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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.10 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2018v1p.83 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Seria a comida um objeto tóxico? Aproximações entre a compulsão alimentar e a toxicomania

 

Would food be a toxic object? Articulations between binge eating and addiction

 

¿Sería la comida un objeto tóxico? Aproximaciones entre la compulsión alimentaria y la toxicomanía

 

 

Natália Salviato NespoliI; Joana de Vilhena NovaesII; Bruna MadureiraIII

INatália Salviato Nespoli. Psicanalista. Mestre pelo programa de pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ). Endereço: Rua Ibituruna, 108 - Maracanã, Rio de Janeiro - RJ, 20271-020. E-mail: psinatalianespoli@gmail.com
IIPós-Doutora em Psicologia Social e em Psicologia Médica pela UERJ. Professora do Programa de Mestrado Profissional e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ). Endereço: Rua Ibituruna, 108 - Maracanã, Rio de Janeiro - RJ, 20271-020. E-mail: joanavnovaes@gmail.com
IIIPsicóloga Clínica pela PUC-Rio. Doutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS/PUC-Rio). Endereço: R. Marquês de São Vicente, 225 - Gávea, Rio de Janeiro - RJ, 22451-000. E-mail: bruna.madureira@hotmail.fr

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva analisar pontos de possível associação entre a compulsão alimentar, casos graves de obesidade e as toxicomanias. Para tal, serão abordadas falas e manifestações clínicas nas quais a temática se apresentou. Freud (1912) menciona a existência de uma fixação na relação do sujeito com o objeto. Para muitos sujeitos, a comida, assim como a droga, apresenta-se como fonte privilegiada de satisfação. Nestes casos, a compulsão faz retornar sobre o sujeito um sofrimento, apresentando-se, portanto, como uma solução precária para o seu mal-estar. Entre recaídas e repetições, o compulsivo-adicto por comida pode apartar-se da relação com o outro e da possibilidade de realização e valorização social.

Palavras-chave: COMPULSÃO ALIMENTAR; OBESIDADE; TOXICOMANIA


ABSTRACT

This article aims to analyze a possible common ground between compulsive eating, severe obesity cases, and drug addiction. Clinical manifestations on this subject will be presented. Freud (1912) says that there is a rigid fixation of the person in the object. For many people, food, just like drugs, becomes a privileged and almost exclusive source of satisfaction. In such cases, compulsive eating returns suffering to the person, because it is a precarious solution to his discomfort/malaise. Between relapses and repetitions, the food addict person may depart from the relationship with other people and from the possibility of fulfillment and social recognition.

Keywords: COMPULSIVE EATING; OBESITY; ADDICTION


RESUMEN

Este artículo objetiva analizar puntos de posible asociación entre la compulsión alimentaria, casos graves de obesidad, y las toxicomanías. Para ello, se abordarán conversaciones y manifestaciones clínicas en las que se presentó la temática. Freud (2015), menciona la existencia de una fijación en la relación del sujeto con el objeto. Para muchos sujetos, la comida, así como la droga, se presenta como fuente privilegiada de satisfacción. En estos casos, la compulsión hace regresar sobre el sujeto un sufrimiento, presentándose, por lo tanto, como una solución precaria para su malestar. Entre recaídas y repeticiones, el compulsivo-adicto por comida puede apartarse de la relación con el otro y de la posibilidad de realización y valorización social.

Palabras clave: COMPULSIÓN ALIMENTARIA; OBESIDAD; ADICCIÓN


 

 

Introdução

A obesidade mórbida, quando não acompanhada de fatores hormonais ou fisiológicos que a justifiquem, assim como a compulsão alimentar, podem ser consideradas, segundo a ótica da psicanálise, como manifestações de gozo situadas na dimensão da dor e da pulsão de morte.

A medicina busca minimizar os efeitos do comer em excesso por meio da redução ou cura de suas comorbidades (tipo 2 de diabete, hipertensão arterial, câncer e etc.), através de tratamentos medicamentosos ou intervenções cirúrgicas.

Para a psicanálise, no entanto, o corpo é inseparável da noção de subjetividade e os psicanalistas que se dedicam ao tratamento de pacientes diagnosticados como obesos interessam-se mais pelas vicissitudes da pulsão e força motriz do psiquismo do que pelos aspectos fisiológicos da doença em si (Nespoli & Novaes, 2016).

A obesidade e, por conseguinte, os métodos que visam contê-la, têm crescido em proporções exponenciais nos últimos tempos. A cirurgia bariátrica apresenta-se, atualmente, como estratégia padrão-ouro para perder peso, que aumenta, inclusive, as chances de melhora no que se refere às comorbidades relacionadas ao excesso de peso. As implicações psíquicas referentes tanto à obesidade quanto aos procedimentos de emagrecimento têm sido igualmente alvo de interesse da psicanálise, que tem por função escutar aquilo que é do sujeito (Néspoli, Novaes e Rosa, 2015).

No tocante à clínica com pacientes submetidos à cirurgia bariátrica, algumas questões irrompem: o que poderia acontecer com um sujeito, cuja via privilegiada de satisfação é o comer, quando se torna fisicamente privado? Poderia um sujeito, após ser submetido à cirurgia do emagrecimento, deslocar sua compulsão alimentar para outras ações compulsivas autoagressivas?

Podemos antecipar, com base na concepção psicanalítica, que o ser humano é guiado por suas pulsões e não por suas necessidades. A pulsão caracteriza-se como uma força interna constante que integra o funcionamento psíquico e busca incessantemente a obtenção de prazer/satisfação. No limite entre o psíquico e o somático, Freud (1915/2006) examina a pulsão a partir de quatro componentes: meta, objeto, fonte e pressão. A meta corresponde à obtenção de satisfação pela via da descarga das excitações. O objeto da pulsão pode ser qualquer um e, nesse sentido, é variável e nunca fixo. A fonte é sempre interna, isto é, localiza-se dentro do corpo (diferente do estímulo, que é externo). Por fim, a pressão é constante e exige intenso trabalho psíquico (Freud, 1915/2006).

Ao retornarmos para as perguntas, observamos que existe uma preocupação disseminada entre alguns pacientes, frequentemente dirigidas à equipe médica de saúde. O que, contudo, se pode afirmar, com base na escuta de relatos que tratam da experiência do pós-operatório, é que ninguém passa ileso por essa vivência. Afinal, a dor e o sofrimento causado pelas privações alimentares têm, em sua maioria, grande probabilidade de ocorrer.

No contexto clínico com pacientes obesos, um especial interesse surgiu sobre a ocorrência do que chamamos de uma vulnerabilidade psíquica, termo utilizado para designar o sofrimento psíquico que emerge após a realização da cirurgia bariátrica.

Para além de questões vinculadas à cirurgia, o que se evidencia é a associação, quase inerente, entre comida e objeto tóxico. A partir da escuta de alguns pacientes obesos, percebemos uma forte vinculação entre hiperfagia e drogadição. Ancorados na análise de casos clínicos, acreditamos ser pertinente a analogia entre o toxicômano e a droga, bem como o vínculo que o comedor compulsivo, sobretudo nos casos graves de obesidade, estabelece com a comida.

 

Vulnerabilidade psíquica e compulsão à repetição

Antes de submeter-se à cirurgia bariátrica, notamos o quanto o corpo do sujeito obeso é alvo de intenso sofrimento psíquico e físico. Com relação ao corpo orgânico, constatam-se comorbidades como dislipidemias(1), diabetes tipo 2, hipertensão arterial, alguns tipos de câncer e etc. Observa-se, ainda, uma sensação de desajuste em relação ao mundo, um sentimento de constrangimento em virtude das limitações físicas (cansaço excessivo, falta de ar, lentidão da marcha) e da negação da sexualidade (incapacidade de seduzir ou dar prazer ao parceiro). Além disso, o sujeito acima do peso é frequentemente colocado no lugar de menos-valia, já que está em constante dívida com a sociedade (comer em demasia, mais do que lhe é permitido).

Na sociedade contemporânea, a gordura reflete descontrole emocional, falha de caráter e amor próprio. Alvo de intenso escárnio, o sujeito(2) constrói uma relação persecutória com o seu próprio corpo que, longe de ser fonte de prazer, torna-se um objeto aprisionador (Novaes, 2012). Frente ao cenário descrito, o sujeito obeso apresenta, ainda, dificuldades de locomoção nos espaços públicos (ônibus, metrô, trem e etc., que não dispõem de assentos adequados), na escolha e compra de vestuário (num mercado reduzido para modelos/etiquetas GG/XG ou plus size) e existe, por fim , um imaginário social acerca do torturador descontrole no trato com a comida.

A escolha por uma intervenção cirúrgica associa-se à expectativa de reduzir, ou mesmo eliminar, sofrimentos e incômodos - tanto físicos quanto psíquicos - relacionados à gordura. Em muitos casos, contudo, evidencia-se uma posição que persiste. Para a surpresa de muitos, após a operação, alguns pacientes ainda apresentavam comorbidades psiquiátricas como a depressão. Outros iniciavam ou intensificavam o contato com bebidas alcoólicas (em sua maioria destiladas, para evitar o novo ganho do peso). Diferentes reações foram observadas, também em termos de gênero. De maneira geral, se a compulsão pelo alimento não for trabalhada psiquicamente, acaba por encontrar outras vias de escoamento. Há pessoas que relatam um aumento da atividade sexual com o mesmo parceiro ou com outros, incluindo a prática de comportamentos de risco. Outros manifestam o início de uma compulsão por compras. Há, ainda, aqueles que criam uma espécie de reversão ao oposto de sua condição, como o desenvolvimento de um quadro de anorexia.

Os sujeitos descritos no contexto acima, embora submetidos a um corte no corpo, não modificaram a relação de exageros com a comida, valendo-se de inúmeras formas para contornar as significativas e radicais restrições impostas pela realização do procedimento cirúrgico. Podemos, a partir dessas referências, prestar atenção ao que Rabinovich (2004) nomeia clínica das impulsões. Segundo o autor, existe uma satisfação direta à qual os sujeitos compulsivos não podem renunciar.

A satisfação, da qual não conseguem abrir mão, está ligada a alguma experiência dolorosa. O ser humano, como ressalta a psicanálise, seria conduzido por suas pulsões, e não por suas necessidades. A pulsão pode-se transformar em uma representação. Esta representação, segundo Nazar (2013), pode consistir numa representação de caráter pungente que acomete o sujeito

E porque a dor pode ser prazerosa, na medida que (sic) encontra apoio e fato significante da história do sujeito, a ele se aderindo e fixando, é possível que o que era apenas energia vital erotizando determinado órgão - certa parte do corpo - se transforme em com-pulsão, quer dizer, insistência em repetir o mesmo circuito que instaurou, em dado momento, um mecanismo compensatório de prazer original, mesmo que o efeito percebido seja desprazeroso (Nazar, 2013, p.73).

A compulsão teria origem em uma marca recebida pelo sujeito na sua relação com o Outro, trazendo, como consequência, a sua inscrição no campo do simbólico. Ainda que essa marca seja real, sua representação seria simbólica. Nisto residiria a dificuldade do sujeito em livrar-se de uma compulsão: "(...) ela é a presença de um objeto sem palavras, desde antes que o sujeito pudesse dela dar-se conta"(Nazar, 2013, p.73).

 

 

A escuta de pacientes compulsivos permite-nos afirmar que, provocada pela indomável força da pulsão, a compulsão lhes é imposta por algo não passível de controle. Muitos relatam serem dominados por uma força que desconhecem ou ainda por uma dificuldade na busca de um propósito: "Vontade de parar de comer eu tenho, e muita. O que não tenho é força!", era o que repetia um paciente em suas entrevistas preliminares. A compulsão seria, portanto, um sinal de sofrimento intenso, cuja causa subjetiva é desconhecida (Nazar, 2013).

Se a compulsão à repetição é uma das características da pulsão, logo não cessa de se apresentar. O caráter repetitivo da pulsão finda-se apenas mediante o trabalho psíquico de ligar o afeto à representação (Freud, 1920/2006). Neste sentido, Nasio (2013) destaca a ocorrência de um gozo advindo da repetição. Ao caracterizá-lo como um misto de emoções - agudas, violentas e contraditórias -, explicita que o gozo da repetição é sentido, embora não assimilado pelo Eu. Esse gozo estaria excluído do mundo das representações e reapareceria compulsivamente numa ação descontrolada. Lacan afirma que "o que não veio à luz no simbólico aparece no real" (1954/1998, p.390), o que ratifica que "[...] aquilo de que o sujeito não pode falar, ele o grita por todos os seus poros" (1954/1998, p.388).

O sintoma que se repete, ou ainda, as ações autoagressivas pelas quais os sujeitos afirmam serem pegos de surpresa, estariam relacionadas à tendência compulsiva do gozo em sua busca pela representação do que lhes falta. Seu retorno dar-se-ia por meio de uma fantasia inconsciente, brotando sob a roupagem de uma manifestação compulsiva. A exteriorização desse gozo, através das ações agressivas ao próprio corpo, consistiria no apelo por uma nomeação que, em última instância, criaria possibilidades de metabolizar o gozo (Lacan, 1954/1998).

O ressurgimento compulsivo do sofrimento estaria, então, relacionado ao aspecto de fixação do sujeito ao trauma. Experiências infantis carregadas de vivências negativas imprimiriam no inconsciente um clichê estereotípico de resposta às experiências avassaladoras, isto é, a compulsão à repetição, em virtude da impossibilidade de dar um sentido à experiência traumática no âmbito da representação psíquica. Dessa forma, o adulto desconheceria qualquer outra forma de satisfação a não ser aquela que revelaria a sua devastação interna, tal qual a que ocorrera na situação do trauma em si. A cada nova repetição, portanto, uma rememoração da situação traumática é posta em jogo (Nasio, 2013).

A clínica dos sujeitos submetidos à cirurgia bariátrica e que se encontram em sofrimento psíquico relacionado à manifestação de outras compulsões aponta para o fato de que, talvez, essas compulsões não tenham sua gênese especificamente na experiência de restrição alimentar imposta pelo procedimento médico. A questão parece ser anterior. O fato de já haverem passado pela experiência da compulsão alimentar sinaliza o aspecto compulsivo já operante. Suas histórias evidenciam que marcações precoces e determinantes das manifestações pulsionais já estariam dadas.

Uma paciente que realizou cirurgia bariátrica muito recentemente, por exemplo, passa a se relacionar com a bebida alcoólica de forma muito intensa e constante. Ela afirma que, com a cirurgia, perdeu a sua principal fonte de satisfação. Tendo atravessado situações causadoras de muito sofrimento após a sua operação, relata só conseguir alento na bebida. No decorrer dos atendimentos, lembra-se de alguns episódios com relação a seu pai que, na infância, compartilhava com ela a bebida alcóolica. Frente a essa experiência, diz lembrar-se com grande vivacidade do gosto da bebida até os dias de hoje, num reflexo dos golinhos que tomavam juntos.

A morte de seu pai, a quem descrevia como um homem carinhoso e bondoso, foi um dos acontecimento mais impactantes de sua vida e que a conduziu a um sofrimento muito grande. Tal como em sua infância, momento em que o "golinho" podia ser um colinho nos momentos difíceis; nos dias atuais, a ingestão de álcool poderia conduzir a um reencontro e um alento com esse pai. Vê-se, com isso, que o recurso ao álcool se deu em função de algo que já encontrava lugar em sua subjetividade e não por uma escolha aleatória.

Nesse sentido, a bebida entra como uma tentativa de compensação afetiva frente a um buraco emocional a ser preenchido internamente. Buraco esse que representa grande sofrimento para o sujeito. Se, antes da intervenção cirúrgica, o comer excessivo funcionava como estratégia para lidar com uma dor psíquica; depois da cirurgia tal estratégia fica fora do jogo, em razão da impossibilidade anatômica de ingestão de grandes quantidades de comida. Outro método para lidar com a dor, portanto, é instaurado e encontra suas raízes no campo subjetivo do sujeito. No presente caso, a bebida alcóolica é eleita como uma forma alternativa de aplacar a angústia, tendo em vista a existência a priori de uma relação afetiva positiva relacionada ao álcool e ao seu pai.

 

Comida: "não", só por hoje

A clínica com sujeitos obesos revela uma intensa associação entre comida e adicção. Estudos de Pollo & Pessoa (2015) apontam que sujeitos com diagnóstico de compulsão alimentar e obesidade frequentemente comparam a relação que mantêm com a comida com o vínculo que o adicto constrói com a droga. Ao nomearem a comida como fonte privilegiada e quase exclusiva de satisfação, encaram a perda de peso de maneira análoga à forma com a qual os adictos lidam com a abstinência - isto é, dizendo "não", só por hoje. Por isso, gostaríamos de destacar alguns pontos acerca da compulsão alimentar e da obesidade que nos parecem relevantes ao considerarmos tal afirmação.

Ribeiro (2009) destaca diferentes posições em relação ao lugar que o usuário de drogas ocupa na sociedade atual. Uma das teses possíveis é a de que os indivíduos fariam uso de drogas para se adaptar às exigências do mundo contemporâneo, no qual o cansaço, a infelicidade e a impotência não seriam tolerados. Tal prática consistiria no uso recreativo em que o sujeito estaria em busca de uma forma de prazer e de uma diversão a mais.

Nessa concepção, as drogas seriam consumidas como mais um gadjet - expressão que caracterizaria um objeto de consumo que serviria como diversão para os sujeitos. Mesmo que não possua grande utilidade, o gadjet cria a ideia de uma possibilidade de satisfação ou distração. A droga funcionaria, portanto, como mais um objeto-causa de desejo, ou de gozo, dentre tantos outros produzidos pelo capitalismo, que pode ser facilmente adquirido e consumido. Nesse caso, o consumo da droga apenas entraria em uma sequência de consumo de objetos diversos, muito característico da cultura neoliberal, que traz como premissa a descartabilidade dos objetos de consumo e a busca por um excesso de prazer constante (Ribeiro, 2009).

Sob outra ótica, numa segunda modalidade de uso da droga, o toxicômano poderia ser caracterizado como um sujeito insubmisso às normas que regem os laços sociais. Isso significa não participar da corrida em busca de afirmação e obtenção de realização (busca de prazer) no campo social por meio do investimento em suas aspirações. Na contramão, ele rompe com os ideais valorizados culturalmente. Isso porque, mesmo arruinado pela excessiva prática de se autointoxicar, o sujeito não consegue dela se desvencilhar, evidenciando em sua história um verdadeiro triunfo da pulsão de morte, marcado pela degradação do Eu, submetido à droga e um claro movimento em direção ao fenecimento do corpo (Ribeiro, 2009).

Berendonk e Rudge (2002), em consonância com Ribeiro (2009), destacam a existência de usuários toxicômanos para os quais o uso da droga se apresenta como única possibilidade de gozo. Afirmam, porém, a existência de usuários que não rompem com o falo, conseguindo sustentar suas atividades, inclusive a de análise. Glover (1932), citado em Berendonk & Rudge (2002), afirma que, nesses casos, as drogas não seriam acompanhadas de efeitos devastadores, podendo consistir, ao contrário, em um artifício exitoso para lidar com a vida e sua inevitável angústia.

Novaes (2006) concebe a obesidade como um grande paradoxo contemporâneo, pois, se, por um lado, reflete o estímulo ao prazer excessivo e a impossibilidade da espera, por outro, representa tudo aquilo a que a sociedade contemporânea, altamente lipofóbica, tem horror. Uma vez excluído dos ideais de beleza e saúde, o obeso é significativamente eliminado dos espaços sociais e frequentemente colocado no lugar de menos-valia (Novaes, 2010). Ao compararmos a obesidade com o uso da droga, parece-nos fazer sentido uma aproximação acerca do paradoxo da possibilidade de gozo e torpor proporcionados pelo uso, marginalização e sofrimento do sujeito usuário.

Nesse sentido, alguns pontos importantes a respeito da obesidade e da compulsão alimentar devem ser destacados. Se a comida para o obeso, assim como a droga para o toxicômano, pode figurar como um objeto de consumo portador de um a mais de prazer, pode, igualmente, colocar o sujeito frente a um sofrimento psíquico e físico, ao abusar do consumo destes objetos.

Deparamo-nos frequentemente com relatos de pacientes que, ao afirmarem que o ato de comer conduz a um alento, não conseguem lançar mão de outro artifício que não o da comida nos momentos de maior dor e angústia. O empanzinamento seria usado como um instrumento para dar cabo ao sofrimento, ainda que de forma temporária e ineficiente.

Ao reconhecerem que a comida é o prazer mais acessível e o consolo mais rápido, os pacientes utilizam o comer excessivo como estratégia para lidar com essa dor inenarrável, ainda que, previsivelmente, se arrependam, quase imediatamente, após o ato compulsivo de comer. Devastados pela incapacidade de exercer controle sobre o próprio comportamento, e pelo consequente efeito do ganho de peso, passam a sair de suas casas apenas quando essencial. Muitos, inclusive, abandonam grande parte de atividades que lhes proporcionavam algum tipo de prazer. O presente cenário descrito evidencia o caráter solitário e autístico deste modo exclusivo de satisfação, o único modo de satisfação com o objeto tóxico, conforme Santiago (2001) afirma.

Ainda que estejamos num contexto sociocultural que contribua para o aumento do consumo alimentar, isso não seria suficiente para responder por que alguns sujeitos escolhem inconscientemente estabelecer uma relação mortífera com estes objetos específicos (comida e droga). Por isso, para além do envelope do sintoma, que encontra lugar na cultura em que se insere o sujeito, consideraremos os aspectos pulsionais relacionados a estas modalidades de sofrimento.

Lançaremos olhar sobre a ligação que o toxicômano estabelece com seu objeto, a droga. Acreditamos ser igualmente importante ressaltar a pergunta introduzida por Freud (1912/1996): seria verdadeiro afirmar que o valor psíquico de uma pulsão decresce na mesma proporção em que ela é satisfeita?

Em seu texto, Freud (1912/1996) nomeia o sujeito alcoolista como "beberrão" e afirma que o constante hábito reforça o vínculo que prende o homem à espécie de vinho que bebe e que, por isso, não precisaria buscar outros sabores substitutivos. Com essa afirmação, entendemos que o bebedor não precisa procurar por outros objetos que o satisfaçam, na medida em que o vinho já foi eleito enquanto objeto de completude. Na verdade, poderia ser qualquer outro tipo de bebida alcoólica.

 

Serenata de amor ou canto da sereia?

Freud (1912/1996) nomeia "casamento feliz" a relação de fixação entre o sujeito e o objeto pulsional, referindo-se à fidelidade do amante e também ao aspecto de completude envolvido em tal colamento. Segundo o esquema do circuito pulsional de Lacan (1964/1979), embora o objetivo da pulsão seja sua satisfação, ela não abocanha o objeto, mas o contorna, para, assim, reiniciar seu percurso.

Essa asserção remete-nos à descrição feita por uma paciente sobre um dos diversos episódios de exagero alimentar. Às vésperas de mais uma tentativa de começar uma dieta de restrição de ingestão calórica, comeu um quilo de bombons "serenata de amor". Segundo suas palavras, o objetivo era criar repulsa por sua guloseima preferida. Acerca dessa tática, a pessoa relatou uma sensação de entorpecimento, mal-estar e, posteriormente, de culpa após a ingestão dos 50 bombons seguidos. O método, no entanto, fez surtir o efeito de que se sentisse impelida a repetir a dose (Nespoli, 2016).

A expressão "serenatas de amor" chama a nossa atenção. As serenatas são popularmente conhecidas como músicas cantadas ao ar livre pelos apaixonados e dedicadas às donzelas amadas. O gozo mortífero evidenciado no episódio relatado, contudo, prática comum na vida deste e de outros inúmeros pacientes, remete-nos ao mito do canto das sereias, segundo o qual, os navegadores eram seduzidos pela bela voz das personagens míticas que, no entanto, os conduziam à morte. Na expectativa da satisfação, a destruição (Bidaud, 1998).

Ao nos remetermos ao mito das sereias, notamos que Ulisses parecia deixar-se levar ao som da música. Ainda que amarrado ao mastro, a fim de não sucumbir à sedução, o navegante não se furtava aos riscos de sua exposição. Preso ao navio, Ulisses não conseguiria lançar-se à paixão, descrita por Bidaud (1998) como um estado de martírio de si, em que se faz necessária certa loucura e uma inclinação à transgressão e à desordem. Bidaud (1998, p.58) cita Novais ao dizer que "todas as paixões terminam como uma tragédia".

Como não nos atentarmos para a história de tantos sujeitos que não conseguem deixar de sucumbir a esse canto que os embala em sua vergonha, culpa e solidão - histórias sem final feliz?

Não é raro escutar pacientes que, ao se depararem com a angústia de se verem obesos, comem ainda mais, dizendo ser sua relação com a comida um círculo vicioso de repetição - comem para sanar um mal-estar que persiste e, ainda que o comer excessivo potencialize o mal-estar gerado, comem ainda mais. Nesse sentido, essa modalidade de tratamento da angústia seria uma solução instável, temporária e, sobretudo, precária.

Ao tratar da questão do uso da droga, Santiago (2001) afirma que "a propriedade terapêutica dessa técnica do corpo não evita, no entanto, o retorno, nela própria, de um efeito sobre-excedente nocivo e perigoso" (p.107). Fazemo-nos valer da mesma afirmativa no que tange ao exagero alimentar. Se Freud (1929[1930]/1996) descreve o entorpecimento tóxico como um dos modos de lidar com o mal-estar constitucional; no caso das adicções, é possível investigar o retorno do sofrimento causado imediatamente após o seu uso.

Aulagnier (1985) realiza uma distinção entre o que denominou de relações de simetria e assimetria, cujos representantes seriam respectivamente o amor e a paixão. Quanto ao primeiro tipo de relação, a de amor, a autora afirma que o objeto amado é tomado como objeto privilegiado, mas não como destinatário exclusivo de todas as demandas. Haveria nesse caso uma reciprocidade que limitaria a dependência entre um e outro. Quanto ao segundo tipo de relação, a apaixonada, o objeto é tomado como o único destinatário possível de toda e qualquer demanda. Para a autora, no âmbito das relações passionais, estaria a toxicomania, em que um objeto se torna fonte exclusiva de prazer, sendo deslocado para o registro da necessidade. Necessidade de um prazer portador de um desejo mortífero.

 

 

Nas toxicomanias, a atividade do pensamento desloca-se para o objeto tóxico. Há um superinvestimento do pensamento vinculado ao prazer da droga, o que reduz ao silêncio outros investimentos possíveis ao sujeito na medida em que este permanece em posição passiva face ao que a droga lhe oferece como material a ser considerado. A demanda de prazer dirigida ao Outro é silenciada em detrimento de um prazer que dependerá apenas da atividade psíquica do sujeito, observada na forma de pensamentos endereçados ao objeto privilegiado (Aulagnier, 1985).

Nos casos de compulsão alimentar, de forma análoga, o manejo com a comida dominará as relações e atividades do sujeito, que passam a girar em torno da questão da programação das dietas, a sedução promovida pela comida e a tentativa constante de evitá-la. Ao sucumbirem à voracidade, advém-lhes a culpa e o arrependimento pelo ato que é seguido, muitas vezes, por um sentimento de torpor. O ciclo reinicia-se quase diariamente. Muitos pacientes relatam passar o dia todo pensando na comida e no arrependimento por haverem comido.

Aulagnier (1985) acrescenta que, nos casos de relação passional com o objeto, existe uma clivagem entre o experimentado e o pensado, o que faz com que ambos se comportem como adversários. Essa asserção pode levar-nos a pensar na compulsão alimentar ou nas compulsões em geral, como experiências ou atos que não estariam mediados por uma negociação e, portanto, representação psíquica.

Inúmeros pacientes afirmam que sua relação com a comida é dominada por um estranho que controla (ou descontrola) seus atos. Afirmam conseguir julgar os malefícios advindos dessa escolha, mas não conseguem evitá-la por haver uma certeza da necessidade, como se afirmassem: era da comida que eu precisava, nada mais me satisfaria. O ato de comer ficaria reduzido, então, à necessidade de encher-se de comida.

Segundo a teoria freudiana (1912/1996), seria possível afirmar que o valor psíquico da pulsão não decresceria em função de sua satisfação. Tendo como pressuposto o fato de a pulsão nunca ser totalmente satisfeita, uma vez que é sempre parcial, o compulsivo por comida - sua droga -, ao se colar em um objeto de satisfação, é conduzido a um destino de fenecimento do corpo.

O sujeito, ao incorrer no mundo da linguagem e da cultura, é marcado por uma falta que o constitui. Essa falta, embora seja geradora de angústia, é que permite a este sujeito desejar, fazer laços e construir ideais. A multiplicidade de objetos causa de desejo permite ao sujeito, que é essencialmente faltante, buscar novas formas de satisfação ao constatar que o objeto "da vez" não o satisfaz (Lacan, 1964/1979).

O uso da droga seria uma forma de o sujeito não se confrontar com a sua própria falta, ou seja, com o fato de não haver objeto capaz de satisfazê-lo totalmente. Solução inventada pelo homem para se proteger da dor de viver que se deve justamente à impossibilidade de aceder à felicidade plena. Usar a droga consistiria, então, em uma via de obturação da angústia decorrente do encontro com o mal-estar constitutivo do sujeito que, embora seja uma tentativa de sanar a dor ou cobrir a falta, frequentemente sucumbe ao fracasso - isso quando não conduz o sujeito à morte (Santiago, 2001).

Beredonk & Rudge (2002) indicam que há uma tendência, acompanhada pela pressa em concluir e a dificuldade em suportar o tempo adequado, para compreender as bases do fenômeno do uso da droga, que insiste em aproximá-lo da estrutura perversa. A psicanálise, que se utiliza da fala e não da observação fenomenológica para obter do analisante o entendimento daquilo que determina seu sofrimento, não deveria atribuir um diagnóstico estrutural ao compulsivo antes de escutá-lo. Do contrário, contribuiria ainda mais para o empobrecimento simbólico de sua condição e a impossibilidade de construir novos caminhos acerca da sua dor.

Ainda segundo os autores, a tentativa de alocar as toxicomanias em qualquer estrutura precisa ser relativizada. Dessa forma, pode-se afirmar que as compulsões poderiam ser classificadas como transestruturais. Outros fenômenos, tais como a regressão e a fixação da libido em fases precoces do desenvolvimento, a recusa do reconhecimento da falta diante da angústia de castração no complexo de Édipo, a transgressão e o desafio à lei estão igualmente presentes na vida da criança e do adulto, independente de sua estrutura.

A associação entre a perversão e a toxicomania dar-se-ia em decorrência de a droga ser tomada como o único objeto eleito com a finalidade de obtenção de satisfação sem parcialidade, consequente da negação da castração. O toxicômano buscaria a droga, assim como o perverso sustenta a recusa a ser faltante. A adição, contudo, poderia igualmente localizar-se em proximidade ao sintoma neurótico em seu caráter substitutivo do prazer recalcado (Beredonk & Rudge, 2002).

A função do falo é justamente marcar a existência de um gozo apartado do próprio corpo, que ocorreria pela descoberta da sexualidade fálica, na qual o prazer é exterior ao corpo conhecido. É, justamente, nessa separação que se constituirá o campo da alteridade. Berendonk & Rudge (2002) destacam a posição de Lacan em relação à toxicomania, segundo a qual a função da droga seria promover uma ruptura com o falo. O desejo, submetido à lógica fálica, sujeitar-nos-ia à angústia. Nesse sentido, o uso da droga visaria ao apagamento desse afeto, levando o sujeito a aproximar-se da morte e a encontrar, assim, o aniquilamento do desejo.

Na teoria lacaniana, tal processo seria descrito como um rompimento com o gozo fálico - ou com as normas sociais estabelecidas. O gozo fálico, para a teoria psicanalítica, é resultante da operação de castração, tributário da Lei que funda a cultura. Estar submetido à Lei é tolerar que nenhum objeto tem o poder de propiciar satisfação total, intermitente e completa. A fidelização ao objeto, no entanto, aproxima o sujeito da morte justamente por oferecer-lhe a sensação de satisfação total. O gozo absoluto não existe, todavia, e, caso venha a se tornar realidade, seria o equivalente à própria morte (Lacan, 1971/2011).

Além da discussão acerca da inclusão das toxicomanias no campo das perversões ou de quaisquer outras estruturas, ressaltamos ainda que, mesmo que haja uma ilusão de tamponamento da angústia, esta retornará, assinalando a parcialidade do objeto. A droga, a bebida, a comida, o sexo e quantos outros objetos nomearmos, jamais serão capazes, portanto, de satisfazer o sujeito de modo completo e eterno, como supostamente acreditam aqueles que o buscam de forma incessante.

 

Entre recaídas e repetições

As recaídas frequentes, testemunhadas nas histórias dos sujeitos adictos, fazem com que eles precisem, perpetuamente, de algum tipo de fiscalização. O discurso de pacientes diagnosticados como obesos também denuncia uma vigilância perene: "Só de olhar a comida, ganho dois quilos" (Nespoli, 2016, p.93), afirma uma paciente sobre seu ganho de peso. O fato de a medicina considerar a obesidade como doença crônica cria em muitos pacientes a concepção de que não se conseguirão livrar da obesidade e de que suas vidas serão permeadas pela frequente abstenção daquilo que lhes causaria mais satisfação.

As reincidências ocorrem na medida em que o sujeito se vê sem aparatos para lidar com exigências e frustrações causadoras de angústia. Frente à impossibilidade de se conseguir apropriar de outros recursos para lidar com o mal-estar, muitos afirmam o recurso anárquico à comida, sobretudo em épocas de embaraço, tristeza, expectativa com relação a eventos importantes, tomada de decisão ou, ainda, em ocasiões de teste. É com regularidade que recorrem à comida para apaziguamento do medo e da angústia. A ansiedade, que para cada um terá uma razão e um efeito, retornaria, de modo a anunciar seus impasses e suas limitações, evidenciando, assim, a ineficácia da estratégia que busca aplacá-la.

Ao afirmarmos que o compulsivo se aproxima de um rompimento com o gozo fálico, o qual se apresenta como balizador das normas sociais, entendemos que é justamente isso que o aproxima do estatuto de transgressor. Infringir as regras demandaria que ao sujeito fosse imposta alguma coerção, a fim de aplacar sua culpa e necessidade de punição.

Na tarefa de renunciar ao objeto mítico de satisfação materno, a fim de trilhar os caminhos do desejo, o sujeito está condenado a fazer, eternamente, um trabalho de luto. Tal como ressaltado por Freud (1905/2006), jamais será possível repetir a sensação de prazer e completude obtida pelo bebê em sua primeira mamada. Algo muito similar acontece com o sujeito preso à toxicomania, que insiste em sua busca pela satisfação primeira e plena. A obstinação em encontrar um gozo mítico de completude, que na verdade nunca houve, remete à dificuldade de enlutar-se da pretensão de ser um com o objeto materno.

A construção da relação de dependência, marcada pela ilusão de completude, apontaria para a claudicância de um pai simbólico. Diante da insuficiência da Lei, a transgressão poderia ser entendida como um apelo à marcação de um corte. O ato transgressor produziria um furo no campo do Outro, assegurando um espaço para que o sujeito possa garantir um lugar para seu desejo. A teoria freudiana (1924/2011) postula que a necessidade de punição, em muitos casos, só poderia ser satisfeita mediante o castigo.

Este apelo às avessas poderia, contudo, não ter o efeito de provocar tal olhar. Dessa forma, o sujeito sucumbiria reiteradamente à repetição na tentativa de se fazer limitar pelo Outro. Como não lembrar-nos dos pacientes que, mesmo aviltados por seus pais e companheiros, em sua condição de obesos, continuam a repetir a sua compulsão, reprisando a sua história de tratamentos infrutíferos, (re)ganho de peso e frustrações?

Ocupar um lugar de quem deve ser punido por seus erros ainda se apresentaria como uma saída melhor do que não ter um lugar. Talvez dita noção possa auxiliar no atendimento de casos como esses, tão frequentes na clínica. A psicanálise ressalta a importância de analisar o que leva o sujeito a se sustentar numa posição que o conduz a tanta frustração e inevitável sofrimento. Com esses exemplos, atestamos a atualidade e genialidade das postulações freudianas no que tange à conceituação da pulsão de morte (Freud, 1920/2006).

Ao retomarmos o texto freudiano (1924/2011), em sua abordagem sobre o masoquismo, destacamos que este seria constituído a partir da relação entre um Eu masoquista, submetido a um Supereu sádico. Essa tensão seria responsável pela eficácia das manifestações da pulsão de morte e da compulsão à repetição. Masoquismo moral, que tem em sua base a satisfação no sofrimento, foi o nome usado por Freud (1924/2011) para designar a forma de masoquismo que consistiria em norma de conduta de vida. Segundo o criador da psicanálise,

[...] o masoquista tem de fazer coisas inadequadas, de agir contra seus próprios interesses, arruinando as perspectivas que para ele se abrem no mundo real e, eventualmente, destruindo a sua própria existência real (Freud, 1924/2011, p. 200).

A necessidade de punição advinda desta relação do Eu com o Supereu iria de encontro aos movimentos em direção ao sucesso, inclusive do tratamento em análise, sendo reveladora de um gozo mortífero ao sujeito, como destacamos anteriormente neste trabalho. Nas compulsões, e neste escopo está a compulsão alimentar, o sujeito relaciona-se com seu objeto a partir da submissão deste à supremacia superegoica. Ao obedecer ao imperativo categórico do Supereu, que lhe ordena o gozo (Lacan, 1972/1985), mergulha em um sofrimento que não consegue abandonar.

Nesse ponto, é necessário que se faça referência à experiência clínica, pois em alguns casos é possível notar que a obesidade, embora nociva, parece funcionar como forma de sustentação. Mesmo relatando o constrangimento em relação à sua forma física, acrescido de doenças associadas ao peso, os pacientes mencionados foram capazes de exercer suas atividades profissionais, adquirindo, inclusive, independência financeira em relação a seus familiares. Além disso, foram igualmente capazes de cultivar relacionamentos sociais e amorosos e se permitiram atividades prazerosas (Nespoli, 2016).

A realização do procedimento cirúrgico, acompanhada de fatores que ressignificaram as suas experiências traumáticas, levam os sujeitos a lançarem mão da bebida, por exemplo, como única forma de apaziguamento da dor. Eles passam a só conseguir dormir após ingestão de grandes quantidades de bebida, prejudicam-se no trabalho, afastam-se dos amigos, pouco conseguem nomear coisas que lhes fazem bem. Os pequenos avanços logo são interceptados por episódios de exageros e entorpecimento, os quais desembocam em culpa severa (Nespoli, 2016).

Nesses casos, chama atenção a ocorrência de um deslocamento para formas mais agressivas de gozo, como se o Supereu insistisse em se impor na mesma medida em que as ações visam contê-lo. Como nos lembra Freud (1924/2011, p.195), uma "forma de sofrimento é então substituída por outra, e vemos que importava apenas poder conservar uma certa medida de sofrimento".Tal asserção pode remeter-nos à questão das marcações precoces na subjetividade vinculadas às compulsões. Em outras histórias escutadas, evidenciava-se o fato de ser a própria relação do sujeito com a comida a responsável pela construção de um vínculo avassalador e destrutivo.

 

Comida, objeto tóxico

O trabalho com pacientes obesos mórbidos escancara a realidade para além das telas. Vivendo em isolamento quase completo em relação ao mundo, alguns sujeitos lançam mão da comida como única fonte de prazer acessível, tornando-se um modo de satisfação privilegiado em detrimento dos outros.

O peso exacerbado reforça certo apagamento do sujeito. Se, no início, assim que começavam a ganhar peso, o isolamento social se dava por um constrangimento com relação à imagem ou pela dificuldade de encontrar vestuários adequados; nas situações mais graves, é o próprio corpo, adoecido e limitado, que fagocita o sujeito.

Podemos destacar a assimilação da comida ao objeto tóxico. Santiago (2001) assevera haver uma dimensão cínica da satisfação obtida pela droga, pois é uma satisfação obtida sem a possibilidade de fazer laço com o outro. Seria possível afirmar, ainda, que a droga não consistiria num objeto-causa de desejo, mas num objeto de gozo, cuja função permite que o Outro seja anulado. Não se trata, portanto, de um gozo sexual, mas de um gozo que não passa pelo corpo do Outro (Berendonk & Rudge, 2002).

Toda a satisfação da pulsão, quando submetida às exigências da civilização, consiste em satisfação parcial, pois o objeto jamais será originário. Há, pois, uma "plasticidade da relação da pulsão com o objeto" (Santiago, 2001, p.112). A fidelidade ao objeto na toxicomania e nos graves casos de compulsão alimentar, como este trabalho ressalta, promoveria um gozo rebelde, um desvio da satisfação sexual. Criando impasses para o sujeito, essas modalidades de gozo promoveriam, para alguns, um alijamento da relação com o outro e dos ideais valorizados socialmente, constituindo-se, adicionalmente, como um obstáculo à realização e ao reconhecimento social.

 

Notas

(1) Dislipidemia é caracterizada pela presença de níveis elevados de lipídios (gorduras) no circuito sanguíneo, dentre eles, o colesterol e o triglicerídeo.

(2) É importante notar que a relação persecutória desenvolvida com o próprio corpo não é algo que inflige unicamente o sujeito obeso. Na verdade, essa relação "paranoica" de controle excessivo e culpa com relação à aparência parece fazer parte de uma sociedade que vê a gordura como algo que deve ser, de qualquer maneira, extirpado do corpo.

 

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Recebido em: 10/10/2017
Aprovado em: 01/03/2018

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