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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. n.32 Belo Horizonte nov. 2009
Mecanismos oníricos e figuras de linguagem
Oniric mechanisms and figures of speech
Luís Maia1
Sociedade Psicanalítica da Paraíba
RESUMO
A partir do sonho de um paciente, o autor contesta, com base em Laplanche, a assimilação lacaniana dos mecanismos oníricos, condensação e deslocamento, às figuras de linguagem metáfora e metonímia. Em seguida, analisa o estatuto das metáforas do inconsciente enquanto “esquecidas” da tensão semântica que lhes deu origem.
Palavras-chave: Elaboração onírica, Condensação, Deslocamento, Metáfora, Metonímia.
ABSTRACT
Based on a patient’s dream and taking the Laplanche theoretical perspective, the author questions the lacanian assimilation of oniric mechanisms – condensation and displacement – by the figures of speech known as metaphor and metonymy. This is followed by an analysis of the statute of metaphors of the unconscious as “forgotten” links in the semantic tension, which originated them.
Keywords: Oniric elaboration, Condensation, Displacement, Metaphor, Metonymy.
Depois de Lacan, pretende-se evidente a assimilação dos mecanismos oníricos, condensação e deslocamento, às figuras de linguagem metáfora e metonímia. A análise de um sonho permite discutir esta suposta evidência.
Era o meu terceiro ano de estágio com Paulo Sette, no ambulatório de psiquiatria do velho Pedro II, no Recife. O diretor de uma escola agrícola do interior encaminhou para atendimento um estudante com um quadro depressivo-ansioso, no qual se destacava uma dor de cabeça tão forte, que o impedia de estudar. Discutido o caso e descartada a possibilidade de um problema neurológico, ele me foi encaminhado para que o atendesse em psicoterapia.
Num tom de voz lacrimoso, de quem implorava por ajuda, começou por me pedir desculpas porque ainda não tinha lido Freud. Para o jovem intelectual que ele era, submeter-se a uma psicoterapia sem essa leitura prévia parecia indesculpável. Não queria, certamente, que o tomasse por um adolescente igual aos outros, igual aos colegas que desprezava, porque “só pensavam em futebol e mulher”. Esses colegas a quem jamais ocorreria a preocupação de me fazer saber, através de uma confissão de ignorância, que não ignoravam o que era psicanálise e quem era Freud. Era um rapaz complicado!
Vinha de uma família muito pobre, não conhecia o pai. A mãe era lavadeira, a irmã prostituía-se. O diretor, tendo descoberto seu potencial, protegia-o na escola agrícola, pedindo-lhe em troca uma espécie de reforço junto aos colegas, esses colegas que, “por só pensarem em futebol e mulher”, fraquejavam nos estudos. Ora, a dor de cabeça impedia-o de exercer a função que lhe tinha sido confiada e que lhe dava inegável prestígio. Estava numa situação difícil.
Morando na escola, distante do Recife, só podia vir ao ambulatório uma vez por semana. E, uma sessão atrás da outra, era sempre a mesma queixa: as dores de cabeça persistiam, não conseguia sequer estudar, quanto mais ajudar os colegas. O diretor era compreensivo, não lhe exigia o que ele não podia, mas, para além do sofrimento físico, atormentava-o, dizia-me em tom lamuriento, a impossibilidade de cumprir suas funções. As queixas em torno do sintoma ocupavam boa parte da sessão e clamavam pela urgência de uma ajuda que eu, partilhando da sua ansiedade, sentia-me incapaz de dar. Foi então que me trouxe este sonho.
Viajava à Lua num foguete. Lá chegado, saiu a passear com uma moça. E davam grandes pulos porque não tinha gravidade. Depois voltou à Terra, mas a Terra estava deserta. Só havia um russo, mas ele não falava russo.
Os americanos, que tinham partido atrasados na corrida espacial, acabavam de realizar o grande feito de colocar dois homens na Lua. O mundo inteiro vira, pela televisão, a imagem trêmula desses primeiros passos. O contexto remetia, portanto, à “guerra fria”, à disputa entre americanos e russos.
Uma marchinha de Carnaval contestava, porém, a pretensão dessa disputa, afirmando que “todos eles estão errados / a lua é dos namorados”. Como todo o estudante de Física aprende, sendo menor a gravidade na Lua, um mesmo impulso permite pular mais alto que na Terra. Apoiando-se na contestação da marchinha e aproveitando o duplo sentido do termo, lá se foi o rapaz dar “grandes pulos” com uma moça na Lua, já que não precisava sentir-se culpado nem se censurar por “pensar em mulher”: isso “não tinha gravidade”.
Depois voltou à Terra, mas a Terra estava deserta. Só havia um russo, mas ele não falava russo.
Essa Terra deserta remetia à sua solidão e ao seu desalento. Um único homem, a esperança de um encontro e a frustrante impossibilidade de se comunicar. Seu terapeuta, que tinha um sotaque característico, quando ia à praia e se expunha ao sol, ficava alourado, ficava ruço. Com esse ruço, tentara partilhar o desejo de pular com uma moça, pular, talvez, uma marchinha de Carnaval, enfim, “pular a cerca” do que se proibia. Desejo que, por demais terreno, só podia ser encenado “no mundo da Lua”. Mas – decepção! – não falava a língua do ruço. Bem que ele avisara que ainda não tinha lido Freud!
O sonho foi construído em cima de algumas figuras de linguagem. As metáforas da “guerra fria” entre americanos e russos para representar a relação transferencial; da terra deserta para representar a solidão; do pular, no sentido físico, para representar a superação de obstáculos morais. O passear com uma moça como metonímia da realização sexual. A comunicação humana como capacidade de falar uma língua e a Lua como espaço da realização das fantasias (por oposição à Terra, lugar da realidade – “pés na terra”), ao mesmo tempo, metáforas e metonímias. Finalmente, a polissemia do termo “gravidade” e a homofonia entre “ russo” e “ruço”.
Freud denominou este processo de “processo primário” e caracterizou-o metapsicologicamente, de um ponto de vista tópico, como característico do inconsciente; do ponto de vista econômico, como um processo pelo qual a energia se desloca livremente de uma representação a outra, segundo os mecanismos de condensação e de deslocamento; do ponto de vista dinâmico, como processo de reinvestimento de representações ligadas às experiências de satisfação, constitutivas do desejo (LAPLANCHE; PONTALIS, 1976).
No entanto, para Freud, o sonho não se reduz ao inconsciente. O sonho, o sintoma, a fantasia, o ato falho e o chiste são, para ele, não “formações do inconsciente”, como pretende Lacan, mas “formações de compromisso” entre o desejo inconsciente e as exigências defensivas. Desde o início, Freud vê no sintoma esse caráter bifronte: a histérica, que se rasga, realiza o desejo de se desnudar para seduzir; mas, ao se rasgar, se descompõe, faz-se feia e, dessa maneira, pune-se pela realização do desejo proibido. Se o sonho, a “formação de compromisso” que aqui analisamos, fosse simplesmente uma “formação do inconsciente”, não precisaria ser interpretado, seria transparente como os sonhos das crianças. O processo primário limitado, neste caso, à realização alucinatória do desejo, os morangos negados durante o dia seriam saboreados, à noite, em sonho.
Qual, então, o sentido de representar o comércio sexual por um inocente passeio na Lua e a rivalidade transferencial pela guerra fria entre americanos e russos? Aqui, é preciso fazer intervir a censura onírica, consequência do conflito inconsciente entre dois desejos: o desejo proibido e o desejo narcísico, metaforizado, no sonho, pelo desejo de dormir. É a serviço desta censura onírica que entram em ação os mecanismos de condensação e de deslocamento. Condensação e deslocamento que não devem ser assimilados à metáfora e à metonímia, posto que não se configuram como figuras de linguagem.
Tratando desta diferença, Laplanche (2007) começa por situar o problema no contexto das cadeias associativas formadas por representações (de palavra ou de coisa) ligadas ora por analogia ora por contiguidade.
Numa relação de analogia, o vinho, por exemplo, pode ser associado ao sol, porque ambos esquentam. O calor é o elemento comum que liga as duas representações. Uma relação de contiguidade, por sua vez, comporta modalidades tão diversas quanto continente-conteúdo, parte-todo, causa-efeito etc. Neste caso, o vinho, por exemplo, pode ser associado ao copo – beber um copo – como relação conteúdo-continente.
Deslocamento e condensação caracterizam, para Freud, o processo primário. O deslocamento acontece quando uma representação recebe todo o investimento devido a uma outra, de modo que a segunda acaba por substituir completamente a primeira. Ora, a ligação entre as duas representações tanto pode ser por contiguidade quanto por analogia. É deslocamento tanto a substituição do vinho pelo copo, numa relação de contiguidade, quanto a substituição do vinho pelo sol, numa relação de analogia. No sonho analisado, o duplo sentido da palavra “gravidade” e a homofonia entre “russo” e “ruço” são representações-encruzilhada que permitem apagar da cena manifesta – uma viagem à Lua – qualquer vestígio do conteúdo latente: a realização do desejo proibido e do desejo transferencial a que o sonho se referia. Em vez disso, confunde-se o deslocamento, mecanismo onírico, com a metonímia, figura de linguagem, ao pretender que o deslocamento se caracterize exclusivamente pela ligação de contiguidade.
A condensação acontece quando o elemento comum a duas cadeias associativas, recebendo o investimento devido às duas, condensando todo esse investimento, vai ser encarregado de representá-las. Por exemplo, uma pessoa, no sonho, pode ser identificada como A, mas ter as características de B. Neste caso, haverá que procurar o que é comum às duas. Também aqui, na condensação, a relação entre as representações pode ser por contiguidade e não apenas por analogia.
Condensação e deslocamento, mecanismos do processo primário, não correspondem, portanto, à metáfora e à metonímia. Mas o fato dos tipos de ligação que caracterizam estas figuras de linguagem – analogia e contiguidade – se verificarem no sonho e nas demais formações de compromisso, não autoriza o uso dos termos metáfora e metonímia para caracterizar o funcionamento de um inconsciente estruturado como uma linguagem?
Para ficar no exemplo da metáfora, uma relação transferencial pode ser, metaforicamente, uma guerra fria, mas, literalmente, não o é. É nesta tensão semântica entre o sentido literal e o sentido metafórico, entre o ser e o não ser da metáfora, que reside a sua força. Ora, as metáforas do sonho e do inconsciente em geral são metáforas que esqueceram a tensão semântica que lhes deu origem. Esquecidas do sentido literal, elas ainda são metáforas?
Dois exemplos permitem esclarecer essa questão. Trata-se daquilo que o primeiro Freud denominou simbolização histérica: o soldado luta pela bandeira porque ela representa a pátria; o cavaleiro bate-se pela luva porque ela representa a dama. A bandeira é e não é a pátria; a luva é e não é a dama. Histérico seria o soldado que se batesse por uma bandeira que não representasse mais nada, fosse apenas um pedaço de pano. Histérico, o cavaleiro que lutasse por uma luva, inteiramente esquecido de sua dama. Essa bandeira ainda seria uma metáfora da pátria? Essa luva permaneceria uma metonímia da dama?
Em favor da sua caracterização como figuras de linguagem, no entanto, há que considerar que o processo analítico permite reconstituir a relação de significação entre o sentido literal e o sentido metafórico (ou metonímico), restabelecendo aquilo que o processo primário apagou. Esta possibilidade de reconstituição do sentido, que se verifica na neurose, parece, porém, irrevogavelmente perdida na psicose.
Referências
LAPLANCHE, J. Déplacement et condensation chez Freud. In: COSTES, A. Lacan: Le fourvoiement linguistique. Paris: PUF, 2003. (republicado In: LAPLANCHE, J. Sexual – La sexulité élargie au sens freudien. Paris: PUF, 2007, pp. 127-131). [ Links ]
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulaire de la psychanalyse. Paris: PUF, 1976. [ Links ]
Endereço para correspondência
Prof. Álvaro Carvalho, 320 – Tambaúzinho
Centro Jean Laplanche – Psicanálise
58042–010 – Aracaju/SE
Fone: + 55 83 3224-2504
E-mail:luis.maia@uol.com.br
Recebido: 20/07/2009
Aprovado: 27/08/2009
1 Psicólogo formado pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestre pela Université Catholique de Louvain, sócio fundador e atual presidente da Sociedade Psicanalítica da Paraíba.