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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.34 Belo Horizonte dez. 2010
Narcisismo e depressão: um ensaio sobre a desilusão
Narcissism and depression: an essay on disillusion
Maria Beatriz Jacques Ramos1
Círculo Brasileiro de Psicanálise
Círculo Psicanalítico de Sergipe
RESUMO
Neste texto são consideradas a ilusão e a desilusão dos desejos não realizáveis, o sentimento de como o sujeito gostaria de ser e a distância entre suas aspirações e metas futuras. O amor por si mesmo aponta a maneira como o sujeito mantém o ideal do ego na interpretação dos fatos de sua vida; as relações que tem, em maior ou menor grau, com os outros em termos de complementaridade, já que a história de cada um corresponde à história do outro; ou seja, os efeitos do mundo externo atuam no psiquismo, produzindo repercussões sobre o narcisismo tais como as separações, frustrações e perdas que podem levar à depressão. A vicissitude da pulsão se dá no encontro com o outro. Quanto mais narcisista uma relação, maior a agressão; quanto maior é o compromisso narcisista, maior é a inveja do sujeito nas relações objetais. A partir desses referenciais, usa-se o termo desilusão como expressão do excesso e da dor pelo que já foi, por aquilo que passou.
Palavras-chave: Narcisismo, Depressão, Desilusão.
ABSTRACT
This text considers the illusion and disillusion of unachievable desires, the feeling of how individuals would like to be and the distance between their aspirations and future goals. Self-love indicates how individuals maintain the ego ideal when interpreting facts of their life and their relationships, in a lower or higher degree, with others in terms of complementarity, since each person's history corresponds to the other's history. In other words, external world effects act on psychism, producing consequences on narcissism, such as separations, frustrations and losses, which might lead to depression. Drive vicissitude takes place in the encounter with the other. The more narcissistic a relationship is the higher the aggression; the higher the narcissistic commitment, the higher the individual's envy in object relations. Based on such theoretical framework, the term disillusion is used as an expression of excess and pain for what has already passed.
Keywords: Narcissism, Depression, Disillusion.
Desilusão: narcisismo e depressão
No texto de Freud "O futuro de uma ilusão", publicado em 1927, o ser humano expõe na vida psíquica os predicados da cultura, bem como seus ideais. Isso produz, de certo modo, uma satisfação narcísica, um orgulho pelo que foi alcançado em termos de êxito pessoal. Na história civilizatória, as leis morais indicam a tendência para o bem e o mal, de tal forma que todo bem seria recompensado, todo mal seria punido e os sofrimentos, durezas da vida poderiam ser desfeitos.
Ainda hoje, essas ideias convêm para tolerar o desamparo humano desde a infância, para proteger o ego dos perigos externos, do destino e dos danos pessoais da convivência com os demais. Porém, há um espaço intermediário, modulador dos vínculos sociais, o qual precisa ser levado em conta para não desencadear inibições e pulsões destrutivas, para não beneficiar o mais prazer e a onipotência, a inveja, o ciúme, emoções repletas de dualidade e jogos edipianos.
Assim, as pessoas se assujeitam ao poder das ilusões. Para algumas é insuportável manter o princípio da realidade, o processo secundário, pautado na espera e na castração, na distinção entre fantasia e realidade, na sensação de limitação das próprias ações e sentimentos.
O trem anda. Certas estações vão ficando para trás, mas os lugares, os traumas, a realidade vão tomando outro lugar na teoria e na clínica. Os registros identificatórios e relacionais e a vida atual são indissociáveis, uma imbricação que deve ser pensada desde uma causalidade recursiva. Ou teremos perdido o trem (HORNSTEIN, 2008, p.49).
Na psicanálise, a vida psíquica é uma construção, uma conquista que se organiza no tempo e no espaço com os laços sociais. A história pessoal não tem uma evolução linear. No percurso de cada um, existe turbulência, bifurcação, dúvida e indecisão. O ego se desenvolve com diferentes estruturas, constitui-se a partir de uma história preexistente, uma história identificatória (HORNSTEIN, 2008).
No caminho dessa história, o olhar do outro tem uma função estruturante, em que as sucessivas experiências do "bom olhar" possibilitam ao ser humano a crença de que é objeto de amor da outra pessoa, tem uma existência e pode confiar, o que leva à progressiva constância e coesão do self, do sentimento de si mesmo.
No início da vida, o bebê ignora a existência do espaço; este precisa ser decodificado, assim como as necessidades, que se expressam corporalmente e dependem do deciframento do outro. O espaço é construído na linguagem, que torna possível a imaginação, a ilusão e a criação dos objetos internos, as fantasias inconscientes.
Progressivamente, os sentimentos tomam forma e transformam as impressões em sentimentos. A subjetividade nasce com as palavras e emoções de outro ser. A realidade se funda na distinção das sensações e percepções, nas relações objetais. O ego se constitui na narcisação, na introjeção e projeção.
As primeiras representações do ego já incluem as relações objetais mais arcaicas do sujeito com o outro, por meio e na imagem deste último, e constituem-se como sendo as imagos (em grego, imago quer dizer cópia, dublê). Não se pode perder de vista que a função especular humana é bilateral, ou seja, também a mãe busca sua imagem no espelho do filho. Muitos autores estão renovando o interesse psicanalítico pelo papel do duplo e destacam que este, assim como a imagem especular, caracteriza-se por uma bipolaridade (ZIMERMAN, 1999, p.190).
O narcisismo se sustenta na cultura, no emaranhado de fios que dão suporte ao ego e ao ideal do ego. O narcisismo, o amor próprio, preserva um determinado equilíbrio entre a fantasia e a realidade, entre o mundo interno e o mundo externo.
Desse modo, as vivências de satisfação e de perda passam a compor o ego como organização. Afetos, aspirações, palavras estão presentes desde o nascimento. O cuidado implanta a sexualidade infantil e os caminhos da pulsão. A palavra insiste, é mais que comportamentos; é legalidade que se encarna na criança.
O narcisismo é tanto um modo objetal com certas características como a contrapartida da objetalidade. É um registro sempre presente; enfrentamento especular da paranóia, retração libidinal da melancolia, renegação da diferença sexual, onipotência do pensamento nas obsessões, mas também – o que não é me-nos importante – fonte organizadora do psiquismo (HORNSTEIN, 2008, p.27).
Particularmente, postulo que a desilusão deriva do narcisismo, da pulsão de morte, pois está a serviço da destrutividade dos laços humanos, desencadeia a angústia de aniquilamento, a dor de existir, os estados depressivos. Acredito que esses afetos estão sob influência relacional, com peculiaridades singulares e específicas da cisão constitutiva do ego e de mecanismos como a identificação projetiva.
Segundo Hornstein (2008), psicanalista argentino, não é possível pensar numa única causa para as depressões, ainda que apresentem um predomínio do sentimento deficitário de si mesmo em função da história pessoal, das vivências atuais e dos projetos de vida que não se realizaram.
Nas depressões, a perda do objeto afeta e modifica a subjetividade; provoca um estranhamento no olhar de si mesmo e dos outros; um retraimento e um empobrecimento do ego, que denotam as intensidades da angústia. Não há recusa da realidade, mas uma ferida narcísica. O depressivo é atacado por muitos lados: pelo objetal, pelo narcísico e pela ambivalência. Trava uma batalha pulsional.
No deprimido, ilusão e desilusão coexistem. Acredita na viabilidade de ser amado por alguém ou fica à mercê de nova frustração, nova desilusão. A desilusão exibe um lamento, uma incerteza, a vulnerabilidade e o vazio de um ego assombrado por objetos internos escassos e falhos em termos de provisão narcísica. A fala do desiludido alude a uma queixa contra aquele que foi incapaz de socorrer os primeiros pedidos. A alteridade é a causa da dor psíquica, da alienação de si mesmo, da angústia de não ser,da desintegração.
A angústia despedaça, mostra a falta de coesão, de estabilidade, de estima por si mesmo. Ela expõe o amor insuficiente, a confiança fragilizada, o medo da perda, de uma perda que se volta para o passado. O passado permeia o fluxo com o presente, com o atual; fustiga os sonhos, produz sintomas. Fixações, lutos não elaborados, repetição, viscosidade libidinal são indicadores da ritualização do que não foi perdido.
A pessoa mostra um medo difuso, uma cicatriz em que coexiste uma imagem grandiosa de si mesma e uma intensa necessidade de ser amada e admirada. Ela demonstra dificuldade de reconhecer os desejos e os sentimentos dos outros. Fala em nome próprio, não quer formar ou manter vínculos por desesperança, ausência de projetos, carências que variam de acordo com as histórias e experiências vividas.
Nesse contexto, a identidade é precária, bem como as fronteiras entre realidade e fantasia. A subjetividade se retrai, fica ensimesmada. O senso de identidade está atado ao julgamento de outrem, pois não foi possível introjetar uma função especular própria, e por isso é imperioso espelhar-se nos outros e imitá-los.
Na patologia narcísica, não há consciência clara de si mesmo. Isso faz pensar que o narcisismo patológico evidencia uma falha parental traduzida por um profundo questionamento sobre a própria existência, por um matiz afetivo deprimido em que a sobrevivência psíquica não está assegurada.
O sujeito clama pelo direito de ser, porque os outros não puderam construir a transicionalidade. Um espaço regado pela sustentação emocional, pela simbolização e ilusão, favorecendo o aparecimento da somatização, da atuação e da destrutividade desde os primeiros anos de vida.
Para que o pensamento se desenvolva, é necessário um espaço potencial que combine fantasia e realidade, mundo interno e externo. O espaço potencial é o meio fundamental para a entrada na vida social, cultural e se constrói quando se produz a separação da dependência progressiva da mãe na perspectiva de Winnicott (1975).
A cegueira e a desilusão podem ser a história do deprimido; história que desvela a verdade do humano, o pulsional da destituição da ordem simbólica.
Ficar cego à alteridade é uma metáfora, pois é ficar cego à diferença. Submeter-se ao caos, ao primitivo, à banalização que reduz as diferenças e os sentimentos em puro prazer de apoderar-se do outro, tomar o que não é seu.
Também é permanecer num sentimento culposo e intolerante às perdas, com um alto nível de exigência pessoal, num estado permanente de ambivalência por um desejo inatingível. Sabe-se que as perdas não elaboradas mobilizam a agressividade contra o outro e contra si mesmo. O ego se empobrece com ideias carregadas de afetos que, se forem conscientizados, provocam desprazer, sofrimento. Por isso é necessário o recalque, uma defesa contra os desejos proibidos.
No deprimido, as emoções e comportamentos testemunham os derivados da pulsão, as manifestações que cada um expulsa, às vezes, sem culpa e responsabilidade pela existência do outro. São sentimentos que seguem uma lógica inconsciente, que geram conflitos entre si ou com a realidade em que se situa o sujeito.
As resistências do inconsciente manifestam-se na incapacidade de pensar, de seguir a razão e o tempo presente. Os desejos não reprimidos ignoram o espaço, não consideram o negativo, não toleram a demora. O outro pode tornar-se ameaçador por não estar à disposição do sujeito, por não alimentar o ego, desvalorizá-lo, reforçar a privação e abalar a sobrevivência psíquica.
Uma nova desilusão ou um novo luto desperta os rituais de decepções e lutos precedentes. A compulsão à repetição evoca sentimentos de inadequação, de exclusão, promove atuações, pois as fantasias inconscientes têm uma dimensão ativa.
Um cenário da depressão: vinheta clínica
Na clínica atual encontramos pacientes com flutuações na estima de si mesmos, com danos narcísicos, num estado de dependência dos outros, sem relações significativas, com inibições intelectuais, insights e predomínio de defesas primitivas nos comportamentos sociais.
No ato de interpretar, o analista trabalha com este vaivém, para que o analisando produza pensamentos, sempre atento ao equívoco que tornará possível a polissemiae o deslizamento de sentidos na formação discursiva.
Por isto, é possível dizer que o sujeito é cindido desde o começo, além de ser descentrado pela interpelação histórica e pelo inconsciente. Dessa forma, ele não é apenas desdobrado, mas se revela descentrado por um processo de interpelação e submissão inconsciente. Essa sujeição e afetação impõem a incessante busca por completude, a busca em fazer-se Um. Um ser reconhecido e com valor.
Analisar é ouvir os disfarces da lingua-gem, por vezes saturados de subentendidos e de tropeços nos atos e nas palavras. Porém, nessas rupturas surgem as questões vitais de cada sujeito, a discordância entre o dito e o "mal dito", assim como os sintomas. Os sintomas fazem parte do discurso e das fantasias inconscientes que persistem e insistem nos sonhos, nos atos falhos, nas encenações.
Insisto em que a vida psíquica é uma história amalgamada na fantasia e no mundo objetal. O eu não tem autonomia, tem uma complexidade de forças que impulsionam polaridades e muitas contradições. O eu sofre, facilmente é humilhado, por isso provoca o outro, faz sofrer para não morrer, para amenizar a raiva interna.
Na vida, a desilusão reencena a criança desamparada, o outro ameaçador, a ausência, o "não saber", os anseios diferentes e estranhos, em nome do reconhecimento e do amor.
Por isso, o psicanalista precisa fazer da transferência uma ferramenta essencial na elucidação dos conflitos inconscientes que aparecem nas fantasias, nem sempre evitadas ou ludibriadas pelo paciente e que são levadas à pessoa do analista. A transferência tem que ser compreendida no vaivém do passado e do presente, sob a ótica do narrador, do contador de uma história.
A experiência com o deprimido ensina o quanto o psicanalista é sensível ao poder das palavras e dos gestos, pois seu próprio corpo se torna cena sobre a qual é representada a fantasia inconsciente do paciente.
Para o paciente, a compulsão à repetição é o motor da pulsão. É contra isso que se choca o psicanalista, como na vinheta clínica que apresento a seguir:
V. é uma jovem mulher solteira, que mora com os pais. A mãe nunca aceitou a gravidez e constantemente lhe comunica o quanto ela é errada, alguém que tem o dom de estragar tudo e todos que toca.
Ela trabalha, ajuda no sustento da casa, pois periodicamente um dos pais está desempregado. Namorou durante muito tempo um rapaz e ficou noiva, mas foi abandonada porque ele se apaixonou por outra mulher, com quem casou.
Essa decepção se tornou mais um marco em sua vida. Uma vida de filha única, não desejada, que sempre lutou por um espaço, por um olhar de reconhecimento na família. Depois de alguns meses de tratamento, numa sessão antes do fim de semana, relata o quanto está cansada. Não consegue parar de pensar em sua vida. Seus amigos dizem que é uma pessoa amarga,que só vê o lado negativo das pessoas e dos acontecimentos.
Vive triste, chora, é durae crítica com todos que se aproximam dela. Não sabe se ama um rapaz que conheceu recentemente e foi trabalhar em outro Estado. Ele quer casar com ela, aceita suas condições de se mudar daqui a dois anos, mas ela se sente prejudicada, obrigada a abrir mão do que construiu profissionalmente para ficar com alguém que quer e não quer do seu lado. O que V. não quer? O que não suporta sentir?
A intensidade de sua indecisão fez com que esse namorado encontrasse outra pessoa. Ele noivou, e mais uma vez ela viveu o abandono. Um abandono que provém das escolhas que faz. Escolhas amorosas, escolhas de amigos, de formas de lidar com o trabalho. Um trabalho que a absorve, desgasta suas energias e a consome, mas onde é importante, valorizada, vista como competente para tratar com a vida dos outros e suas dificuldades.
Comento o material que V. traz numa sessão para mostrar o quanto é difícil viver uma relação de dependência. Quer e não quer tratar seu sofrimento, quer e não quer analisar seus sentimentos. Ambivalência e culpa estão constantemente acionadas. Liga para confirmar o horário, telefona quando não sabe o que fazer com as brigas em casa, mas quase sempre chega atrasada nas sessões. Já pensou algumas vezes em desistir da análise. Responsabiliza-me pela dor, lágrimas e lembranças que afloram nas sessões. Faz comigo o que fizeram e fazem com ela. Não suporta perder o controle das situações, quer assegurar sua fantasia de autossuficiênciae aciona as falhas afetivas primárias. Não suporta a perda e, antes que isso aconteça, ataca, corta ou desfaz a proximidade com o outro.
Para V., sua destrutividade a ameaça, não a conduz a novos horizontes, novas possibilidades, só faz com que se defronte com a angústia e o medo. Ela reclama, se frustra, é frustrada e insistentemente anula o próprio desejo. Gosta de cantar, tem uma bela voz, fez parte de um coral, mas desistiu. Desiste de quase tudo. Ela não consegue vislumbrar um futuro diferente, tende a aproximar-se de pessoas egoístas e enganadoras, opõe-se a realizar algo em seu favor. Em suas fantasias, é difícil diferenciar seu selfnarcísico do ideal do ego, a ambição dos ideais chega a confundir-se.
Meu papel é sustentador, pacientemente acolho sua raiva e procuro não perturbá-la com questionamentos, confrontações e interpretações que aprofundem o desamparo do passado. Tento fazê-la pensar em metas, narcisá-la, para que transforme as narrativas em novas modalidades de comunicação com os outros e com a representação de si mesma. V. não precisa de que alguém lhe aponte um canhão. Ela mesma o faz.
Ajudar um paciente a atravessar esses profundos conflitos e sofrimentos é a maneira mais eficiente de promover sua estabilidade e integração, porque o torna capaz, através da transferência, de estabelecer mais seguramente seu objeto bom e seu amor por ele, e de ganhar alguma confiança em si mesmo (KLEIN, 1991, p.254).
Vejo que o afeto deprimido retrata uma experiência de não poder usufruir algo novo, de não poder experimentar. Há uma entrega à desesperança.
A vida precisa alimentar-se da ausência, da dor do objeto perdido, das falsas crenças e desilusões.
Neste lugar sou desafiada a tolerar seu funcionamento psíquico entrelaçado com os objetos internos a partir do modelo continente-conteúdo de Bion (GRINBERG, 1991), em que a criança, adequadamente contida pela mãe em termos de tolerância, converte sua angústia e pulsão destrutiva inicial em manifestação amorosa sobre os outros e sobre si mesma.
Em Grinberg (1991), as pulsões estão estreitamente vinculadas ao campo que deriva da interação dinâmica entre mãe e filho, e os afetos decorrentes permitem a compreensão do narcisismo e do sofrimento no estado deprimido. Um sofrimento que limita a vida para dar queixa do destino. O passado se faz presente na forma de revivência e de atuação na cegueira e na clausura.
Aprendi que trabalhar com os problemas narcísicos relacionados com a depressão escancara o desacordo entre os conflitos, desejos e emoções edipianas. O amor próprio e a identidade entrelaçados com as pulsões e a tensão das relações objetais não eliciaram um eu olhado e admirado, não ofereceram provisão para habitar um mundo viável e confiável.
Para Kohut (1984), o ideal do ego é um guia interno ligado a quem amamos e ao modo como aspiramos ser. O ideal absorve a libido narcísica e reduz as tensões e a vulnerabilidade narcísica. Ainda que derivada das fantasias grandiosas, a ambição leva o sujeito a realizar coisas e, quando isso não ocorre, ele se sente invadido pelo desapontamento e a vergonha, impelido a reagir diante da frustração do que almeja. Desde a hipocondria grave até as formas leves de constrangimento, todas representam estados de tensão narcísica, exibicionista aumentada, com modos de descargas incompletas e aberrantes.
Para ele, o interjogo entre o self narcísico, o ego e o superego determina o matiz característico da personalidade e da identidade de uma pessoa. Em personalidades notáveis, esse equilíbrio interno seria dominado por um self narcísico bem integrado, mais do que por um ideal de ego como controle e guia das suas ações. As diversas formas de narcisismo devem ser consideradas não só como precursoras do amor objetal, mas também como constelações psicológicas independentes cujos desenvolvimentos e funções merecem uma avaliação e um exame separadamente.
Green (1988) usa a expressão "Narcisismo de vida, narcisismo de morte", título de uma das suas obras, para ilustrar o que denomina de processos de ligação e desligamento psíquico. O principal objetivo da pulsão de vida é a função objetalizantede criar uma relação com o objeto, mas também de transformar estruturas em objetos, mesmo quando esses não estão mais em questão.
A pulsão de morte tem como objetivo exercer uma função desobjetalizante com o desligamento. O ataque aos vínculos não ocorre apenas contra a relação com o outro, mas contra o ego, contra a capacidade de buscar ligações.
No depressivo observa-se uma desistência frente ao desejo, favorecendo um espaço para o vazio, a falta de pensamentos, a inexistência de laços com a vida. O eu empobrece.
Fédida enfatiza que o estado do deprimido é de imobilização e de abolição do desejo, de identificação com aquele que se foi: "lembrar, representar, desejar, projetar – parecem ter sido congelados na imobilidade do corpo" (FÉDIDA, 2002, p. 12).
Segundo Freud (1926 [1925], p.94), a depressão é uma inibição generalizada, ou seja, "limitações das funções do eu, fugas – por precaução ou por empobrecimento de energia". Para não sofrer a perda, para não enfrentar a castração, o eu entristece. A tristeza é o afeto da depressão, assim como o aparecimento de uma baixa energia psíquica, uma perda da libido que implica perda nos investimentos libidinais.
Delouya (2008) salienta que
A depressão eclode com a consciência de ser separado da mãe ou com a perda progressiva dela, na esteira do nascimento do sujeito psíquico, do eu e o consequente re-investimento de si. Este momento capital que figura na posição depressiva de Melanie Klein, na fase do espelho de Lacan, no estado de preocupação de Winnicott ou na fase de separação-individuação de Mahler; ele está situado em torno da configuração do objeto total que vai de par com o nascimento do eu e com a preocupação de ter destruído a mãe progressivamente perdida (p.23).
Como sabemos nos estudos kleinianos, a posição depressiva está associada ao trabalho de luto, a um processo que integra a constituição do sujeito, não sendo, portanto, patológica, ainda que influencie a maneira como o sujeito irá lidar com as situações futuras. Para Klein, a posição depressiva seria estruturante e formadora da constituição do eu.
Desse modo, o afeto depressivo se situa num ponto constitutivo do psiquismo, alterando as manifestações narcísicas de onipotência e fusão com o outro. A depressão está associada à perda pela qual passou. A angústia inicial de aniquilação é a estaca zero do narcisismo, a polarização entre o eu frágil e o outro na sua plenitude. A depressão aponta para um fracasso, uma incapacidade de atingir a posição depressiva; está associada ao ego ideal, ao narcisismo primário. Por isso as particularidades do estado depressivo possibilitam a associação com o eixo narcísico, com a cisão e o desengajamento do sujeito.
A depressão é uma medida defensiva contra o desamparo, contra a ameaça de não existir. Na depressão observa-se a insuficiência inicial do objeto, a incapacidade do outro, daquele que tolhe o bebê, aprisiona-o num espelho opaco incapaz de refletir seu self para que possa sentir-se um ser real, separado, compartilhando experiências de amor e cuidado com os demais.
Depressão, narcisismo patológico, cegueira e desilusão são incrementadas pelas incertezas, pelos questionamentos, pela morte gradativa do sujeito, por uma sombra que invade a consciência.
Esta é uma modalidade de enxergar a depressão e convidar o sujeito a falar, enfrentar afalta. É importante salientar que, mesmo com os avanços da medicina, especialmente das neurociências, o sujeito continua buscando um acolhimento e uma escuta. E o psicanalista precisa acenar para o caminho do desejo como o melhor remédio para tratar da angústia inerente ao ser humano. Ao apresentar a depressão como o oposto do desejo, a psicanálise trabalha com o desamparo. Sabe-se que não há como falar em desejo sem considerar a angústia, o mal-estar que se faz presente no ser falante, o perigo que está por vir.
A partir desses referenciais, lembro do livro de Saramago "Ensaio sobre a cegueira" (1995), como uma possibilidade de ver o mundo contemporâneo, o mundo da alienação, solidão, isolamento e autodestruição. A visão da obra pode ser pessimista, mas aponta uma realidade difícil de contestar: o narcisismo e a depressão do século XXI. Um narcisismo que, vinculado ao medo, ao abandono psíquico, conduz à morte do sujeito, à descentralização da subjetividade, à transgressão na busca de semelhanças e padrões comportamentais que se equivalem aos modelos impostos por grupos sociais na cultura atual. Uma cultura que abastece, mas não compreende a dor da depressão. Uma dor que remete às profundezas, ou a uma condição em que é difícil se reinventar.
Solidão é lava que cobre tudo
Amargura em minha boca
Sorri seus dentes de chumbo
Solidão palavra, cavada no coração
Resignado e mudo, no compasso da desilusão
Desilusão, desilusão
Danço eu, dança você
Na dança da solidãoDesilusão, desilusão
Danço eu, dança você
Na dança da solidão
Camélia ficou viúva, Joana se apaixonou
Maria tentou a morte por causa do seu amor
Meu pai sempre me dizia, meu filho tome
cuidado
Quando eu penso no futuro eu não esqueço
o meu passado
Desilusão, desilusão
Danço eu, dança você
Na dança da solidãoDesilusão, desilusão
Danço eu, dança você
Na dança da solidãoQuando chega a madrugada
Meu pensamento vagueia
Com os dedos na viola
Contemplando a lua cheia
Apesar de tudo existe, uma fonte de água pura
Quem beber daquela água
Não terá mais amarguraDesilusão, desilusão
Danço eu, dança você
Na dança da solidãoDesilusão, desilusão
Danço eu, dança você
Na dança da solidãoDesilusão, desilusão
Danço eu, dança você
Na dança da solidãoDesilusão, desilusão
Danço eu, dança você
Na dança da solidão("Dança da Solidão", música e letra de Paulinho da Viola, 1972).
Referências
DELOUYA, D. Depressão. Estação psique. São Paulo: Escuta, 2008. [ Links ]
FÉDIDA, P. Dos benefícios da depressão: Elogio da psicoterapia. São Paulo: Escuta, 2002. [ Links ]
FERRO, A. Fatores de doença, fatores de cura. Rio de Janeiro: Imago, 2005. [ Links ]
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GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988. [ Links ]
GRINBERG, L. El studio acerca del Introducion al narcisism. In: SANDLER, J. (org.). Sigmund Freud.Madrid: Julian Yebenes, 1991. [ Links ]
HORNSTEIN, L. Intersubjetividad y clínica. Buenos Aires: Paidós, 2003. [ Links ]
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KOHUT, H. Seminários kohutianos.Formas e transformações do narcisismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. [ Links ]
SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. [ Links ]
WINNICOTT, D. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. [ Links ]
ZIMERMAN, D. Fundamentos Psicanalíticos. Teoria, técnica e clínica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. [ Links ]
Endereço para correspondência
Av. Protásio Alves, 1981/309
90410-002 - Porto Alegre/RS
E-mail: mbjramos@terra.com.brRecebido: 29/09/2010
Aprovado: 23/11/2010
1 Psicanalista. Presidente do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS). Vice-Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise (2010-2012). Doutora em Psicologia pela Faculdade de Psicologia da PUC/RGS.