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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.12 no.spe Rio de Janeiro set. 2020
RESENHA
Assombros do originário: segregação e patologias do ato
Shadows of originary: segregation and pathologies of the act
Hantises de l´originaires: Ségrégation et pathologies de l´acte
Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. E-mail: psico_amanda@hotmail.com
Resenha de Ana Costa, Luz e Tempo. Ato e Repetição. São Paulo: Escuta, 2019, 160 pg.
Fluida e densa é a leitura de Luz e Tempo. Ato e Repetição. Tomo o escrito num sentido topológico; sua fluidez se situa num movimento dentro-fora e sua densidade se imprime na apreensão teórica de Ana Costa em sua mais recente obra. Já de início, a costura sólida das proposições de Sigmund Freud e de Jacques Lacan permite ao leitor evidenciar a posição da psicanálise acerca do sujeito e do social, fato já posto no prefácio de Roland Chemama ao livro resenhado. Na oportunidade, ele percebe que Ana Costa está disposta a sustentar a psicanálise como atividade que se inscreve diretamente no cerne das questões cadentes das sociedades, questões estas que repercutem no plano mais íntimo de onde os sujeitos falam em análise.
É assim desde o princípio da psicanálise e Ana destaca as duplas viradas de Freud e de Lacan ao se situarem em seus tempos. Freud subverte a verdade da ciência, desde sua invenção do inconsciente, e caminha à incidência da repetição, calcada nos efeitos de guerra impressos em Além do Princípio do Prazer. Lacan parte de sua articulação com os linguistas para propor a clivagem enunciado-enunciação e o inconsciente estruturado como uma linguagem e, mais além, inspirado na ebulição francesa de maio de 1968, lança as posições discursivas do sujeito no laço social.
É fato que nem Freud e nem Lacan estiveram sozinhos em suas construções, Ana Costa também não está em seu novo livro. Desde o princípio, é acompanhada de Hanna Arendt para pensar nos tempos sombrios e tenta encontrar o que resiste na apreensão que fazemos do tempo em que vivemos, como Giorgio Agamben. Alinhada à figura benjaminiana, a autora também está à pesca dos fragmentos que se destacam naquilo de que o discurso não dá conta, nos depósitos de detritos do mundo. Para tanto, usufrui de uma potente leitura acerca dos diversos filmes e livros que cita em seu escrito, numa tentativa de encenar-se num mundo suficientemente amplo para caber em qualquer coisa, como ela mesma descreve.
Com recursos da arte cinematográfica e da literatura, acessa destroços do mundo, reconstituídos por outras cenas, e permite pensar que as construções de linguagem estão expostas por todos os espaços por onde transitamos. De um tom poético, o leitor captura que estes espaços somente se constituem como lugares quando têm um ponto de partida e outro de chegada, quando são recortados pelas ruas que levam ao trabalho, ou pela casa que abriga os sonhos: a cena e o mundo.
A cena diz respeito à constituição das balizas significantes para a interpretação do mundo. Quando este mundinho se rompe, os significantes valorativos decaem, perdem sua função. Diante disto, os sujeitos podem reconstituir as cenas, reestabelecer diferentes maneiras de transitar pela demanda e construir novos sentidos de estar no mundo. Isto porque o retorno do recalcado está aí à deriva de cada sujeito com sua referente versão do pai. Todavia, Ana Costa está interessada não somente na versão neurótica da repetição, mas num retorno dos destroços da linguagem orientado por outra lógica, sob a qual se imprime a originalidade de suas ideias neste livro.
Antes de analisar os efeitos do retorno dos inquietantes destroços do mundo na atualidade clínica, o leitor se encontra com a aposta numa liberdade transitória, capaz de romper demandas, dissolver o eu e intensificar a experiência. No júbilo de um "agora fora do tempo", quem acompanha sua leitura se surpreende com a riqueza da imagem de um traço de alegria, capturado na tela do documentário No intenso agora, de João Moreira Salles, ou mesmo com a potente sublevação de Didi-Huberman, capaz de transformar a imobilidade da imagem dos gestos em movimento.
Este intenso agora fora de tempo, instituições, origem ou destinos, que é ruptura com a ordenação do poder, expõe, no entanto, uma fenda originária. Os levantes que se deslocaram pelas "veias" de Paris em 1968 passaram pelas mesmas ruas que os nazistas ao ocuparem estes a Cidade Luz, fato que expõe um Real que não cessa de não se escrever, mesmo depois de acordos ou conciliações. Quais conciliações arranjadas retornam hoje, fantasmaticamente, no Brasil? Quais rupturas com a ordenação de poder são possíveis quando o comando de uma pantomima encarna um funcionamento de totalidade? A atualidade de nossos laços discursivos são argumentações de Luz e Tempo. Ato e Repetição. para as respostas a estas questões.
Ao reverberar sujeito e coletivo como bordas de continuidade, o livro permite evidenciar a tentativa impossível de suprimir a relação saber/verdade. Nesta tentativa, na dispensa da verdade como enigma, tudo se pode saber, sendo que o "se" anônimo circula em cada acontecimento social, restringindo o sujeito ao campo da informação, sempre manipulável. Já na apresentação do livro, a abordagem às Fake News recoloca pela porta dos fundos a questão da verdade. A acentuação ao news deixa para trás a base dos falantes: a antecipação no Outro e o endereçamento. O sujeito enquanto efeito da antecipação discursiva do Outro, herança de uma transmissão, da cultura que o atravessa, produz um lugar desde onde se pode posicionar singularmente. Todavia, o "eu sei" anônimo, sem implicação, não concerne ao sujeito. Trata-se de um saber que não constitui experiência. Aqui o sujeito está excluído, economiza ou dispensa a inclusão.
Ana Costa propõe duas formas de constituir o lugar da exclusão no nosso tempo: quando um elemento do discurso produz um efeito de injunção em uma situação particular, do qual ele não consegue derivação, como em Schreber; ou quando os acontecimentos sociais tomam um traço como signo para nomear o excluído, sendo que para alguns sujeitos isso funciona como injúria. O excluído fica fora dos circuitos instituídos, fora de qualquer acesso ao saber em nome próprio diante do gozo inacessível do Outro. Já o injuriado encarna uma figura do mal, padece de um significante que represente coletivamente um furo no saber, é expulso.
A interpretação da autora acerca do tema da segregação diz respeito justamente à lógica da expulsão. Na segregação, há carência do terceiro para a constituição do outro semelhante, do rival outro, derivada do espelho quando a imagem serve de suporte às identificações. O que resta é o outro como cabide de projeção de um gozo êxtimo, relativo à extimidade lacaniana e à das Ding freudiana. Na ruptura do espelho, surge o próximo estranho que provoca tanto a quebra da identificação quanto a angústia. Define-se assim uma diferença acentual entre a agressividade narcísica e a violência originária.
O próximo da violência originária é uma presença invasiva, sem delimitação das margens, resultante do movimento de báscula do significante fálico, quando este desvela seu furo, seu esgotamento, sua insuficiência nos valores coletivos. Os significantes fálicos são relativos à circulação dos valores sociais de cada tempo e situam os sujeitos em diferentes lugares no laço social. Existem, todavia, posições mais sensíveis ao que resta não simbolizável na circulação dos valores, num certo sentido, sujeitos mais suscetíveis ao mal-estar na cultura contemporânea. Ana Costa propõe duas faces do excesso relativas a estas posições: inibição e compulsão.
Encaminhando-se para a última parte de seu livro, aborda as dificuldades clínicas atuais diante de sujeitos nos quais há mais discurso que linguagem, no que se refere à articulação entre dois corpos: corpodiscurso e corpolinguagem. Em sua diferenciação, o corpodiscurso diz respeito à constituição do semblante a partir do significante fálico no laço discursivo, que implica em como a fantasia se alimenta. Já o corpolinguagem, diz respeito à singularização do significante fálico na constituição do sintoma, que implica o campo dos objetos pulsionais e a relação com o traço unário nas formações do inconsciente.
Em relação aos referentes atuais e ao que propõe acerca do retorno dos destroços do mundo hoje, entende que ainda estamos sob os efeitos da Segunda Guerra Mundial. O corpo coisificado pelo número tatuado dos campos de concentração, que implicava a equivalência corpo e resto, é o mesmo da quantificação estatística tão recorrente na atualidade. São números que não evocam contagem, no sentido ternário da psicanálise, ou seja, são traços que não desdobram as funções simbólicas e a trama da ficção do sujeito.
Sobre o traço e a marca, incidência primária da escrita no corpo, o leitor revisita as ideias de Ana Costa sobre júbilo e glória, o júbilo da unidade imaginária do espelho e a glória da fantasia de flagelação, da marca sobre a pele. A glória que Ana resgata de Mais, Ainda é cicatriz da suposição de um gozo que teria sido do/no Outro, cuja marca possibilitaria nomeação e destinação. A psicanalista interpela-se, todavia, acerca dos efeitos da referência individualista num tempo em que o sujeito é convocado a construir seu próprio destino. Nossos oráculos não foram atualizados.
Contando com seu escopo clínico, Ana Costa sustenta, como efeito, arranjos que são não mais da ordem do sintoma, os quais nomeia patologias do ato. Na contemporaneidade em que queda a antecipação discursiva, as expressões clínicas estão mais próximas da compulsão, como nos cortes do corpo, ou da inibição, como nos corpos imaculados refletidos na virtualidade do computador. Hoje é recorrente o encontro com estas expressões na passagem para a adolescência, quando é exigida a escolha da posição sexuada sobre o corpo púbere. Diante da impossibilidade de escolha, o sujeito fica suspenso em outro sexo, Outro do corpo, referente ao originário. Nele, não há diferença sexual, nem sexualidade, nem erótica. O que há? Há relação sexual.
Num fechamento que é, ao mesmo tempo, abertura, Ana Costa alinha crença e ciência, na pressuposição de um corpo sem recorte pulsional do qual derivam as patologias do ato; mas, como bem sustenta, o ato também é subversão e sublevação. Luz e Tempo. Ato e Repetição. devolve ao leitor, à cata dos detritos dos destroços do mundo, aquilo de que se serve o poeta: a peneira da linguagem. No contraste entre a luz que ilumina a cena e o originário que nos assombra, este é um livro para ler, intervalar e reler.