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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.7 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2015

https://doi.org/10.18370/2176-4891.2015v1p117 

ARTIGOS

 

A adesão ao discurso musical contemporâneo: uma abordagem retórica

 

The adherence to the contemporary musical discourse: a rhetorical approach

 

 

William Teixeira da SilvaI; Silvio FerrazII

IBacharel em Música pela UNESP, é mestrando em Música pela UNICAMP com financiamento da FAPESP. teixeiradasilva.william@gmail.com
IIDoutor em Semiótica pela PUC/SP, é professor de Composição Musical da USP e pesquisador do CNPq. silvioferraz@usp.br

 

 


RESUMO

O estudo do discurso com ênfase no auditório foi o mais importante legado de Chaim Perelman dentre suas contribuições à Retórica. Esse viés, que em primeira instância já constava na retórica aristotélica, foi fundamental para que se esclarecesse a noção de persuasão e convencimento, e sua ligação com o objetivo do discurso: a adesão. Quando se toma, entretanto, como objeto de análise um discurso não verbal, as interações entre orador e público e a negociação dos significados do discurso ficam prejudicadas e passam a demandar outros índices de avaliação. É o caso do discurso musical. Sendo que para Perelman "uma argumentação eficaz é aquela que consegue aumentar a intensidade da adesão", será discutido como a adesão pode ser definida na Música Contemporânea. Como objeto de análise será utilizada a peça Sequenza XIV (2002), de Luciano Berio (1925-2003).

Palavras-chave: Retórica; Música Contemporânea; Chaim Perelman; Luciano Berio.


ABSTRACT

The study of discourse with an emphasis in the audience was the most important legacy left by Chaim Perelman among his contributions to rhetorics. This bias, although present in Aristotelian rhetoric yet, was crucial in order to clarify the adherence. However, when it is taken as an object of analysis a non-verbal discourse, interactions between speaker and audience and the negotiation of the meanings of speech are impaired and begin to demand other evaluation indexes. This is the case of the musical discourse. Since for Perelman "an effective argument is that you can increase the intensity of adherence", we will discuss how adherence can be set in contemporary music. The object of analysis to this study is the piece Sequenza XIV (2002), written by the Italian composer Luciano Berio (1925-2003).

Keywords: Rhetoric; Contemporary Music; Chaim Perelman; Luciano Berio.


 

 

1. A adesão ao discurso musical na história

O presente trabalho parte da premissa de que a retórica, em sua aplicação ao discurso, "permite provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhes apresentam ao assentimento" (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 4). A retórica, na verdade, define-se como arte justamente por buscar a persuasão em todo e qualquer caso (ARISTÓTELES, 2005, p. 95), diferindo da demonstração precisamente quanto à sua finalidade, já que não intenta "provar a verdade da conclusão a partir da verdade das premissas, mas transferir para as conclusões a adesão concedida às premissas" (PERELMAN, 1993, p. 41). No entanto, o que caracterizaria a adesão dos espíritos a um discurso em sua acepção musical?

Historicamente, o conceito de adesão, levado da retórica à música, ateve-se a um princípio básico: o afeto. Todos os escritos que extrapolaram a reflexão puramente matemática sobre as propriedades da musica speculativa, acabavam por relatar e descrever fenômenos emocionais acarretados pela música no ouvinte por ela afetado. Sistematizando o conceito de maneiras distintas, tanto a retórica musical italiana quanto a alemã concordaram que essa era a raison d'être da música.

Giulio Caccini, por exemplo, atesta que sua prioridade ao compor sobre determinado texto, era adequar o afeto da música ao afeto que "se é falado" (CACCINI, 1601/2009, p. 25), o que lhe possibilitaria licença, inclusive, de outros paradigmas composicionais então vigentes. Posteriormente e categoricamente, o alemão Johann Mattheson concluiu que, "em suma, tudo o que acontece sem os afetos, não significa nada, não faz nada e não vale nada" (MATTHESON apud BARTEL, 1996, p. 29).

O conceito de afeto advém diretamente da tradição retórica clássica, em cujo seio Aristóteles já previra sua importância, ao partir da tríade discursiva ethos, logos e pathos (sendo rcdOoç traduzido ao latim como affectus). A atribuição dada a esse aspecto como tese discursiva foi, contudo, responsabilidade da retórica musical que emergia na música instrumental. Posto esse objetivo, bastar-lhe-ia defender tal tese, ao constatar sua efetividade após a realização do movimento da alma do ouvinte, pretendido pelo compositor.

É importante esclarecer, já aqui, que essa concepção, por mais ingênua que pareça, tinha suas bases científicas dentro daquele contexto, sobretudo a partir dos estudos sobre os temperamentos fisiológicos dos indivíduos (sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico). Não se deve confundir, ainda, de modo algum o movere do discurso com o sentido corrente que facilmente nos vem à cabeça como experiência estética, como fora definido por Adorno. O grande referencial teórico da compreensão barroca de afeto foi escrito por um dos detratores da arte retórica, René Descartes. Em As paixões da alma, escrito em 1649, o filósofo trata com mais sofisticação da concepção de temperamento que atravessara séculos desde suas primeiras menções. É pouco lembrado que, a partir das proposições cartesianas, os próprios teóricos da retórica musical levantavam a possibilidade de um discurso afetar indivíduos de maneira distinta, nesse caso, devido às predisposições fisiológicas de cada um. A Affektenlehre toma lugar justamente nessa etapa do desenvolvimento do discurso musical. Diferente do significado determinista que o termo "doutrina" possa transmitir, ou da conotação pedante que "teoria" designe, esse conceito é muito mais uma organização sistêmica desses movimentos que a alma traria como potência.

Nesse período, a clara definição do afeto conduziria a uma escolha de elementos constitutivos, como tonalidade e andamento, que comporia um discurso musical efetivo por reforçar, em todos seus âmbitos, a tese proposta. Em uma música sem tonalidade, porém, e com um pressuposto de afeto tão distinto, para avaliar a efetividade do discurso, a adesão do auditório, tornam-se necessários novos critérios.

 

2. A adesão: entre persuasão e convencimento

Na Nova Retórica, "uma argumentação eficaz é a que consegue aumentar essa intensidade de adesão [conforme a citação acima], de forma que se desencadeie nos ouvintes a ação pretendida" (PERELMAN; OLBRECHT S-TYTECA, 1996, p. 50). Encontrar uma ação concreta que comprove esse aumento de intensidade, todavia, é um problema para a análise do discurso musical. Por exemplo, um discurso jurídico tem como objetivo a comprovação que determinado ato ocorreu dentro dos limites da legalidade e foi, portanto, correto. Como comprovar a eficácia desse discurso? Com a absolvição do réu (falando sob o ponto de vista de um advogado, é claro!). Essa ação é facilmente depreendida do gênero judiciário. Dentro do discurso musical, contudo, não há uma ação tão imediata que possa evidenciar a adesão da audiência a tese apresentada.

Para direcionar uma reflexão que possa proporcionar frutos positivos, tomamos as duas espécies de movimentações dos espíritos, cuja somatória é uma concepção mais ampla de adesão, que são o convencimento e a persuasão, conforme proposto por Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca em seu Tratado da Argumentação: a Nova Retórica, escrito em 1958.

O convencimento é um conceito mais próximo da realidade atual do pensamento, pois sua efetividade está baseada na exatidão de certo sistema lógico. Dado um conjunto de premissas verdadeiras, basta que ele seja argumentado obedecendo às regras da lógica, que não restará ao auditório outra resolução a não ser aderir à conclusão resultante. Por isso, a convicção sempre esteve associada, através da história, ao campo do verdadeiro, e alcançou preeminência quase que sinonímica na adesão a toda e qualquer tese, dentro do pensamento racionalista. Apesar de ser um mecanismo vital à comunicação, o convencimento não consegue, no entanto, alçar a onipotência da resolução argumentativa, pois mesmo com o aceite de sua veracidade, a tese pode não possuir força o suficiente para levar um sujeito a agir em função dela: o filho não discute a racionalidade da ordem materna. Simplesmente não tem interesse em obedecer-lhe. Além disso, por fazer uso da linguagem enquanto meio argumentativo, um discurso só pode convencer dentro das aparências do real, pois a falibilidade desse meio não tem poder de gerar resultados absolutamente objetivos. Foi exatamente essa crítica que levou à tentativa nominalista de "eliminação da linguagem, elemento de deformação e de mal-entendido" (PERELMAN, 2004, p. 363).

A persuasão, por sua vez, aparece nos dias de hoje como o opróbrio da argumentação, já que qualquer falácia eloquentemente sustentada poderia conduzir a tal resultado. Aliás, tal visão não é um privilégio de nosso tempo, mas é parte intrínseca à discussão sobre o pensamento retórico. Mais do que o ato de persuadir, sempre pareceu ultrajante explicitar o objetivo persuasivo de um discurso, como faz questão de esclarecer o apóstolo Paulo em uma de suas epístolas bíblicas:

"eu mesmo, irmãos, quando estive entre vocês, não fui com discurso eloquente nem com muita sabedoria para lhes proclamar o mistério de Deus. (...) Minha mensagem e minha pregação não consistiram de palavras persuasivas de sabedoria, mas consistiram de demonstração do poder do Espírito" (1Cor 2, 1.4).

Tal divisão resultou do fato de que a persuasão está atrelada ao campo da doxa, da opinião, opondo-se ao convencimento alcançado pela verdade. Mesmo sendo o fetiche sofístico, a persuasão encontra seu valor no fato de possuir o poder de efetivar a adesão a uma tese em ação. Isso fez com que ela tenha sido adotada muito mais como objeto de estudo psicológico do que na legitimidade da presente discussão. Como disse Rousseau, no Emile, "de nada adianta convencer uma criança se não se sabe persuadi-la" (apud PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 30). Não só na educação infantil, mas faz parte da práxis humana a comunicação que visa uma movimentação de outrem e, quanto maior o grau de liberdade possuído pelos indivíduos, maior sofisticação será necessária para levá-los à ação pretendida. A negação desse fato mais subestima o nível de influencia da interlocução discursiva do que acrescenta racionalidade ao exame da argumentação, pois suporia um discurso esvaziado do interesse de se conduzir a uma tomada de decisão. A dicotomização dessas duas categorias é útil para o estudo, mas ambas possuem propriedades que fazem de sua combinação um critério mais seguro para a avaliação acerca da adesão ao discurso.

A Nova Retórica, como uma Teoria da Adesão (DANBLON, 2004, p. 81), objetiva a atenuação da fronteira entre persuasão e convencimento através da crítica ao critério da evidência, apontando o caráter intersubjetivo que o fato passa a ter quando tomado como premissa de uma argumentação (OLIVEIRA, 2004, p. 71). Isso resulta na constatação de que a diferença entre verdade e opinião, no âmbito da recepção, é uma questão de grau e não de natureza (PERELMAN, 1993, p. 32). Essa é a razão pela qual Aristóteles já aponta que os entimemas retóricos operam no nível da verossimilhança, o que interessa muito à discussão sobre o discurso musical, dado o grau de significação de seus signos. Além disso, fica resguardada à persuasão a informação de cunho emocional e seus efeitos, componentes inevitáveis da adesão, devido a sua importância no ato resultante, como sustenta Aristóteles, ao dizer que não basta ao discurso ser digno de crédito, pois "as emoções são as causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos" (ARISTÓTELES, 2005, p. 160).

Essas novas proposições contribuem para a discussão em relação à afetividade na música contemporânea, pois já assumem que "a inserção da subjetividade é inevitável a todo e qualquer ato enunciativo" (MOSCA, 2004, p. 132), eliminando o mito da imparcialidade. Desse modo, a atribuição desse dado afetivo à música não é nenhum absurdo, como gostaria de afirmar Hanslick.

A retomada do pensamento retórico procura, todavia, o equilíbrio da tríade discursiva supracitada, já que foram justamente os excessos elocutórios que mais contribuíram para o desprestígio da retórica. Destarte, o afeto, aparece mais como um relevante recurso, do que como tese acima de todas, o que, na verdade, já acontecera de certa forma com os desenvolvimentos motívicos e temáticos classicistas, que deixaram cada vez mais de lado a ideia de um afeto único como tese.

Dentro de processos composicionais que não partem de estruturas tomadas a priori, mas que se dão dialogicamente, à deriva, essa ideia faz ainda mais sentido, pois o próprio material reage às maneiras com as quais o compositor deve lidar no proceder de seu discurso. Isso não implica uma contingência, mas um nível de interlocução interna do próprio discurso. Os afetos são intercambiáveis no nível em que se intenta empregá-los para a obtenção da adesão.

 

3. A adesão ao discurso musical: continuidade e pregnância

A pesquisa sobre a aplicação desse conceito bipartite de adesão na compreensão do discurso musical demanda o estabelecimento dos modos pelos quais a persuasão e o convencimento se apresentariam em uma acepção discursiva não verbal. Adotamos aqui, como correspondência, outro binômio, que tem sido estudado na musicologia para tratar dessas duas faces da efetivação do discurso musical, a saber, os conceitos de continuidade e pregnância (FALCÓN, 2011, p. 52).

No nível da efetividade lógica do discurso, a música contemporânea tem adotado o conceito de continuidade como um parâmetro básico de sua formalização, por mais dispares que sejam as vertentes estéticas e os paradigmas composicionais adotados por cada uma. Pierre Boulez afirma, mesmo que como intérprete, que "o senso de continuidade é o elemento mais importante da performance'" (BOULEZ, 2003, pp. 106-107). Isso também acaba por direcionar seu trabalho composicional, pois, em sua análise, mesmo uma música segmentada como a de Webern ou Berg, possui uma trilha "subterrânea" que mantém os eventos conectados.

Assim como para Boulez, para Hatten (2004, p. 248), "a continuidade deve ser definida em termos de consistência de ação, independentemente de suas possibilidades de variação articulatória". Mesmo uma sequência descontínua de sons, parametricamente falando, pode apresentar continuidade em algum nível, como por exemplo, no nível temporal, como é o caso da composição por justaposições de Stravinsky. Nesse ponto, o próprio conceito de tempo torna-se um pressuposto da escrita, correndo subterraneamente ao discurso, já que todos os desdobramentos de metro e pulso dependerão dele. O mesmo questionamento perelmaniano em relação à evidencia, que aproximou a persuasão da convicção, faz-se presente quando questionamos, no discurso musical, a validade do duplo substância e forma, dando sentido, assim, ao conceito de consistência:

"A ideia de consistência aparece (...) tomada de Deleuze e Guattari, desenvolvida em Mille Plateaux. O plano de consistência, ou plano de composição é apresentado pelos autores como sendo o oposto dos planos de desenvolvimento e de organização, que são por sua vez concernentes à forma e à substância. No plano da consistência, substância e forma são ignorados em vista das relações localizadas de velocidade entre elementos, a composição de afetos intensivos. É pela consistência que são reunidas as heterogenias, os disparates; ela é a consolidação de conjuntos vaporosos das transformações apreendidas por elas mesmas, intensivamente" (FERRAZ, 1998, p. 92).

Como dito a respeito do abandono da ideia de uma música baseada em um afeto único, o elemento que mais será alterado da música barroca para a clássica será justamente a continuidade textural, pois a variabilidade de afetos demandará outro tipo de realização formal. A métrica aparecerá mais definida e claramente destacada pelo acompanhamento na homofonia, pois novos lugares expressivos serão passíveis de alcançar-se pelos então novos procedimentos tonais. Na música contemporânea, em que a transição entre ideais musicais é quantitativamente maior, caberá sempre uma análise mais minuciosa da cada peça para que seja encontrado o aspecto que mantém a continuidade em questão.

A continuidade é dos pontos analiticamente mais distintos entre objetos instrumentais e os que fazem uso de um texto verbal, pois o contato com esse outro sistema linguístico possibilita uma continuidade do tipo dramático, que depende do fluxo discursivo verbal. Um exemplo claro é a diferença entre os madrigais de Monteverdi e, pouco tempo depois, as obras para instrumento solista de J. S. Bach. Mesmo que ambos sejam ápices da aplicação da retórica em música, Monteverdi, em uma peça como Il Combattimento di Tancredi e Clorinda, pode fazer uso de uma gama enorme de sonoridades, até mesmo produzida por "técnicas estendidas", pois é o texto que garantirá a continuidade entre os eventos. Enquanto isso, se abrirmos a partitura do Prelúdio da Primeira Suíte para violoncelo solo, de Bach, não veremos muitos elementos além de uma longuíssima sequência de semicolcheias. Embora seja essa uma peça altamente retórica, foi necessário que a música mantivesse sua continuidade por outros meios, fazendo com que o discurso se desenvolvesse dentro das demais instâncias.

Agawu (2008, p. 24-25) acrescenta que o conceito de continuidade é, em parte, acústico, mas que sua maior importância é devida a suas fontes psicológicas e semânticas. A música tonal cria essa ideia linearmente, fazendo uso de suas hierarquizações, mas incorre ao exacerbo formalista quando se torna uma formulação idealizada, na qual o ouvinte estaria envolto pelo discurso apresentado, acorrentado pelo processo tonal, sem espaço algum, em tempo real, para desenvolver uma escuta intertextual. Podemos depreender, assim, que a música contemporânea, mesmo que sem tonalidade, pode também operar a continuidade a partir de unidades semânticas e/ou intertextuais, pois a morfologia do som permite que tais dinâmicas ocorram.

Prosseguindo para o outro termo de nossa compreensão da adesão, a pregnância tem, de certo modo, uma proximidade já filológica com a ideia geral de adesão, dando ambas as palavras a ideia de uma união física de corpos. Na presente acepção, o conceito deve seu significado aos pressupostos da psicologia da Gestalt, geralmente acompanhado pela Lei da Boa Forma.

A pregnância é o fenômeno perceptivo que trata da simplificação e estabilização do campo percebido, por mais complexo que ele seja em si. A arte é o campo onde a pregnância pode ser mais notada, "porque ao mesmo tempo em que [as obras] alcançam um alto grau de complexidade, nelas a forma perceptual é trabalhada no sentido da maior expressividade" (FERRAZ, 2012, p. 119). O intento expressivo já desperta uma expectação diferenciada na audiência, o que proporciona uma experiência receptiva distinta da informação de outra ordem.

A ação perceptiva que acarreta a pregnância é tanto passiva, no sentido em que recebe as formas estruturadas no discurso, quanto é também ativa, pois age na reorganização da energia do material. Nesse sentido, a obviedade não é em nada pregnante, pois já emana sua percepção ao não criar nenhuma tensão discursiva. Fica claro o significado de obviedade dentro do discurso musical: um tipo de música que não se afaste muito de um pulso e métrica regulares e constantes, com uma tonalidade bem definida na realização de planos harmônicos e melódicos e, ainda, com uma estrutura que se repita da maneira mais evidente possível, de preferência, por meio de uma gama timbrística reduzida. Em geral, uma música que corresponda a esses critérios está mais próxima da ideia de gosto do que da persuasão, habitando um campo de contingências culturais1, ao invés de almejar a efetividade do discurso. Mesmo o discurso panegírico, aquele feito na Grécia antiga com o intuito de louvar determinada pessoa, buscava, dentro da tópica laudatória, aspectos desconhecidos ao auditório, de forma que o objetivo fosse alcançado mais plenamente.

Thomas Hastings, em sua famosa Dissertação sobre o gosto musical, afirma, embora de maneira representativa da visão de sua época (1853), que se o objetivo do compositor é apenas o entretenimento, seu trabalho será fácil e a isso era devido o fato por que "tão grande quantidade de nossa música de salão é de caráter tão trivial" (HASTINGS, 1853, p. 169), resultando em uma música de alta efemeridade. Ele conclui seu pensamento comparando a música à eloquência, ambas sendo dádivas destinadas aos homens em todas suas classes, como recursos para a expressão de um objetivo superior.

Indo além, a pregnância lida com a tensão de informação, o dado, a princípio, estranho ao receptor, mas que traz em si o potencial de excitar o processo interpretativo da percepção, possibilitando a modulação dentro da dinâmica discursiva (SIMONDON, 1989, p. 53-54). Isso explica o modo como essa dinâmica torna viável a adesão à música escrita antes de nós, mesmo que formemos, hoje, um auditório distinto daquele para o qual determinada obra fora escrita: "Podemos dizer que, se a arte sobrevive no tempo, é porque o tempo sobrevive nela" (FERRAZ, 2012, p. 124). Faz-se entender então o conceito de metaestabilidade, de Simondon: uma estabilidade da obra que não a torna hermética, mas possibilita sua atualização.

O funcionamento desse conceito dá-se pelo mecanismo de "captura de forças", o poder de afetar e ser afetado. Assim, o discurso constituiria um plano que objetiva a captura de forças correspondentes em sua realização, cabendo a ele conter e expressar tal potencial em sua própria força energética. A adesão completa o processo discursivo, pois seu meio não carrega intrinsecamente um desfecho necessário, mas possível.

Sendo a adesão o objetivo do discurso, esse dois elementos portam-se, portanto, como critérios relevantes para a análise do discurso musical. Isso, obviamente, não implica o esgotamento nem uma afirmação apodítica sobre a efetividade ou não do discurso, mas proporciona uma interpretação das potencialidades que o fluxo discursivo carrega consigo.

 

4. Uma análise de caso na Sequenza XIV de Luciano Berio

Em 2002, Berio conclui uma empreitada iniciada em 1995: a Sequenza XIV para violoncelo solo, a penúltima peça de seu catálogo, já que faleceria em maio de 2003. Iniciada após sua satisfação em assistir a uma execução de II Ritorno degli Snovidenia na Bienal de Veneza, pelo violoncelista Rohan de Saram (1939), então integrante do quarteto de cordas Arditti, a Sequenza passou por um longo processo de composição através da troca de fitas e correspondências entre Berio e o intérprete.

No caso da Sequenza XIV, por exemplo, podemos enxergar os dois termos de nossa compreensão da adesão de maneira bastante clara. Sua continuidade obedece a uma característica bastante própria de Berio, que é a construção por gestos. A peça não possui um centro tonal definido, nem obedece a nenhum padrão serial, desse modo, não conseguiria sustentar o discurso melodicamente, muito menos com um padrão harmônico hierárquico. No âmbito do tempo, além de não possuir formulas métricas definidas, seu pulso é sempre flutuante, pois as indicações de andamento sempre são enunciados que estimulam a flexibilidade, como:

 

 

Mesmo dentro de outros gêneros, Berio aplicava a escrita gestual como sua trilha subterrânea que manteria a unidade lógica da peça, como explicita David Osmond-Smith ao falar da principal contribuição do compositor à escrita da música eletrônica:

Dois aspectos de seu trabalho que deram contribuições particulares a essa evolução [da música eletrônica]: a experiência de realizar contrapontos de camadas complexas de som e o estilo gestual de escrita, que forneceu continuidade retórica na ausência de elementos harmônicos mais tradicionais como referência (OSMOND-SMITH, 1991, p. 15).

A continuidade gestual (IMPETT, 2007, p. 83) já fora aplicada não só em outras obras de Berio, mas nas próprias Sequenze, devido ao fato do caráter polifônico pretendido manter as camadas melódicas mais fragmentadas do que seria de se esperar. Gestos, como os do exemplo a seguir (Ex. 2), reúnem uma grande variedade de modos de jogo, dinâmicas e ritmos, mas apesar de sua diversidade, as reiterações ao longo da peça criam uma familiaridade que permite, pouco a pouco, que essas figuras sofram também transformações. Desse modo, obtém-se não só uma polifonia de alturas, mas, muito mais, uma polifonia de gestos, o que corresponde integralmente ao projeto estilístico que Berio nutriu desde o início de sua carreira, em contraposição, por exemplo, a John Cage: "Eu estava pessoalmente ocupado procurando coerência harmônica entre diversos materiais, em um contexto musical feito de sons e não apenas por notas" (BERIO, 2006, p. 18).

 


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A partir do estabelecimento da continuidade gestual, passa a ser possível a procura por aspectos que garantam continuidade ao discurso mesmo com a reconfiguração dos gestos. Os processos reiterativos e combinatórios, frutos de um procedimento composicional tão dialógico quanto o de Berio, fazem com que dentro de um mesmo gesto ocorra a absorção de elementos de outro gesto. No trecho a seguir (Ex. 3), que ocorrerá apenas no final da quarta página da peça, todos o gestos já apresentados e recombinados resultam em uma sucessão tão rápida de eventos que torna difícil a identificação da origem de cada elemento. Ainda assim, a continuidade gestual se mantém pela clareza da exposição: do ritmo pontuado, mesmo que agora em pizzicato e sucedido por duas colcheias que o assemelham ao gesto de quintina; da figura em quintina, mesmo com mudanças abruptas de dinâmica, modo de jogo, articulação e registro; e, novamente, da figura pontuada, reiterada em curto espaço de tempo, agora com uma enorme mudança de registro, modo de jogo e dinâmica.

 

Exemplo 3

 

Esse parece ser o posicionamento de Berio, frente a um modo específico de conceber o discurso:

O pensamento musical mudou, de fato, no momento em que os músicos passaram a considerar a possibilidade de uma interação significativa entre critérios aditivos e subtrativos, procurando, por exemplo, por continuidade estrutural entre timbre e harmonia (BERIO, 2006, p. 15).

Retornando ao excerto anterior (Ex. 2), conseguimos abordar a outra face de nossa pesquisa por evidências de uma potencialidade do discurso em obter a adesão, agora, através da pregnância. Nesse termo, Berio trabalha com os afastamentos e aproximações de sonoridades "tradicionais", como definido anteriormente, para criar estímulos na escuta, persuadindo efetivamente o auditório em uma escuta vividamente ativa. Ele define muito minuciosamente como trabalha essa dimensão "timbrístico-histórica" do som, a dimensão morfológica, em comparação com as dimensões temporal, dinâmica e das alturas:

O que eu chamo dimensão morfológica coloca-se, sob certos aspectos, a serviço das outras três, funcionando como uma espécie de instrumento retórico. Ela visa definir o grau de transformação acústica em relação a um modelo herdado que, neste caso [da Sequenza I], é a flauta com todas suas conotações histórico-acústicas (BERIO, 1988, p. 85).

No trecho escolhido, é possível ver uma sequência de notas tocadas de modo bastante convencional (Mi bemol, Lá, Si bemol, Ré) entrecortadas por um Sol sustenido em pizzicato bartók que maximiza o nível de tensão ao incluir uma sonoridade tão ruidosa. Em seguida, aparece uma figura tocada as fast as possible com o arco pressionando as cordas demasiadamente, a ponto de o som se projetar com muito ruído devido ao contato da crina com a corda, levando esse momento, novamente, para um nível de alta tensão dentro da dimensão morfológica. Esses momentos ora são mais afastados, ora são rapidamente intercalados como é o caso, o que cria uma constante expectativa e apreensão do discurso pelo auditório. Como fica claro, o discurso fará uso das dimensões dinâmicas (essas duas linhas vão do ppp ao ff), temporal (das quatro primeiras notas longas até as figuras asap) e das alturas (nesse trecho, do Do1 ao Ré4) de modo a que a inclusão de cada elementos sempre possua uma razão e uma função retórica dentro do discurso, de modo a obter a persuasão do ouvinte.

 

5. Considerações finais

A partir do exposto, é possível uma ponderação sobre os objetivos emanados pela produção musical contemporânea. O diálogo da música com o público deve ser interpretado à luz desses conceitos que, mais do que estabelecer critérios quantitativos de análise crítica, permitem que essa relação, cada vez mais complexa, possa ter parâmetros razoáveis de avaliação, que considerem o fenômeno social a partir da estrutura interna do discurso, sem que seja necessária uma atribuição de significados relacionais que poderiam incorrer a alguma leviandade.

Da mesma forma que Perelman renovou o conceito de adesão ao discriminar dois tipos básicos de afetação, ou, ainda, de efetuação do discurso, crê-se que essas duas dimensões estão presentes também no discurso musical, sendo a continuidade e a pregnância, dois termos mais cabíveis para a interpretação dessas relações dentro de uma acepção não verbal.

A aplicabilidade dos conceitos foi evidenciada nessa breve análise da Sequenza XIV, todavia pode ser ampliada tanto para a peça em sua integralidade, quanto em outras obras do repertório contemporâneo. Em suma, a adesão ao discurso musical é tanto um complexo fenômeno, que exige índices de avaliação bastante específicos, quanto um objetivo inevitável e que, como tal, há de ser examinado, para que tanto a compreensão quanto a produção da música contemporânea sejam adequadas aos propósitos contidos no discurso.

 

Nota:

(1) Cf. SCHUESSLER (1948) já conclui em seu estudo, que segue metodologias que poderiam ser consideradas hoje, como obsoletas, que o background cultural influencia mais o critério de gosto do que as próprias classes econômicas.

 

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Recebido em: 21/09/2014
Aprovado em: 07/03/2015