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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.39 Belo Horizonte jul. 2013

 

EDITORIAL

 

A revista Estudos de Psicanálise vem desenvolvendo uma ampliação em sua periodicidade (dois números por ano) e no corpo editorial (passando a partir deste número para seis editores: Anchyses Jobim Lopes (CBP-RJ), Cibele Prado Barbieri (CPB), Isabela Santoro Campanário (CPMG), Marcelo Wanderley Bouwman (CPP), Noeli Reck Maggi (CPRS) e Ricardo Azevedo Barreto (CPS) visando o estímulo permanente da escrita psicanalítica, que se mostra um recurso indispensável à interlocução com diversas áreas do saber: medicina, psiquiatria, direito, educação, filosofia, artes, etc.

O surgimento da psicanálise representou uma ruptura epistemológica profunda com o modelo médico positivista do século XIX, e ocorreu, no seu desenvolvimento, uma crescente diferenciação com relação ao campo médico como um todo. Dois campos do saber foram evoluindo, dois discursos que não se confundem. Considerando a possibilidade de que haja uma ponte bem constituída entre esses dois territórios desde a sua origem, talvez a psicanálise tenha uma dívida simbólica com a medicina e possa contribuir para o enriquecimento da prática médica atual.

Se recordarmos alguns nomes que trabalharam fortemente nessa fronteira, na experiência da psicanálise extratratamento, tais como Groddeck, Ferenczi, Balint e Winnicott, observaremos inovações e contribuições originais para muito além do consultório particular, que nos ajudarão a refletir sobre as questões contemporâneas relacionadas à saúde da população. Na nossa experiência no Hospital Barão de Lucena-SUS-PE, de quase 26 anos, o grupo Balint é um espaço privilegiado de encontro, articulações e integração da prática médica, conferindo aos cuidadores retaguarda afetiva, técnica e ética.

O médico precisa se colocar suficientemente próximo de seu paciente para ouvi-lo holisticamente, mantendo sua sensibilidade de “gente”; e suficientemente afastado para que o sofrimento com todos os problemas envolvidos não o impeça de exercer a sua função específica. Somente uma certa distância permite respeitar o outro e promover a sensibilidade e a delicadeza necessárias para perceber sua alteridade e sua singularidade, já que o excesso de proximidade e intimidade leva à confusão. É indispensável o cultivo de um ethos da distância, da solidão e do silêncio, nesta sociedade dominada pela “tirania da intimidade”.

A briga pela certeza diagnóstica, sobretudo com a utilização de tecnologias cada vez mais sofisticadas, afasta o médico do convívio com a dúvida. A aquisição da competência para conviver com a dúvida talvez seja uma das maiores seguranças para a saúde mental. O que nos parece uma afirmação definitiva, façamos com que se aproxime de uma certeza provisória, suficiente para assegurar uma próxima progressão. Não que seja desnecessário confirmar, com certeza, um diagnóstico e uma proposta terapêutica, correndo riscos inerentes à própria função; no entanto, não podemos deixar que essa certeza nos faça ascender a uma posição de poder absoluto, incontestável e irrevogável.

Convidar o médico a ir além de seu trabalho cotidiano implica uma responsabilidade permanente. Não é ético levantar questões e dúvidas e voltar para seu terreno seguro, seu consultório fechado de psicanálise e sua linguagem rebuscada. Implicar-se nas fronteiras, exercer a mediação entre a dor e o sofrimento, facilitar que o profissional de saúde se habilite cada vez mais para essa mediação parece ser a tarefa fundamental do psicanalista diante do mal-estar dos nossos dias, onde se adere compulsivamente à linguagem instrumental (medicina baseada em evidências), esvaziando-se o registro metafórico e simbólico dos discursos.

Estamos falando de fronteira. “Fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente” (HEIDEGGER).

Ao redor de cada fronteira, existe uma região de interseção, onde o eu e o outro convivem num lugar de ambos. Assim sendo, a fronteira promove a separação, o limite e, ao mesmo tempo, possibilita a interseção. Os embates de fronteira tendem a ser conflituosos, e é sempre necessário um enorme cuidado do analista para não se colocar na posição do saber, mesmo que finja para si próprio e para os outros que nunca toma essa posição. Para realmente interagir, para propor parcerias, um mínimo de humildade é fundamental.

Volto a citar Heidegger: “Sempre, e sempre de modo diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou apressados dos homens para lá e para cá, de modo que eles possam alcançar outras margens... A ponte reúne enquanto passagem que atravessa”.

Não atravessar pontes, fixar-se às evidências, repetir os mesmos procedimentos avaliados coletivamente, como na epidemiologia, não se ater à singularidade do paciente/pessoa, que deveria ser a prática clínica, é o cotidiano da vida médica. E os psicanalistas chegam para alertar o médico: acreditamos que algo está fora de controle, mas não fora da possibilidade de organização. Acreditamos no ato de reescrever o mundo, de tomar medida de nossa habitação. Acreditamos, com Brecht, que “a obra que não se contradiz jamais será viva”.

Marcelo Wanderley Bouwman
Editor