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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.34 Belo Horizonte dez. 2010

 

 

Considerações sobre o narcisismo

 

Considerations on narcissism

 

 

Maria das Graças Araújo1

Círculo Brasileiro de Psicanálise
Círculo Psicanalítico de Sergipe

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora interroga o significado do narcisismo para remarcar sua importância na constituição e sobrevivência do sujeito, baseada em Freud e outros autores. Destaca a contribuição de Freud para o estudo das relações e realizações humanas fundadas no narcisismo outrora constituído na relação da criança com o seu corpo e no amor dos pais.

Palavras-chave: Narcisismo, Desenvolvimento humano, Amor, Autoestima.


ABSTRACT

The author questions the meaning of narcissism to point out its importance to the subject's constitution and survival, based on Freud and other authors. She highlights Freud's contribution to the study of the human relationships and achievements based on the narcissismonceconstitutedinthechild'srelation with his/her body and the parental love.

Keywords: Narcissism, Human development, Love, Self-esteem.


 

 

Introdução

Desde as suas origens, a Psicanálise é acusada de psicopatologizar a existência humana. Entre os múltiplos fenômenos que compõem essa existência, talvez nenhum outro tenha adquirido um caráter tão negativo, tão patológico e indesejável quanto o narcisismo. Ser narcisista significa estar no outro extremo do ideal cristão de amor ao próximo, do desprendimento e da humildade, em favor do amor a si mesmo. Daí porque o narcisismo gera tanta repulsa. Ninguém quer ser qualificado como narcisista. Narcisistas são os outros. A sociedade é narcisista, perversa. Mas, afinal, se o narcisismo está em toda parte, qual a sua origem e o que significa?

O emprego do termo narcisismo vem da cultura grega e significa o amor do indivíduo por si mesmo. No final do século XIX, de acordo com Roudinesco e Plom (1998), o seu uso foi incorporado ao discurso científico, mais precisamente à sexologia nascente, para designar "uma perversão sexual caracterizada pelo amor do sujeito por si mesmo" (p.530). Em 1914, o termo entra definitivamente para o discurso psicanalítico, quando Freud (1914/1974) abre caminho para o entendimento do narcisismo como elemento constitutivo do amor-próprio e da autoestima e, portanto, destinado à autopreservação do sujeito e formação dos laços sociais. Esse aspecto intrínseco à personalidade e, inclusive, o seu caráter positivo, tem sido pouco explorado pela literatura especializada. Em consonância com uma tradição psicanalítica fiel ao estudo dos quadros psicopatológicos, narcisismo tornou-se bastante conhecido em seu caráter patológico a partir dos estudos das estruturas psicológicas: neurose, perversão e psicose. No entanto, chamar a atenção para o narcisismo como fenômeno comum e indispensável a todos os sujeitos é algo que deve ser buscado, na medida em que as adaptações e realizações humanas só por meio dele podem ser alcançadas.

 

Narcisismo: uma questão teórica

A procura de um entendimento sobre o narcisismo remete, de início, à questão teórica que envolve a sua delimitação conceitual. Dentre as publicações consultadas para a elaboração deste artigo, o texto escrito por Silve Le Poulichet (1989) sobre o narcisismo para integrar as "Lições sobre os 7 Conceitos Cruciais da Psicanálise", de Nasio (1989), apresenta-se como um esforço teórico-didático de demonstrar sinteticamente o pensamento de Freud e Lacan sobre o assunto, acompanhado de uma indicação bibliográfica em ordem cronológica.

Em Roudinesco e Plom (1998), assim como em Laplanche e Pontalis (1988), são apontadas algumas incoerências encontradas no modelo conceitual de Freud e lacunas que se mantêm até hoje, mesmo considerando a valiosa contribuição de Lacan com o aprofundamento do conceito de narcisismo com base na fase do espelho. Fachini (1996), após leitura de Bleichmar (1987) e Grunberg (1979), diz-se insatisfeito com o tratamento até então dado ao tema, procurando ele próprio expor suas ideias a partir das relações entre o narcisismo e os objetivos da clínica psicanalítica. Realmente, não há como negar que existe uma inconsistência teórica sobre o narcisismo. No entanto, essa inconsistência e dificuldades já eram previstas por Freud, ao admitir que a existência de um estado de narcisismo primário era um pressuposto teórico necessário à edificação do conceito de narcisismo secundário, cuja lógica demonstrou com base em inferências deduzidas das relações dos pais com suas crianças.

O ensaio de Freud "Sobre o Narcisimo: Uma Introdução", publicado pela primeira vez em 1914, é um estudo sobre a psicologia humana sem precedentes e emociona pela percepção em profundidade da relação do homem consigo mesmo e com os outros. É, pois, sobre ele, com o apoio dos autores já citados, que foi escrito este texto, mais como uma tentativa de remarcar sua importância na constituição da personalidade e sobrevivência do indivíduo do que de tecer algum entendimento novo.

 

Narcisimo: por Freud

Em 1910, Freud introduziu o termo narcisismo no discurso psicanalítico para se referir à escolha sexual dos invertidos, como eram chamados os homossexuais na época. Tratava-se, na verdade, de uma nota de rodapé acrescida naquele ano aos seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, na qual se encontra dito que eles "partem de uma base narcísica e procuram um rapaz que se pareça com eles próprios e a quem eles possam amar como eram amados por sua mãe" (FREUD, 1905/1972, p.145-146). Quase que no mesmo período, por ocasião dos ensaios sobre Leonardo da Vinci (1910/1970) e sobre Schereber (1911/1969), Freud dá-se conta de que o narcisismo é um estágio comum no desenvolvimento sexual humano. É em 1914, no entanto, que ele articula o conceito psicanalítico do narcisismo na esteira do desenvolvimento infantil e dos investimentos libidinais.

Segundo Freud (1914/1974), os investimentos libidinais podem ser direcionados ao próprio ego ou aos objetos. Quando a libido é investida no ego, diz-se libido do ego ou libido narcísica. Quando é investida nos objetos, diz-se libido do objeto. Para ele, a fase da infância que antecede a formação do ego é caracterizada pela ausência de relações objetais. Nessa fase, entendida como anobjetal, todo o investimento libidinal do bebê é feito no seu próprio corpo, quando satisfaz suas pulsões parciais por meio das zonas erógenas a elas correspondentes. A esse estado de satisfação em si mesmo, Freud chamou de narcisismo primário. O narcisismo primário, no entanto, só se mantém com o amor dos pais e é por ele potencializado através da "onipotência que se cria no encontro entre narcisismo nascente do bebê e o narcisismo renascente dos pais" (POULICHET, 1992, p.42). Nesse senti-do, Freud recorda como os pais depositam na criança todos os seus sonhos de realizações, todas as suas fantasias de onipotência e perfeição, chegando mesmo a ignorar "aquisições culturais que seu próprio narcisismo foi forçado a respeitar, e a renovar em nome dela as reivindicações aos privilégios de há muito por eles próprios abandonados" (FREUD, 1914/1974, p.108). Assim, a depender do desejo dos pais, a criança não experimentaria perdas e nem sofrimentos.

Esse estado paradisíaco de perfeição e completude, entretanto, está fadado a ser interrompido sob pena de a criança não ascender ao estatuto de sujeito. Com efeito, desde cedo, a criança está exposta às exigências do ambiente assim como os seus pais. Aos poucos, a criança irá se dar conta de que não é tudo para a sua mãe, de que esta tem outros interesses. Essa percepção da criança é, nas palavras de Poulichet (1992): "[...] a ferida infligida ao narcisismo primário da criança. A partir daí, o seu objetivo consistirá em fazer-se amar pelo outro, em agradá-lo para reconquistar seu amor; mas isso só pode ser feito através de certas exigências do ideal do eu" (p.51).

É dessa forma, pois, que a criança entra no segundo estágio de narcisismo, ao qual Freud denominou de narcisismo do ego ou narcisismo secundário, porque foi retirado dos objetos a partir dos processos de identificação com as figuras parentais ou seus representantes.

De modo geral, tanto os traços do narcisismo primário como os do narcisismo secundário irão constituir a personalidade e acompanhar o indivíduo durante toda a sua existência. Foi a partir do olhar libidinizado da mãe que a criança reconheceu-se e se sentiu amada. Daí para a frente, todas as suas escolhas objetais e realizações terão por base esse período em que foi possível o desenvolvimento do amor por si mesma.

Sobre as escolhas objetais, Freud (1914/ 1974) escreve que existem dois tipos de modelos, o anaclítico e o narcisista. O primeiro deles, também denominado de ligação, tem a mãe como modelo, por ter sido esta, ou aqueles que a substituíram, o seu primeiro objeto de amor. Amor esse, ressalva, diretamente vinculado à satisfação de suas necessidades básicas. O outro modelo de escolha objetal, ao qual chamou de narcisista, toma a si mesmo como objeto amoroso. Geralmente, essas duas modalidades de escolhas objetais estão presentes em todas as pessoas, embora em graus diferenciados.

Dizemos que um ser humano tem originalmente dois objetos sexuais – eles próprios e a mulher que cuida dele – e ao fazêlo estamos postulando a existência de um narcisismo primário em todos, o qual em alguns casos, pode manifestar-se de forma dominante em sua escolha objetal (FREUD, 1914/1974, p. 105).

Dando continuidade aos seus argumentos, Freud escreve que as escolhas objetais narcisistas manifestam-se predominantemente nos homossexuais e em alguns tipos de mulher. O narcisismo de outra pessoa, diz ele, "exerce grande atração sobre aqueles que renunciaram a uma parte do seu próprio narcisismo" (1914/1974, p.106). Desse modo, completa que, como nos homens predominam as escolhas do tipo objetal de ligação, estaria explicado por que certas mulheres narcisistas exercem tanta atração sobre eles.

Quanto às realizações pessoais, essas têm por base o ideal de ego que foi forjado a partir das identificações parentais e que permitiu o surgimento do narcisismo secundário em substituição ao período do narcisismo primário, quando a criança era o seu próprio ideal. Daí em diante, o ego idealizado passará a ser objeto dos investimentos libidinais que nortearão o desenvolvimento e fortalecimento do ego.

Paralela e intrinsecamente ligado à evolução das escolhas objetais e das realizações, outro aspecto da personalidade derivado do narcisismo é a autoestima. Para Freud, "tudo o que uma pessoa possui ou realiza, todo remanescente de sentimento prematuro de onipotência que sua experiência tenha confirmado, ajuda-a a aumentar a sua auto-estima" (1914/1974, p.115). Essa também é aumentada, segundo ele, quando se é amado. Mostra, assim, que a autoestima depende de três aspectos. O primeiro deles é o resíduo mesmo do narcisismo infantil, o segundo decorre das realizações do ideal do ego que corroboram a onipotência infantil, e o terceiro provém da satisfação da libido objetal, ou seja, de relações amorosas satisfatórias.

Quando o indivíduo não consegue realizar-se, tende a fazer grandes investi-mentos naquilo "que possui a excelência que falta ao ego para torná-lo ideal" (FREUD, 1914/1974, p.18). No neurótico, a sua cura, a sua condição para a felicidade é encontrar esse outro investido das "excelências que ele não pode atingir" (p.119).

Freud conclui o seu grande ensaio de 1914, mostrando que, para além da importância do estudo do narcisismo e suas derivações para a compreensão da psicologia individual, esse se presta a grandes possibilidades de compreensão para a psicologia de grupo. Estava aberto, assim, o caminho para o desvelamento das relações humanas. Pela primeira vez, o amor deixava de ser objeto dos escritores e filósofos para se inscrever no território da ciência pelas portas da Psicanálise.

 

Referências

FACHINI, N. Narcisismo e Clínica. Estudos de Psicanálise. Belo Horizonte, n. 19, p. 48-52, set. 1996.         [ Links ]

FREUD, S. [1914]. Sobre o narcisismo: uma introdução. In:____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. 1. ed. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v. XIV, p. 85-119.         [ Links ]

____. [1905]. Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. In:____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas.1. ed. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. VII, p. 123-133.         [ Links ]

____. [1910]. Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância. In:____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. 1. ed. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1970. v. XI, p. 53-59.         [ Links ]

____. [1911]. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia. In:____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. XII, p. 15-105.         [ Links ]

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário de Psicanálise. 10. ed. Trad. Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes, 1988.         [ Links ]

LE POULICHET, S. O conceito de narcisismo. In: NASIO, J. D. Lições sobre os 7 conceitos cruciais da Psicanálise. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989, p. 47-73.         [ Links ]

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Trad.Vera Ribeiro e Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: 1998.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Praça Tobias Barreto 510/916 - Bairro São José
49015-130 - Aracaju/SE
E-mail: gracinhaaraujo@globo.com

Recebido: 15/11/2010
Aprovado: 28/11/2010

 

 

1 Psicóloga, membro do Círculo Psicanalítico de Sergipe e da diretoria do Círculo Brasileiro de Psicanálise no biênio 2008-2010. Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Sergipe.

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