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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.38 Belo Horizonte dez. 2012

 

 

Ponderações sobre a feminilidade na condição travesti

 

Reflections about femininity in the transvestite situation

 

 

Júlio Cesar D. HoenischI; Pedro José PachecoII

I Universidade Estadual de Feira de Santana
II Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões RS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo aborda aspectos de uma pesquisa qualitativa que articula técnicas de entrevista e métodos de observação, realizada no ano de 2010 na cidade de Feira de Santana, Bahia, e que teve como objetivo mapear as experiências e representações da violência junto a travestis desta cidade. A análise das entrevistas e observações contou com o suporte referencial teórico da psicanálise e da antropologia, e a metodologia de análise foi a Análise do Discurso Crítica. A amostra foi constituída por quatro travestis que não trabalhassem como profissionais do sexo, maiores de 18 anos, residentes na cidade de Feira de Santana, Bahia. O método empregado foi qualitativo, e os recursos metodológicos consistiram em entrevista semiestruturada e observação. Os resultados encontrados problematizam corpo e feminilidade no que tange à literatura clássica. As travestis entrevistadas apresentaram uma preocupação com o corpo que refuta o uso de silicone e medidas invasivas de mudança corporal, tradicionalmente referida na literatura especializada. Do ponto de vista do processo de identificação e sentimento de pertencimento, em termos de gênero, os resultados também indicaram divergências quanto ao modelo de “superfeminilidade” proposto tradicionalmente para este grupo, bem como divergiram em relação ao contexto de marginalidade (prostituição e agressividade), cenário “clássico” onde são descritas. Tais resultados e problematizações apontam necessidade de novos estudos para esclarecer quais tipos de modalidades corporais e de identificação (novos modelos de feminilidade?) se constituem na contemporaneidade para este grupo identitário.

Palavras-chave: Travesti, Corpo, Identidade, Subjetividade.


ABSTRACT

This paper addresses some points of a qualitative research that that was carried out in 2010 in Feira de Santana, in the state of Bahia, articulating interview techniques and observation methods and aiming to map experiences and representations of violence among transvestites in that town. The analysis of interviews and observations was supported by the theoretical fields of psychoanalysis and anthropology, and the analysis methodology was the Critical Discourse Analysis. The sample was composed of four over 18-year-old transvestites that did not work as sex professionals, living in Feira de Santana, Bahia. The method employed was qualitative, and the methodological resources consisted of semi-structured interview and observation. The results found problematize both body and femininity as seen by the classical literature. The transvestites interviewed showed some body concerns, refusing the use of silicone and invasive body changes traditionally mentioned in specialized literature. Regarding the process of identification and the feeling of belonging, in terms of gender, the results have also evidenced divergences related to both the model of ‘super-femininity’ traditionally proposed for this group and the context of marginality (prostitution and aggressiveness), a ‘classical’ scenario in which these individuals have been described. Such results and problematization point out the need of new studies to evidence the kinds of body modality and identification (new femininity models?) that have been constituted for this identity group in contemporaneity.

Keywords: Transvestites, Body, Identity, Subjectivity.


 

 

Introdução

A condição travesti no conjunto da sociedade brasileira pode ser considerada de alta vulnerabilidade à violência, bullyng e exclusão social. Em que pese um clima de certa liberalidade nas últimas décadas, o número de travestis e homossexuais assassinados no Brasil e em particular no nordeste continua preocupante, indicando que os direitos civis e constitucionais estão ainda distantes de um estado de cidadania plena no país. É possível imaginar que as condições de existências dos sujeitos divergentes das subjetividades e sexualidades hegemônicas ocorram mediante processos traumáticos marcantes em função dessas fortes marcas estigmatizantes e violentas nas quais se constituem. Tal princípio nos aproxima da perspectiva que Connell (1997) denominou de “masculinidades subalternas”, ou até mesmo a outra nomenclatura mais ampla: “subjetividades subalternas”, que denota, numa perspectiva moral e julgadora, uma constituição humana “inferior” se comparada a outras consideradas naturalmente “melhores” e “superiores”.

Neste segmento, a constituição da condição travesti mostra-se muitas vezes como um processo marcado por rejeição e violências consideráveis. No presente estudo, nos detivemos a realizar a escuta das impressões de travestis residentes numa cidade do interior do nordeste brasileiro, marcada por violências consideráveis contra homossexuais. Entretanto, no decorrer do trabalho de pesquisa a violência não foi o foco mais considerado pelas entrevistadas, mas sim a construção de uma feminilidade considerada “adequada”, portanto, que supostamente as protegeria das violências que ocorrem na cidade. O corpo surge como capital importante na aceitação da condição travesti, em uma estrutura discursiva relativamente conservadora e culpabilizante das vítimas de agressão.

 

Corpo, psicanálise, identidade(s) e gênero

Falar na contemporaneidade que estaríamos vivendo uma supremacia do corpo como objeto de ocupação, poder, saber, disciplina e reconhecimento social não constitui propriamente uma novidade. O corpo de acordo com os diversos contextos espaços-temporais nos quais esteve inserido sempre variou e varia de significado e regimes de controle. Se é fato que, no mundo ocidental, alguns segmentos populacionais se ocupam do corpo em um sistema próximo de uma “ditadura” (beleza, juventude e definição muscular), por outro lado outros segmentos não parecem tão vulneráveis às proposições midiáticas. As representações de corpo, beleza, masculinidade e feminilidade contemporâneas estão longe de ser oferecidas e experienciadas de maneira uniforme pelos sujeitos. Ao contrário, temos na verdade uma profusão considerável de performances possíveis no que tange ao gênero e experiências de reconhecimento de si. O corpo em alguns segmentos mostra-se como um elemento moldável, reprogramável e extremamente passível de organizações das mais diversas. Portanto, pensarmos o corpo a partir dos referenciais da psicanálise e da crítica da cultura nos coloca em uma perspectiva onde não é possível realizar grandes generalizações totalizantes. É fato que a teoria psicanalítica – consideravelmente afetada pelo positivismo em seu surgimento – foi fortemente calcada no ideal de generalização de seus achados no modelo das ciências da natureza. Todavia, é possível afirmar que em seu desenvolvimento posterior este campo de conhecimento tem buscado articular-se como um saber do singular, uma estética da existência, mais do que assertivas generalizantes e homogeneizantes próximas dos postulados das ciências naturais. Assim sendo, o corpo no escopo psicanalítico trata-se de um corpo impregnado de linguagens e símbolos, mais do que uma sede da alma. Nessa perspectiva, as dimensões de espaço e as condições históricas não podem ser ignoradas nos processos de constituição do sujeito, justamente porque a produção de subjetividade é tributária dos signos linguísticos da cultura e de uma série de outros agenciamentos coletivos. Logo, as experiências iniciais com o corpo indicam sua importância central, já que o início da vida psíquica é marcadamente um início corporal, advindo da experiência do/com o corpo.

A questão da articulação do corpo com a identidade passa em grande medida pela importância que a imagem tem na formação do eu e da subjetividade humana. Como observa Jacques Lacan (1998), a experiência da criança com o corpo é inicialmente errática e fragmentada. Será no que o autor denomina “Estádio do Espelho”, com o início de uma relação com o Outro, que a criança se depara com uma imagem formatada de si, e esta imagem será, tal como no reflexo que encontramos no espelho concreto, uma falácia e um grande enigma. Assim como o espelho concreto do cotidiano nos devolve uma imagem invertida, o olhar do Outro – tomado como metáfora – nos mostrará algo que se aproxima do que somos, porém não traduz o que somos. Entretanto, em virtude do momento de vulnerabilidade do sujeito por ser efeito do encontro com esta alteridade (Outro), ocorre uma captura deste sujeito por esse olhar do Outro. Assim, o sujeito fragmentado e com vivências corporais desordenadas se identifica com uma imagem total, encontrando uma referência ou representação de si para si e formando o que poderíamos chamar de identidade. Vale destacar que o Estádio do Espelho não é a única forma de subjetivação associada à identidade e/ou à imagem de si. O desejo dos pais, fato principal para que alguém nasça como sujeito, já é portador de uma referência.

Ainda é importante destacar que o corpo para a teoria psicanalítica difere largamente do organismo, ainda que dele não se dissocie. Freud (1915/1994), ao postular o conceito de pulsão – um dos pilares conceituais da psicanálise –, coloca a questão dos limites entre a mente e o corpo de forma bastante problematizadora. Se o psíquico afeta o corpo e vice-versa, como alguns casos de histeria tão bem ilustram, e se mediante o labor analítico o corpo pode ser afetado pela retificação subjetiva e interpretação transferencial, resta clara a hipótese de um continuum entre corpo e mente e não uma dissociação como no modelo cartesiano. Entretanto, as relações da identidade com o corpo e a imagem não são consideradas suficientes para traduzir uma “identidade” ao sujeito, menos ainda sobre seu lugar na partilha dos sexos e orientação sexual. A natureza do registro da sexualidade e do objeto de desejo escapa aos princípios identificatórios imaginários para um além do homem e da mulher, remetendo a posição desejante à suposição de um objeto que tampanoria – ao menos temporariamente – a falta. Esse objeto mítico seria o que se constituiria como o falo. O corpo eventualmente pode ocupar o lugar de falo.

A falicização do corpo pode, em alguns casos, elevá-lo à categoria de fetiche, tomando esse termo tal como denominado na economia. A fetichização do corpo corresponderia a supor que o corpo é o falo. Esse caso pode ser aplicado a diversos segmentos corporais (as pernas, o nariz, os pés) ou pode ser estendido, como nos parece ocorrer no contemporâneo, ao corpo todo. Em sua imagem total, efeito ainda das experiências do estágio do espelho, somamos certa inflação narcísica e fascínio pela imagem: o corpo como espetáculo a ser admirado e cultuado. O corpo então pode ser tomado como obra, como efeito de uma política ascética de fabricação de si, onde o corpo e o eu não se dissociariam. A questão certamente é complexa e perpassa por diferentes registros de experiência de significação.

Nessa compreensão da fundação de um sujeito que se reconhece como ser desejante e dessa posição produz uma concepção identitária (sempre parcialmente equivocada) de si, o corpo mostra-se como um elemento que convoca um sujeito a um reconhecimento na partilha dos sexos. Mas convocaria a um reconhecimento simples, ordenado por uma lógica binária? Não necessariamente e o próprio escopo psicanalítico nos indica problemas nessa construção, pois se o inconsciente não é masculino ou feminino – em fato na tradição lacaniana ele não é um lócus, mas justamente um corte e não um atributo do sujeito –, como poderíamos nos referir à masculinidade ou feminilidade no sentido da articulação comum atribuída a estes significantes? A questão desloca-se do campo da imagem para o campo das ficções produzidas pelos sujeitos, principalmente no registro da neurose, delimitando as necessárias construções de sentido para ocupar um lugar de “ser”. De uma maneira ou outra, o homem não é o masculino e a mulher não é o feminino, posto que essas posições são cambiantes do ponto de vista simbólico. Mas então como nos detemos na construção de um reconhecimento de si diante do corpo e dos modelos de gênero ofertados pela cultura?

 

Sexualidade, subjetivação, contemporâneo

Pensar o corpo como matéria a-significante não nos parece um ato possível. O corpo em seu estado desprovido de significados não pode ser mais do que uma abstração. Pensar o corpo, imaginá-lo, questionar seu estatuto, já implica em um ato de significação, ao qual o sujeito humano está destinado a realizar. Tal como nos transmite Jacques Lacan (1982) ao referir que não há nenhuma realidade pré-discursiva, não seria possível pensar num corpo sem pensá-lo como linguagem, como signos linguísticos, especialmente no seu aspecto significante. Logo, uma vez visto ou pensado, ele é classificado em algum lugar na cadeia de sentidos possíveis ao sujeito.

O corpo é significado, com materialidade inegável, mas sempre interpretado. No campo psicanalítico “clássico”, o corpo na partilha dos sexos tradicionalmente beira certa essencialização e heteronormatividade, o que tem sido alvo de diversas críticas feministas, como as realizadas por Butler (2002). As críticas repousam, por exemplo, na tendência a reduzir a partilha dos sexos a dois (homem e mulher) como categorias normativas, ligadas a comportamentos pertencentes a um ou a outro, desconsiderando as inúmeras possibilidades de sustentação da masculinidade e da feminilidade. Com isso, a pertença parece sempre reduzida a dois.

As críticas no que correspondem ao travestismo e à transexualidade como postulada por alguns segmentos psicanalíticos também incluem a perspectiva de coerência binária entre “identidade sexual” e orientação sexual. O psicanalista Stoller (1993), ainda que tenha sido responsável pela inclusão da discussão sobre gênero, identidade e papel sexual no campo psicanalítico, não escapa de uma visão heteronormativa que sugere a patologização de organizações psíquicas que difiram da perspectiva binária tradicional. Essa patologização fica clara nas associações entre transexualidade e psicose, por exemplo. É relevante enfatizarmos que a condição travesti é largamente diferente da transexual. Se a posição travesti sabe/deseja em alguma instância de si não pertencer ao gênero feminino, portando-se como um “semblante” da mulher, a transexual parte da premissa da convicção de pertencer a registros diferentes do seu corpo biológico. Esta tese é associada por alguns autores, tais como Millot (1988), à psicose.

Todavia, essa premissa é largamente questionada mesmo por alguns segmentos da própria psicanálise contemporânea. Se o corpo é experienciado e nomeado, parte do reconhecimento de si é operada pela perspectiva do Outro, abrindo a possibilidade dos destinos dessa localização entre homem e mulher serem definidos para além ou aquém das representações hegemônicas. A orientação sexual pode, perfeitamente, não estar associada ao sentimento de pertença de um gênero ou outro. Ademais, a questão dos gêneros como categorias claras e estanques não passa de uma construção histórico-cultural, bastante distanciada de delimitações claras. Não são poucos os mitos ocidentais e gregos que referem à transição entre um gênero e outro.

Outra questão importante para desarmar o universo simples de uma linha divisória entre os gêneros é a prerrogativa de interpretar a feminilidade simplesmente como posse ou não posse do falo. Mesmo com as fecundas contribuições de Lacan (1998) para uma compreensão não normativa e essencialista da masculinidade e feminilidade, esta última ainda se inscreve no (en)torno da função fálica, sendo referida a mulher como “não toda”. Em que pese os inúmeros esclarecimentos sobre essa denominação não implicar em juízo de valor, a temática é espinhosa. Se a ela associarmos a premissa “a mulher não existe”, mais passíveis de equívocos e contestações as premissas lacanianas se tornam, especialmente na cultura contemporânea. Se as concepções sobre feminilidade e a mulher são tão revestidas de regiões de sombra no edifício psicanalítico, como se apresentaria a condição transexual, sobremaneira mais passível de patologização?

 

“Identidade” sexual?

Alguns segmentos psicanalíticos advogam a existência de uma “identidade sexual”, sendo esta tomada, em linhas gerais, como o sentimento de pertencer a um sexo ou outro (claramente referindo-se a um binarismo sexual simples). Essa simplificação toma as dimensões imaginárias, sobretudo as da travessia edípica, como a inauguração de uma identificação que regeria o sentimento de pertença a um sexo ou outro. Entretanto, tal premissa esbarra seriamente na questão de que as dimensões da imagem não são necessariamente as únicas coordenadas do sujeito psíquico e que o ‘eu’ sentir pertencente a determinado registro de gênero, na verdade, trata-se de efeito de operações de natureza simbólica e não imaginárias. Logo, os signos do masculino e do feminino não deveriam ser confundidos com os traços ofertados pelos pais. Visões como esta são grandemente responsáveis pelas críticas dirigidas ao escopo psicanalítico, tomado como normatizador e simplista ao postular uma visão da travesti, homossexual e transexual, como sujeitos ora ligados à perversão, ora ligados a patologias graves de cunho narcísico.

Na concepção de Stoller (1993), e acompanhado por Catherine Millot (1988), uma das questões centrais da organização da condição travesti e sua diferença em relação à transexual reside no significado fálico do pênis para um e para outro. Millot acompanha as ideias de Stoller sobre a função erótica do pênis para a travesti e sua suposta destituição de fonte de prazer para a transexual. Tanto para essa autora quanto para Stoller, a condição travesti como o ato de travestir-se estariam ligados ao erotismo e ao gozo, em contraste com a condição transexual, que seria desprovida de caráter erótico. Supostamente, o órgão peniano para a transexual não é investido de significação psíquica. Todavia, essa tese é altamente questionável. Se não o é, por que o órgão peniano é objeto de tanto repúdio e, em alguns casos, repulsa por parte das transexuais?

No que concerne ao complexo de Édipo, para Stoller o pênis é fator complicador para a constituição do sentimento de pertença a um determinado gênero. Todavia, um dos entraves na ideia de Stoller é associar – a nosso ver – o sentimento de pertença à dimensão imaginária do Édipo e não ao registro do simbólico. Essa perspectiva também parece ignorar a dimensão da bissexualidade teorizada por Freud em favor de uma identificação de gênero pré-estabelecida antes do complexo de Édipo e direcionada exclusivamente à figura materna. Além disso, ainda que não fique claro como, para Stoller, o homossexual afeminado e o travesti parecem manter a compreensão de que pertencem ao sexo masculino. Logo, onde estaria colocado o processo de identificação?

Acompanhando algumas ideias de Stoller à luz do lacanismo, Millot afirma que houve no caso da transexual uma “forclusão” do nome do pai, por isso a falha em identificar o pênis ao falo, e da mesma forma, levando a transexual ao registro da psicose. Millot discorda de Stoller sobre a identificação primordial com a mãe. Fundamenta seu raciocínio no princípio de que a mulher que a travesti procura encarnar é a “cover-girl”, associada à mascarada feminina. Nesse campo, Millot considera esta uma identificação da travesti com “A” mulher. E essa mulher estaria próxima da concepção da histeria.

Já a mulher que a transexual busca é a mulher completa. Esta busca de completude a empurra para a posição de gozo absoluto e não barrado, portanto, onipotente. A travesti fica fora dessa lógica em virtude justamente do investimento do pênis como órgão de gozo, logo, mantendo-a no campo do registro do pertencimento ao masculino. É diferente a condição transexual, que, nas palavras da autora, quer “se livrar do órgão macho”.

Percebemos aqui o valor erótico do pênis e sua aproximação com a manutenção do sentimento de pertença da travesti ao registro do masculino, ou, no mínimo, sua compreensão de não ser uma mulher.

Se o homossexual é, em alguns momentos históricos da psicanálise, eleito como figura degenerada (ROUDINESCO, 2003), não menos patológica será considerada também a condição travesti. Mais uma vez devemos a Stoller (1993) a teorização que esclareceria que o homossexual, a travesti e o transexual não são figuras psíquicas correlatas. Logo, afasta-se um pouco dos princípios da figura do “invertido”. Na produção deste teórico encontraremos a inclusão do papel de gênero no campo psicanalítico e uma formulação de entendimento das divergências da heteronormatividade com um cunho um pouco menos moralista. Se por um lado Stoller avança em sua construção apontando, na melhor tradição freudiana, que a homossexualidade está longe de se tratar de um bloco monolítico e que agrupar sujeitos diferentes com base exclusivamente em seus objetos desejantes não parece muito sensato. Todavia, em que pesem as construções menos moralizantes, como já dito, Stoller ainda considerará a travesti e outras condições não hetero como da alçada da psicopatologia. A travesti é relegada a um sujeito que ora fetichiza a mãe fálica, ora foge de uma identificação com o pai (em dimensão imaginária) fraco ou insuficiente. Mas o que seria uma masculinidade insuficiente?

Em que medida e por que afirmar a natureza de “desvio” da travesti, se a própria natureza da pulsão e da sexualidade é desviante e errática?

Parece-nos que junto às lucubrações teóricas, tais premissas remetem a questões políticas e patriarcais presentes no pensamento psicanalítico e criticadas por vários segmentos feministas. Haveria aqui mais uma vez uma desqualificação do feminino? Um homem que não se propusesse a ocupar o lugar do “homem tradicional”, só poderia assim agir por ser portador de anomalias? Essa perspectiva retoma visões naturalizadoras da condição humana como sugere uma visão essencialista das organizações subjetivas no que tange ao masculino, feminino e às formas de gozo. Usualmente alinha a condição travesti à perversão ou, na melhor das hipóteses, à histeria. O travesti será descrito hegemonicamente como um homem que inventa uma pseudoidentidade feminina, ou seja, inventa uma mulher. A mulher inventada seria a “cover girl”: muito feminina, muito maquiada, abusando dos signos representantes da mulher.

É a partir desse ponto que o presente trabalho apresenta nossos resultados de pesquisa e abre um campo considerável de questionamentos em relação às concepções do feminino e às condições da construção da mulher no travesti. Ou melhor dito, da travesti que se mostra como representante de uma feminilidade construída.

 

Uma mulher como qualquer outra, uma “travesti de família”

Com o intuito de mapear as experiências e representações da violência junto a travestis da cidade de Feira de Santana, na Bahia, é que estes sujeitos vieram a discorrer sobre as suas condições de travestis, trazendo inúmeros dados não compatíveis com as teorizações clássicas sobre elas, particularmente quanto às representações sobre a feminilidade, os papéis sociais e a escolaridade apresentada. Primeiramente, as entrevistadas apresentavam escolaridade mediana, com o ensino médio completo na maioria dos casos. Este dado por si só é bastante significativo, sobretudo quando observamos que todas as entrevistadas iniciaram sua “transformação” em travesti na adolescência e continuaram frequentando a escola a despeito de diversas manifestações hostis contra elas. Logo, uma mostra mais escolarizada traz, em que pese o grande preconceito ainda relacionado à figura da travesti, uma maior capacidade de apoderar-se de seus direitos e informações sobre cidadania.

Solicitadas a refletirem sobre como se deu a transição do registro de homem para o registro feminino, as travestis entrevistadas referem que este processo se iniciou com a ingestão de hormônios e o início do uso de roupas femininas. Primeiramente em nível mais escondido – sobretudo da família – até ser uma condição colocada às claras. Entretanto, a mulher que emerge no discurso de nossa amostra não se alinha à “cover-girl”, mulher fatal envolta em roupas sumárias e com saltos altos. Todas as travestis se apresentaram trajando roupas femininas, todavia com muita discrição. Esta discrição é justificada no discurso das entrevistadas pela afirmação de que se uma travesti quer se parecer com uma mulher, ela deve ser discreta. Ponderam que as mulheres “de verdade” não andam por aí maquiadas e superproduzidas o tempo todo, logo elas também não almejam essa forma de feminilidade. Em alguns momentos as entrevistadas referem que esta feminilidade do exagero é uma “caricatura” da mulher e está associada a travestis que se prostituem. Aqui outro ponto a ser destacado é que nenhuma delas se prostituía ou era simpática à prostituição. Em uma visão que beira o conservadorismo, atribuem parte da culpa das hostilidades que as travestis sofrem às travestis “de rua”, denominadas por elas de “baixo-astral”. As representações de feminilidade emergentes em nossa pesquisa se referem a uma “mulher comum”, que pode ser encontrada em qualquer lugar, sem chamar a atenção pelos excessos, mas, como refere uma das participantes, um “travesti de família” (sic).

O corpo, fundamento importante para a construção do sentir-se travesti, também não deve ser portador de excessos, logo, a maioria das entrevistadas recusa o uso do silicone industrial. As suas argumentações vão desde os dados clínicos quanto aos efeitos nocivos deste material para o organismo até a temática do excesso. Muito silicone construiria uma mulher que não existe. Tendo isso em vista, as entrevistadas referem que o uso de hormônios femininos em altas dosagens já produz os efeitos feminilizantes desejados. A mulher que as travestis entrevistadas querem ser mostra-se como uma “mulher normal” (sic). Afastada dos estereótipos tanto da feminilidade quanto da visão caricatural apresentada em alguns programas televisivos e mesmo em alguns segmentos da literatura psicanalítica.

 

Uma nova representação da feminilidade?

Dentro do universo deste estudo tanto em sua dimensão discursiva quanto em sua observação direta, um elemento parece tomar destaque nas preocupações das travestis, as quais se afastam bastante da literatura sobre o tema – notadamente a psicanalítica: a representação de feminilidade. Habitualmente a mulher que a literatura apresenta como o desejo da travesti é a “cover-girl”, uma mulher de excessos, vamp, saltos altíssimos e roupas muito curtas. Enfim, uma representação sumamente sexual-erotizada e marcada pelo excesso de feminilidade, de uma mulher poucas vezes encarnada pelas “mulheres da vida cotidiana”. Aparentemente as travestis entrevistadas consideram que a semelhança com a feminilidade é feita de discrição e docilidade. Mais afeitas aos sapatos baixos e às roupas discretas, todas atribuem a representação da mulher exagerada – mais uma vez – às travestis “de rua”, “baixo-astral” ou “analfabetas”, como observa uma das entrevistadas.

A construção desse percurso de modificação não fica clara, mas a preocupação em evitar o excesso parece se traduzir na vida das entrevistadas sob dois aspectos: a) pela ingestão muito precoce de hormônios femininos e b) por nenhum interesse em fazer uso de silicone ou próteses. Quando indagadas sobre por que não fazer uso do silicone, elas são unânimes em afirmar que já obtinham os resultados que desejavam com a ingestão de hormônios, sendo desnecessária a injeção de silicone, tido por elas como típico de travestis “mal-informadas” (sic). É relevante mais uma vez lembrar que a mostra das entrevistadas tinha uma escolarização bastante considerável para a média nacional e para a realidade das travestis em geral. Além disso, eram provenientes de famílias de classe média baixa a média, onde a informação e acesso a serviços médicos e de saúde não eram raridades. Diante disso, a mulher referida no discurso das travestis é uma mulher que se diluiria em meio à multidão. Quanto menos percebida como travesti, mais próxima do ideal de feminilidade buscado.

Logo, não a “cover-girl”, mas a “vizinha do lado” parece ser o paradigma da feminilidade. Mesmo para o entrevistador, em alguns casos as entrevistadas quase não foram reconhecidas como travestis, dado o cuidado de serem discretas. Em uma das entrevistas, ocorrida no café de uma grande livraria de Salvador, ninguém – nem mesmo os atendentes – pareceu perceber tratar-se a entrevistada de uma travesti. Isso levanta uma questão que mereceria ser mais bem investigada em pesquisas futuras: a aparência mais ou menos feminina seria diretamente proporcional ao nível de aceitação social da travesti? Esse estudo não nos permite inferir sobre esta questão, mas a aparente preocupação em ser uma “mulher normal” parece estar alinhada à não manifestação de olhares ou comentários hostis por parte das pessoas que interagem com as travestis no espaço público.

Essa preocupação em ser vista como uma mulher comum talvez seja uma das variáveis que levam as entrevistadas a desejarem atividades profissionais afastadas da prostituição – até pouco tempo vista como única possibilidade para uma travesti. Da mostra de quatro sujeitos, somente duas haviam trabalhado como profissionais do sexo, uma continuando em atividade, mesmo assim dando preferência a clientes fixos e não com clientes de rua. Sobre os interesses profissionais das entrevistadas, duas preferem atividades ligadas à beleza, tais como cabeleireira e esteticista.

 

O semblante da mulher e o (não) passeio entre gêneros

Em que pese a performance travesti se revestir de um semblante feminino, as entrevistadas, em muitos momentos, trocam os artigos ao se autorreferirem ora no feminino, ora no masculino. Diante dessas glosas, uma vez lhes perguntado se se sentiam mulheres, elas respondem que não, que sabem que não são mulheres. Em outras palavras, as travestis fazem um jogo cênico de feminilidade, mas seu sentimento de pertença é masculino. Convidadas a se posicionarem na partilha dos sexos tradicionalmente proposta, não surge em sua fala uma terceira via, mas a reiteração do modelo binário. Talvez isso ocorra por um ainda forte enraizamento na questão fálica de ter que se dizer algo que exista mais objetivamente e tenha um poder/saber mesmo que problemático, mas hegemônico e tranquilizador, evitando assim o vazio existencial e o consequente não ancoramento nos ideais imaginários que tradicionalmente comungam da divisão biológica dos sexos. Assim, nessa partilha, a travesti (ainda) se considera um homem. Esse sentimento de pertença problematiza a ideia de que a travesti se julgaria um sujeito que transita entre os gêneros. Quer seja no semblante feminino apresentado, quer seja nas construções sobre seu lugar como sujeito da sexualidade, a travesti não abandona seu registro inicial imaginário/anatômico, pois ela não se considera uma mulher e, concordando com os achados de Kulick (2008), não deseja ser uma.

Os artifícios, a construção de imagem feminina, o jogo de sedução e afins podem ser revestidos das promessas de um encontro com o feminino, mas em certa medida as entrevistadas se colocam como “não mulheres”, ainda que identificadas com um semblante de feminilidade, o que constitui um paradoxo. O semblante feminino apresentado trata-se de uma figura que leva o observador a uma ilusão momentânea, mas as travestis neste estudo mostram saber claramente que se trata de um jogo de claro/escuro. A travesti não atravessa de fato a fronteira dos gêneros, não passeia por ela nem ocupa ora a posição feminina, ora a masculina. No presente trabalho, constatou-se que elas se compreendem homem, se julgam, no mínimo, não mulheres.

Neste estudo não nos pareceu ser possível defender os jogos de imagem e apresentações do feminino como se tratando de uma “identidade travesti”. O que nos é possível inferir é que se trata de uma situação próxima da dissidência dos jogos tradicionais da partilha do gênero, mas nem por isso ligada ao campo psicopatológico.

Logo, nesse jogo de pertença, semblantes de divisões, as questões aqui levantadas nos conduzem a muitos questionamentos sobre a natureza heteronormativa das construções psicanalíticas e suas eventuais incapacidades para ouvir os sujeitos que habitam condições culturalmente não hegemônicas sem os tomar como falhas, involuções ou entidades clínicas comprometidas.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Júlio Cesar D. Hoenisch
Rua Marques de Monte Santo, 59/203
41940-330 – Salvador/BA
Tel.: (71)3013-5663
E-mail: cesarhoenisch@gmail.com

RECEBIDO: 13/08/2012
APROVADO: 18/08/2012

 

 

Sobre os Autores

Júlio Cesar D. Hoenisch
Psicólogo. Especialista em Saúde Pública (ESP/RS-FIO-CRUZ). Mestre em Psicologia (PUC/RS). Doutorando em Saúde Coletiva (ISC/UFBA) – Professor visitante do DCHF Universidade Estadual de Feira de Santana/BA.

Pedro José Pacheco
Psicólogo. Especialista em Psicologia Jurídica (CFP). Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Doutor em Psicologia (PUCRS). Professor do Curso de Psicologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões RS.