-nos na existência, fazer-nos sentir integrados, prover uma espécie de "coluna vertebral" ao nosso ser, fora do "sentido" que nós lhe conferimos. Isso não quer dizer que seja preciso deixá-los em silêncio, pelo contrário! Nomeá-los contribui para inscrevê-los na ordem da palavra e, assim, elaborá-los: simbolizar, por exemplo, que eles contêm a violência recorrente, a agressividade reprimida, a paixão inibida etc.
Salvo seu caráter doloroso, os sintomas são uma invenção vital do sujeito, uma "solução de compromisso" (STRYCKMAN, 2001, p. 23) encontrada para suportar uma vida sem viver completamente, prevenindo-se contra a angústia. É uma maneira de o sujeito organizar seu gozo, para além do prazer, de ultrapassar os limites do prazer, prazer penoso (o princípio do prazer é sua limitação, uma evitação do desprazer). Lacan dizia que, graças aos nossos sintomas, podemos gozar de nosso inconsciente apesar da civilização, ao menos parcialmente repressiva, de nossas pulsões agressivas, mortíferas, incestuosas etc. (DE NEUTER, 2001).
Há um apego apaixonado do sujeito a seu sintoma, por exemplo, nas situações frequentes de sobre investimento no trabalho. Esse apego revela a onipotência do sujeito sobre si mesmo, é um modo de não revelar sua falta, sua impotência ante o desejo do outro. É manter um conforto psíquico que não confronta o desamparo e o abandono de ser um sujeito do desejo. O sujeito pode amar seu sintoma mais que a si mesmo. Isso significa que ninguém mantém um relacionamento imediato consigo mesmo. O sujeito humano não é transparente, mas opaco em si mesmo e dividido (ele é em si multitude), jamais adequado ao que é dito ou feito, jamais redutível à imagem que dá de si (VASSE, 2001).
Assim, a questão do sintoma cristaliza as nossas escolhas em clínica do trabalho. Podemos ser tentados a dissolver a singularidade do mal-estar com uma explicação de suas causas junto à organização do trabalho ou, ao contrário, procurar dar proeminência à realidade psíquica (fantasias e conflitos inconscientes) na realidade histórica (história das relações de trabalho). Em certos casos, podemos também ser tentados a dar uma resposta - médica, por exemplo - para aliviar a dor dos sintomas, alienando-nos à demanda explícita do paciente. Nenhuma dessas escolhas pode ser descartada a princípio, entretanto nenhuma delas é clínica e eticamente bem adequada.
É preciso reconhecer as contradições diante das quais todo sintoma nos coloca. Primeiro, a maneira de ser afetado por um problema e a maneira de falar dele são sempre singulares, os sintomas, portanto, falam-nos também, geralmente, das condições contemporâneas de trabalho.
Dessa forma, as queixas e condutas sintomáticas são-nos endereçadas como mensagens que não foram escutadas pela empresa e dizem respeito a um corpo sofrente que fala do trabalho; mas nós sabemos que o sintoma permanecerá, também, como um evento em parte opaco, em que não há nomenclatura nem explicação para decodificar seu significado.
Enfim, nós lidamos com uma formação de compromisso (a expressão de um conflito interno não elaborado) que pode até mesmo encontrar sua fonte, em termos freudianos, em uma simples fantasia do sujeito. A clínica do trabalho atesta, no entanto, que as situações traumáticas atuais são também a origem das formações sintomáticas. As causas podem encontrar-se na organização do trabalho e na opressão exercida no coração das relações sociais. Não é justificável que um clínico transforme simplesmente o problema social da opressão em um problema pessoal do oprimido (LHUILIER, 2009).
A abordagem clínica não consiste em optar pelo singular em detrimento do geral, nem pela realidade fantasmática em detrimento da realidade histórica. Não seria favorecer apenas um ou outro desses polos, mas mantê-los em tensão para poder circular entre eles dependendo dos momentos clínicos e do percurso empreendido pelo paciente.
O dispositivo clínico opera - pela palavra - como um revelador do evento sintomático. Uma questão da clínica contemporânea seria constituir o mal-estar em sintoma: proceder de tal maneira que o sintoma possa dizer-se. No mesmo sentido, C. Demoulin escreveu: "a abordagem analítica consiste em passar do sintoma como queixa para o sintoma como enigma, como questão endereçada ao Outro colocado no lugar de sujeito suposto saber" (2008, p. 166).
A clínica do trabalho não procede por associações livres, contudo os efeitos da transferência se fazem sentir e o enigma do sintoma pode ser visto no trabalho por um sujeito recolocado em seu meio profissional. Nós não procuramos livrar o sujeito de seu sintoma: o desaparecimento do sintoma nem sempre é sinônimo de cura (STRYCKMAN, 2001). Nossa abordagem consistiria em libertar o sintoma de sua cadeia mortífera e igualmente as forças que a vida contém. Como fazer isso de maneira que ele seja identificado em uma circulação da palavra e "que de novo a vida se libere", para que certos nós da história do trabalho possam desfazer-se e refazer-se novamente?
Guattari e Rolnik, reconhecem que:
os sintomas são como pássaros que vêm bater o bico no vidro da janela. Não há que se interpretar. Antes de tudo, é preciso situar sua trajetória para ver se eles estão em condição de serem indicadores de novos universos de referência, que podem vir a adquirir uma consistência suficiente para provocar uma virada na situação (2007, p. 323).
Qual biquinho insistente a bater no vidro, o sintoma se torna uma ocasião de transformação, da ordem de uma "virada na situação". Não se concorda com a teoria do "inconsciente maquínico" de Guattari, mas com sua insistência sobre a abertura de um "novo universo de referência". Nós estamos para lá de engajados em uma política do sintoma.
Com base nesses argumentos, são apresentados dois casos de atendimento individual em clínica do trabalho. Os atendimentos foram realizados na Bélgica, junto a uma equipe em Liège (CITES-Clinique du travail), e no Brasil, no Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos (CAEP), do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, pela equipe do Laboratório de Psicodinâmica e Clinica do Trabalho - LPCT.
O caso Dominique M.
A paciente que chamarei de Dominique M. é responsável pelo serviço de pessoal em uma pequena empresa do setor alimentar. Com formação superior em contabilidade e uma formação complementar em direito, ela tem cinquenta anos.
Dominique M. consultou-nos em fevereiro de 2013, em função de sintomas físicos que a atingiam: dores gástricas, problemas intestinais, fadiga, problemas cardiopulmonares (aceleração da respiração, perda de fôlego, seios doloridos, sensação de opressão). Ela era acometida por graves dificuldades respiratórias, em particular ao acordar. "Estou sufocada" - disse ela. Ela sentia uma fadiga que a esvaziava e afirmou "não ser mais capaz de recuperar-se". Seu médico lhe dissera: "É o estresse, você está à beira do burnout". Depois de parar de trabalhar por um mês e meio, ela continuava ainda a trabalhar em casa para resolver urgências, "sem desconectar".
Dominique falou de seu percurso profissional. Depois de ter trabalhado em diversas fábricas, ela obteve, ao fim dos anos 90, o posto de Gerente de Pessoal em uma pequena empresa familiar. Essa empresa entrou em falência e Dominique "geriu as dispensas", incluindo a sua própria. "Exausta, eu não podia mais. Eu ainda trabalhei uma semana depois da falência. Fiz isso para que todos fossem pagos".
Na empresa, fora nomeada Diretora de Recursos Humanos com o estatuto de empregada (não há estatuto de executivos nessa empresa). Descreveu um "ambiente ruim", um diretor tirânico, um clima de medo e de ausência total de respeito pelo pessoal. Relatou sobre dispensas violentas e ilegais, entre outras, a de um ex-trabalhador que perdeu sua perna na fábrica e a quem a diretoria anterior havia prometido manter seu trabalho até sua aposentadoria. Dominique M. fora chamada pelo diretor para demiti-lo, certo dia, "porque ele não tinha sido produtivo". Convocado ao escritório de Dominique, o operário exigiu falar com o patrão, que chegou furioso e começou uma violenta discussão da qual Dominique disse ter sido testemunha impotente. O operário reclamava da consideração: "eu lhe devo respeito, você também me deve respeito". Sem poder expressar-se, Dominique estima que ele tinha razão. As outras demissões seguiram com uma violência similar. Muitos trabalhadores mais velhos foram demitidos e, depois, recontratados, algumas semanas depois, com um salário menor.
Na empresa, os sindicatos eram pouco mobilizados. O diretor se rodeava de trabalhadores que não lhe opunham resistência. Todo o sistema de trabalho era violento. Quando lhe perguntei, na segunda sessão, "como você aguentou?", ela me respondeu: "quando se trabalha em um serviço de pessoal, deve-se abstrair, e os sintomas chegam pouco a pouco... são as decisões que se tomam em cima, eu não sou responsável...". Mais tarde, ela dirá, porém, que "eu nunca fui capaz de deixar pra lá porque me sinto responsável. Eu tenho um senso de responsabilidade muito forte. Isso se torna sufocante...".
Durante a segunda sessão, Dominique começou dizendo que a manutenção da semana anterior foi muito difícil: "é difícil digerir que a situação não seja normal... os outros chegam...". Ela se perguntou se as escolhas a fazer seriam deixar a empresa e se ela não estaria sob o risco de "encontrar a mesma coisa alhures". O meu colega (nós fazemos aqui as consultas em duplas) tomou posição e respondeu: "Não é assim em todos os lugares"! "Estamos diante de algo que eventualmente parece normal, mas não é"!
Dominique adicionou que o patrão estaria "correto" com ela, mas que "é perturbador: eu preferia que ele controlasse sua raiva. Isso é manipulação". Ela referiu-se ao clima de trabalho que parecia um "campo de batalha", uma "situação de guerra". Ela evocou pesadelos recentes: ela voltava ao escritório, sem trabalho, e ninguém falava com ela - e descobriria, meses mais tarde, que esse pesadelo se tornaria realidade quando retornasse ao trabalho. Ela evocou igualmente as dificuldades com seus filhos, adolescentes de dez anos: "sufoca-me também, eu tenho um papel de sanção, punição... já basta de estar no lugar da punição".
Na terceira sessão, ela falou da presença do trabalho em sua vida, mais forte que sua razão: "Eu acho que é preciso agir o tempo todo no trabalho, mesmo se minha razão diz que não é preciso. É mais forte que eu". Abre-se uma questão radical sobre o engajamento subjetivo na atividade profissional, sobre o fazer, "a vontade de fazer", o "direito de não fazer nada". "Perto dos meus 50 anos, eu sempre trabalhei. É uma forma de viver, um valor, e no mais, é necessário financeiramente. Eu devo primeiro descansar. Eu tenho medo de permanecer cansada assim". Falou de um sentimento de "transbordamento", do fato de ter ido "longe demais". Percebe-se que ela fazia uma imagem de si de força, de trabalho, de atividade, de sucesso; a tristeza e a depressão, que estão em segundo plano, viriam talvez da perda inevitável dessa imagem.
Essas questões ocuparam quase todas as sessões seguintes. "Eu me sinto sempre obrigada a fazer" - ela disse. Emerge alguma coisa de um desejo na possibilidade de não ser reduzida à demanda do outro. Dominique relaciona essa "obrigação de fazer" aos valores do trabalho herdados de sua educação familiar, assim como à "vida sem alegria" na qual seus pais viveram. Filha de um pai que tinha um pequeno comércio e de mãe dona de casa, Dominique disse ter sido criada com culpa por sua mãe, a qual engravidara do primeiro filho antes que estivesse casada. Vivia dizendo não viver senão "para seus filhos", jogando com os sentimentos deles, sempre a queixar-se, convicta de que levava uma "pobre vidinha". Dominique pôde elaborar pouco a pouco o mecanismo pelo qual sua alegria foi "um pouco extinta": "Eu fiz do meu coração uma pedra".
Uma virada pareceu desenhar-se em torno da questão do "fazer" ao evocarmos a possibilidade de sair da alternativa entre atividade e passividade: mais que uma escolha binária entre fazer muito -ou como diz Dominique, "ter energia para funcionar", "agradar a todo mundo" - e não fazer mais nada, haveria talvez a possibilidade de fazer de outra forma, para reencontrar as fontes de sua alegria. Isso supunha um questionamento da maneira como ela sempre se manteve "leal a seu empregador".
Abriu-se, então, a questão de um retorno ao trabalho e de uma possibilidade de sair da empresa. Dominique mensurou a anormalidade da violência em que se envolvera - "acostumamo-nos, parece normal". Ela não queria mais trabalhar em tais condições. Identificava as vantagens que ela perderia se abandonasse sua função por um posto de empregado. Ela retornava ao fato de como amava seu trabalho, o contato com o pessoal, a gestão dos salários, a possibilidade de ajudar. Ela falava ainda de seu medo de retornar ao trabalho e de seu medo de não poder mais trabalhar. Ela deixava suas emoções se expressarem livremente. "É preciso respirar livremente de novo", dizia ela.
O caso Teresa H.
A paciente Teresa H. trabalhava numa empresa pública havia um ano e meio. Tinha 60 anos e procurou o LPCT em 2013, quando iniciou seu atendimento no CAEP. A paciente, afastada do trabalho por três meses, tinha como diagnóstico médico: a reação após grave transtorno de adaptação; transtorno por má adaptação da vida funcional - burnout; e problema relacionado ao emprego.
Nos dois primeiros atendimentos, a paciente apresentou-se muito mutilada, falas confusas, aparência física descuidada, chorosa e com bastante dores físicas. Narrou o engessamento vivenciado no trabalho e a relação difícil com o chefe atual. Na terceira sessão, a paciente apresentou-se mais disposta. Apresentava alguns conteúdos pessoais associados à sua forma de trabalhar. Começou a reavaliar o seu tratamento terapêutico (era também acompanhada por um psicólogo clínico e um psiquiatra), em especial o medicamentoso.
Reconstruiu os fatos que a levaram ao adoecimento: acúmulo de tarefas não previstas para o seu cargo, desvalorização do seu trabalho (achavam que em 3 minutos poderia cumprir uma tarefa que levava, no mínimo, 40 minutos...) e engessamento de ações por portarias institucionais que feriam sua ética profissional. Todas essas ocorrências foram agravadas quando se deu a mudança de chefia. A relação com o chefe tornou-se extremamente difícil pela forma como esse a acionava, sem muito tato, e principalmente pelo que classificou como disparidade de conhecimento formal que ambos possuíam: "A criatura no lugar do criador".
Por todas essas situações, a paciente tornou-se bastante convicta da necessidade de ser lotada em um novo local de trabalho. Explicitou um primeiro pedido de socorro, queria ajuda para fortalecer-se e conseguir manifestar sua intenção para a empresa.
Após essa convicção (em torno da sexta e sétima sessão), a paciente mostrou-se mais segura, entretanto precisava organizar os seus conteúdos para conseguir manifestar a sua intenção, o que acabaria fazendo. Nessas sessões, conseguiu falar claramente dos medos despertados pelo trabalho: o calar do seu "saber" pela chefia (chegou a ficar afônica ao tentar descrever esses momentos), não poder expressar o seu "saber" em seus relatórios: "eu me sinto mal em saber e não quantificar".
Na oitava sessão, a paciente apresentou-se bastante à vontade, e a sessão girou em torno de conversas que tivera com funcionários da empresa ao ter estado no local para tratar do seu retorno após licença médica. Falava do reencontro com colegas de trabalho e com aquele a quem passou de chamar ex-chefe (tratamento adotado já há algumas sessões). Esse último lhe despertava temor (nesse momento, dá sinais físicos de apavoramento, suores periféricos e lombalgias) por parecer não querer facilitar sua remoção.
Na sessão seguinte, passou a falar sobre a dificuldade de ser "útil" no seu trabalho. Reconheceu que tinha muita criatividade, mas afirmou que precisava sobreviver e que não existia espaço para ser criativa no atual posto de trabalho. Descreveu como estava a organizar-se funcionalmente e socialmente, entretanto preponderou em seu discurso a forma como desenvolvia suas atividades no ambiente de trabalho. Reafirmou as condições de trabalho que a "(...) fizeram ajoelhar", queria entender como se daria o seu retorno ao trabalho e perguntava-se : "Como eu vou camuflar"? Falava sobre a impossibilidade de fazer prevalecer o seu conhecimento profissional e sobre a dificuldade de conseguir ajudar as pessoas sob a sua responsabilidade: "É duro (... ) você pensa que chegou a um momento de sua autonomia e tem tudo podado" (... ) "Porque não deixam melhorar as condições das pessoas"?
Tais questões retornaram até as últimas sessões (foram 20 ao total). O momento decisivo da clínica foi o de reconhecer a trama da onipotência-impotência, que mobiliza a vontade de salvar os outros da opressão, por mais que sem as condições necessárias para isso. Entender a articulação entre o seu perfeccionismo e o discurso da excelência, não mais considerando natural sua "incompetência" para atender as demandas da empresa. Com essas elaborações, começou a apropriar-se do sentido do sintoma e da função que ele tem de reorganizar a sua posição no ambiente de trabalho.
Nos dois casos mencionados, existe o desafio de decifrar os sintomas e a função que esses ocupam no assujeitamento a uma normalidade patogênica. Observa-se uma relação forte com a obrigação, o dever, o saber, um desejo de atender as demandas, agradar a todos, demonstrando uma onipotência que alivia o sujeito da culpa de não poder "salvar" o outro, até porque é essa uma demanda impossível: o desejo do outro não nos pertence. Confrontar a frustração da impotência é assumir sua condição de desamparo, é angustiante. Por isso, qualquer situação em que o sujeito se sinta onipotente vai trazer-lhe um conforto psíquico, que se expressa em diversos sintomas gratificantes e difíceis de serem abandonados.
A relação onipotência-impotência é acessada em função de uma perversa organização do trabalho. Existe uma falsa promessa de reconhecimento do trabalho e, ao mesmo tempo, uma desqualificação. Por mais que Dominique e Teresa quisessem atender as demandas que lhes eram solicitadas, nunca conseguiriam, porque a organização do trabalho desenhada com base na ideologia da excelência não oferece espaço para as falhas do humano, muito pelo contrário, produz subjetividades que se desestabilizam ante a impotência do confronto com o real.
A virada da situação impõe aos sujeitos uma ruptura com os sintomas, que depende da escuta política dos sintomas pelo clínico, uma saída de uma posição subjetiva de assujeitamento para a possível alteridade. O prazer é uma possibilidade, sair do prazer do sofrimento para o prazer da apropriação e gratificação do desejo, mesmo que submerso na impossibilidade de realizar-se. O desejo nunca é satisfeito, no entanto, sua busca mantém de algum modo a mobilização do sujeito para libertar-se da neurose que as relações produzem.
No caso de Dominique, a virada relacionou-se a "gostar do trabalho" e "não querer mais trabalhar nessas condições", ou seja, não aceitar mais a opressão como normalidade e única possibilidade de se gratificar no trabalho. No caso de Teresa, à libertação da culpa do "não saber tudo", de poder ser falível e de entregar-se ao desconhecido como possibilidade de vida, sem mais o desejo de "salvar" o outro. Ambas reconheceram que, por mais que trabalhassem, jamais conseguiriam atender à demanda de uma organização do trabalho que exige o impossível, perversa na sua constituição, vinculada aos modos de produção e de consumo.
Esse caminho convida-nos a estabelecer uma relação entre o mal-estar subjetivo, as situações de trabalho e a opressão que tem livre curso na empresa. Vale, entretanto, o alerta a não corrermos o risco de avançar rapidamente com nossa vontade de decifrar o enigma do sintoma que resiste à nossa compreensão. Entender o sintoma - ao invés de tentar silenciá-lo, significa acolhê-lo como um pássaro que vem bater seu bico no vidro. Como encontrar o ar, que é esse "fator de impulso/catalisador", que o sintoma manifesta? Literalmente, "apelo de ar" aqui tem sentido figurado e joga com a metáfora do sintoma como pássaro e também com o caso de Dominique, que relata sentimentos de "sufocamento" e a quem seu sintoma vem para "buscar o ar".
A despeito da sua dor, ele pôde aparecer como a chance de uma virada na situação (GUATTARI & ROLNIK, 2007). Essa chance é o paradoxo entre a prisão e a liberdade, é a tensão entre o gozo de manter-se apegado aos sintomas e o risco de sair da gaiola da opressão, assumindo o desejo, que paradoxalmente remete ao desamparo e à alteridade.
Uma verdadeira virada não é certamente única nem definitivamente garantida. Ela não pode ser reapreendida, a não ser depois de sua ocorrência. Ela é possível quando consideramos o sintoma como enigma de um conflito inconsciente e o momento crítico de uma decisão.
Todo esse movimento da "virada" do sintoma desdobra-se inexoravelmente numa crise, uma vez que envolve a revelação de um enigma e as decisões sobre os destinos a serem dados a essa nova forma de viver, nem sempre visíveis aos sujeitos e aos clínicos, haja vista o poder do inconsciente nesse processo.
Crise e crítica
Nomear a crise é um passo clínico decisivo. A crise revela ou amplifica as falhas de um funcionamento psíquico e social no sentido que lhe atribui Freud nas Novas conferências de Psicanálise, quando fala das linhas de fratura do cristal. A crise é, em si mesma, evolutiva. É um processo cujo desfecho está em aberto, mesmo se, para aqueles que a vivem, a crise significa por vezes um enorme fechamento, o impasse e a morte.
Este momento exige um julgamento e uma decisão. A crise abala os alicerces, aparentemente seguros, de uma vida. Apela a uma faculdade de julgamento ou de orientação na própria existência. Ora, paradoxalmente, os tempos difíceis de um percurso profissional são, muitas vezes, precisamente aqueles em que a capacidade de julgar, e mesmo de pensar, entra em falência, como o mostraram as situações de Dominique e de Teresa.
Duas vias se abrem. Se a crise é entendida apenas como a ruptura de um equilíbrio, sair dela será voltar ao estado anterior; mas, se for entendida como a possibilidade, em si mesma, de uma transformação, sair dela será "mudar de estado, dar-se novas normas de vida" (HUBAULT, 2007, p. 5).
Foi exatamente isso que experienciamos na clínica do trabalho, na dor e no risco pessoal e profissional. Entrar em crise e atravessá-la pressupõe, antes de tudo, nomear o momento crítico, para uma situação de trabalho ou para uma vida inteira, de modo a poder vivê-la em todas as suas potencialidades. Forças poderosas opõem-se, porém, a um tal desígnio.
Se as pessoas vêm consultar-nos é porque a crise não pôde (ainda) abrir-se sobre o local de trabalho, nem, por vezes, sobre elas mesmas. Categorias como as de burnout ou de assédio são por vezes necessárias para identificar as dificuldades encontradas e atestar a opressão sofrida e, não raro, consentida. Importa, no entanto, questionar o que estas dificuldades permitem e o que impedem, no movimento do pensamento e na elaboração das "réplicas" individuais e coletivas num momento crítico, sempre ambivalente.
Além do mais, as atuais técnicas de gestão tendem a fazer da "crise" um estado recorrente, de acordo com o princípio da "mudança permanente". Quando a exceção se torna regra, a crise estabelece-se como instituição, com o objetivo de afirmar "a ruptura pela ruptura". A crise perde então o seu caráter acidental, deixa de ser "o sintoma de uma falta de equilíbrio; ela é, em si mesma (...) o desequilíbrio instituído como suporte da condição humana" (BARKAT & HAMRAOUI, 2007, p. 19-21).
Procedendo desse modo, a gestão desvitaliza os momentos realmente críticos, nega-os ou subestima a sua importância. Ao fazer da crise um regime habitual de trabalho, tende a negligenciar as dificuldades reais do trabalho, mesmo aquelas que pretende avaliar "objetivamente". Essa tendência caminha junto à promoção de uma ficção, a saber, a do sujeito da performance, como imagem da onipotência - um sujeito que "perdeu a noção do seu enraizamento no corpo" (HAMRAOUI, 2007, p. 3) e a coragem de ouvir, pacientemente, "a intimidade das coisas e dos seres" (Ibid., p. 4).
Nesse contexto, a crise tem poucas oportunidades de se tornar uma ocasião de transformação, e o desejo de outra vida pode ser reprimido, com a maior violência, na empresa e pelo próprio sujeito.
Uma primeira dimensão do trabalho clínico consiste, por isso, em assumir a existência de uma crise - pessoal, profissional, institucional - manifestada pelo sintoma. Este é um momento arriscado, que ativa a divisão interna e o conflito social. Ora, o que podemos constatar frequentemente com as pessoas que nos procuram em clínica do trabalho, é a dificuldade que tiveram, nas suas carreiras profissionais, para elaborar os conflitos que as dividiam.
Onde está o conflito? Sobre o que se centra? Propõem-se duas respostas.
Trata-se, em primeiro lugar, de um conflito de valores. A crise faz reemergir os valores que deveriam orientar a ação. Ser impedida de fazer um trabalho de qualidade, não ver o alcance ou o significado do que se faz, ter que funcionar mecanicamente, tornar-se uma "marionete"... são os impasses frequentemente expressos em clínica do trabalho. Abrir a crise é ativar as controvérsias quanto aos valores perseguidos na execução do trabalho. Esses valores são sempre plurais e, frequentemente, contraditórios. Uma parte do nosso trabalho clínico consiste em acompanhar o sujeito de tal maneira que ele possa situar-se na empresa ativando tais controvérsias.
Os novos cenários de vida podem ser abertos: a saída da empresa, uma mudança de local de trabalho, uma mobilização de recursos coletivos (sindicais ou jurídicos, por exemplo)... O que importa é a possibilidade de o sujeito se colocar diferentemente em tais cenários, "fazer diferente", retomando um termo usado nas sessões.
A crise é, contudo, também da ordem de uma divisão subjetiva. O sujeito humano é plural, podemos dizer que ele é um coletivo onde reina a divisão. O conflito de valores trata, por isso, de certa fidelidade a uma opção que suporta uma verdade subjetiva (PÉRILLEUX, 2010). O termo fidelidade tem lugar numa constelação semântica que engloba os de fé, confiança e compromisso. Um dos significados do termo fé é a "fidelidade ao compromisso" (LALANDE, 1968, p. 347). O compromisso testemunhado perante um terceiro, garante certa consistência à pessoa.
Essa fidelidade não é aqui entendida em termos morais como "fidelidade a si próprio", que daria a entender que um sujeito preexiste a um ato que o compromete. Isso diz mais respeito à fidelidade a uma enunciação, não a uma palavra dogmática, mas a uma decisão subjetiva. Nosso compromisso clínico consiste em caminhar no sentido do ponto crítico da decisão subjetiva.
Não visamos tornar as pessoas mais eficientes, nem mais adaptadas às solicitações da empresa. A clínica do trabalho pretende, ao contrário, abrir crises, colocar em crise o que era tido por "normal" quando a normalidade é um sintoma de violência e opressão. Calar-se é, por vezes, sinônimo de cumplicidade com uma violência surda. Uma tomada de posição da nossa parte é ocasionalmente necessária, face à brutalidade e à loucura do mundo do trabalho.
Considerações finais
Para concluir, vale fazer algumas considerações sobre a relação entre as consultas individuais e uma ação coletiva da organização do trabalho.
Os casos apresentados são atendimentos individuais. Acreditamos, no entanto, que um sintoma nunca é estritamente "individual". É uma mensagem endereçada aos outros, que não foi escutada. É também uma forma de laço social, no sentido de que um mal-estar somático, por exemplo, pode constituir uma alternativa ou um eco à malignidade que toma forma no ambiente que circunda o indivíduo (ZENONI, 2009). Como podemos, então, retornar às questões coletivas da organização do trabalho?
Nota-se que os locais de escuta e de intervenção individuais e do coletivo são diferentes. A nossa opção consiste em defender uma escuta clínica crítica e analítica do trabalho, embora a ligação entre a clínica do trabalho, a clínica psicanalítica e a crítica social não seja direta, diversas articulações precisam ser feitas e tensões enfrentadas. Há uma distância a manter (PÉRILLEUX, 2009, 2013). Em alguns casos, uma tomada de posição do clínico pode impedir o prosseguimento de um trabalho de elaboração psíquica: quando a crítica alimenta uma autocomiseração ou quando reenvia os sujeitos à impotência, ao invés do desejo de lutar (RENAULT, 2008). A politização do sofrimento não vai além de si e ela não é sempre desejável, independentemente de sua maneira (PÉRILLEUX & CULTIAUX, 2009).
Além disso, a aparição dos sintomas aparentemente ligados à situação profissional é sempre singular. Cada um se compõe diferentemente em sua situação de trabalho, em função de sua história e de sua posição existencial. Não há causalidade direta entre a natureza dessas experiências atravessadas e sua inscrição biográfica: os "limiares de tolerância" às experiências variam em cada um e os conflitos do trabalho são dramatizados, em cada caso, de maneira singular no curso de uma vida. Como temos argumentado ao longo dessa contribuição, é preciso prestar atenção aos elos de determinação muito diretos e unidimensionais.
Uma transformação da relação subjetiva no trabalho de um paciente pode suscitar, entretanto, uma desestabilização do sistema de produção que funcionava em sua "normalidade". Enquanto o sujeito modifica sua posição existencial no trabalho, seu retorno à empresa não fica sem efeitos. Além do mais, pela palavra singular dos pacientes, nós temos acessado realidades organizacionais que não nos seriam acessíveis de outra maneira.
É verdade, porém, que as possibilidades de intervenção direta na organização do trabalho continuam limitadas. É mais comum que os clínicos possam influenciar na linha hierárquica por outras vias (formação, consultoria, intervenção psicossocial) e contribuir assim para modificar a organização da produção.
A tarefa que nos desafia é, em primeiro lugar, a de aproveitar a crise como ocasião de abertura das controvérsias sobre os valores do trabalho. Trata-se de restaurar a voz de sujeitos críticos: onde a voz é quebrada, deve emergir a possibilidade de uma palavra em que a pessoa se surpreenda com a sua própria verdade. Poderá, depois, interrogar-se o que permite integrar a causa singular de cada um numa causa comum com os outros.
Finaliza-se com uma evocação poética. Poderíamos dizer do sintoma e de seu tratamento em clínica do trabalho o que Salah Stétié diz da "constelação poética". Ele se apresenta como:
não verdadeiramente incognoscível, nem mesmo um desconhecido definitivo, mas, na súbita clareza de seu tratamento, uma totalidade opaca à vocação provável de transparência... e é, entre a lâmpada e a noite, o brilho pelo qual magramente clareia ou pela qual, fazendo escuridão, parece esperar de sua noite mesmo um desengajamento solar e a exigência de decifrá-la.
Nota:
(1) Parte do presente texto encontra-se publicado em "Politique du Symptôme" de T. Périlleux (2014), referência fundamental para a compreensão da escuta analítica e política do sofrimento como um modo de decifrar o enigma dos sintomas no contexto de trabalho.
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Recebido em: 15/09/2014
Aprovado em: 17/03/2015