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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.39 Belo Horizonte jul. 2013

 

 

Real, simbólico, imaginário: da referência ao nó1

 

Real, symbolic, imaginary: the reference to the node

 

 

Vincent Clavurier

Association de Psychanalyse Encore

Tradução: Elisa Rennó dos Mares Guia-Menendez

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Por que o ternário RSI é figurativo do borromeano? Partindo dessa questão aparentemente simples, isolamos duas lógicas distintas do trabalho do ensinamento de Lacan, que concernem o ternário: a que diz “da referenciação” e que preside o seu aparecimento em 1953, e aquela dita “nodal”, que surge com a borromenização do RSI a partir de 1973. Qualificamos a primeira de lógica da referenciação devido a sua proximidade com o método cartesiano de coordenadas algébricas de formas geométricas (sistema de coordenadas cartesianas). Mas essa questão não é apresentada sem gerar problemas, e a aparição do laço borromeano em 1973 traz consigo a solução de alguns problemas. Iremos explorar as vantagens e os limites dessa nova apresentação do RSI pelo borromeano e três consistências, para finalmente propor um nó de nove consistências como suporte do RSI. Esse percurso interroga as relações e as intersecções entre a clínica, a nodologia (nodologie lacanienne) e a cientificidade da psicanálise.

Palavras-chave: RSI, Nó borromeano, Referenciação, Clínica.


ABSTRACT

Why is the RSI ternary figurative of the borromean? Starting from this apparently simple question our aim is to isolate two distinct forms of logic at work in Lacan’s teachings on the ternary: the so-called marker first mentioned in 1953 and the nodal, which appeared with the borromeanisation of RSI from 1973 on. We describe the first as the logic of marking because of its proximity to the Cartesian approach of algebraic coordinates of geometric forms (the Cartesian marker). This, however, poses certain problems and the appearance of the borromean link in 1973 manages to solve some of them. We thus examine the advantages and the limits of this new presentation of RSI by a triple consistency borromean to propose instead a knot of nine consistencies as a support of RSI. This development raises the question of the connections and cross-checkings between clínical practice, nodology and the science of psychoanalysis.

Keywords: RSI, Node, Reference, Clinic.


 

 

O ternário real, simbólico, imaginário é provavelmente um paradigma tão importante para a psicanálise lacaniana quanto as tópicas freudianas. Sabemos que Lacan, a partir de 1973, identifica esse ternário ao nó borromeano de três elos, ou seja, cada um dos três termos é identificado a uma das consistências do nó. Mas essa identificação não acontece por si só: se R, S e I são representados por ou identificados aos elos de barbante por que eles seriam precisamente identificados ao nó borromeano? Ou seja, por qual razão a articulação entre os elos de barbante RSI representaria o borromeano? O que justificaria a substituição de uma relação não determinada de RSI por uma relação borromeana superdeterminada? O percurso que seguiremos corresponde a uma tentativa de responder a essa questão. A princípio defendemos a ideia de que uma lógica de referenciação preside a aparição e o uso do ternário a partir de 1953, e que se ocupa de constituir para a clínica uma referência a três coordenadas. Iremos explicitar os problemas trazidos pela apresentação RSI sob a forma de uma referência trivariada — exatamente o da articulação dos registros. Em seguida iremos isolar os ganhos teóricos que o nó borromeano oferece como suporte de RSI com relação à apresentação precedente. E, finalmente, iremos identificar certas dificuldades próprias a apresentação borromeana a três consistências.

 

Qual articulação entre real, simbólico e imaginário?

Lacan introduz esse ternário no campo analítico durante sua conferência intitulada O simbólico, o imaginário, o real, pronunciada em 8 jul. 1953, durante a abertura das atividades da Sociedade Francesa de Psicanálise (Société Française de Psychanalyse)2. Nessa conferência Lacan apresenta “a confrontação destes três registros, que se trata dos registros essenciais da realidade humana, registros bastante distintos e que se chamam: o simbolismo,3 o imaginário e o real”. O termo utilizado para designar S, I e R (até então ainda não reduzidos a letras) é então o do “registro”. O Littré4 define esse termo como um “livro onde inscrevemos os atos, as questões de cada dia” (os registros do estado civil, por exemplo). Encontramos a palavra em diferentes expressões: “fazer o registro”, “conservar o registro”, que designam o fato de registrar e anotar. O termo provém do latim da época regesta,5 “registro livro, catálogo”, a partir do particípio passado de regerere “relatar, inscrever, consignar”. Estamos então no domínio (o registro!) do escrito, da inscrição: “fazer registro” (provir as contas); “registrar” (gravar, inscrever), e a utilização da palavra é antiga: “Com a finalidade de que as honrosas maneiras [...] sejam notavelmente registradas e armazenadas em memória perpétua”.6 Com a designação de RSI enquanto ternário de registros, temos então a ideia de uma notação diferenciada, de um sistema de notação: existem três livros de notação diferentes, três livros em que anotamos as coisas que pensamos pertencer a ordens distintas.

Durante a conferência proferida em 1953, Lacan também utiliza o termo mais filosófico de “categoria conceptual” para designar um dos registros (o imaginário). Tal termo designa de maneira clássica aquilo que subsuma um certo número de fenômenos (extensão), atribuindo a eles uma identidade comum ao meio do conceito (intenção, compreensão). Mesmo se distinguimos conceitualmente os três registros, a relação que eles mantêm uns com os outros não cessará de ser retomada e questionada por Lacan:

Apresentar separadamente estas três dimensões responde a uma questão didática. No entanto, nos deparamos constantemente com o fato de que não podemos falar de uma dessas dimensões separadamente uma das outras, e que o operador de cada uma delas é relativo aos outros [...] De fato, existe uma necessidade em edificar as “junções” das três dimensões, e é isso que Lacan sempre tenta fazer com as escrituras dos esquemas (esquema L, esquema R), grafos e outras figuras que constituem as linhas das fraturas do cristal RSI.7

Provavelmente as diferentes tentativas de atribuir aos três registros uma articulação não satisfazem totalmente Lacan: em 1975, ou seja, vinte e dois anos após ter introduzido os termos e três anos após ter descoberto o borromeano, que irá finalmente mantê-los juntos, Lacan afirma que o laço entre os três registros é “enigmático”.8

Essa questão da articulação entre os registros não aparece de forma explícita na conferência de 1953, mas nessa época Lacan lhe atribui uma figuração: ele representa o SIR sob a forma de um triângulo em que cada registro é um cimo. Lacan utiliza essa configuração para ilustrar a circulação do analisante entre esses termos ao longo de sua análise, para referenciar o trajeto do sujeito em sua análise. R, S e I servem de baliza, de pontos de referência para identificar os momentos do trajeto. Nesse sentido, visto que se trata de momentos do processo de análise, as “junções entre as três dimensões não são concebidas somente no plano espacial, mas também temporal, particularmente em função do manejo da transferência”.9 Podemos constatar que, seja ele espacial, seja temporal, o RSI serve para efetuar uma referenciação, uma maneira de situar um fenômeno, de atribuir as coordenadas. Aqui o RSI parece funcionar como uma referência para a clínica.

 

RSI: uma referência lacaniana?

Nossa hipótese é a seguinte: assim como existe um sistema de coordenadas cartesiano a partir do qual podemos ler e escrever o mundo dos corpos e das figuras, existem também marcos lacanianos que definem uma maneira de ler e escrever o mundo da clínica, e o RSI é um deles. Para dar consistência à nossa hipótese, podemos nos apoiar numa afirmação de Lacan, que declara em 1960 que a distinção entre R, S e I é metódica, que ela provém de um método:

Esta força (do delírio) é aquela (que Freud) designou com o nome de narcisismo e ela comporta uma dialética secreta, questão que faz com que os psicanalistas possuam dificuldade em se referenciar [...] (e para concebê-la introduzo, na teoria, a distinção propriamente metódica, do simbólico, do imaginário e do real).10

Ora, os dois termos promovidos nessa citação são eminentemente cartesianos: “distinção” e “método” são elementos fundamentais da obra de Descartes,11 razão pela qual, de acordo com a veia cartesiana de Discursos, o termo “metódico” me parece ser utilizado nessa citação por Lacan no sentido “matemático”. É ao trabalho de Descartes no campo da geometria que podemos recorrer, particularmente um dos três ensaios que vieram após o Discurso e intitulado A geometria.12 De maneira clássica, classificamos esse ensaio de Descartes como um ponto de mudança da história das ciências e da matemática: supostamente Descartes funda — questão a ser discutida — a geometria algébrica, inventando aquilo que vai se tornar o sistema de coordenadas cartesianas e que vai permitir um importante desenvolvimento da física (estudo do movimento, mecânica newtoniana). Segundo o método da geometria algébrica introduzido por Descartes, o ternário RSI é, então, metódico: a distinção R, S, I permite matematizar aquilo que aparece na clínica, no sentido de que o fenômeno clínico observado é situado segundo um sistema de coordenadas sustentado por um jogo de letras. Ele é então escrito em linguagem matemática, segundo um processo de literalização (reconduzir um elemento a uma letra).13 Para ilustrar tal movimento, podemos desenhar RSI como uma sistema de referência lacano-cartesiano e inscrever, por exemplo, uma formação do inconsciente de Freud analisado por Lacan em 1955: o sonho da injeção de Irma.

 

As coordenadas lacanianas do sonho da injeção de Irma14
(9 e 16 de março 1955)

 

Mas esse sistema de coordenadas traz consigo pelo menos quatro problemas:

• Em primeiro lugar, a construção de cada coordenada, de cada projeção de ponto exige um comentário argumentativo (cf. nota 12 das sessões do seminário em que Lacan efetua este trabalho). Assim, o sistema construído não produz uma posição unívoca de fenômenos analisados: cada coordenada continua sendo sujeita à discussão; ela não é resultado de um cálculo.

• No mais, não existe unidade (valor-padrão) o que daria razão a uma construção da ordem dos pontos em cada eixo: escrever Rn, In, Sn significa que vários pontos podem ser isolados em cada eixo, mas sem que sua ordem possa ser constituída de outra maneira, a não ser por um ato mais ou menos arbitrário (de todo modo, não segundo uma regra exterior e decisiva como poderia ser o caso da linha de cálculo). Para as duas primeiras razões existe uma distância intransponível entre a precisão de uma referência físico-matemática e o que propomos aqui. Estamos em uma “comodidade descritiva”,15 segundo as palavras de Jean-Claude Milner, e não em uma adequação literária entre uma referência e a clínica, no sentido de que a geometria e a álgebra são adequadas uma a outra. Pois não estamos em uma lógica de mensurar os fenômenos (uma métrica), e sim em uma abordagem qualitativa, a referência ortonormativo não é verdadeiramente a boa sinóptica.

• O terceiro problema se agrega a nossa questão inicial: é aquele do ponto e da natureza da junção entre os três eixos R, S e I. É o que indica o “?” localizado na posição de origem. A referência ortonormal não nos leva a uma resposta sobre essa questão. O terceiro problema será “resolvido” por uma aparição do nó borromeano e sua aplicação ao ternário.

• Finalmente, o quarto problema, o doutrinal, a hipótese do RSI como referência lacaniana e sistema de coordenadas encontra uma objetivação que parte da própria boca de Lacan em 1973:

Existem três dimensões de espaço habitadas pelo falante, e essas três dit-mansions,16 como eu as escrevo, chamando-as de o Simbólico, o Imaginário e o Real. Não é exatamente como o sistema de coordenadas cartesiano; isso porque existem três, não se enganem nesse ponto. As coordenadas cartesianas provêm da velha geometria. É por isso que [...] é um espaço, o meu, como eu o defino dessas três dit-mansions, é um espaço em que os pontos se determinam de outra maneira. E foi isso que eu tentei [...] é uma geometria em que os pontos [...] se determinam de uma amarração daquilo que talvez vocês se lembrem, o que chamei de “minhas três rodas de barbante.17

Ressalto dois elementos dessa citação de Lacan:

De início, quando Lacan indica a necessidade de escrever o termo “ditmansions”, mansão do dito, ele o faz referindo-se ao termo inglês mansion que significa “castelo, residência” e cuja etimologia indica um parentesco com a palavra francesa “manoir”.18 Real, simbólico e imaginário constituem o lugar de habitação do dito, ou seja, homem enquanto ser falante: elas são as três dimensões constitutivas do espaço habitado pelo homem na condição de ser falante. Lacan dá continuidade, a sua maneira, à ideia expressada poeticamente por Heidegger, na sequência de Hölderlin : o homem habita em poeta, o homem habita a linguagem.19 Isso me faz pensar que o “manoir” RSI, com a passagem ao nó, poderia se escutar e se escrever “mano-art”: mais do que o esquema, o nó engaja o corpo e particularmente a mão, é preciso manipular, o segurar para o apreender, ele faz um chamado a uma arte da mão, uma arte delamano, uma mano-arte.

Passemos ao segundo ponto que gostaria de sublinhar nessa citação: certamente, e é provavelmente o essencial, a passagem ao nó se distancia da “velha geometria”, nos faz entrar em uma outra lógica, uma lógica nodal em que os pontos “se determinam de outra maneira”, onde aquilo que é determinante é a amarração das rodas de barbante. Mas se Lacan se recusa explicitamente e por essa razão a identificar completamente o RSI às coordenadas cartesianas, ele defende, assim mesmo, a pertinência dessa aproximação: se as dit-mansions não são “não de fato” coordenadas cartesianas, isso significaria que elas são ao menos um pouco, suficientemente para que uma relação entre elas seja legítima. Sobretudo, se as rodas de barbante continuam a se nomear RSI, é porque elas ainda participam da lógica da referência, mesmo se não se reduzem mais a ela. Existe ao mesmo tempo uma ultrapassagem e uma conservação dessa lógica. Vejamos agora a maneira pela qual o RSI funciona como referência borromeana.

 

O nó borromeano

Trata-se de uma certa coesão (borromeana) que mantém, a partir de 1973,20 os três registros juntos, e o ponto de junção é então um ponto de amarração, um buraco: é o objeto a. Ele parece preencher a mesma função, mas de maneira diferente do zero no sistema de coordenadas cartesiano.21 Já podemos então notar, no que concerne a essa identificação do ternário ao nó borromeano a três consistências, que a palavra “registro” possui, em si mesma e por duas razões, uma parentalidade com o domínio do barbante e da tecelagem. Inicialmente, via latim registrum campanae provém do sentido primeiro de regere (“tirar, puxar”) e designa a “corda do sino”, que puxamos para obter o som. O “registro” é aqui designado como a corda que puxamos. Ora, isso nos leva imediatamente a pensar a questão do “puxar o barbante”, evocada por Lacan em 9 de janeiro de 1979 e onipresente nos estudos dos nós. Não há como estudar o nó sem puxar (mesmo que mentalmente) os barbantes para que os pontos de amarração possam aparecer. Por outro lado, a palavra “registro” designa, de acordo com a mesma via latina, “o comando de cada jogo (tábuas de madeira) do órgão”, que o organista puxa para tocar. E é a partir desse último sentido que a palavra designa também “a extensão total da voz do cantor”,22 provavelmente segundo um processo de deslocamento metonímico (de cada tábua de madeira a todas as demais tábuas) e metafórico (do órgão à voz). Ora “a extensão total da voz” também diz de uma “tessitura”, termo que provém do latim tessere (tecer), via italiano tessitura (textura, trama). A equivalência semântica entre registro e tessitura cria um laço (certamente tênue como um fio, mas estabelecido) entre a arte da notação e da trança. Por essas duas razões, ligadas à etimologia e ao uso da palavra “registro”, chega a ser engraçado poder constatar que a aproximação operada por Lacan em 1973 entre RSI e o campo do nó (amarrar, atar, tecer) equivale a propiciar a emersão de um saber implícito da língua (la langue), um saber que, em parte, já existia em 1953, no próprio ato de nomear as categorias do ternário de “registros”.

Se passamos a considerar RSI como um nó borromeano constituindo uma referência matemática na clínica, podemos escrever o nivelamento e então inscrever as diferentes coordenadas do sonho que isolamos com Lacan. Tal movimento consiste em inscrever o sonho da injeção de Irma no centro do nó borromeano, em que as consistências são quase superpostas (1.° tempo). Em seguida puxamos cada uma delas, e o fenômeno estudado se difrata em seus três constituintes distintos correspondentes aos três registros (2.º tempo):

 

1.º tempo: Inscrição do sonho em RSI
(Sonho da injeção de Irma)

2.º tempo: Coordenadas do sonho a partir de uma referência borromeana
(três consistências)

 

As vantagens desta apresentação, em que a identificação dos três registros às rodas de barbante atadas borromeanamente, são múltiplas e permitem que possamos responder a nossa questão inicial: por que figurar a articulação entre os registros com a ajuda do borromeano?

Inicialmente, essa apresentação resolve a questão da amarração dos três eixos sem confundí-los em um só ponto (não se trata de um ponto de amarração, um “ponto triplo” segundo Lacan), fazendo com que um buraco, um vazio central e ambiente, um espaço furado, não total, contrariamente ao sistema de coordenadas cartesianas que se trata, de uma certa maneira, de um espaço fechado (englobando todos os pontos possíveis).

Por outro lado, contrariamente aos eixos, essa apresentação permite a existência dos campos. Assim, ela se mantém em uma lógica de referenciação, mas se afasta da “velha geometria” do sistema de coordenadas cartesiano. Da mesma maneira que com os campos a dificuldade em justificar a ordem dos pontos sob os eixos (Rn, In, Sn) que havíamos encontrado desaparece. Podemos colocar os elementos em um campo sem nos preocuparmos com a ordem respectiva deles.

Outra vantagem: o nó borromeano vai permitir que os registros se mantenham juntos sem que exista uma relação dual entre eles (concatenação, travessia, violação de buracos). Ora, Guy Le Gaufey nos diz, apoiando-se na seção de 15 abr. 1971 do seminário RSI de Lacan, que a relação sexual é “suportada pela concatenação simples”.23 Nesse sentido, o borromeano metaforiza a não relação sexual e ilustra uma não relação que não se reduz à ausência de relação: é uma não relação uma vez que ela permite que o atamento do nó porte uma definição positiva.

Mais uma vantagem: com o borromeano toda ideia de supremacia de um registro sobre os outros desaparece. Com a perfeita substitualidade dos círculos em termos de cortes (ao cortarmos, não importa qual, os outros dois também são liberados), o borromeano garante uma não hierarquia dos registros, ponto a que Lacan irá retornar diversas vezes.24 Não existe “nenhuma prevalência”25 de um registro sobre os outros, eles possuem o mesmo valor e ao mesmo tempo é necessário distingui-los.

Última vantagem: segundo Milner, essa apresentação permite uma matematização mais adequada à psicanálise. O nó...

...enquanto borromeano mostra-se próprio à estrutura, ou mais exatamente a matematizar [...] o ternário do real, do simbólico e do imaginário [...]. Até então, a doutrina poderia, e mais e mais precisamente, determinar aquilo que ela entenderia pelo real, pelo simbólico e pelo imaginário; ela não poderia então articular nada de robusto sobre seus modos de coexistência. Doravante, o nó borromeano se revela, através desta espécie de felicidade que encontramos algumas vezes nas letras, oferecendo a solução mais clara e também a mais fecunda.26

Contudo, é necessário nuançar essa afirmação porque essa solução (o laço RSI) que, segundo Milner é “a mais clara”, continua sendo qualificada de “enigmática” por Lacan em 1975. Porém, Milner vai ainda mais longe:

Antes, as maiúsculas R, S e I podiam passar por simples abreviações sem outra regra de manejo, a não ser a comodidade descritiva, sem nenhuma outra legitimidade que não seja de serem as iniciais (crítica que pensamos ser particularmente pertinente no caso das formalizações RSI enquanto coordenada cartesiana). Tornadas, cada uma entre elas, a etiqueta de uma volta borromeana atada as outras duas, elas se descobrem tomadas em uma lei real que as restringe.

A passagem do RSI-referência ao RSI-nó abre as possibilidades de cálculo a partir das voltas identificadas às letras, o que sempre é, segundo Milner, próprio a uma matematização (liberalização e cálculo), assim uma cientificação da psicanálise. Se aceitamos esse movimento de cientificação para o nó, nos resta a difícil tarefa de encontrar o que corresponderia na clínica aos cálculos feitos a partir das voltas.

Todas as vantagens desse “suporte” do RSI trazidas pelo nó borromeano às três consistências também trazem consigo alguns problemas, notoriamente o da diferenciação entre as zonas de intersecção dos registros. De fato seria desejável que o suporte escolhido por RSI permita a distinção entre “simbolicamente imaginário” e do “imaginariamente simbólico”, por exemplo, visto que Lacan nos lembra em 1955 que existe uma diferença entre “iS” e “sI”:

Lembrem-se que, na conferência inaugural desta sociedade (8 jul. 1953), aquilo que eu evoquei a propósito do simbólico, do imaginário e do real. Tratava-se de utilizar tais categorias sob a forma de pequenas e grandes letras. iS — imaginar o simbólico, colocar o discurso simbólico em forma figurativa, ou seja o sonho. sI — simbolizar a imagem, fazer uma interpretação do sonho.27

Ora, com essa simples referência às três consistências, não podemos distinguir o “iS” e o “Si”: o único campo de interseção aparente participa dos dois registros de maneira equivalente. Os elementos que se inscrevem nessas zonas são qualificáveis somente de “simbólico e imaginário”, ou “imaginário e simbólico”, e não “imaginariamente simbólico” ou “simbolicamente imaginário”. Essa seria uma insuficiência manifesta do borromeano às três consistências enquanto suporte do RSI. O que é preocupante, uma vez que outras formas diferentes do sonho ilustram a necessidade de precisar os tipos de intersecção. Penso notadamente nos anagramas ou textos figurativos e também, nesta ordem de ideias, em uma caligrafia chinesa28 apresentada por Rainier Lanselle em um artigo da revista Essaim29 (cf. Desenho 1).

Ali (nesta) caligrafia, o significante gráfico (o elemento que significa “demônio”, “espírito”) foi substituído pela própria coisa [...] Neste contexto de porosidade entre o objeto e a representação (correspondente à origem pictográfica de caracteres chineses), o significado toma com facilidade o lugar do significante: no lugar de , que quer dizer “demônio”, “espírito” o calígrafo colocou o desenho de um demônio, de um espírito. Este desenho se encontra, sob o calígrafo, exatamente na mesma posição que o signo pelo qual ele se substitui: na ponta de seu pé, reconhecemos o elemento , na mesma posição que em relação a , no caractere . Este “desenho caligráfico” realiza, dito de outra maneira, inscrito no real, o significante gráfico .” O traço que remarcamos nesta caligrafia seria “com exceção dos olhos, este “corpo” não é [...] formado de nada mais que vários de caracteres de escritura: em ocorrência dos oito caracteres que compõem as duas fórmulas: e , os caracteres aqui tratados sob formas cursivas. Este halógrafo, que é a caligrafia, se organiza então em rebus.

Com essa referência aos rebus encontramos o sonho, designado por Lacan, como uma operação iS. O real abordado por Rainier Lanselle é aquele da própria obra, da realidade da obra pintada. Podemos propor esse real ao caráter imaginário, não realizado, do sonho. O processo caligráfico aqui apresentado poderia então se inscrever “rS”, no sentido em que ele realiza o simbólico (Lanselle escreve: “O desenho [...] realiza o significante gráfico”); e a leitura da caligrafia feita e autorizada por Lanselle se escreveria então “sR”, ou seja, simbolizaria o real. Contudo, penso que o real aqui indicado diz da imagem pintada, seja ao imaginário (mesmo quando ele se realiza em pintura) em vez da categoria do real enquanto impossível.

Eu diria que o nó de três voltas não permite que essas nuanças entre as intersecções o de registros sejam representadas. Ora, essas nuanças finalmente nos reenviam à “triplicidade” de cada registro que se decompõe em três elementos RSI: no nó borromeano a três consistências existiria, de acordo com Lacan, “uma identidade entre os três termos do simbólico, do imaginário e do real a tal ponto que nos parece exigível encontrar em cada tríplice esta trindade do simbólico, do imaginário e do real”.30 RSI se encontra, assim, em cada um desses elementos. Proponho a figuração dessa tríplice de cada consistência, portanto, essa distinção entre os campos deixados indistintos pelos nós à três voltas, com a ajuda de um nó borromeano à nove voltas (cf. Desenho 2). Podemos igualmente optar por uma figuração que inclua a função do sintoma, seja um nó borromeano a dez voltas (nove voltas “mal” atadas mas a volta do sintoma que asseguraria o caráter borromeano da cadeia, ver Desenho 3). Essas duas figuras resolveriam o problema evocado que podemos nomear de “problema do tipo de intersecção”: sob cada uma delas nós distinguimos bem o “sI” do “Is”.

Outro problema do suporte borromeano RSI é o da solidez do nó, que implica a solidez de cada uma dessas consistências. Trata-se de saber o que significa essa solidez e então, consequentemente, o que significa o corte: que pode significar cortar um círculo que seria então identificado a um registro? Que ele se mantenha ou que ele ceda implicaria que ele possua alguma consistência. Com a noção da consistência de cada círculo-registro a questão da pertinência de uma “definição física”31 do nó que é colocada, pois se ele serve de suporte ao RSI. O problema é bastante vasto e complexo para mim, razão pela qual eu o abordo. Ele me parece ser uma importante pista de trabalho.

 

Como uma conclusão e um convite a continuar

A lógica da referência que preside a aparição de RSI em 1953 é necessária na clínica. Ela também se encontra presente quando Lacan introduz a lógica nodal. Mas essas duas lógicas são irredutíveis uma a outra, e inscrever, como fizemos, uma formação inconsciente na referência, por mais borromeana que seja, não significa entrar na lógica nodal. Para tal, a lógica do nó não nega a lógica da referenciação: ela a ultrapassa, no sentido de uma Aufhebung, ao mesmo tempo em que ela a ultrapassa ela a conserva:

• o que é conservado: as letras RSI correspondentes aos registros-reunidos e a existência de uma referência;

• o que é ultrapassado: a inscrição sobre uma superfície como um esquema ou um mis à plat,32 que teria finalmente uma simples função ilustrativa (fixação ou retorno à “velha geometria”);

• o que é novo: o fato de mantê-los juntos e aquilo que temos de encontrar de especificamente inovador graças a essa questão do atamento (a questão especifica do nó). Nesse âmbito, os problemas da significação clínica do cálculo dos círculos e da consistência dos registros demandariam outros desenvolvimentos.

Desenho 1 - Caligrafia chinesa

Desenho 2 - Referência borromenea a 9 consistências

Desenho 3 - Referência borromeana a 10 consistências

 

Referências

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LACAN, J. Le seminaire, livre XXIII: Le sinthome (1975-1976). Paris: Seuil, 2003. Em português: LACAN, J. O seminário, livro XXIII: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
94 Rue La Fayette
75010 – Paris - França
E-mail: vincent.clavurier@wanadoo.fr

Recebido: 15/03/2013
Aprovado: 15/04/2013

 

 

SOBRE O AUTOR

Vincent Clavurier
Psicanalista em Paris. Atua no CMPP de Montreuil e no CMP de Saint-Denis, na região parisiense. Membro da Association de Psychanalyse Encore e autor de vários artigos, entre eles, La consistance du nœud borroméen: un problème psychanalytique?, que seria a continuidade do presente trabalho (La consistance du nœud borroméen: un problème psychanalytique?, em Essaim, Revue de psychanalyse, n. 28, Toulouse, Erès.

 

 

1 N.T.: Titulo original: Réel, symbolique, imaginaire: du repère au nœud. Texto publicado originalmente na Revista Essaim: Essaim, n. 25, Erès, Toulouse, 2010, p. 83-96.
2 Cf. versão JL, site internet da l’ELP.
3 Simbolismo e simbólico são aparentemente utilizados de maneira indiferente nessa conferência.
4 Dicionário de língua francesa. (N.T.).
5 BLOCH, O.; VON WARTBURG, W. Dictionnaire étymologique de la langue française (1932). Paris: PUF, 1994.
6 FROISSART, J. Dictionnaire du moyen français (1360). Paris: Larousse, 1992.
7 PORGE, Erik. Jacques Lacan, un psychanalyste. Toulouse: Érès, 2000. p. 122. (N.T.). PORGE, E. Jacques Lacan um psicanalista: percurso de um ensino. Tradução de Cláudia Thereza Guimarães de Lemos, Nina Virginia de Araújo Leite e Viviane Veras. Brasília: Ed. UnB, 2006. 388 p.
8 Cf. LACAN, J. Le Séminaire, livre XXIII: Le sinthome, sessão de 18 nov. 1975. O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, citado por Erik Porge, “Du déplacement au symptôme phobique”, Littoral, n. 1, juin 1981, p. 35. A extinta revista de psicanálise Littoral, utilizada como referência pelo autor, se encontra disponível para consulta pela internet no site: <http://www.epel-edition.com/collection/10/revue-littoral.html>. (N.T.).
9 PORGE, E. Op. cit., p. 124.
10 LACAN, J. Conferência proferida na Faculdade Universitária de Saint-Louis, em Bruxelas, em 10 mar. 1960. Disponível em francês no CD Pas-tout Lacan. Citado por M Viltard em: L’autopunition: une solution à l’impasse imaginaire du transfert chez Dora, Littoral, n. 30, oct. 1990, p. 65-66. Algumas intervenções de Jacques Lacan tais como correios, entrevistas e conferências, muitas jamais publicadas, se encontram agrupadas no Pas-tout Lacan, disponível para consulta pela internet no site: <http://www.ecole-lacanienne.net/bibliotheque.php?id=10>. (N.T.).
11 Cf., por exemplo, a quarta regra dos Regulae, o artigo 45 de Princípios da filosofia, o terceiro de Meditações metafísicas e o Discurso do método.
12 Em 1637 Descartes publica um grande livro de 527 páginas em que o título integral é Discurso do método para bem conduzir sua razão na busca da verdade nas ciências, além de a Dióptrica, os Meteoros e a Geometria, que são os ensaios desse método. Nessa época, o Discurso é então o prefácio de três tratados científicos de grande importância. Paradoxalmente, ainda estudamos mais nos dias de hoje esse prefácio do que os ensaios que o precedem, pois eles são “ultrapassados, velhos, vencidos” (cf.. A. KOYRE. Introduction à la lecture de Platon, suivi de Entretiens sur Descartes. Paris: Gallimard, 1991. p. 166-167).
13 Cf. MILNER, J.-C. L’oeuvre Claire. Paris: Le Seuil, 1995. p. 92 et 94-95.
14 Cf. LACAN, L. Le Séminaire, livre II : Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse. Paris: Le Seuil, 1978. O seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. Sessões de 9, 16 e 30 mar. 1955. Sobre a constituinte real do sonho, ver especificamente p. 186, 196 e 209; sobre a constituinte imaginária, ver p. 187-188 e 197-199; sobre a constituinte simbólica, ver p. 190-192 e 200-203. Referências relativas à versão francesa do seminário publicada pela edição Seuil. (N.T.).
15 MILNER, J.-C. Op. cit., p. 142.
16 Ditas-mansões (N.T.).
17 LACAN, J. Le séminaire, livre XXI : Les non-dupes errent. Inédit, séance du 13 nov. 1973. O seminário, livro 21: Les non-dupes errent (1973-74). Inédito.
18 Mansão, residência nobre.
19 Cf. PORGE, E. Op. cit., p. 220.
20 Durante o seminário Les non-dupes errent, cf. C. Conté, “Borroméens (noeuds)”, dans P. Kaufmann, L’apport freudien. Paris: Bordas, 2003. p. 78.
21 Seria uma pista para pesquisa a ser desenvolvida futuramente.
22
Le Robert, dicionário de língua francesa.
23
Cf. LE GAUFEY, Guy. Le pas-tout de Lacan. Paris: EPEL, 2006. p. 155 e seg.
24 Um exemplo seria a seção do dia 11 fev. 1975 do seminário RSI (inédito): "Homogeneizar (R, S e I), é levá-los ao valor daquilo que comumente é finalmente considerado como mais baixo - nos perguntamos em nome de que - é lhes atribuir uma consistência para dizer tudo do imaginário. É exatamente neste ponto que existe algo a ser endireitado: a consistência do imaginário é estritamente equivalente a do simbólico assim como a do real. Razão pela qual eles se encontram atados dessa maneira, ou seja, de uma maneira são colocados estritamente um em relação ao outro, um em relação aos outro dois, em uma mesma relação".
25
Cf. LE GAUFEY, Guy. Op. cit., p. 158.
26
MILNER, J.-C. Op. cit., p. 142.
27 LACAN, J. Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse. Op. cit., p. 184-185.
28 E ainda, segundo o Dicionário internacional de termos literários, o precursor do anagrama, Apollinaire, seria aficionado à escritura chinesa.
29 Trata-se de uma caligrafia de Ma Dezhao (séc. XIX, conservado na Floresta de Stèles, Xi'an), apresentado por Erik Porge durante seu seminário em 2004 e publicado junto com as explicações de Rainier Lanselle na revista Essaim, n. 13.
30
Seminário RSI, seção de 13 mar. 1975, citada por Erik Porge, op. cit., p. 167.
31 De acordo com as palavras de Guy Le Gaufey, op. cit., p. 158.
32
"Mis à plat" é um termo técnico utilizado por Lacan que designa a projeção do nó numa superfície de duas dimensões.