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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.12 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2020

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2020v2p.74 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

O processo de socialização e o papel atual do psicanalista como parceiro da família e da escola

 

The psychoanalyst's role as a partner of the family and school in the process of socialization of young children

 

El proceso de socialización y el papel actual del psicoanalista como pareja de la familia y de la escuela

 

 

Rosa Guedes LopesI; Maria da Glória Schwab SadalaII

IDocente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade (Rio de Janeiro, Brasil); Professora colaboradora do Curso de Especialização em Psicanálise, Clínica e Cultura do Centro Universitário Celso Lisboa. E-mail: r.guedeslopes@gmail.com
IICo-coordenadora do Curso de Pós-Graduação lato sensu em Teoria Psicanalítica e Prática Clínico-institucional da Universidade Veiga de Almeida/UVA; Docente do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida/UVA. E-mail: gloriasadala@gmail.com

 

 


RESUMO

Os ideais de liberdade e igualdade caracterizaram a modernidade, dando lugar ao surgimento de movimentos que aceleraram a mudança dos costumes e valores orientadores do laço social. A entrada da mulher no mercado de trabalho levou à substituição precoce dos laços libidinais familiares do bebê, responsáveis pela socialização primária. O slogan "é proibido proibir" produziu uma aspiração a um gozo ilimitado da vida e à confusão entre a operação do recalque (Verdrängung) e a repressão moral ao usufruto do corpo e do prazer. Cabe ao psicanalista distinguir desejo e gozo e reincluir o Nome-do-Pai nos discursos referentes aos processos de socialização.

Palavras-chave: Psicanálise; Educação; Socialização primária; Socialização secundária; Desejo do analista.


ABSTRACT

The ideals of freedom and equality characterized modernity, giving rise to movements that accelerated the change in habits and values that guide the social bond. The entry of women into the labor market led to the early replacement of the baby's family libidinal ties, responsible for primary socialization. The slogan "it is forbidden to forbid" has produced an aspiration for an unlimited enjoyment of life and for the confusion between the repression with moral repression (Verdrangung) to the enjoyment of body and pleasure. It is up to the psychoanalyst to distinguish desire and joy and to reinclude the Name-of-the-Father in the discourses referring to the processes of socialization.

Keywords: Psychoanalysis; Education; Primary socialization; Secondary socialization; Analyst's desire.


RESUMEN

Los ideales de libertad e igualdad caracterizaron la modernidad, dando lugar a movimientos que aceleraron el cambio de las costumbres y valores que guiaban el lazo social. La entrada de las mujeres en el mercado de trabajo condujo al reemplazo temprano de los lazos libidinales familiares del bebé, responsables de la socialización primaria. El lema "está prohibido prohibir" produjo una aspiración a un goce ilimitado de la vida y a la confusión entre la operación de represión (Verdrangung) y la represión moral del disfrute del cuerpo y del placer. Depende del psicoanalista distinguir el deseo y el goce y volver a incluir el Nombre-del-Padre en los discursos relacionados con los procesos de socialización.

Palabras clave: Psicoanálisis; Educación; Socialización primaria; Socialización secundaria; Deseo del analista.


 

 

O processo de socialização e o papel atual do psicanalista como parceiro da família e da escola

É frequente, na literatura psicológica, a referência à acelerada transformação dos costumes e valores norteadores do laço social para subsidiar reflexões acerca dos chamados "novos sintomas" (Coelho dos Santos, 1987, 2008; Birman, 2007). Dentre as mais importantes para o que interessa a este estudo, destacamos três: a radical mudança do comportamento feminino decorrente da luta pela igualdade de direitos em relação aos homens, ocorrida a partir do final dos anos de 1960; a entrada da mulher no mercado de trabalho e o surgimento dos anticoncepcionais. Essa conjuntura de fatos permitiu que o desejo da mulher se separasse da reprodução biológica e se dirigisse também para outros objetos distintos da casa, do marido e dos filhos. A capacitação para exercer um trabalho fora do lar e a priorização da vida profissional passaram a ser objetivos femininos tão importantes quanto as relações amorosas. Mesmo que um bom número de mulheres não deixasse de desejar obter realização como mães ou esposas, outra parcela passou também a almejar realização profissional. Além de reivindicar a divisão de tarefas e de responsabilidades referentes ao lar e junto à família, esse grupo passou a exigir o direito de exercer a sexualidade em conformidade com os seus desejos.

A partir de então, o laço conjugal foi invadido pela necessidade de que, em seu interior, houvesse espaço para essa nova condição desejante da mulher. A luta feminina pela igualdade com os homens no que se refere ao trabalho, à vida sexual e à vida comum, somada aos resultados das reivindicações de direitos feitas por outros grupos deram lugar a uma acelerada transformação social. Muitas uniões conjugais foram desfeitas em decorrência da redefinição dos papéis sociais exigida por esse processo de modernização dos costumes que inaugurou um tempo de consideração do direito à individualidade como um valor importante no interior de qualquer laço social (Coelho dos Santos, 1987, 2001, 2008).

Influenciada por esta conjuntura, a estrutura familiar sofreu grandes modificações, especialmente no que se refere ao cuidado e à autoridade dos genitores sobre as crianças, bem como às formas de controle dos indivíduos. O tipo de família que caracterizava a classe média da sociedade brasileira dos anos 1950 - hierárquica e tradicional - foi sendo modificado pelo desejo de liberdade e pelo ideal de igualdade entre os seus membros, introduzidos a partir de 1968 (Coelho dos Santos, 2001; Figueira, 1987; Lopes & Coelho dos Santos, 2017). Como efeito, a tarefa de socialização primária das crianças, antes uma atividade reservada aos pais, passou a ser exercida, também, fora da instituição familiar. A entrada da mão de obra feminina no mercado de trabalho retirou a mulher de casa e fez com que as crianças passassem a chegar cada vez mais cedo ao ambiente escolar (Coelho dos Santos, 2001; Birman, 2007). Com isso, as instituições escolares começaram a ser, gradualmente, solicitadas a atuarem também como participantes ativas no processo de socialização primária. Por tradição, o papel da escola era o de atuar apenas na tarefa da socialização secundária. Entretanto, com a reorganização dos papéis sociais, a escola também foi convocada -simultaneamente às empregadas domésticas, babás, etc. - para ajudar a suprir a lacuna familiar deixada pela ausência da mulher na tarefa dos cuidados primários junto às crianças.

 

O processo de socialização

Como o próprio termo explicita, a socialização é o trabalho de introduzir um indivíduo no laço social. É um processo que promove na criança a aprendizagem dos elementos que, de um modo geral, caracterizam a cultura na qual ela está inserida, tais como a linguagem, os costumes, os papéis sociais, os valores, os padrões de comportamento, etc. Segundo Berger & Luckmann (1985), o processo de socialização divide-se em dois momentos - socialização primária (sob responsabilidade da família) e socialização secundária (sob responsabilidade da escola), sendo o segundo momento fortemente dependente do primeiro.

O processo de socialização primário é tradicionalmente definido como o tempo em que uma criança é introduzida nas regras mínimas necessárias à sua existência no interior do laço social mais primitivo: a família à qual pertence. Para a psicanálise, trata-se de um trabalho no qual a criança participa como objeto de cuidados fornecidos pelos seus pais. O fato de que todos os indivíduos venham ao mundo sem nenhum conhecimento prévio que os instrumente para sobreviver, coloca nas mãos da família a responsabilidade de estabelecer e fornecer as condições primárias para a existência das crianças e de ensinar-lhes uma modalidade particular de viver e de realizar tarefas. Esse traço, característico da maneira de viver de cada família, é a marca do desejo parental que se inscreve no modo como cada criança se incluirá, ou não, na rede de trocas do mundo externo. As dificuldades da criança, surgidas a partir da socialização primária, permitiram a Lacan formular teoricamente que o sintoma da criança é uma resposta ao que há de sintomático nos pais, responde "ao que existe de sintomático na estrutura familiar". Por isso, "pode representar a verdade do casal familiar" (2003, p. 369).

Quando a socialização primária ficava a cargo da família, era mais fácil para a criança localizar e dar consistência a esse Outro, de cujo desejo e cuidados ela seria devedora e, consequentemente, construir-se como resposta sintomática relativa a esse desejo nada anônimo. Até bem pouco tempo, era exclusivamente da família o trabalho de fazer com que uma criança pudesse incorporar os mínimos elementos culturais e psicológicos capazes de fornecer o suporte necessário à sua posterior inserção no laço extrafamiliar. A família nuclear era considerada a primeira instituição responsável pela mediação entre a criança e o mundo externo. Com o surgimento da família burguesa, a mãe passou a ter um papel especial nesse processo, que durava em torno de cinco a seis anos. Era dela a responsabilidade pela amamentação, pela higiene, pela regulação do funcionamento do corpo da criança, pela introdução da linguagem, pela repressão dos excessos infantis e pelo tratamento do pequeno infante de acordo com os ideais do seu sexo. Educar era sinônimo de dizer não, sempre que a criança demonstrava não corresponder aos anseios civilizatórios requeridos por seu grupo social, dos quais também faziam parte os anseios familiares.

Reprimir os desejos pessoais em prol do laço social foi um valor importante herdado da Antiguidade pela Modernidade, fato que permitia situar a família moderna como uma espécie de resíduo do Regime Antigo (Coelho dos Santos, 2001). Nela, o pai era situado como o representante, por excelência, do papel de autoridade e do exercício dessa função, que era inicialmente desempenhada pela mãe junto à prole. Em um mundo hierarquizado e com papéis sociais bem definidos, o lugar e a responsabilidade da mulher como mãe se conciliavam com o seu desejo de dedicar-se ao lar e à família. A isso deveria corresponder, do lado dos filhos, o desejo de ajustar-se a essa expectativa do Outro. Consequentemente, esse desejo de ser o que o Outro espera, sob pena de decepcioná-lo e ser castigado, levava, de um modo geral, ao recalque dos desejos incestuosos mais primitivos. A renúncia à satisfação indiferenciada e ilimitada era o resultado esperado da socialização primária sobre as crianças e o requisito necessário à sua entrada no trabalho de socialização secundária. Afinal, o gosto pelo saber e os sentimentos de altruísmo, solidariedade e vergonha, tão importantes para o crescimento de indivíduos civilizados, normais e prontos para a vida em sociedade, não são gerados espontaneamente. Eles são produzidos pelo forçamento executado pelo trabalho da educação (Freud, 1905/1997; Durkheim, 1978).

A tarefa de desviar as forças pulsionais mais primitivas dos objetivos sexuais em direção a novas finalidades mais elevadas é o requisito necessário ao surgimento da capacidade sublimatória. A sublimação é um dos destinos da pulsão mais privilegiados pela civilização. Ela depende, entretanto, da renúncia, do lado da criança, ao funcionamento pelo processo de pensamento primário que caracteriza a atividade mental infantil (Freud, 1905a/1997, 1915b/1997). Isso não se alcança sem que haja uma forte exigência proveniente do mundo externo. A distinção entre as diferenças sexual e geracional, claramente vigente até o final dos anos 1960, permitia a entrada em cena da dimensão estrutural do recalque, constitutiva da atividade psíquica secundária tão cara à modernidade. A existência do recalque conduzia ao início da socialização secundária, que a escola deveria, então, passar a proporcionar. Eram responsabilidade dessa instituição não só as tarefas de transmissão de conhecimentos, mas também as que contemplavam a formação de uma atitude crítica, a transmissão de normas e valores que ajudassem a preparar o indivíduo para a vida em coletividade, bem como o desenvolvimento do senso de cidadania. Por isso, quanto mais continuidade pudesse ser encontrada entre a aprendizagem oferecida pela família e a requerida pelo mundo externo maior seria a capacitação da criança para adquirir novos conteúdos e novos modos de aprender (Gomes, 1989; 1992).

Antes da revolução dos costumes, que se iniciou no final dos anos 1960, havia um grau maior de coerência entre o conhecimento adquirido pela criança através da socialização oferecida no âmbito familiar e o que era exigido pelas instituições escolares para dar início à socialização secundária. Além disso, de um modo geral, não existia grande diferença entre o processo de socialização primária, oferecido pelas classes abastadas e pelas classes populares (Gomes, 1989; 1992). Em ambas as camadas, era central o lugar da educação e, portanto, da repressão do que era inconveniente ao laço social, como o principal caminho para o sucesso na vida adulta. Como efeito, as crianças chegavam à escola "praticamente prontas" para essa nova etapa da sua vida, razão pela qual aquela instituição não precisava ocupar-se das tarefas familiares, mas somente de aperfeiçoá-las, fornecendo às crianças os conhecimentos que as capacitariam para se tornarem adultos responsáveis e funcionais.

Neste momento, apesar de a psicanálise estar bastante presente na sociedade e nos meios de comunicação, especialmente através das revistas femininas (Coelho dos Santos, 2001), o psicanalista não era tão frequentemente consultado como é hoje, nem pelas famílias nem pelas escolas, para tratar de sintomas infantis referidos ao comportamento ou à adaptação ao ambiente escolar. Ele era solicitado, sim, para ajudar no tratamento de crianças que apresentavam sintomas mentais graves, os quais, geralmente, requeriam também o uso de medicamentos receitados por algum psiquiatra. Os "disfuncionamentos" das crianças eram muito mais devidos a problemas fonoaudiológicos, visuais, auditivos, etc., que faziam obstáculo ao processo de aprendizagem, do que à desobediência, discordância ou inadaptação, tanto das crianças quanto de seus familiares, às restrições inerentes ao ambiente escolar. O fato de que as crianças venham ao mundo de forma sintomática, ou seja, sempre referidas, de algum modo, a representações da relação do narcisismo dos pais com a castração, não era obstáculo à educação tradicional na medida em que o próprio narcisismo deles era regulado pelos significantes mestres da tradição.

A ascensão da ideologia que prega a proibição de todo comportamento repressivo, somada aos efeitos dos movimentos sociais pela igualdade entre os sexos e ao crescimento dos valores individualistas modernos, introduziu profundas modificações neste modo de funcionamento da sociedade. Nessa direção, destaco o surgimento da inédita articulação "entre o conceito freudiano de recalque e a revolta dos estudantes contra a autoridade repressiva dos mais velhos sobre os mais jovens" (Coelho dos Santos, 2008, p. 313). A confusão entre o recalque e a repressão, que dá lugar à redução da lei à coerção externa, foi o alicerce do famoso slogan "é proibido proibir" e, por isso, um dos mais importantes veículos para a ascensão dos ideais de autonomia e de liberdade que vêm aparelhando o horizonte do laço social desde então.

 

 

Um "novo" narcisismo ou a ascensão de sucessivos desmentidos?

O questionamento e a revisão crítica dos significantes mestres tradicionais que regulavam o laço social modificou a relação dos sujeitos com os valores que orientavam todo o processo de socialização baseado na obediência, no reconhecimento da autoridade dos adultos e no forçamento dos corpos para que se adequassem aos ideais de cada sexo. Um novo modelo de eu entrou em cena: individualista, igualitário, ansioso por liberdade, autônomo, liberal, autodeterminado, questionador e sempre pronto a negociar... (Coelho dos Santos, 2001). Esses novos significantes foram, pouco a pouco, abolindo a necessária referência do aparelho psíquico aos elementos representantes da autoridade, ou seja, à transgeracionalidade do desejo, ao pai, aos costumes, aos papeis sociais, aos ideais, aos fundamentos da cultura, etc. Moldaram novos modelos identificatórios que permitem confundir o que é da ordem da identificação ao ideal do eu com o que se refere ao desejo. Esses novos modelos desmentem a condição original de objeto do desejo de alguém que caracteriza a chegada de todo ser humano ao mundo e é matriz do inconsciente que nos habita sem que saibamos.

Se o ato de educar implica "submeter os indivíduos às configurações simbólicas de uma determinada época, cultura ou lugar" (Lopes, 2017), quais são os efeitos, no âmbito da socialização, da substituição do laço social baseado na diferença e na hierarquia pelos novos laços entre indivíduos supostamente livres e iguais, promovida pelo aprofundamento dos ideais da modernidade?

O slogan "é proibido proibir" forneceu as condições para o crescimento de uma aspiração a um gozo ilimitado da vida e, como já afirmado, contribuindo assim para confundir o recalque - operação responsável pelo "esquecimento" dos desejos sexuais primitivos e inconscientes - com a repressão moral ao usufruto do corpo e do prazer (Coelho dos Santos, 2001). Freud (1915b/1997) conceituou o mecanismo do recalque como efeito da lei que funda a cultura: a lei da interdição do incesto, responsável pela instauração das estruturas elementares do parentesco (Lévi-Strauss, 1949/1982); isto é, responsável pela localização do "lugar original do funcionamento das instâncias simbólicas na sociedade" (Coelho dos Santos & Lopes, 2013, p. 114). Essa lei indica que o simples fato de sermos seres de linguagem já nos coloca obrigatoriamente no interior de regras institucionais que condicionam tudo o que se pode nomear como cultura. Neste sentido, é possível afirmar que a cultura já é, por si mesma, um sintoma na medida em que o acesso à origem é impossível e a subjetividade só pode ser pensada a partir da existência da cultura.

A lei da interdição do incesto é o fundamento que permite deduzir a estrutura do real como impossível, que inaugurou a ciência moderna e do qual a psicanálise participa através do conceito de complexo de castração (Coelho dos Santos & Lopes, 2017). Ela indica que a satisfação buscada nunca é idêntica à encontrada porque "o" objeto que satisfaria plenamente o desejo está perdido. O que temos desse objeto são apenas suas representações psíquicas. Essa é, entretanto, a estrutura que dá lugar no sujeito à identificação ao ideal relativo ao próprio sexo enquanto condiciona a causa do seu desejo sexual pelo Outro sexo. Sendo efeito da lei edípica, a proibição é responsável pela produção da impossibilidade do gozo com o objeto, mas também do desejo de exceção. Ademais, ela autoriza o usufruto legítimo do direito ao amor e à satisfação sexual, além de dar lugar à produção das fantasias inconscientes que nos protegem do real e orientam o desejo (Coelho dos Santos & Lopes, 2017).

De maneira oposta ao recalque, a repressão apaga a dimensão da impossibilidade do acesso ao real. Com isso, ela instaura a fantasia de um Outro que aprisiona o sujeito e quer o seu mal, porque o privaria do acesso à uma satisfação ilimitada. Como consequência dessa privação supostamente executada no real, a repressão produz transtornos no interior do laço social, uma vez que não possibilita a subjetivação do aspecto simbólico da lei. A liberdade, que o slogan promete alcançar com o fim das proibições, desmente a tese do real como impossível e dispensa a dívida para com os enunciados da tradição que atravessavam as gerações aparelhando os indivíduos com saberes muito singulares sobre como resolver os diferentes problemas que encontramos na vida. No lugar de desembaraçar os indivíduos das amarras desse "Outro mau", ela os aprisiona aos slogans de ideologias que circulam anonimamente.

Imersos neste caldo, encontramos hoje indivíduos bastante desaparelhados para constituírem vida conjugal. A ânsia por gozar de tudo ao máximo não permite que eles se guiem pelos significantes da identificação que orientam o desejo com o objetivo de escolherem um(a) parceiro(a) sexual. Se o fazem, não consideram a perda de liberdade que acompanha toda escolha. Muitos insistem em eternizar-se na posição de jovens solteiros e mimados. Trocam de parceiros como se valesse qualquer um e, ainda, como se, juntamente com o próximo, pudesse vir a felicidade plena de uma vida a dois "sem louça na pia para lavar", com tempo para sair sempre com os amigos e curtir (Manus, s/d). Essa estrutura contagiou também a relação entre as gerações no que se refere à assunção dos papéis sociais. Inúmeros fenômenos clínicos podem ser citados como exemplos que dão sinal do modo frágil como são encarnados, ou não, os semblantes que sustentam as diferenças sexual e geracional no âmbito familiar:

■ A carência de "nãos" verdadeiros na prática educativa familiar.

■ A ausência de saber por parte dos pais sobre as particularidades e as necessidades básicas das crianças, enquanto completamente diferentes das dos adultos.

■ A liberdade com que as crianças têm acesso aos programas de TV e à internet sem que haja restrição quanto aos limites etários e de horário.

■ O desconhecimento, por parte dos pais, das fantasias que habitam o imaginário infantil, fato que os leva a tratar, por exemplo, como realidade o que, muitas vezes, é apenas efeito do pensamento mágico.

■ Os desabafos e as solicitações de conselhos por parte dos pais aos filhos sobre problemas familiares e conjugais, ignorando a impossibilidade de colocar os filhos na posição de amigos ou confidentes, uma vez que o real da diferença geracional nunca pode ser eliminado.

■ As atabalhoadas tentativas de inserção dos filhos de uma primeira união conjugal no seio das novas famílias como se a família original da criança pudesse ser automaticamente substituída ou ampliada por outra, gerada pela nova união de um ou de ambos os genitores.

■ As guardas compartilhadas que só atendem às fantasias amorosas dos pais em relação às crianças ou à vontade de um deles de não pagar pensão, e que acabam por fazer dos filhos "objetos voadores", mochileiros em constantes deslocamentos entre as residências dos pais, sem que possam sentir esses domicílios como sendo as suas próprias casas.

As crianças, por seu lado, cada vez mais emancipadas da autoridade parental, também produzem os mais diversos sintomas:

■ Algumas se apresentam como pequenos tiranos, majestades sem reino, que não suportam as mínimas contrariedades, não toleram dividir o espaço, a atenção ou o brinquedo com um coleguinha. São os pequenos príncipes ou princesas cujas mães, por diferentes razões, se regozijam de tal modo com a maternidade que acabam por eternizar nos filhos a posição de falo com a qual vieram ao mundo, apenas na posição de substitutos.

■ Há as crianças que comem demais e fazem quadros de obesidade precoce porque os pais não conseguiram mais "controlar sua alimentação, a partir do momento em que elas alcançaram abrir a porta do armário de mantimentos sozinhas". Frustrá-las não está mais no script de muitas famílias. Por que privá-las? Afinal, elas têm o direito de comer biscoitos como qualquer um! Podem escolher o que e quando querem comer.

■ Há também as que comem nada e as que se negam a comer sem o auxílio de um adulto. Deste modo, tornam ainda mais fracos os seus corpos já frágeis por natureza.

Sem contarem com o testemunho da vontade e a insistência de alguém que demonstre claramente o quanto deseja que vivam e sejam saudáveis, os pequenos ficam entregues ao "próprio desejo", que inexiste sem a bússola do desejo do Outro.

■ Outro grupo não consegue aquietar-se de jeito nenhum. São os "meninos maluquinhos", corpos sem dono, hiperativos, cuja atenção se desloca para todo lado sem se ater efetivamente a coisa alguma. Esses estão sempre no "mundo da lua", sempre distantes do que realmente se passa à sua volta.

■ Há, ainda, os que adormecem em sala de aula porque ficaram acordados até tarde jogando, conversando com amigos pelo WhatsApp ou assistindo a séries, enquanto os pais dormiam. Empresários da sua própria vontade, trocam o dia pela noite por não terem a quem obedecer.

■ Outros entram na adolescência sem que os pais tenham percebido que a puberdade já estava presente há algum tempo em seus corpos. Nesses, o encontro com a vertente sexual genital do seu próprio corpo e do corpo do outro, muitas vezes, faz surgir quadros de depressão com efeitos de actingout, passagem ao ato, adições, etc... Estes efeitos são índices de que eles não dispunham das condições para executar o trabalho psíquico necessário à passagem da sexualidade infantil à escolha objetal referente ao seu posicionamento sexual maduro.

■ Há, ainda, os que não vivem sem o celular. Para alguns destes, os aplicativos podem funcionar como organizadores do discurso referente à vida que levam. Neles, escrevem seus sonhos, as atividades que executaram durante o dia, o que comeram durante as refeições, aonde foram, com quem se encontraram, o que fizeram e como qualificaram, um a um, os seus dias. Ao final de cada semana, mês e/ou ano, podem consultar os gráficos que, através de suas sinuosas linhas, mostram os altos e baixos da vida de cada um. Na ausência das conversas familiares responsáveis pela organização das narrativas sobre como levar a vida, esses indivíduos encontram nos aplicativos um recurso, "alguém a quem recorrer, mesmo que não haja nenhuma pessoa pra ouvir" (Lopes, 2018).

 

Em que o psicanalista pode ser útil diante destes fenômenos?

Em psicanálise, o conceito de Nome-do-Pai aponta a via que torna possível tratar tudo o que se refere à relação entre o significante e o gozo, ou seja, tudo o que é relativo à transmissão dos usos e costumes de uma determinada sociedade. O Nome-do-Pai é a coordenada simbólica que orienta essa transmissão e permite diferenciar, na constituição subjetiva dos indivíduos, o plano das identificações sexuadas e o da escolha de objeto.

Após o advento da modernidade, vivemos em um mundo institucionalmente comandado pelo enunciado que classifica todos os homens como livres e iguais. Esse enunciado deixa de fora, entretanto, o fato de que nem todos os indivíduos que compõem a sociedade são homens - há também as mulheres. Além disso, ele se contrapõe ao fato de que, na realidade, ninguém é livre. As crianças não escolhem quando ou onde nascem. Vêm ao mundo numa condição de desamparo, razão pela qual não desfrutam de nenhuma liberdade. A família é a instituição que dá à luz as crianças. É o lugar a partir do qual lhes são transmitidas as referências simbólicas referentes à identificação e ao desejo.

A psicanálise conceitua, através dos complexos de Édipo e de castração, as coordenadas que dão testemunho de que, em decorrência do real da diferença sexual, os objetos de identificação e de desejo não são idênticos, razão pela qual não somos nem livres, nem iguais. Se, por um lado, um dos sonhos provenientes da Revolução Francesa foi o de eliminar a transmissão familiar mediante o isolamento das crianças em relação às suas famílias por meio da escola (Donzelot, 1986), por outro, as famílias nunca deixaram de ser formadas, apesar de hoje se apresentarem através de formas completamente inéditas. Seja de que modo for, é a família que continua operando a função de transmissão ou de socialização primária. Esse é mais um fato que desmente a ideia de que nascemos livres e iguais. Mostra, portanto, que é impossível eliminar da família a execução dessa tarefa. A transmissão do Édipo, da castração, da identificação e do objeto, permanece sendo a estrutura das nossas sociedades ocidentais cristãs, apesar das modificações e dos problemas que testemunhamos no dia a dia (Coelho dos Santos, 2008).

Os discursos pós-modernos procuram desmentir essa realidade factual quando relativizam a autoridade dos semblantes sexuais e geracionais no âmbito familiar. Sua difusão maciça, confusa e anônima faz a autoridade aparecer na mídia e não mais encarnada na palavra dos pais. Esses discursos pregam a liberdade das crianças que, sendo possuidoras de desejos e valores próprios, não poderiam ter suas vontades frustradas. Há pais que caem nessa armadilha e despois acabam por sentirem-se desautorizados, desprestigiados e sem apoio para fazerem valer a autoridade que deveriam ter adquirido quando colocaram os filhos no mundo e pagaram as contas relativas a essa escolha.

A discursividade social que tenta abolir a autoridade dos pais sobre os filhos também desorienta os profissionais que trabalham na escola. Inspetores, professores, coordenadores, direção e profissionais que atuam no SOE têm buscado ampliar seus conhecimentos para estarem à altura dos novos obstáculos impostos ao processo de socialização secundária, agora agravados pelo fato de que a escola precisa, cada vez mais, encarregar-se também de uma parcela da socialização primária. Os professores, por exemplo, enfrentam inúmeros desafios em sala de aula. Além de diferentes reações que fazem objeção ao processo de aprendizagem, deparam-se também com graves manifestações de violência e indisciplina. Precisam lidar com crianças e adolescentes cujo processo de socialização primário foi precário no que diz respeito à inscrição psíquica do lugar simbólico da autoridade. Tais profissionais buscam cursos na tentativa de dar conta desses e de outros obstáculos. Muito mais do que queixarem-se da ausência de formação acadêmica específica, no entanto, eles se sentem despreparados para encarnar a autoridade referente ao lugar que ocupam como "substitutos simbólicos dos pais" e dar, assim, continuidade ao processo de socialização. Por mais que se esforcem, como podem exercer a função da socialização primária, quando os personagens que fundam as matrizes de toda socialização possível não acreditam mais nos semblantes dos quais precisam dar testemunho? É possível que a escola preencha as lacunas deixadas pela educação familiar? Como compartilhar com a família a tarefa de ajudar a educar crianças e jovens a não ser precariamente (Gomes, 1990)? Tanto quanto os pais, os professores, atualmente, tampouco acreditam ter o direito, assegurado pela estrutura simbólica, de reprimir, de frustrar, de privar, de dizer "não". Sempre paira sobre suas cabeças a ameaça de serem acusados de atuarem de forma arbitrária. Temem ser acionados judicialmente por terem ousado impor alguma ordem ou tocar no narcisismo dos jovens tiranos.

O discurso social pós-moderno tanto pode minimizar o peso dos deveres parentais quanto abolir os seus direitos; tanto pode exigir que a escola esteja à altura de suas novas tarefas na socialização primária quanto repreendê-la por não respeitar a singularidade dos alunos quando exige que eles obedeçam às regras gerais de convivência. Diante desses paradoxos, abundantemente difundidos pelas discursividades pós-modernas, somente o discurso psicanalítico tem as ferramentas apropriadas para reintroduzir nelas o valor e a importância da estrutura. A família é uma estrutura porque é dela que emanam as coordenadas simbólicas sobre como viver e lidar com o desejo.

O lugar do analista no discurso é feito substancialmente daquilo que, para cada um, representa a causa do seu desejo, ou seja, o objeto a (Coelho dos Santos & Lopes, 2013). Esse elemento é responsável por designar na estrutura os efeitos de gozo referentes a tudo o que foi rechaçado pelo ego quando de sua constituição. Esta operação de descarte de uma parte da realidade feita pelo ego tem o objetivo de preservar, através do enredo fantasmático, certo tipo de satisfação referente ao tempo em que o ego, como objeto, ainda se encontrava em estado de indiferenciação em relação ao Outro primordial. Se o analista opera, portanto, a partir da localização do objeto a no lugar de agente do discurso, isto não significa que ele ocupe esse lugar para dar concretude material ao objeto. Ao contrário, a finalidade desta localização do analista é promover o aparecimento do gozo referente à posição de objeto do analisante no discurso através do qual se queixa, sem saber como se acha aí enredado. O encontro com a sua posição de gozo na fantasia inconsciente é o que pode promover o processo de subjetivação necessário à retificação subjetiva. Só o surgimento de um juízo crítico em relação a si mesmo pode dar lugar à responsabilidade subjetiva em relação ao gozo.

Ao fazer uso da interpretação do gozo em jogo, o analista visa reincluir no discurso todo o peso imaginário que lhe dá suporte, já que se trata de fazer alguém entrar em contato com o "caráter ficcional de sua interpretação da vida, ou seja, descobrir que, ao ler a vida, [cada um sempre] coloca 'algo de si'" (Forbes, 2012, p. 56). O trabalho analítico tem o objetivo de facultar ao sujeito a oportunidade de vir a se responsabilizar pelos efeitos do seu próprio gozo no laço social.

O que é rejeitado pela atividade de pensamento egoica é justamente a satisfação pulsional referida à posição objetal primitiva do sujeito. No plano fantasmático, a vivência dessa experiência permitiu ao indivíduo criar a fantasia de algum dia ter estado em posição de exceção em relação às restrições que caracterizam a vida social, ou seja, ao complexo de castração. O desamparo que caracteriza a estrutura inicial do ser humano e a indiferenciação que caracteriza as inscrições primárias referentes às relações do sujeito com o mundo externo dão lugar à fantasia de que teria havido um tempo em que o gozo não era regulado pela castração. Essa fantasia é uma estrutura. Uma vez organizada, torna-se indestrutível. É ela que se impõe no laço social como determinante da posição subjetiva de cada um. Reincluir esse gozo implica submeter ao processo secundário de pensamento um tipo de funcionamento mental arcaico do ego que determina suas escolhas, mas que nunca havia sido reconhecido como originalmente seu.

A psicanálise é o único discurso em vigor na atualidade que ainda zela pela manutenção do lugar original da estrutura. Por essa razão, somente um psicanalista pode encarregar-se verdadeiramente da tarefa de mostrar a distinção entre o que se refere ao campo do gozo e o que é da ordem do desejo e, a partir disso, levar em consideração o fato de que a castração é inerente a qualquer posição desejante.

Quando os significantes mestres da tradição já não são mais os orientadores hegemônicos do processo de socialização, cabe ao analista oferecer a garantia de que não há socialização que possa prescindir da autoridade desses significantes. Segundo Lacan, "a psicanálise é essencialmente o que reintroduz na consideração científica o Nome-do-Pai" (Lacan, 1998b, p. 889). Se, por um lado, o desejo do analista é o responsável pela execução dessa tarefa, por outro o seu discurso não pode ter a mesma lógica do discurso religioso. Reinserir o Nome-do-Pai significa lembrar que a dimensão do inconsciente, definido por Freud como a verdadeira realidade psíquica, é ineliminável. A responsabilidade do trabalho analítico requer situar o objeto a como agente do discurso para restituir o saber em jogo sobre a verdade como causa do desejo O desejo do analista tem uma relação fundamental com a responsabilidade de reinserir o inconsciente, ou seja, a causa sexual, como agente de toda discursividade, especialmente no que se refere ao processo de socialização no mundo contemporâneo. Isso não será possível sem que o analista alcance "em seu horizonte a subjetividade de sua época" (Lacan, 1998a, p. 322) e que, além disso, saiba orientar-se nela. É por esta razão que, atualmente, os analistas vêm sendo cada dia mais convocados pelas famílias e pelas escolas como parceiros na tarefa de socialização.

 

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Recebido em: 01/05/2020
Aprovado em: 20/09/2020

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