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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.39 Belo Horizonte jul. 2013

 

 

Cartas psicanalíticas: um encontro para além da escrita

 

Psychoanalytics letters: a meeting beyond the written

 

 

Maria Beatriz Jacques Ramos

Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Psicanalisar é um trabalho complexo, que exige tolerância, compreensão e desdobramento pessoal, principalmente, quando a sala de análise se abre à apresentação de um caso clínico, de modo que outras pessoas escutem o sofrimento de quem conta ao psicanalista. Psicanalisar é pensar, sentir, enxergar e colocar-se diante do pathos humano. Nessa perspectiva, apresento um caso clínico sem dar nomes, sem anunciar a psicopatologia, sem denunciar, apenas narrando o que acontece quando a palavra vai além da fala e toma a forma da escrita.

Palavras-chave: Intersubjetividade, Psicanálise, Vínculo, Escrita.


ABSTRACT

Psychoanalyze is a complex activity that requires tolerance, understanding and personal unfolding, especially when the analysis room opens to the presentation of a case, so that other people listen the that listens the psychoanalyst. Psychoanalyze is thinking, feeling, seeing and put himself before the human pathos. From this perspective, I present a case without naming, without announcing the psychopathology, without denouncing, simply narrating what happens when the word goes beyond speech and takes the form of writing.

Keywords: Intersubjectivity, Psychoanalysis, Bond, Writing.


 

 

Fomos nós somente que inventamos as causas, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação,
o número, a lei, a liberdade, o motivo, a finalidade;
e quando introduzimos pela imaginação,
quando misturamos às coisas esse mundo de signos considerado como algo “em si”,
agimos novamente como sempre agimos, a saber, mitologicamente.
A “vontade não é livre”, é mitologia: na vida real, trata-se apenas de vontade forte e fraca.
Já é quase sempre um sintoma daquilo que falta, quando um pensador percebe,
em toda “conexão casual” e “necessidade psicológica”,
algo de coação, carência, obediência compulsória, pressão, não liberdade:
é revelador sentir justamente assim – a pessoa se revela.
NIETZSCHE, 2011, p. 44.

 

Introdução

A busca de reconhecimento é um fato recursivo na clínica psicanalítica na qual são compartilhadas experiências e relacionamentos entre sujeitos, analista e analisando, enquanto sujeitos do inconsciente. No trabalho analítico aparecem a verdade e o engano, os sonhos, os mitos e as crenças com linguagens que mostram a repetição, o sintoma, a realidade interna, externa e as contradições, inexoravelmente humanas.

O ser humano é feito de pedaços, de identificações e, por vezes, tudo que deseja é aliviar o sofrimento por meio de sinais que desvendam dificuldades intrapsíquicas e intersubjetivas. Os problemas dos pacientes também são nossos na medida em que nos aproximam e nos separam, pois evocam rupturas e separações, angústias e perdas, mobilizam o recalcado e ativam as pulsões. Os problemas dos pacientes acionam a percepção e a memória do analista, acionam o que pode ser apreendido ou o que permanece como um enigma no inconsciente.

René Kaës (2010) mostra a importância do campo social na construção psíquica, na formação e modificação do sujeito, em termos de espaços, tempos lógicos e ilógicos, na manifestação de conflitos, na identificação e contraidentificação, no amado e odiado em si mesmo e no outro. Birman (2009) enfatiza a concepção de sujeito posterior a Freud, ainda que as premissas estejam esboçadas na conferência As pulsões e seus destinos, de 1915, quando Freud descreve esse conceito-limite entre o somático e o psíquico.

A pulsão é representante dos estímulos internos oriundos do corpo. Afeta a relação com o outro em termos de ligação ou desligamento, na tentativa de encontrar um objeto ou uma parte dele para aliviar a pressão interna, bem como a angústia que advém do medo ou das experiências traumáticas, que se definem pela intensidade e pelos efeitos patogênicos na organização psíquica. Assim também advém da agressividade uma manifestação da pulsão de morte, geradora do ódio, da inveja, da destrutividade, da culpa, à medida que ativa sentimentos persecutórios e ameaçadores à integridade do ego.

Desde o início, o sujeito é cindido sob o efeito do recalque que reprime da consciência as representações ligadas às pulsões que ficam alojadas no inconsciente, bem como mobilizam as introjeções e projeções nas relações com os objetos. A ideia de sujeito está construída a partir da sujeição, da submissão a uma ordem e a uma instância psíquica: o ego.

Quando o sujeito aprisiona a palavra, para não se confrontar com a angústia, o desejo é suspenso, e a distorção passa a se representar de modo sintomático. Nesse movimento se alteram pensamentos e emoções provocando atuações, encenações ou paralisia e estagnação. O que não é dito pode ser metaforizado para afastar algo que precisa continuar escondido, como afirma uma analisanda, quando refere que “as feridas viram alimento, pó fortificante, fermento, espalhada na pele rasgada para cicatrizar não se sabe bem o quê”.

Para crescer, é preciso acolhimento consciente e inconsciente do outro. Para pensar, é necessária uma estrutura psíquica construída em torno de relações organizadoras do mundo interno, nas quais o cuidado e a nutrição são provimentos indispensáveis.

Berenstein (2011) afirma que as palavras carregam pensamento e sentimento. Elas mostram um caminho à compreensão dos objetos internalizados com suas complexas ligações. O pensamento suscita a fala que se institui no meio cultural, no pertencimento familiar, nas experiências amorosas e agressivas. Portanto, a subjetivação está ligada às palavras, elas não são exteriores, compõem a interioridade, as fantasias inconscientes, os modos de relação e de defesas associadas às emoções. O que passou é encontrado no presente, no aqui e agora da sessão, na transferência, na identificação projetiva, na possibilidade de se colocar na “pele do outro” e senti-lo como parte de si mesmo.

 

Sobre o deslocamento no espaço analítico

Na psicanálise kleiniana, o conceito de identificação projetiva introduz uma ideia revolucionária modulada pela introjeção e projeção que parte dos estados mentais e emocionais deslocados para outra pessoa e são vividos como provindos do outro, no que se refere ao amor, ao ódio, à inveja, ao desprezo, à compaixão e à empatia. No ambiente analítico, a identificação projetiva coloca em evidência os espaços interno e externo, as fantasias inconscientes e as cisões, nem sempre como um ato concreto, mas como sentimentos e pensamentos experimentados antes, durante e depois das sessões. Esse mecanismo permite conjecturar sobre investimentos afetivos do passado arraigados no mundo interno do paciente e revividos no presente.

A identificação projetiva consiste numa comunicação que mantém o analista vinculado transferencialmente, continente do que o paciente não suporta ou não administra os impactos pulsionais. Com base nessa premissa, decorre o interesse sobre as cadeias associativas que sustentam a vida psíquica, seus conteúdos e suas funções, considerando o trabalho com sujeitos inundados por angústias primitivas, de intrusão e separação, por conflitos acirrados nas exigências, nos medos, nas decepções e nos vazios, numa dinâmica psíquica binária de inclusão e exclusão.

A atividade psicanalítica denota um trabalho oculto, mas paradoxalmente visível nos resultados que produz. Mostra que não há um dentro que não possa sair, nem um fora que não expulse o que está recalcado. No setting se transita num lugar dentro e fora, realidade interna e externa, com delimitações imprecisas que podem aparecer nas proibições ou na agressão, como recriminação de si mesmo e dos outros. Essa é a ação silenciosa do inconsciente, quase invisível, que pode assumir diversas formas, entre elas, a possessividade, a voracidade, a onipotência, a negação, a idealização, o controle e o desprezo.

Ver o outro como uma posse aponta para a dominação, a degradação e, além de obscurecer, apaga a diferença, mesmo que isso implique um risco de enclausuramento e espoliação. O contexto é letal porque remete ao negativo, ao desligamento que distorce a realidade, ataca a vida e, ainda que o carinho possa dar lugar ao ressentimento, esse carinho permanece acompanhado por um sadismo constitucional, pela pulsão de morte.

Para Green (2010) as patologias atuais aparecem na luta entre o retorno do recalcado e o recalque. Por vezes, se mostram estranhas, misteriosas, porque ativam o medo, impelem a dissimulação, a traição de si mesmo e a despersonalização. Os humanos vivem na prevalência da incerteza, das lembranças que escapam do recalque, tornando-se, de certo modo, reféns das memórias que ligam a presença à ausência, que conduzem ao fracasso da alteridade, as atuações e à fuga do passado no presente.

Nesse contorno os outros se impõem diante de um ser com identidade precária, que depende dos objetos, porém luta contra tal dependência. Essas ações alienam e comprometem o destino a ser cumprido.

Na relação analítica, essas questões surgem à procura de deciframento por meio de imagens, histórias, identificações, representações de si mesmo e dos outros. Nessa concepção está implícita a situação atemporal, espacial e a singularidade da transferência. O sujeito é o passado infantil, recebido na pertença familiar e cultural. Mas ele oscila entre movimentos contraditórios na tentativa de recompor uma história inscrita nas emoções, mediadas por comunicações internas e externas, nas relações objetais que estimulam as repetições das frustrações e angústias.

Vemos que o inconsciente é o alheio no sujeito, e na atualidade prevalece a instabilidade, a impulsividade, as ideias de perseguição ou sintomas dissociativos, os pensamentos suicidas ou as dependências químicas. Nesses comportamentos, repletos de exigências e embustes, coexistem tonalidades depressivas, as soluções compulsivas ou somáticas e a clivagem.

As alianças inconscientes formam a base da realidade psíquica que unem e separam, pois fabricam uma parte da realidade, do sonho e da sujeição do sujeito. Cada um vem ao mundo com uma história estabelecida antes de sua chegada, com um lugar prescrito de sujeição, numa incessante busca de distanciamento para demarcar o novo ou o velho lugar.

Propus considerar que o sujeito dessas alianças é sujeito do inconsciente e que, correlativamente, sua aliança com o inconsciente do outro, ou mais de um outro, o qualifica como sujeito do inconsciente. O sujeito do inconsciente se forma na divisão entre a realização de seu próprio fim e sua inscrição nos vínculos intersubjetivos. O sujeito do inconsciente é um “intersujeito” inelutavelmente submetido a um conjunto intersubjetivo de sujeitos do inconsciente (KAËS, 2010, p. 226).

Nessa cogitação se encontra o que divide, ou seja, o que compõe a divisão constitutiva do inconsciente e, ao mesmo tempo, coloca o desafio da ligação e do desligamento. Por isso, desatar os nós de uma vida pode significar desatar as projeções do eu sobre o outro. Os nós do sujeito aparecem sob a forma de identificações especulares, narcísicas, adesivas e intrusivas; aparecem nos contratos, nos pactos e nas renúncias demarcadas antes do nascimento. Os pais tornam a criança portadora de seus desejos, assegurando um narcisismo positivo ou negativo a partir da própria raiz narcísica, a raiz que os precedeu. Esse pacto narcísico tem uma atribuição imutável, por vezes patogênica e entediante. O narcisismo patológico marca a fragilidade constitutiva e, em parte, descentra os sofrimentos e as desilusões, por vezes, o vazio que despersonaliza e aliena o eu.

Sob a égide do narcisismo de morte, o sujeito se constitui para servir aos interesses dos outros que inconscientemente são vividos como seus e faz uso de operações psíquicas que denunciam ausência, agonia, derrota da capacidade de pensar e criar e uso de defesas primárias. Entre elas frisamos a cisão, a negação onipotente da realidade psíquica ou das representações ameaçadoras no contato com os cuidadores, impregnadas de registros e lembranças que no decorrer do tempo surgem como algo que fortalece, mas também desvitaliza e sustenta a patologia do sentimento por si mesmo. E isso interfere no amadurecimento psíquico, que significa estar junto e separado, acolher que o outro não é idêntico, aceitar a castração, passar pela posição depressiva.

Em alguns pacientes a angústia é constante, os limites são incertos e, por vezes, produzem indiscriminação ou apropriação da forma e da roupagem de alguém que, ao tê-la, apaga a subjetividade.

A vida psíquica se revela como uma construção, uma conquista que se organiza nos laços sociais (RAMOS, 2010). A história pessoal não é linear. No percurso de cada um existe turbulência, bifurcação, dúvida e regressão. Na edificação da subjetividade o olhar do outro tem uma função estruturante, porque as boas experiências possibilitam a crença pessoal de ser objeto de amor, de existir e de confiar, o que leva à progressiva integração e coesão do ego na representação de si mesmo.

Desse modo, o ataque aos vínculos não ocorre apenas contra o outro, mas contra o ego, contra a capacidade de pensar sobre as experiências emocionais e realizar novas redes de comunicações internas e externas. Mas quando a onipotência aprisiona o pensamento para fugir do sofrimento, o sintoma metaforiza algo que precisa ser escondido.

Assim, é possível constatar que amor e ódio têm uma orientação dialética, pois não existe in vacum; está intrincado no contexto intersubjetivo e nas sucessivas identificações com os pais ou seus representantes desde os primeiros anos de vida.

Acredita-se que, a partir da diferenciação entre a realidade e a fantasia, entre o mundo interno e a realidade, cada um conquista uma independência relativa do outro; mas, para que isso ocorra, é preciso suportar a dependência, a circunstância de ser semelhante e diferente.

As construções narrativas e demais produções do sujeito mostram a estrutura psíquica e as experiências pessoais. No paradoxo entre o fato e a ficção, cada um é convocado a sair do seu mundo e a encontrar o mundo fora dele. Diante disso, é fundamental aprender a ganhar e a perder; aprender que, quando se ganha algo, também se perde, que as escolhas representam consequências, porque os traumas, as perdas e os medos se instalam sob a ação não das semelhanças, mas das diferenças.

Compreender a vida e compreender os outros é um desafio. Confrontar ideias, acontecimentos presentes e passados, aspectos e situações contraditórias colocam o sujeito numa igualdade desigual num lugar desejante, que pode ser viável ou impossível em termos de realização.

Bion (1994), no ensaio Uma teoria sobre o pensar, aborda a gênese do pensamento e de sua expressão retomando a teoria kleiniana. Para ele os pensamentos são marcados por uma história pessoal que envolve a pré-concepção, a concepção e o conceito. Os pensamentos surgem com as sensações, emoções e a frustração. A combinação desses elementos é determinante na capacidade de pensar. Saber tolerar a presença-ausência do objeto desejado e a não realização do desejo imposta pela realidade é condição fundamental para pensar.

Assim, a constituição do sujeito psíquico representa essa singularidade indizível, revelada na ação e no discurso sempre de modo novo e imprevisível, pois é fabricado na teia interpessoal, nas perguntas sem resposta; pois a desgraça da pergunta é a resposta.

 

As cartas de Julieta

Na clínica o psicanalista olha e escuta por meio da atenção flutuante, da livre associação, da transferência e apreende numa visão mental concentrada que o sofrimento ronda seu lugar e o lugar do analisando. O trabalho forja, no espírito do analista, a fantasia do paciente. Por vezes, percebe-se que é possível a identificação com um dos personagens da narrativa ou com a cena descrita de modo inconsciente. Esse movimento se assemelha ao do pintor, com seus pincéis e tintas, ou do escritor, com seus textos e contextos. Existe uma ligação com as próprias emoções e com as emoções do outro. Os inconscientes não param de ansiar, de aparecer e desaparecer.

Para ilustrar essas ideias apresento Julieta1, uma jovem com dificuldades pessoais e profissionais. Ela desejava se tornar independente, se sustentar e viver sozinha. Contudo, na maior parte do tempo, realizava atividades com baixa remuneração e não conseguia ajustar um contrato de trabalho adequado.

Julieta queria dirigir a vida, ter um salário, morar sozinha e não depender dos recursos da família. Mas, nas sessões, quando era confrontada ou questionada se retraia como se fosse incapaz de superar as frustrações. Ela agia como se estivesse destinada ao insucesso, confusa em relação ao espaço e tempo disponibilizados para trabalhar e amar. E falava: “Como posso responder sobre coisas que estão tão confusas dentro de mim?”

Assim, começou a escrever cartas para relatar as perdas, as noites de insônia, desencontros, pesadelos e desilusões. Às vezes as entregava para que fossem lidas e decifradas no espaço-tempo analítico; outras vezes deixava-as sobre a mesa no final da sessão.

O que acontecia na sala de análise? O que não podia aparecer ali e precisava continuar? Algo não era revelado, mas estava no feixe da história e da transferência como um código, um desafio. Algo não era compreendido, as perguntas e interpretações pareciam erradas, portanto as respostas ficavam em espiral, em movimentos ascendentes e descendentes, sem tocar na angústia, no vazio, no esforço para se manter viva. Ela era capaz de ter, de conquistar um homem, mas ficava só, sem saída e sem Romeu. Por isso a nomeei Julieta.

Enquanto a escutava, pensava na mulher condenada a cumprir o anseio do outro, que não conseguia se distanciar dos mitos parentais, se libertar das repetições e identificações inscritas desde os primeiros anos de vida.

Constantemente, Julieta tencionava e questionava sua vida, mas não ousava superar o passado nem arquitetar o futuro. Ela tentava se livrar do medo e do desamparo, estampando um sorriso e olhar penetrantes, insígnias aprendidas para obter gratificação narcísica. Uma condição feminina que aceitava, mesmo que forjada.

Com essa paciente aprendi que o analista deve escutar para além das palavras: escutar livremente sem expectativas e aspirações pessoais. Nesse período, sua escrita favorecia a comunicação marcada por fantasias inconscientes. Elas indicavam modalidades de defesas para lidar com os pais, irmãos e amigos; combinavam raiva e submissão, ideias por vezes onipotentes e ambivalentes. Ao mesmo tempo, sugeriam como os objetos internos acionavam um superego severo para abastecer a angústia e a culpa.

Nesse ponto, lembro dos estudos de Ogden (2001) a respeito do terceiro analítico, também denominado de terceiro sujeito intersubjetivo da análise, criado pela dialética da separatividade e vincularidade, na qual os papéis do analista e do analisando se organizam na exploração do inconsciente, da interioridade e da realidade.

No processo de identificação projetiva, aquele que projeta envolve-se inconscientemente numa forma de negação de si mesmo enquanto “eu” separado e, ao proceder assim, torna-se outro para si mesmo; torna-se (em parte) um ser inconsciente no interior de si mesmo, que é simultaneamente “eu” e “não eu”. O destinatário é e não é si mesmo à distância. O resultado desse processo de negação recíproca é a criação de um terceiro sujeito, “o sujeito da identificação projetiva”, ou seja, simultaneamente o par projetor e destinatário, e nem uma coisa nem outra (OGDEN, 2001, p. 162).

Para ser receptiva ao inconsciente dessa analisanda, foi importante a abertura às emoções que suscitavam receio, alegria, dor, agressão e afeição nas sessões. As emoções apareciam como fios de diversas cores. Também eram percebidas nas palavras e imagens aprendidas para preencher a vacuidade, o cerceamento da vida e a desilusão. Julieta escrevia e contava.

Nesse período, o apoio, a leitura, o silêncio eram mais importantes que a interlocução e a interpretação. Ela pedia atenção, confirmação e sustentação. As sessões consistiam em comunicações que elucidavam seu lugar de filha nas representações materna e paterna, no modo como vivia, sem garantia e sem esperança de continuar a garota preferida, a princesa do baile, pois esse lugar tão fugaz a mantinha encarcerada na infância, apertada nas próprias cadeias associativas.

As cartas eram declarações de uma pessoa que criava meios para se comunicar. Em algumas se qualificava, em outras mostrava ressentimento e renúncia às ambições de acolhimento e de ajuda. Isso apareceu numa carta: “Dedico a minha vida à pessoa que mais me conheceu. Se alguém sabe de minhas virtudes é ela. Se alguém sofreu comigo, esse alguém foi ela. Julieta por Julieta. Eu devo tudo a mim mesma”.

Além de devedora, continuava mostrando autossuficiência e insistência em permanecer infeliz. Os dissabores produzidos deviam ser mantidos como um culto à tristeza e à decepção.

Nesse período, ela precisava manter a desconfiança, não aceitar o cuidado do outro. O amor só era amor se fosse dado por ela como forma de autoproteção.

Para Freud (1917), no texto Luto e melancolia, os conflitos do melancólico são ampliados pela ambivalência visível nos sentimentos de amor e ódio em torno do objeto. Uma ambivalência que pertence às experiências traumáticas decorrentes das relações objetais.

Sua escrita expunha o recalcado, o efeito sintomático da formação substitutiva com comportamentos opostos ao desejo, apresentados em palavras, frases e poesias restauradas na transferência, em que eu era convidada a assumir personagens da história e convocada à difícil passagem edípica para livrá-la da mãe, que não permitia que a filha se diferenciasse dela.

Julieta tinha medo de crescer, por isso escrevia e descrevia sentimentos numa tentativa de se livrar da cegueira e da dependência. A finalidade era encontrar outro futuro, se livrar da Esfinge e do destino de Édipo. Um Édipo enlaçado na profecia de Tirésias, surpreendido e traído pelas Erínias da mãe. Uma mãe que conhecia seu corpo e seu destino, mas preferiu não olhar a situação do filho banido. Um filho que tomou o lugar do pai, se tornou cúmplice e amante, condenado à infelicidade, atormentado pela culpa e pela solidão, predestinado a caminhar com os pés do outro.

Na dificuldade de relatar ela mostrava o trabalho do negativo, a dificuldade de escolher e perder, se referindo ao externo e ao interno do seguinte modo: “Às vezes as horas estão dentro de conta-gotas [...] Tempo esse que não precisa passar [...] Corro aos livros, pois eles são como pássaros... Têm asas abertas que levam ao céu do conhecimento, ao pensamento”.

Depois de um tempo, o vértice da análise mudou, as lentes para olhar a realidade se transformaram. Ela já não trazia cartas às sessões. Recordava e contava, buscava palavras que tomaram o lugar da escrita. Por vezes eram frases entrecortadas pelo choro para descrever lembranças, traumas, sinalizar o sofrimento e o abandono.

 

A sessão não encerra

Ao descrever esse caso, percebi o desafio de acompanhar uma paciente que levava a sessão para além do tempo e da areia que escorrem na ampulheta, com uma fragilidade narcísica marcada por aquilo que foi perdido, espalhando restos, barulhos com asas e ruídos que apertavam o setting como um conta-gotas para soltar a dor, mas também para dominar a angústia. E pude reconhecer que a prática analítica vai além da teoria, porque o oficio do psicanalista é feito de representações, textos e contextos produzidos na relação transferencial, na escuta do inconsciente.

Julieta necessitava de um tempo para enfrentar a fragilidade do amor por si mesma e as razões para isso, bem como o risco de transbordamento, de perda do sentimento de identidade e de continuidade da vida, numa luta para não retroceder ao vazio e ao desespero, ao se deparar com empecilhos. Ela precisava aprender a lutar com a repetição, a pulsão de morte, para não renunciar a Eros e conviver com os limites, as marcas da infância de forma progressiva. Em parte, essa possibilidade foi oferecida no decurso da análise. Uma análise que colocou em xeque a receptividade analítica e a capacidade de lidar com minhas próprias produções inconscientes, tolerando-as e procurando entendê-las.

Ao finalizar saliento que o setting promove perguntas sem respostas, pois remetem ao fluxo da incerteza. Incerteza carregada por projeções infantis, por elementos que podem tornar o sujeito seu próprio inimigo e por dilemas inconscientes do analista e do analisando sustentados na realidade intrapsíquica e intersubjetiva.

Ser como o objeto ou substituí-lo? Redobrar a exigência ou a esperança de um novo encontro? Tratar as feridas para viver outras experiências? Essas são algumas questões infinitas (BOLLAS, 2012).

Os questionamentos não cessam diante da desesperança, do temor de aproximação e afastamento, porém sobreviver ao ódio é a prova de reconhecimento que o analista pode oferecer ao paciente.

O trabalho é complexo, o caminho é sinuoso, mas deve possibilitar a criação de novos sentidos no universo mental do paciente, de pensamentos e afetos renovados no interminável fluxo do inconsciente e da repetição que habitam o cenário psicanalítico.

 

Referências

BERENSTEIN, I. Do ser ao fazer. Curso sobre vincularidade. São Paulo: Via Lettera, 2011.         [ Links ]

BION, W. Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago, 1994.         [ Links ]

BIRMAN, J. As pulsões e seus destinos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.         [ Links ]

BOLLAS, C. A questão infinita. Porto Alegre: Artes Médicas, 2012.         [ Links ]

FREUD, S. Luto e melancolia (1917[1915]). In: ______. A história do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).         [ Links ]

GREEN, A. O trabalho do negativo. Porto Alegre: Artmed, 2010.         [ Links ]

KAËS, R. Um singular plural. A psicanálise à prova do grupo. São Paulo: Loyola, 2010.         [ Links ]

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OGDEN, T. Trabalhar na fronteira do sonho. In: GREEN, André. Psicanálise contemporânea. São Paulo: Imago, 2001.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Av. Protásio Alves, 1981, conj. 309
90410-002 – Porto Alegre/RS
E-mail: mbjramos@terra.com.br

Recebido: 15/03/2013
Aprovado: 27/03/2013

 

 

SOBRE A AUTORA

Maria Beatriz Jacques Ramos
Doutora em Psicologia pela Faculdade de Psicologia da PUCRS. Psicanalista. Presidente do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.

 

 

1 “Julieta” é um nome fictício para manter o anonimato da paciente.