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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.30 Belo Horizonte ago. 2007

 

 

Psicanálise, poesia e educação: a imagem furo e a leitura poética1

 

Psychoanalysis, poetry and education: the hole image and the poetical reading

 

 

Anchyses Jobim Lopes2

Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Histórico do trabalho de promoção da leitura e da questão sobre ética e literatura. A linguagem poética como essência da leitura. Analogia entre poesia e sonho. Diferença entre construção e invasão do Imaginário pela imagem. Conceituação de imagem-furo e imagem-muro. Relação desta com os meios de comunicação e a violência.

Palavras-chave: Leitura, Poesia, Imaginário, Imagem-Furo, Imagem-Muro.


ABSTRACT

Historical of the work of the promotion of reading and of the relationship between ethics and literature. The poetic language as essence of the reading. Analogy between poetry and dream. Diferences between construction and invasion of the Imaginary by the image. Concepts of hole-image and wall-image. Relationship of the last with the mass media and violence.

Keywords: Reading, Poetry, Imaginary, Hole-image, Wall-image.


 

 

Há muito que o trem vai longe das últimas cidades:
Segue em campos de sombra, (...)
Entre norte e rumo, entre sol e azul, entre tempo e abril. (...)
Joaquim Cardozo, Visão do Último Trem Subindo ao Céu.

 

Introdução

Quando convidado a participar no evento comemorativo dos 150 anos do nascimento de Sigmund Freud, realizado pelo Departamento de Psicologia da UFPR, propus apresentar os desdobramentos mais recentes de uma de minhas linhas particulares de pesquisa: Leitura e Psicanálise. Meu trabalho de doutoramento versou sobre uma Teoria da Leitura (Lopes, 1996). A partir dele fui convidado a trabalhar no Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER), da Biblioteca Nacional/Ministério da Cultura. Durante seis anos participei de mais de vinte encontros em dez estados, além de palestras na Casa da Leitura, a sede do PROLER, no Rio de Janeiro.

Constituiu uma época de intenso aprendizado: aplicar os conceitos e a experiência psicanalítica, na tentativa de compreender e superar dificuldades e até a impossibilidade do ato da leitura. O público-alvo era composto de professores de primeiro e segundo graus, embora, dos encontros, também, participassem alguns alunos e professores universitários, bibliotecários e promotores locais da leitura. Além desta parte prática, houve uma mais teórica.

Durante os anos em que participei do PROLER (1996-2002), a entidade foi dirigida, primeiro, por uma parceria entre a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), com sede no Rio de Janeiro, e a Associação de Leitura do Brasil (ALB), sediada em Campinas e apoiada pela Faculdade de Educação da UNICAMP. Posteriormente a Fundação passou a conduzir sozinha o PROLER. Estas duas entidades possuíam filosofia e ideologia opostas. A Fundação, tinha por base a promoção de textos literários, mas sem embasar, pela teoria esta escolha, e utilizava lemas do tipo: “ler faz bem”, “ler faz subir na vida” e “ler melhora a pessoa”. A ALB, com uma sólida formação na pedagogia, e com a influência do pensamento de Paulo Freire, era movida pela idéia de que a leitura é importante por permitir o acesso a informações indispensáveis ao exercício da cidadania, e que leitura não se restringe apenas à literatura, mas que leitura é “leitura de mundo”.

Para a ALB os motes da Fundação revelavam o ápice de uma ideologia burguesa, que privilegia ler textos literários por que isto é “de bom tom”. Foi-me confiada a tarefa de fornecer um melhor embasamento teórico aos princípios da Fundação, ao mesmo tempo em que, a ALB abriu-me todas as portas, tanto através dos Congressos de Leitura do Brasil, sediados na UNICAMP, quanto através suas publicações (Lopes 1998, 2001, 2004), para que defendesse um trabalho teórico que, em parte, era o oposto de seus princípios. Em parte, porque sempre me foi imperioso conciliar este trabalho com a importância do ato da leitura para a construção da ética e da cidadania.

Além desta trajetória de aplicação da Psicanálise à Pedagogia, o questionamento teórico-prático obrigou-me a repensar várias questões da própria Psicanálise. Sendo a imagem fundamental para a construção do ato da leitura, fui obrigado a resgatar sua função, bem como a importância do Imaginário, ambos reduzidos, por certos chavões cristalizados na terminologia psicanalítica, em estereótipos negativos. Se por um lado, houve um resgate da imagem e do Imaginário, por outro, o trabalho na difusão da leitura colocou-me de frente com o antagonismo entre a imagem construtora da leitura literária e a imagem veiculada pelos meios de comunicação predominantemente visuais, a televisão e o cinema. Neste caso, a imagem e o funcionamento do Imaginário possuem responsabilidade por serem alguns dos motivos pela violência, tão cotidiana na sociedade do espetáculo, imposta pela globalização. Como compreender esta dupla face da imagem, seriam formas diferentes de imagem, e de que modo o registro do Imaginário, ao se configurar com os do Simbólico e do Real, poderia modificar tanto, qualitativamente, a função da imagem?

 

As Várias Formas de Leitura: um Olhar Psicanalítico

Existem vários tipos de leitura. Podemos postular diferentes classificações. Utilizemos provisoriamente a questão epistemológica da relação sujeito/objeto. Há a leitura que rotulamos de instrumental simples, que jocosamente exemplificamos como sendo a leitura do “manual de geladeira”. Neste tipo existe uma correlação absoluta sujeito/objeto. Se a geladeira não funcionar, ou o manual estiva errado, ou o aparelho com defeito. A partir da leitura instrumental simples, existem vários tipos de leitura didática. A leitura didática pode variar desde a exclusivamente instrumental – a apostila para “decoreba”-, até o texto que transmite novos conteúdos, assim como o caderno de exercícios que, de fato, visa exercitar novas aptidões e a criar de novas soluções.

O caderno de exercícios pode ser nomeado de leitura instrumental complexa. Com a leitura que permite a apreensão de novos conteúdos, passamos ao rol das leituras informativas. Neste último grupo há a leitura jornalística, cujo grau de fidedignidade deve ser julgado pelo leitor, leitura que se abre a interpretações, ainda que dentro de certos limites. A correlação sujeito/objeto torna-se fonte de juízos pelo leitor: o jornal é confiável, o comentarista político é tendencioso, que interesses há por detrás?

Mas quando se fala da importância da leitura, do ato de ler e dos livros, sempre se pensa em algo além das formas de leitura instrumental ou informativa. Pensa-se na leitura de textos literários, de qualquer tipo, para qualquer idade. Na leitura literária a relação sujeito/objeto pende para o pólo subjetivo. O que implica, também, em que o problema filosófico da Verdade não está mais ancorado em uma correlação epistemologicamente simples e instantânea, de uma adequação entre sujeito e objeto, mas em um processo de reconstrução da Verdade dentro do sujeito (que podemos denominar, a partir do existencialismo e da filosofia existencial, de desvelamento da Verdade).

Com a leitura do texto literário, entramos em um novo domínio, onde a classificação epistemológica segue adiante com o auxílio da Psicanálise. A leitura do texto literário implica que se deve esquecer que tudo que há defronte de si, é uma folha com sinais impressos. Ao contrário da leitura instrumental ou da leitura informativa, o objeto ao qual se dirige a atenção não é externo, mas recriado dentro do leitor. Seja um romance, a leitura de uma peça de teatro ou um poema, o leitor constrói dentro de seu eu uma imagem3 e um sentimento. Ou cria várias imagens e sentimentos, como nos casos do romance ou da peça de teatro, em que, além de se esquecer de que se trata de simples papel impresso o que tem diante de si, as imagens de uma história passam a se desenrolar dentro do eu do leitor.

Tudo se passa como se dentro de si, o leitor possuísse um teatro ou uma tela de cinema. Adentramos o reino de um tipo de devaneio em que somos conduzidos pelo autor. Mas, ao contrário do sonhar acordado diurno, passageiro e ancorado em alguma breve fantasia, comumente erótica e narcísica, o devaneio da leitura conduz-nos a uma viagem mais longa e ampla.

Falar de sonho e de devaneio conduz diretamente à Psicanálise. A Interpretação dos Sonhos de Sigmund Freud (Freud 1978) contém em seu bojo, dentre muitas outras coisas, uma teoria da linguagem. Todo sonho ou imagem de sonho pode ser traduzido por uma frase, Freud a denominou pensamento onírico. Há uma correlação direta entre imagem e linguagem. Mas a frase que se transforma em imagem, e vice-versa, não é uma frase do que chamamos de prosa, mas forma uma frase poética de grande beleza e significado4.

No pensamento onírico, dentre várias outras características, predomina uma linguagem condensada, com poucos conectivos, quase exclusivamente composta de substantivos, prenha de duplos sentidos, de usos novos e inusitados das palavras. Tanto no sonho quanto na linguagem poética, só o essencial é esboçado. A recriação da imagem pelo leitor deixa a cargo da sua própria imaginação inventar e preencher todas as lacunas. Preenchimento e invenção que diretamente o conduzem a infinitas associações, conscientes ou inconscientes. Assim, mais que no devaneio, podemos pensar no termo imaginação=imagem/ação. Usando os princípios freudianos da interpretação dos sonhos, conceituamos (Lopes 1996) como sendo a essência da leitura literária um tipo de imagem, aquela que se constitui como sendo o “espaço” intrasubjetivo recriado através da linguagem poética.

Mas a relação entre a imagem do sonho e da leitura nos conduz a outros mistérios. A descrição detalhada, o manual de geladeira que não deixa margem para outras interpretações, é domínio da prosa. As leituras instrumentais e informativas utilizam-se exclusivamente da prosa. E de uma prosa denotativa de pura linearidade, de sentido único e único sentido. A leitura literária oscila entre trechos em prosa e trechos em poesia 5. Mas, o que genericamente chamamos de poesia, possui outras semelhanças com o sonho do que apenas a analogia com o pensamento onírico. A linguagem poética se utiliza de uma linguagem conotativa, intensamente polissêmica. Com tantos sentidos, assim como o sonho, também, se desdobra em tantos personagens, cenários e temas? De onde vieram? Para quê: o teatro, o cinema, a televisão ou romance, porque mesmo despertos buscamos outras estórias que não nossa? Por que, só um eu, não nos é suficiente?

Os seres humanos são por natureza criaturas que possuem prazer na mímese (idéia que vem desde a “Poética” de Aristóteles (1992)), isto é, tanto na representação ou imitação do real pela arte, quanto na imitação do gesto, voz e palavra de outrem. As imagens interiores provocadas pela leitura literária, que também podem ser evocadas pela contação oral, metamorfoseiam o leitor em diferentes personagens, transportam-no para épocas de culturas e crenças que já não mais existem, ou onde nunca poderá ir. A leitura literária torna possível de viajar no tempo e no espaço, e não como mero espectador de um documentário, mas participante em uma experiência de “estar na pele de alguém”. Destas viagens não se retorna impunemente. Definiu o Nobel de Literatura Elias Canetti (1990): o poeta-escritor é o guardião das metamorfoses. Cabe a cada leitor reativar esta herança, inventar seu roteiro de viagem e arriscar as transformações.

Num mundo onde importam a especialização e a produtividade, que nada vê senão ápices [...] em uma espécie de limitação linear [...] que multiplica irrefletidamente os meios para sua própria destruição [...] que poderia se caracterizar como o mais cego de todos os mundos, parece de fundamental importância a existência de alguns que, apesar dele, continuem a exercitar o dom da metamorfose6. (Canetti, 1990, p. 281-282).

A leitura literária pode, então, ser vista como compreendendo também uma dimensão ética. Ter vivido “na pele” de outro, muda o modo como nos enxergamos á nós mesmos e à sociedade em que estamos. Este estar dentro “da pele” de outrem, faz com que ele seja reconhecido como alguém com vontades, desejos e história própria. Quando vejo outros a sua semelhança posso passar a reconhecê-los como seres humanos e que, como todos os seres humanos, cada um se constitui como um fim em si mesmo, e não um mero objeto para que eu satisfaça minha vontade. Uma ética das diferenças, que só pode ser compreendida a partir de uma experiência íntima das diferenças. A partir desta lógica é que nos foi possível defender a leitura literária além dos chavões: “ler faz bem”, “ler ajuda a pessoa”, “ler faz subir na vida”. A leitura literária passa, então, a ser uma das raízes construtoras da cidadania. Uma raiz necessária, embora, por si mesma sozinha, possa não ser sempre suficiente.

Caso tentemos compreender, pela Psicanálise, os mecanismos de como opera a mímese, seremos conduzidos aos conceitos de: identificação, projeção e identificação projetiva. Conceitos que são algumas das dimensões do afeto e dos teatros do corpo, que nos ajudam a compreender o que está por detrás do dom humano universal da metamorfose. Os mesmos conceitos podem explicar os fenômenos da transferência e contratransferência, sem os quais, a essência do método psicanalítico – livre associação e atenção flutuante – tornar-se-ia impossível. Tanto mais pelo fato que livre associação e atenção flutuante não podem ser obtidas através de uma experiência que fosse puramente intelectual, mas de um afeto que, muitas vezes, atinge uma dimensão corporal.

Mais impossível ainda seria, sem estes conceitos, tentar compreender a Psicanálise como uma ética: da recusa de qualquer poder sobre outrem, que a hipnose ou o carisma pessoal podem exercer, de não impor a outrem minhas crenças religiosas ou políticas, do reconhecimento dos limites impostos por minha ideologia social, de respeito pelas diferenças sexuais. Esta comparação entre leitura literária e Psicanálise sugere vários corolários. A velha questão, se a Psicanálise é uma ciência, pode ser respondida: não, não é uma ciência, trata-se de uma poética. Pertence ao desejo, ao inconsciente de cada paciente reinventar a Psicanálise, por meio de seu roteiro pessoal de viagem, de contar e recontar suas estórias, de arriscar novas metamorfoses.

A defesa da imagem poética como essência da leitura literária, obteve sua comprovação prática, através das oficinas e mini-cursos em que trabalhamos a difusão da leitura no PROLER. Mas, este mesmo trabalho, nos colocou diante das várias dificuldades encontradas na transformação da palavra impressa em imagem. Grande parte desta dificuldade origina-se na própria questão da imagem, mas de uma outra dimensão da imagem, que a poética.

 

A Pura Violência do Imaginário Puro

No trabalho prático de difusão da leitura, deparamos com vários obstáculos. Existem todas as dificuldades esperadas: sócio-econômicas, da politicagem, do desprezo de grande parte dos que supostamente são os encarregados da educação, tanto pela leitura quanto pela própria educação, dentre outras. Mas, todos estes são empecilhos externos. Os obstáculos internos, daqueles que valorizam a leitura, mas não conseguem exercê-la ou transmiti-la, foram o objeto principal de nossa prática e teorização. Superar obstáculos internos sempre constituiu um dos principais desafios da Psicanálise.

A principal dificuldade para leitura literária, digamos, o “pulo do gato”, é a incapacidade de construção da imagem poética. Um dos principais obstáculos para que se produza esta imagem, é a competição com outro tipo de imagem, a predominantemente visual: vídeo-game, televisão, cinema, internet. Seria inútil e maniqueísta a mera condenação destes veículos de comunicação. Mesmo o vídeo-game, além de divertido, pode ser muito instrutivo. Mas, há um consenso de que, na sociedade do espetáculo contemporânea, nas imagens destes meios há uma predominância de: agressividade, erotismo e repetição. Também surgiram sintomas contemporâneos de dependência à imagem, tão graves como das dependências de drogas. Para compreender estes sintomas atuais, o uso da conceituação lacaniana de Imaginário, no que este possui de mais negativo, é muito útil.

Falham todas as tentativas simplistas de ligar, diretamente, a violência dos dias atuais, com a violência dos meios de comunicação. Por exemplo, as pesquisas se a agressividade de desenhos animados conduz a uma conduta agressiva em crianças, não estabelecem uma relação direta, ou produzem dados conflitantes que podem ser subscritos tanto pelos defensores, ou quanto pelos críticos da tese inicial. Contudo, concordamos com Maria Rita Kehl (2004) quando afirma haver um consenso sobre sociedades industriais contemporâneas serem sociedades muito violentas, violência que não pode ser explicada apenas pela exclusão social. Concordamos quando escreve que sustentaria “a tese de que nas sociedades regidas pela cultura de massa [...] a tirania da imagem é avassaladora [...] – há sim, um tipo de violência própria do funcionamento do Imaginário em si7”, e a violência do Imaginário independe dos conteúdos das imagens.

O cinema e a televisão, sem falar dos jogos eletrônicos, veículos que se utilizam da imagem já pronta, impõem imagens em tal velocidade, e uma intensidade de conteúdos que, muitas vezes, não deixam ao espectador tempo para digeri-las. Ao contrário da imagem poética, cujo desenvolvimento temporal pertence à sua própria essência, a imagem dos meios de comunicação é instantânea. Se, freudianamente, conceituarmos trauma como uma quantidade de energia muito grande em um espaço de tempo muito curto, que causa uma marca – fixação – incapaz de ser elaborada, e cuja defesa psíquica é mantê-la inconsciente, compreendemos como este tipo de imagem é potencialmente, patológico. Soma-se o fato que, as imagens veiculadas são por demais agressivas e/ou erotizadas. De acordo com o aforismo da psicanálise “o que se sofre passivamente, inconscientemente se é obrigado a repetir ativamente”, podemos refletir sobre a compulsividade e a dependência - características de todo vício - criadas deste modo, e de como constituem um estímulo ao agir sem pensar.

O trabalho do pensamento exige um esforço inicial. Só passamos do processo primário ao processo secundário, porque somos impedidos de outra forma mais direta e rápida de satisfação. No registro do Simbólico também há prazer, mas mediado pela linguagem, por uma cadeia de significantes que sempre desliza. Cada vez que um significado é obtido, a cadeia estanca e ocorre uma satisfação, mas parcial, porque, em seguida, a cadeia recomeça seu trabalho de Sísifo. Trabalho exigido também pelo Real, sempre que insiste sempre em invadir o Simbólico, invasão que revela a ignorância do sujeito. A linguagem poética, conotativa, deixa sempre um resto inexplicável do Real e, ao mesmo tempo, sua polissemia jamais pode ser esgotada, o que também fura qualquer suposição de um conhecimento absoluto. Só a partir da percepção da própria ignorância, pode-se, socraticamente, advir à busca de conhecimento e, daí o pensamento sempre se enriquecer um pouquinho.

Assim, compreendemos como a imagem traumática sedimentada no registro Imaginário opera em sentido inverso ao da imagem da leitura literária. A imagem traumática busca uma satisfação total, o conceito lacaniano de um gozo não fálico, que se insere no de Freud de pulsão de morte, por que a satisfação: absoluta, completa e eterna, seria a morte. Por permanecer inconsciente, a imagem traumática não acrescenta, qualitativamente, nada a si, a não ser sua intensificação quantitativa. Aqui, nada revela ignorância, há ilusão, ou de um saber absoluto, ou de uma completa inutilidade de toda busca pelo saber.

A junção entre os registros do Imaginário e do Real é de exclusão: ou um ou outro. Logo, toda crítica a este saber absoluto, ou de oposição à busca de um gozo além do fálico, será respondida com violência. Também se postula a idéia de que aqui, ou não há possibilidade de que uma linguagem se insira, ou quando o faz é puramente denotativa. Denotação pura serve apenas de relato a passagens ao ato que já ocorreram, assim como não permite qualquer brecha em que se insira um segundo ou terceiro sentidos. Pode-se ter encontrado a essência do discurso perverso da contemporaneidade (Queiroz, 2004), e isto se esta fala sequer merece o rótulo de discurso, e não um mero simulacro.

Mesmo sem a crítica e o limite, a imagem predominantemente no registro do Imaginário, por si mesma, causa violência. Na medida em que a imagem traumática é sempre vivida como uma invasão do Outro, aumenta seu grau de patologização. Esse Outro encarnado é sempre persecutório para o sujeito, pois é uma figura que tudo sabe deste sujeito, do seu desejo, que antecipa para o sujeito muito mais do que ele sabe de si, o que sempre provoca uma reação paranóica. Kehl (2004) chama atenção para a ubiqüidade da televisão, que hoje, além da sala ou do quarto, encontra-se em qualquer lugar público: restaurantes, salas de espera, rodoviárias. Ou seu aparente oposto, espetáculos que ocorrem em ambientes fechados repletos de câmaras ocultas, seja o Big Brother televisivo, seja o shopping-center. Além de ser o Imaginário onde o corpo se ancora numa fortaleza narcísica, donde toda alteridade é vivida como ameaça, e a única resposta a agressividade, o caráter persecutório das imagens-chave da contemporaneidade acaba produzindo comportamentos violentos, agressividade contra algo que, por ser onipresente, é impossível de ser combatido, e o vizinho mais próximo será a próxima vítima.

O Imaginário, conceituado por Lacan, inicialmente, a partir do estádio do espelho, é causa de um engodo ligado a uma experiência de clivagem do sujeito, das ilusões do eu, de uma relação intersubjetiva em que sempre é introduzida alguma coisa fictícia. Mas o Imaginário é o registro dos sentimentos e, apesar da ambivalência universal dos seres humanos, também existe como reservatório narcísico e sede da imagem do eu e do corpo. E, por mais alienantes que sejam, o eu e o corpo sejam, conferem plenitude ao desejo, mesmo que este seja o desejo do Outro.

Mas, se o Imaginário também é o registro dos sentimentos e reservatório narcísico, toda experiência necessita dele para ter algum grau de corporeidade, de afeto, de plenitude existencial da vivência. Sem a congruência do Simbólico nenhuma experiência possui sentido, mas, se no domínio exclusivo de seu registro, a experiência não possui densidade, aparenta uma desrealização, o próprio sentido deixa de ter sentido porque não é realmente sentido como vivido, experimentado. Aplicada à leitura compreende-se como a prosa pura, “o manual de geladeira”, localiza-se completamente no registro do Simbólico, pode ser muito útil, mas é vivida como algo totalmente externo ao sujeito, clivado ou não.

O registro do Imaginário não pode ser satanizado. Real/Simbólico/Imaginário, todos os três registros coexistem e se interligam. E vimos por que, estando no registro puro do Simbólico, o “manual de geladeira” ou o tratado de lógica clássica, exceto para os técnicos em geladeira ou lógica, não é a mais excitante das leituras. A imagem poética, como essência da leitura literária, necessita de uma âncora também no Imaginário. A questão da imagem necessita ser problematizada, entre a de uma imagem exclusivamente do registro do Imaginário, e outra que compartilhe também do Simbólico. Problematização que requere um aprofundamento teórico mais denso.

 

Imagem-Furo e Imagem-Muro8

Quando descrevemos a imagem desencadeada pela poesia como essência da leitura literária, propomos um fenômeno mais complexo que uma imagem que seja mero registro do Imaginário. Neste as imagens são estáticas, narcísicas, especulares. A imagem poética compõe-se de uma sucessão imagens e associações, conscientes e inconscientes. Se falarmos de sucessão, falamos de tempo, sem o qual nenhuma linguagem humana pode existir. Todas as linguagens, principalmente aquela construída por uma sucessão de imagens, constroem um discurso, termo que provem do latim discurrere: percorrer, atravessar. Bem, leva-se algum tempo para percorrer ou atravessar o que quer que seja. Origem existencial do sentimento do tempo, a percepção da finitude e do limite, a presença do Ser-para-morte (forma máxima de castração, esqueleto vestido de negro com uma foice).

Por ser transmitida pela palavra, a imagem poética também possui uma face voltada ao registro do Simbólico. A poesia alcança a dimensão de determinar o sujeito em sua relação com o desejo, tanto de modo intra-subjetiva, quanto de modo intersubjetiva. Revela-se que a imagem poética é criada na junção entre o Imaginário e o Simbólico, a dupla-face entre: imagem e linguagem, entre sonho e palavra, entre o sem-tempo e o fluir do tempo. Além do que, esta confluência conduz a um terceiro termo, o Imaginário e o Simbólico, borromeanamente, confluem no objeto a. Mas a imagem poética, em sua aceitação implícita da temporalidade, não tenta rejeitá-lo, mas procura reconhecer e domesticar a falta. Na medida em que é tempo, a própria imagem poética já é em si mesma falta, assim podemos conceituá-la como imagem-furo, imagem que conjuga o Imaginário e o Simbólico, que além de aceitar a falta - castração e diferença -, tem em si o dom da inclusão: um e outro. Aliás, na tópica do Simbólico/Imaginário/Real, a junção S-I também foi descrita por Lacan (1979) como o local do amor9.

Em oposição à imagem-furo, temos a imagem exclusivamente do Imaginário: a imagem-muro. Estática e atemporal, sem a linguagem como mediação, ou com um simulacro apenas denotativo, a imagem-muro funciona em antagonismo ao reconhecimento da falta, nega e combate qualquer ausência ou furo, por mais inútil que seja este, combate porque aquilo contra o qual luta sempre retorna. A imagem-muro, também, negando a castração e a diferença, o comportamento por ela induzido é intrinsecamente perverso. No registro do imaginário, o pai é uma figura infantil, concreta e corporal, figura sem falta, que é a lei, uma lei absoluta; enquanto que o pai do Simbólico não é mais completo e absoluto, torna-se aquele que representa a falta, que faz a lei. O pai Imaginário encarna o saber absoluto do Outro, sendo uma figura persecutória de poder ilimitado. À sua semelhança, a imagem-muro, além de excludente e impositiva em sua necessidade de satisfação, representa não apenas uma lei absoluta, como impõe que se persiga quem dela não comunga - no fundo uma perversão travestida de lei. Agora, se nos direcionarmos a outra junção do Imaginário, a com o Real, nesta junção sempre ainda mais se acentua a exclusão: ou um ou outro. Aliás, na tópica Simbólico/Imaginário/Real, a junção I-R também foi descrita por Lacan (1979) como o local do ódio.

 

Conclusão

A questão da leitura e do estudo das imagens-furo e muro conduz a um caminho tão valioso para Freud: a intersecção entre Psicanálise e Arte. Embora o fundador da Psicanálise, muitas vezes, tenha se aproveitado da Arte apenas como documentação para ilustrar suas idéias, a riqueza de suas citações literárias revela, de modo, o mais claro possível, seu amor pela literatura e pelos textos clássicos do ocidente. Na mencionada A Interpretação dos Sonhos estas referências ocorrem em número e freqüência tão grandes, que também pode ser lido como um cânone de crítica literária. Ao mesmo tempo indicam o quanto Freud necessitou da literatura, em especial da poesia, para contextualizar e exemplificar suas idéias.

Segundo os detratores da Psicanálise, um dos grandes defeitos de seu fundador foi à ambição, notadamente, a ambição explicativa. Sem dúvida, a sabedoria popular, da qual Freud tanto apreço dava, em oposição ao saber acadêmico, foi justa em cunhar o chavão “Freud explica”. Da origem da psique na infância, às origens da cultura e da humanidade, da clínica individual as hipóteses sobre os grandes fenômenos sócio-culturais, Freud não se colocava onde queriam colocá-lo. Freud, em tudo, assemelhava-se a Sócrates e ao amor, completamente atópico. Neste caso, indo desde a experiência na Pedagogia e na promoção de leitura, até a tentativa de explicação para a violência contemporânea e para os males da cultura da globalização, o presente texto é absolutamente fiel à ambição freudiana. Os conceitos sim, devem ser cerceados, num regime de liberdade vigiada. Freud sempre reviu suas idéias, sempre manipulou e refez suas teorias, com a intimidade de quem usa e reaproveita um chinelo velho. Já muitos seguidores de Freud (e mais ainda de Klein e Lacan), pintaram chinelos de dourado, colocaram sobre um pedestal de mármore, com uma campânula de vidro por cima. Idolatria há para todos os gostos.

Tentar compreender problemas contemporâneos por meio de conceitos psicanalíticos, e criticá-los quando encontram seus limites, teorizar sobre novos desdobramentos e conceitos, porém mantendo o fulcro de uma linha de pesquisa e o apreço à Verdade, tudo isso se parece com a essência do que Sigmund Freud nos legou. Considero, portanto, a melhor forma de homenageá-lo no sesquicentenário de seu nascimento.

 

Referências

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KEHL, M. R. Televisão e violência do imaginário. Em E. Bucci e M. R. Kehl, Videologias – ensaios sobre a televisão. São Paulo: Boitempo, 2004        [ Links ]

LACAN, J. O Seminário 1 – os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979        [ Links ]

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QUEIROZ, E.F. A Clínica da Perversão. São Paulo, Editora Escuta, 2004.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Marechal Mascarenhas de Morais 132/308,
Copacabana, Rio de Janeiro, RJ, 22030-040
E-mail: anchyses@terra.com.br

Recebido em 18/05/2007

 

 

1Trabalho apresentado oralmente como parte do evento A Arte do Inconsciente: Contribuições do Pensamento de Freud à Arte e a Cultura- Freud 150, em palestra na Universidade Federal do Paraná , 15 de setembro de 2006.
2Médico e Bacharel em Filosofia, ambos pela UFRJ; Mestre em Medicina (Psiquiatria) e Mestre em Filosofia, ambos pela UFRJ; Doutor em Filosofia pela UFRJ; Psicanalista e Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro; desde 1984 leciona em cursos de Graduação em: Psicologia, Pedagogia e Letras; também leciona em cursos de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica e de Formação Psicanalítica.
3Tomemos o cuidado de não confundir os termos imagem e imaginação, com a conceituação do registro do Imaginário pela Psicanálise.
4Freud, S. (1978). The interpretation of dreams (1st volume). Em S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud, IV .London, The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis; pg. 278.
5Referimo-nos como poesia principalmente o poema curto, no caso de poemas longos como A Divina Comédia existe esta oscilação entre criação e não-criação de imagens, isto é entre poesia stricto sensu e prosa.
6Canetti, E (1990). O ofício do poeta. Em A consciência das palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 1ª reimpressão; pgs 281-282.

7Kehl, M. R. (2004). Televisão e violência do imaginário. Em E. Bucci e M. R. Kehl, Videologias – ensaios sobre a televisão. São Paulo: Boitempo; pg. 88.
8Termos que foram propostos pela Profª Tânia Rivera, em seus seminários sobre Psicanálise e Arte, ministrados no Corpo Freudiano do Rio de Janeiro em 2006.
9Lacan, J. O Seminário 1 - Os escritos técnicos de Freud. A pertença simultânea aos registros do Imaginário e do Simbólico também foi descrita como o gozo do sentido. Entretanto como, até o presente, o Seminário 22 ainda não foi editado publicamente, tanto no exterior como no Brasil, só temos acesso a uma cópia mimeografada, cuja qualidade do texto não autoriza uma citação mais séria. Quanto ao Seminário 23 – Le Sinthome -, recentemente publicado na França e no Brasil, configurando uma revisão dramática na tópica do Real/Simbólico/Imaginário, merece também conduzir a um trabalho de revisão das idéias do presente artigo, um trabalho que complemente a compreensão do ato da leitura, com sua contrapartida, a escrita, e, também, como sinthoma e Nome-do-Pai.

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