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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.12 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2020
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2020v2p.18
ARTIGOS TEMÁTICOS
A Paralaxe de Louvain - Anatole Atlas e o batismo midiático de Lacan
The Parallax of Louvain - Anatole Atlas and the mediatic baptism of Lacan
La Parallaxe de Louvain - Anatole Atlas et le baptême médiatique de Lacan
Maitrisse en Sociologie: Mutations des societés contemporaines (Paris X). Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS). E-mail: souzaclaudio420@gmail.com
RESUMO
O artigo explora a interrupção momentânea da fala de Lacan durante a sua conferência na universidade de Louvain, em 1972, por Anatole Atlas. A partir desse evento, iremos trabalhar no que Slavoj Žižek propõe como a "visão em paralaxe", enquanto metodologia de análise que contempla entendimentos alternativos e contraditórios sobre um objeto. Com isso buscamos resgatar os traços possíveis de união entre a psicanálise lacaniana e a teoria dos discursos com o situacionismo de Guy Debord no que tange aos seus aspectos culturais e políticos.
Palavras-chave: Psicanálise; situacionismo; paralaxe; lacan; anatole atlas.
ABSTRACT
The article explores the momentary interruption of Lacan's speech during his lecture at the University of Louvain in 1972 by Anatole Atlas. From this event, we will work on what Slavoj Žižek proposes as the "parallax vision", while a methodology of analysis that contemplates alternative and contradictory understandings about an object. In this way, we seek to rescue the possible traces of the union between Lacanian psychoanalysis and the discourse theory with Guy Debord's situationism with regard to its cultural and political aspects.
Keywords: Psychoanalysis; Situationism; Parallax; Lacan; Anatole atlas.
RÉSUMÉ
L'article explore la brève interruption du discours de Lacan lors de sa conférence à l'Université de Louvain en 1972 par Anatole Atlas. À partir de cet événement, nous travaillerons sur ce que Slavoj Žižek propose comme une "vision en parallaxe", en tant que méthodologie d'analyse qui envisage des interprétations différentes et contradictoires d'un objet. de cette façon, nous cherchons à récupérer les traces possibles de l'union entre la psychanalyse lacanienne et la théorie du discours avec le situationnisme de Guy Debord en ce qui concerne ses aspects culturels et politiques.
Mots-clés: Psychanalyse; Situationism; Parallaxe; Lacan; Anatole atlas.
Em outubro de 1972, Lacan ministraria uma de suas conferências na Universidade de Louvain, na Bélgica. Essa poderia ser uma entre tantas outras apresentações que fazia nas últimas décadas de seu ensino. Entretanto, existem dois detalhes que fazem desse um momento especial ao longo de sua trajetória. O primeiro deles consiste na concordância de Lacan, inédita até então, para que o evento fosse filmado. Já o segundo irá envolver o jovem Jean-Louis Lippert, mais conhecido pela sua alcunha de "Anatole Atlas" que, em determinado momento da conferência, interrompe a fala de Lacan, estabelecendo um breve e conturbado diálogo com ele. Apesar da pouca importância que se dá a esse momento, considero que há um rico material de análise a ser discutido, no qual irei me deter nos parágrafos seguintes, utilizando como método um entendimento livre da "visão em paralaxe", conforme proposta no livro homônimo de Slavoj Žižek (2008). A paralaxe, resumidamente, pressupõe que o deslocamento aparente de um objeto, a partir da mudança de seu ponto de observação, irá gerar novas linhas de visão, sem necessariamente refutá-las, ou seja, com suas falhas e contradições. É nesse espírito que irei buscar os pontos obscuros e pouco conhecidos do evento ao qual me refiro na tentativa de efetuar uma "escrita em paralaxe" que, juntamente com o escopo teórico da psicanálise, irá privilegiar os lapsos, restos e sobras sobre as quais lançarei o meu olhar a fim de que o jovem Jean-Louis Lippert / Anatole Atlas, e tudo o que ele nos traz, possa finalmente ser escutado, mais de 40 anos depois.
Para melhor entender Anatole Atlas e as motivações que o inspiraram naquele dia em Louvain, é preciso antes compreender o seu mundo e as referências que ele trazia naquele momento. Isso nos leva à retomada dos ideários da Internacional Situacionista, que veremos mais adiante e cujo membro mais conhecido foi Guy Debord, principal inspirador de Atlas e que nos anos 60 irá efetuar uma releitura de conceitos marxistas sob a ótica do espetáculo. Nesse contexto, a sociedade capitalista passa a ser compreendida como o reino do espetáculo e Debord irá aprofundar aquilo que Marx entendeu como "fetichismo de mercadoria" no sentido de que a consciência fetichista deixa de ser consciência para ser realidade e, logo, deixa de ser representação ilusória para ser verdadeira - assim, representação e realidade se fundem (Viana, 2011). Isso irá, em determinado momento, se imbricar com a fala de um psicanalista tradicionalmente avesso às formas diversas que o espetáculo assumia em seu tempo. Ainda, em termos teóricos, a partir dos anos 60 Lacan iria citar Karl Marx com frequência em seus seminários chegando ao ponto de dizer que este seria, de fato, o inventor do sintoma, além de fazer uma homologia entre o objeto a, compreendido como o mais de gozar, com o conceito marxista da mais valia.
Não seria nem um pouco surpreendente que um cruzamento da psicanálise lacaniana com o situacionismo pudesse frutificar de diferentes maneiras, visto que ambas também flertaram com o surrealismo, o dadaísmo e a filosofia. Igualmente, há críticas pontuais aos eventos de maio de 68 nos quais Debord vai pensar como um novo ciclo que fecharia a tríade que trabalhou em seu conceito de sociedade do espetáculo e que segue a seguinte ordem: o primeiro ciclo seria o do "espetáculo concentrado", ligado ao capitalismo burocrático dos regimes totalitários; já o segundo ciclo seria o do "espetáculo difuso", presente em regimes democráticos, onde a produção de mercadorias em larga escala dá a impressão ao consumidor de que ele tem a possibilidades de uma livre escolha. Nos anos 60, por fim, teremos o "espetáculo integrado" que une os outros dois conceitos, aumentando consideravelmente os níveis de alienação social (Negrini & Augusti, 2013).
A sociedade do espetáculo tem o poder de transformar rebeliões em algo puramente espetacular, na medida em que transforma insatisfações em mercadorias, nos iludindo com opções reguladas de escolha e liberdade. Slavoj Žižek, que bem conhece Lacan e Debord, irá fazer o seu entendimento acerca das formas espetaculares contemporâneas bem como do mito da livre escolha do mercado, dizendo que:
O verdadeiro ensinamento de Lênin - que aponta a diferença entre "liberdade formal" e "liberdade atual" - consiste em mostrar como a verdadeira escolha livre é aquela na qual eu não escolho apenas entre duas ou mais opções no interior de um conjunto prévio de coordenadas, mas escolho mudar o próprio conjunto de coordenadas. (Žižek, 2003, p.185)
No que tange a esse conceito tão caro de "liberdade", é bem conhecido que, para Lacan, os estudantes, a partir dos anos 60, buscavam uma nova forma de dominação (mestre) que substituísse as anteriores, bem como, a seu ver, nos eventos de maio de 68, mais do que a ironia de que "as estruturas não caminham pelas ruas", elas efetivamente se movimentaram livres e triunfantes naquele momento. O saldo disso foi o brilhante seminário XVII (1969-1970/1991), O Avesso da Psicanálise, no qual Lacan irá lançar a sua teoria dos discursos que, em consonância com o seminário anterior, ratificava que "a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem palavra" (Lacan 1968-1969/2008,p.11). Ao apresentar a teoria dos quatro discursos, Lacan nos mostra que o discurso do analista é que seria o avesso do discurso do mestre e suas variações, bem como o discurso da histérica é entendido como o avesso do discurso universitário. Para Lacan, a histérica interroga e desafia o saber do mestre e, partindo disso, poderemos começar a entender a situação montada por Anatole Atlas naquele momento com Lacan.
Penso que essa intervenção genuinamente o surpreendeu, tirando-o, por alguns instantes, de sua posição de saber1 frente a um público passivo.
Voltando a Guy Debord, no final dos anos 50, esse já pensava em uma possível junção da psicanálise freudiana com o situacionismo e que, grosso modo, iria antecipar algo daquilo que será trabalhado por Lacan nas décadas seguintes, principalmente no que tange à sua crítica em relação à psicanálise adaptativa da IPA pós-Segunda Guerra. Para Debord (1958):
As mais válidas investigações revolucionárias na cultura procuraram destruir a identificação psicológica do espectador com o herói, para levarem este espectador à atividade (...) É pois necessário encararmos uma espécie de psicanálise com fins situacionistas, devendo cada participante nesta aventura formular desejos precisos de ambientes para os realizar.(Debord, 1958)
Nossa história começa no dia 13 de outubro de 1972, quando Lacan fará uma conferência na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, no mesmo ano em que Debord vai anunciar oficialmente a dissolução do movimento situacionista. Recordamos que Lacan, tendo vivenciado a potência e o crescimento da tecnologia da informação no decorrer do século XX, ainda assim tem poucos registros midiáticos de suas conferências e seminários em comparação às frequentes aparições de seus contemporâneos. Jean Paul Sartre e Michel Foucault, por exemplo, souberam aproveitar os recursos de mídia para divulgar suas ideias e pensamentos muito além das fronteiras acadêmicas, participando de movimentos, passeatas, enfim, tornando-se quase "popstars". Consciente disso, em 1980, Foucault aceitou dar uma entrevista para o suplemento dominical do jornal Le Monde sob a condição que a sua identidade permanecesse anônima. De acordo com ele, a cena intelectual estaria atrelada às mídias que exploravam a personalidade daquele que fala muito mais do que o pensamento em si, ou seja, ele já havia se dado conta de certa espetacularização e culto à personalidade que Lacan evitou em seu percurso.
Na conferência de Louvain, aqueles que nunca puderam frequentar os encontros com Lacan e seus seminários, teriam uma oportunidade única de poder assistir em vídeo, no futuro e quantas vezes quisessem o que apenas um pequeno círculo privilegiado de pessoas até então havia testemunhado naquelas últimas décadas: a fala de Lacan. Essa, graças ao registro fílmico, seria pela primeira vez acessível a um público ampliado que teria acesso a pontos cruciais de sua teoria que viriam acompanhadas de seu repertório gestual, seu humor, seu tabaco e suas vestes extravagantes que discursavam em preto e branco sobre temas como a morte (um "ato de fé" aquilo que sustenta a nossa vontade de viver) ou novos acréscimos à teoria dos discursos, reforçando a sua vinculação com o laço social. No dia seguinte à sua conferência de Louvain, Lacan ainda concederia uma entrevista, também filmada, à jornalista Françoise Wolff com tópicos relevantes de seu pensamento no campo da psicanálise. Posteriormente, em 1974, Lacan iria participar de um programa de quase duas horas produzido pela televisão francesa cujo conteúdo iria gerar no mesmo o ano o livro Televisão, no qual não faz a menor questão de esconder seu desconforto quanto à possibilidade de fazer alguma concessão aos veículos de mídia, de falar para que os "idiotas" o compreendessem. No entanto, "a experiência prova, mesmo limitando-se ao tropel, prova que o que eu digo interessa a bem mais gente do que àqueles que, com alguma razão, suponho analistas. Por que, então, falaria eu aqui em um tom distinto do de meu seminário?" (Lacan, 1974/1993, p.12)
Televisão se endereça "aos não-idiotas", aos "analistas supostos", sejam eles formais ou aspirantes à esse método e que muito cedo frequentavam os seminários de Lacan, compostos também por filósofos, artistas e curiosos em geral. No final dos anos 60 e início dos anos 70, mesmo que involuntariamente, Lacan acabou tomando para si alguns ideais anti-establishment, devido a sua ruptura com a International Psychoanalytical Association (IPA) e a sua oposição às regras rígidas dessa instituição. Em sua teoria dos discursos, ao afirmar que um psicanalista é diferente de um mestre, mais precisamente o seu avesso, tal aforisma teve um efeito inédito e devastador no panorama da psicanálise do pós-guerra. Da mesma forma, dizer que um analisando seria o único capaz de conhecer e modificar sua realidade era suficientemente revolucionário para passar despercebido ao jovem Jean-Louis Lippert/Anatole Atlas ou, simplesmente, "o estudante que interrompeu Lacan durante a palestra de Louvain". Em diversas formas, essa interrupção é carregada de significantes e que irão gerar aquilo que chamamos de "visão em paralaxe". O evento em si, que aqui podemos considerar como o "alfa", pode ser entendido da seguinte forma:
a) Lacan - sua performance em leituras públicas.
b) Lacan - o fato de permitir que essa conferência fosse registrada em vídeo.
c) Lacan - o avanço em questões teóricas que já havia trabalhado anteriormente tal como a teoria dos discursos e as reflexões sobre a morte em que mistura Freud com Heidegger (pulsão de morte / o ser-para-a-morte).
Não se trata aqui propriamente de menosprezar o alfa como algo menor frente a coisas supostamente maiores que passariam despercebidas (pois nesse caso estaríamos reforçando dualidades), mas, sim, partindo disso é que poderemos então perceber um conjunto de situações que, longe de estarem propriamente ocultas se encontram bem na nossa frente. Esse processo se assemelha à genial simplicidade do conto da carta roubada de Edgard Alan Poe, a qual Lacan irá analisar em 19552 e que retoma o nosso conceito de paralaxe, de certa forma exercitado por Dupin, no momento em que esse minimamente desloca sua visão para além das intrincadas manobras possíveis para esconder a carta, focando no óbvio: que ela estava bem ali à sua frente. Essa visão colateral se constitui como o eixo central de uma visão em paralaxe:
Ou para usar o lacanês, o olhar do sujeito é sempre já inscrito no objeto percebido em si, sob o disfarce do seu "ponto cego", que está no objeto mais que o objeto em si, ponto da qual o próprio objeto devolve o olhar (...) a realidade nunca é inteira - não porque parte dela me escapa, mas porque ela contém uma mancha, um ponto obscuro que indica a minha inclusão nela (Žižek, 2008 p.32)
Essa mancha na qual me detenho desloca o foco dos olhares sarcásticos e de indisfarçada censura daqueles que desprezam e reduzem o ato (atuação) de Anatole Atlas, sem levar em conta um importante componente histérico que se observa no confronto com o mestre/professor. Da mesma forma, se busca ultrapassar certo gozo dos eternos "assassinos da psicanálise" que não raro reduzem esse acontecimento como algo justo e merecido para expor a fragilidade e a nudez de um "charlatão" obscuro do porte de Lacan. Grosso modo, essa dualidade de opiniões se faz presente nas centenas de comentários que o vídeo teve no youtube ao longo dos últimos anos. Como a visão em paralaxe busca transcender dualidades e reconhecendo a minha implicação e insistência em retomar essa mancha insignificante, extraindo dela um je ne sais quoi mais amplo do que o habitualmente feito, posso afirmar que Anatole Atlas é bem mais do que o "estudante maluco" que interrompe a fala de um ícone. Na verdade, ele é o meu objeto a, o "objeto paralático puro", aquele que propriamente se encontra "atrás do desejo" e que dispara esse conjunto de reflexões que refletem a minha inclusão nesse deslocamento paralático ao qual me dedico:
Em nenhuma parte essa estrutura é mais clara que no caso do objeto a de Lacan, o objeto-causa do desejo. O mesmo objeto pode, de repente, transubstanciar-se no objeto do meu desejo: o que é para você é somente um objeto ordinário, é para mim o foco do meu investimento libidinal, e essa mudança é causada por algum X insondável, um "je ne sais quoi" no objeto que nunca pode ser isolado em nenhuma das suas propriedades específicas (...) o objeto a pode ser definido como objeto paralático puro. (Žižek, 2008, p. 32)
Foi dito nos parágrafos anteriores que uma visão "alfa" irá se deter nos aspectos principais e manifestos de determinado evento e muito pouco se atentará à obscura e curta intervenção de Anatole Atlas, geralmente vista como mera curiosidade anedótica. Porém, se deslocarmos o nosso ângulo de visão desse evento alfa, conseguiremos observar a emergência dos eventos a qual denominarei "beta", já supondo, nesse caso, uma visão em paralaxe. A diferença mínima que se estabelece entre ambos é de ordem dialética e antinômica. Podemos extrair um número razoavelmente extenso de traços significantes tanto no evento alfa quanto nos eventos beta, sendo que a primeira é sempre mais limitada devido à sua função ordenadora e a segunda se expande em um território instaurador e comporta um número mais extenso de possiblidades. Nessa lacuna na qual nos deslocamos podemos perceber:
a) A intervenção de Anatole Atlas
b) A fala perante Lacan
c) A citação a Guy Debord
d) A Internacional Situacionista
e) A Utopia
f) A obra literária de Anatole Atlas
g) A crítica ao capitalismo
h) A biografia de Anatole Atlas
A partir disso já não temos mais o evento principal, o quadro na qual a nossa atenção se detém, mas um resto que sempre esteve lá e que agora o percebemos. Os poucos minutos nos quais Anatole Atlas rouba a cena de Lacan nos possibilita olhar o detalhe, tudo aquilo que enumeramos acima e que seria legado ao esquecimento caso não nos propuséssemos essa escrita em paralaxe. Recordemos aqui que o jovem situacionista já havia atuado outras vezes de forma semelhante. Em 1971 ele interrompeu uma apresentação no Théatre du Rideau em Bruxelas da peça La Ville dont le Prince est un Enfant, de Montherlant. Tempos depois ele iria dizer que tais gestos não se constituem propriamente em "intervenções", mas sim, de um "gesto convulsivista", que gera consequentemente uma "escritura em atos". Isso seria uma forma de protesto contra as mudanças operadas pelo Presidente americano Richard Nixon que, naquele ano, teria inaugurado a era "neocapitalista" no ocidente, o que faria o "apelo a uma convulsividade" superior do espírito em face de uma época voltada às piores convulsões (Lippert, J.-L. 2010)
Os dados biográficos de Jean-Louis Lippert apontam que ele nasceu no ano de 1951, no então chamado Congo belga3, na cidade de Kisangani. Apesar de branco e possuidor de dupla cidadania, ele sempre ele se considerou congolês, nunca tendo esquecido as pequenas crianças negras que, em 1957, entraram na escola junto com ele. Da mesma forma, Lippert iria se lembrar por toda a sua vida da marca da chicotada que recebeu nesse mesmo ano, no pensionato católico onde estudava, ao ousar participar de brincadeiras junto de seus colegas negros. Em outubro de 1972, ele tinha 21 anos e vivia na cidade de Louvain, na Bélgica, não sendo, entretanto, estudante da famosa universidade. Com efeito, o jovem rapaz tinha outras questões mais urgentes em seu pensamento. Vivendo em moradias coletivas, na melhor tradição hippie da época, Lippert aproveitava a sua recém-conquistada liberdade após passar grande parte de sua infância enclausurado em um pensionato que odiava.
No dia da palestra de Lacan, ele se via, conforme seus relatos, em busca de alguém para conversar, talvez sobre o "situacionismo" ou, quem sabe, da iminência de uma virada radical das relações sociais, entre outras tantos assuntos possíveis. De certo que ele teve alguns encontros produtivos nesse dia que terminariam por levá-lo ao auditório onde o conhecido psicanalista francês iria falar e onde, talvez, ele pudesse encontrar algumas respostas para as tantas perguntas que tinha. Naquele momento, ele se recorda de uma multidão densa e "hipnotizada". A psicanálise havia se tornado uma instituição sólida, internacional e, mesmo que o lacanismo se encontrasse (ainda) em posição de desafio a esse grande establishment internacional, isso não era suficiente para sensibilizar o jovem congolês que, apesar de branco, levava na carne, e na alma, as marcas do chicote do colonizador.
Lippert/Atlas intuía que jamais iria fazer parte da classe dominant. Em sua palavras ele diz:: "eu entrei e vi o mestre falar. Era impossível não provocá-lo". Ao iniciar a sua "situação", face a face com Jacques-Marie Émile Lacan, o jovem então o afronta: "Você não acha bizarro que esses futuros quadros [dominantes] arranhem o discurso de seu mestre?"4. Recordemos que Lacan, sempre resistente a ser filmado, naquele dia contava com câmeras apontadas para si que registravam toda essa situação. Ele então responde de forma tranquila: "sim, efetivamente eu acho isso bizarro". Avançando pouco a pouco contra o orador, Atlas derrama uma garrafa de água, pousada em cima da mesa, nas anotações de Lacan, tornando-as provavelmente ilegíveis. Mais tarde, Anatole Atlas iria declarar que "aquilo se tratava de construir uma situação. Eu queria escrever sombriamente livros contra a arte e o romance, eu estava em vias de escrever em atos" (Lippert, J.-L. 2010).
Ao perceber que os seguranças se encaminhavam para retirá-lo do recinto, se dá fantástico diálogo entre Anatole Atlas e Lacan:
Anatole Atlas - Será que você não se deu conta de que o público ao qual você se dirige é, por definição o mais medíocre e o mais desprezível que podemos nos endereçar, [ou seja]
o público estudante?
Lacan - Você crê nisso?
A.A (animado pela boa receptividade do público, prossegue) - Então, eu gostaria ainda de acrescentar, que intervenho no momento em que tenho vontade de intervir e que, digamos o conjunto de coisas que até 50 anos atrás poderiam ser chamadas de cultura, a dizer a expressão de pessoas que, em canais separados, exprimem o que querem, agora já não pode, é uma mentira e já não se pode chamar de outra coisa que não espetáculo, que está por trás e é tela de fundo que subjaz e serve de enlace entre todas as atividades pessoais alienadas. (...) Se as pessoas que aqui estão por vontade própria e autenticamente querem se expressar isso se dará por outras bases e com outra perspectiva. É evidente que não se deve esperar isso dos estudantes que são, por definição, os que se preparam para se converter em quadros do sistema, com todas as suas certificações e que são precisamente o público que, com a sua má consciência, vai festejar precisamente os resíduos vanguardistas e os espetáculos em decomposição."
Durante todo a fala de Jean-Louis Lipper, Lacan permanece aparentemente calmo, demonstrando uma polida impaciência que se traduz nos diversos convites para que o jovem tomasse assento e escutasse o que ele tinha a dizer. Entretanto, Anatole Atlas ainda tinha muito que falar:
A.A - Você gostaria que eu me sentasse?
Lacan - Sim, é uma excelente ideia... Bem, então, tínhamos chegado à linguagem, se você está aí falando a esse público, o qual, de qualquer forma, se encontra pronto a escutar declarações insurrecionais, mas o que você quer fazer?
A.A - É a questão de fundo que os pais, os religiosos, os burocratas e os policiais fazem geralmente a pessoas como eu e que se multiplicam....eu posso lhe responder, eu posso fazer uma coisa, a revolução.
Lacan - Sim...
A.A - Você vê, é claro em nosso momento atual, um de nossos alvos prediletos, esses momentos precisos aonde pessoas como você vem trazer a todos que aqui estão a justificativa de sua miséria cotidiana, no fundo é que que você faz Lacan - De jeito nenhum (risos)
A.A - Sim
Lacan - É preciso primeiro lhes mostrar a sua miséria cotidiana.
Para Bellefroid (2001), Lipert/Atlas quis demonstrar o fato de que a psicanálise age como um lubrificante do sistema social burguês e que é algo que se destina à própria burguesia e nisso ele retoma Benjamin (1921/2013) quando esse afirma que essa teria se erigido em moldes capitalistas. Além disso, naquele momento, Lacan era o detentor do verbo e, portanto do poder, logo era preciso lhe tomar esse verbo tal como os jovens começaram a fazer naqueles tempos. Anos antes da palestra de Louvain, reagindo aos eventos do maio de 68, Lacan faria uma polêmica afirmação em 03 de dezembro de 1969 em Vincennes na qual diria: "O que vocês aspiram como revolucionários é um novo mestre. Vocês o terão". Žižek (2012) não entende tal frase como uma espécie de declaração universal sobre todos os motins revolucionários. No entanto, lembra que ela carrega certa parcela de verdade quando o protesto se mantém como uma provocação histérica ao mestre "sem um programa positivo para que a nova ordem substitua a antiga, ele funciona de fato como um pedido (recusado é claro) por um novo mestre (Žižek 2012. p. 84)
Enquanto faz a sua intervenção "espetacular", Lipert/Atlas referencia Sociedade do Espetáculo, como vimos no inicio desse artigo, e cita nominalmente Guy Debord que, como ele, era membro de uma organização pouco lembrada nos dias de hoje, mas que teve um papel muito relevante nos movimentos de maio de 1968 - a anteriormente mencionada "Internacional Situacionista". Esse movimento nasceu na década de 1950, na Itália, fundado principalmente por Guy Debord e Raul Vaneigem e era estreitamente vinculado à arte de vanguarda da época tal como o dadaísmo e o surrealismo. A tese central situacionista, que posteriormente sofreu influências do filósofo marxista francês Henri Levebvre, era a de que, por meio da construção de situações se chegaria à transformação revolucionária da vida cotidiana: "O que você chama momentos, nós chamamos situações, mas estamos levando isso mais longe que você. Você aceita como momento tudo que ocorreu na história: amor, poesia, pensamento. Nós queremos criar momentos novos" (Levebrve, 1997 citado por Jacques, 2003). Por esse prisma, Anatole Atlas criou o seu momento em Louvain através da situação provocada pela interrupção da fala de Lacan. E qual seria o sentido disso naquele momento?
Uma das pistas pode ser um dos mais conhecidos panfletos publicados pelos situacionistas, intitulado: "Da miséria do meio estudantil" (Debord et al, 1966), que circulou no inicio de maio de 68 e, cujo trecho a seguir, faz uma síntese pontual do pensamento de Debord espetacularmente (a ironia é proposital) apresentado à Lacan por Lipert/Atlas:
Considerada em si mesma, a juventude é um mito publicitário profundamente ligado ao modo de produção capitalista como expressão de seu dinamismo. Esta ilusória primazia da juventude tem sido possível com o andamento da economia, desde a segunda guerra mundial, como consequência da entrada em massa no mercado de trabalho de toda uma categoria de consumidores mais maleáveis, papel que garante a sua integração à sociedade do espetáculo (Debord et al, 1966, p. 15).
Essa juventude que despontava como protagonista dos movimentos políticos, libertários e estéticos dos anos 60/70 foi, ela mesma, objeto de análise dos situacionistas, os quais apontavam como estando irremediavelmente atrelada ao mesmo sistema que combatiam. Lacan, por sua vez, já havia falado da emergência de um controverso "quinto discurso", o discurso do capitalista, o qual ganhou um matema próprio na Conferência em Milão de 12 de Maio de 1972. O discurso do capitalista deriva de uma pequena torção no discurso do mestre onde os elementos da coluna da esquerda mudam de lugar da seguinte forma: onde havia o significante mestre (S1) ocupando o lugar do agente, teríamos então o $, comandando a dinâmica desse discurso, S1 iria para a parte de baixo, onde Lacan localiza a verdade. Do lugar da produção sairá um vetor que irá ligar o objeto a com o agente $, resultando em um acesso inédito ao gozo de parte do sujeito tal como podemos ver na figura abaixo.
O discurso do capitalista seria o prosseguimento do discurso do mestre, a sua versão contemporânea que organizaria estruturalmente o laço social5 - "ele deve ser produzido pelos que substituem o antigo escravo, isto é, pelos que são eles próprios produtos, como se diz, consumíveis tanto quanto os outros. Sociedade de Consumo, dizem por aí" (Lacan,1969-1970:33). Tanto o discurso capitalista quanto o discurso universitário (e quem sabe o pouco conhecido discurso PST) apontam para novos arranjos culturais que por um lado trazem avanços e por outros geram problemas novos e ainda mais complexos que os anteriores, sendo que nisso ele estava muito bem acompanhado pelos situacionistas. Posso afirmar que ambos percebiam que havia "problemas no paraíso", que por trás da liberação sexual e de todas as conquistas do período, existia uma nova lógica cultural que se impunha e que mereceria, talvez, menos celebração e mais reflexão. No que tange, por exemplo, aos espaços urbanos, uma das contribuições mais notáveis dos situacionistas é na área da arquitetura e urbanismo onde chegaram a uma convicção exatamente contrária àquela dos arquitetos modernos.
Enquanto os modernos chegaram a achar que a arquitetura poderia evitar a revolução, os situacionistas, ao contrário, queriam provocá-la, e pretendiam usar a arquitetura e o ambiente urbano em geral para induzir à participação e assim fazer a revolução da vida cotidiana contra a alienação e a passividade. Paola Berenstein Jacques (2003), em artigo para a revista Arquitextos, destaca que os situacionistas criaram um procedimento ou método, a psicogeografia e uma prática ou técnica chamada "deriva", ambos estreitamente relacionados, como um "estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos e a deriva como um modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica da passagem rápida por ambiências variadas.
Não eram poucas as referências que vinham juntas com Anatole Atlas no dia em que este cruzou com Lacan em Louvain. Penso que ambos ocupavam um lugar diferenciado na efervescência intelectual dos anos 60/70, no sentido de não se conformar com as opções políticas e de rebeldia disponíveis e com o teatro da juventude que se montava naquele período, contra a qual ambos nutriam boas e legítimas desconfianças. O situacionismo de Atlas e a psicanálise cada vez mais estruturalista e cartesiana de Lacan6 criticavam de forma subjacente a Zeitgeist daquele período, criticando o próprio conjunto de críticas daquele momento. Ou, melhor ainda, poderíamos supor que haveria uma crítica em paralaxe que vai aproximar dois indivíduos singulares que, a seus modos, ocupavam lugares tão díspares quanto passíveis de convergência.
A paralaxe de Louvain aponta para uma bela definição do discurso do analista que Lacan nos apresenta no Seminário XVII, onde esclarece que: "o que o analista institui como experiência analítica pode-se dizer simplesmente - é a histericização do discurso. Em outras palavras, é a introdução estrutural, mediante condições artificiais, do discurso da histérica" (Lacan 1969-1970, p. 33). Aqui, nos fazemos a seguinte pergunta: esse encontro em Louvain poderia seguir a lógica de um ato analítico? O jovem Jean-Louis Lippert, o colonizado em face do colonizador, talvez tenha exigido de Lacan um "geste a peau" tardio? Perto dos 70 anos, Lippert continua na ativa já tendo publicado diversos livros e artigos sobre o situacionismo e à conjuntura política global sob o pseudônimo de Anatole Atlas. Alguns críticos destacam, na melhor das hipóteses, certo barroquismo linguístico que dificulta a compreensão de seus escritos, outros vão mais longe desqualificando o seu trabalho, bem como a sua personalidade, como delirante e monomaníaco. Quanto a isso, talvez seja o momento de nos perguntarmos sobre a validade de um ato analítico que se proponha "asséptico" em seu curso, indo ao sabor das coordenadas vigentes. Isso iria contra a ética lacaniana da psicanálise e Žižek será incisivo nesse ponto ao lembrar da noção lacaniana de "ato analítico":
Na verdade, um ato está sempre situado num contexto concreto - mas isso não significa que ele seja inteiramente determinado pelo contexto. Um Ato sempre envolve um risco radical, o que Derrida, seguindo os passos de Kierkegaard, chamou de loucura de uma decisão: é um passo no desconhecido, sem garantias quando ao resultado final - por que? Porque um Ato altera retroativamente as próprias coordenadas em que interfere. (...) os que se opõem ao "Ato absoluto" se opõem também ao Ato como tal, querem um ato sem ato. (Žižek,2003, p. 175)
Em 2018, comemoramos os 50 anos dos eventos de maio de 68 e não temos dúvidas de que a obra de Lacan se constituiu como um momento marcante desse período, principalmente no que concerne à construção da teoria dos discursos e de toda a sua teorização subsequente do real, de certa forma o clímax de uma linha de pensamento que vinha seguindo desde o Seminário XIV A Lógica do Fantasma (1966-1967) no qual afirma que "o inconsciente é a política". Suponho que Anatole Atlas concordaria com Žižek quando este nos diz que "a tese lacaniana fundamental segundo a qual o próprio grande Outro, longe de ser uma máquina anônima, exige o influxo constante de jouissance" (Žižek, 2003:117). Mais adiante, em artigo publicado no jornal La Republica chamado As estruturas não caminham pelas ruas, (2008) faz um inventário daquele período, em consonância com Lacan e os situacionistas ao observar que:
Os protestos anticapitalistas dos anos sessenta integraram a crítica habitual da exploração socioeconômica com argumentos de critica cultural: a alienação da vida diária, a comercialização dos bens de consumo, a falta de autenticidade de uma sociedade de massa na qual "vestem-se máscaras" e sujeitam-se às opressões sexuais e de outras naturezas. O novo espírito do capitalismo recuperou de modo triunfante a retórica igualitária e anti-hierárquica de 1968, apresentando-se como uma revolta libertária de sucesso contra as organizações sociais opressivas do capitalismo das corporações e também contra o socialismo real existente". (Žižek , 2008)
O batismo midiático de Lacan nos legou não só partes de seu pensamento em imagens como também garantiu a imortalidade do jovem Jean- Louis Lippert/Anatole Atlas que ainda hoje é reconhecido pela sua bem sucedida "construção de situação" naquele dia. Nesse artigo, ele é o grande artífice da "paralaxe de Louvain", cujas movimentações, estilhaços e restos compõem essa construção metodológica que Slavoj Žižek desenvolve a partir de 2008 com a sua "Visão em Paralaxe". Nesse livro, Žižek (2008, p. 497-502) vai discutir, entre outras tantas coisas, a "Paralaxe de Bartleby", em alusão ao personagem de Herman Melville e seu conhecido bordão "I would prefer not to", o que me inspirou na construção dessa paralaxe de Louvain, ou, quem sabe, de Atlas. Žižek (1998) brinca que, de todos os casais na história do pensamento moderno (Freud e Lacan, Marx e Lênin), a junção lacaniana de Kant com Sade talvez seja a mais problemática já que, seu ver, a afirmação "Kant é Sade" se constitui no "julgamento infinito" da ética moderna, pressupondo o sinal de equação entre dois opostos radicais. Jacques Lacan não é Anatole Atlas, mas quem pode negar que formam uma bela e interessante dupla?
Referências
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Recebido em: 03/04/2019
Aprovado em: 03/07/2019
1 Alguns poderão objetar que a posição de Lacan se aproximaria bem mais do discurso universitário do que propriamente do discurso do mestre, o que faz todo o sentido. Entretanto, os discursos não são estanques e aqui trabalho mais com a transferência de Anatole Atlas com Lacan do que com conceitos teóricos rígidos.
2 O Congo, enquanto colônia belga, existiu de 1908 até a sua independência em 1960 com a tomada do poder por Joseph Mobutu, quando então passa a se chamar apenas Congo.
3 No original: «Est-ce que vous ne trouvez pas bizarre que ces futurs cadres grattent la parole de leur Maitre?» o verbo "gratter" possui vários significados, como arranhar, coçar, raspar, entre outros. Escolhemos "arranhar" pelo duplo sentido do termo e por servir melhor à ironia pretendida pelo interlocutoe, ou seja, "arranhar" enquanto " não estar a altura de" (eu arranho no piano) ou mesmo no sentido de "estragar algo" (a lente está arranhada). Esse e os demais diálogos foram traduzidos do francês diretamente pelo autor.
4 É de comum entendimento que o discurso do capitalista "não faz laço social", entretanto, a meu ver, essa é uma questão que permanece em aberto.
5 Para um entendimento mais aprofundado dessa questão, recomendo o artigo de Slavoj Žižek "Why Lacan Is Not a "Post-Structuralist"
6 Para um entendimento mais aprofundado dessa questão, recomendo o artigo de Slavoj Žižek "Why Lacan Is Not a "Post-Structuralist"