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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.41 Belo Horizonte jul. 2014

 

 

A clínica psicanalítica mais além da sexualidade1

 

The psychoanalytic clinic beyond the sexuality

 

 

Cibele Prado Barbieri

ICírculo Psicanalítico da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Mais além da sexualidade está o gozo da pulsão de morte que permanece fora do discurso. É o além do princípio do prazer que convoca os analistas a buscar novas estratégias na clínica psicanalítica. A autora trabalha esta questão a partir da noção freudiana de “Das Ding”, A Coisa, com a ajuda da abordagem que dela faz Clarice Lispector em sua obra literária, A paixão segundo G.H.

Palavras-chave: Sexualidade, Gozo, Recalque, Castração.


ABSTRACT

Beyond sexuality there is the enjoyment of the death drive that remains outside the speech. It’s the “beyond the pleasure principle” that summons analysts to seek new strategies on psychoanalytic clinic. The author works this issue beginning with the Freudian notion of “Das Ding”, The Thing, and help from the approach that Clarice Lispector makes in her literary work, The passion according to G.H.

Keywords: Sexuality, Enjoyment, Repression, Castration.


 

 

Da era vitoriana aos dias atuais, a clínica psicanalítica continua nos convocando à reflexão. Convido a pensar um viés da clínica que concerne a todas as análises, em alguma medida, que Freud observou nas que conduziu e que hoje, mais claramente, implica a sua eficácia, seu encaminhamento e seu possível final. No texto O estranho Freud ([1919] 1975) fala de “uma compulsão que é responsável, também, por uma parte do rumo tomado pelas análises de pacientes neuróticos”. Essa dificuldade que se mostra persistente, pois não muda pelas vias da interpretação e que, nos dias de hoje, se afigura ainda mais consistente, parece se exacerbar devido ao modo como a cultura caminhou até aqui.

Trata-se de um segundo plano que permeia todo o processo, para além das questões discursivas implicadas no sintoma, na sexualidade e na transferência. Mesmo quando ela é a positiva, a amorosa, detecta-se alguma coisa que não se representa no plano da queixa, da demanda e do desejo, que é rebelde à associação livre e à simbolização. Por isso digo tratar-se de um segundo plano, pois escapa às entrelinhas, aos entreditos e interditos, como se fosse a tela de fundo de uma pintura, cuja textura influi no resultado final da obra, independentemente do que o artista pinta. Essa observação, que se decanta ao longo das análises, encontra seu paradigma teórico no mais além do princípio do prazer e, consequentemente, da sexualidade, na medida em que a tratamos a partir dos conceitos de princípio do prazer, da pulsão sexual, erótica, na vertente relativa à pulsão de vida. Esse mais além da sexualidade, articulado no âmbito da pulsão silenciosa que opera na surdina, surge na formulação freudiana como vertente excluída do discurso: a pulsão de morte.

Sendo muda, alheia ao campo da representação e do recalque, seus efeitos surgem como reação terapêutica negativa, repetição e sentimento inconsciente de culpa – ou culpa muda, por exemplo. Enquanto viés que escapa à elaboração propiciada pela linguagem, constitui o ponto duro das análises, que faz obstáculo ao acordo do sujeito em relação ao seu desejo.

Desde o Projeto, a teoria do psiquismo se constrói sob a égide da noção de Das Ding – A Coisa – o objeto perdido e primeiro, que permanece no aquém da representação. Tratada como inominável, “estranho” (Fremde) e “êxtimo”, já que é o mais íntimo, mais primordial, mas também o mais excluído do Eu, da subjetividade e do Inconsciente enquanto recalcado, “A Coisa” permanece irrepresentável.

Trabalhamos na interpretação com o gozo chamado fálico, que se refere a tudo que advém da sexualidade, que abarca desde o gozo do ato sexual até a criação, seja pela via da palavra, seja pela via da arte. Todo esse mundo de representação que, passando pelo registro da imagem, chega a encontrar sua vazão simbólica no laço social e na relação com o prazer, inclui a cultura, o sintoma e o amor. A psicanálise, no que tange ao discurso, percorreu um caminho sinuoso e construiu uma abordagem consistente das relações do sujeito com o saber do qual não-se-quer-saber, o saber recalcado, inconsciente.

Quanto ao saber que não se sabe, diferente do recalcado, Freud o detecta como impulso que, por não se representar em palavras, se descarrega pela via motora, ou seja, em ato.

Enquanto esse instinto opera, internamente, como instinto de morte, ele permanece silencioso; só nos chama a atenção quando é desviado para fora, como instinto de destruição. Parece ser essencial à preservação do indivíduo que esse desvio ocorra, e o aparelho muscular serve a esse intuito. Quando o superego se estabelece, quantidades consideráveis do instinto agressivo fixam-se no interior do ego e lá operam autodestrutivamente. [...]. Conter a agressividade é, em geral, nocivo e conduz à doença (à mortificação). Uma pessoa num acesso de raiva com frequência demonstra como a transição da agressividade, que foi impedida, para a autodestrutividade, é ocasionada pelo desvio da agressividade contra si própria: arrancar os cabelos ou esmurrar a face, embora, evidentemente, tivesse preferido aplicar esse tratamento a outrem. Uma porção de autodestrutividade permanece interna, quaisquer que sejam as circunstâncias [...] (FREUD, [1938] 1975).

A pulsão de morte, pulsão por excelência, opera no vetor que empurra o sujeito para além da esfera do desejo e do sentido, na forma de ato, de ação. E é nesses efeitos que podemos ler um tipo de gozo que transborda na civilização. Em sua busca imperativa de satisfação imediata e plena, se revelam a falta de sexualidade das relações, a diluição do laço social e a perspectiva de sujeitos cada vez mais imersos na busca individual e solitária de gozar mais e melhor – como assinala, aliás, Mellman (2008) na entrevista intitulada O homem sem gravidade.

Nessa nova organização dos gozos, inclusive o gozo sexual passa ao âmbito de um dever ético compulsório, como bem observa Zizek (2010):

Tradicionalmente, esperava-se que a psicanálise permitisse ao paciente superar os obstáculos que o privavam de seu acesso à satisfação sexual normal: se você não consegue isso, vá ao analista, que lhe permitirá ficar livre de suas inibições. Hoje, no entanto, somos bombardeados de todos os lados por diferentes versões da injunção “Goze!”, desde o gozo direto no desempenho sexual ao gozo na realização profissional ou no despertar espiritual. O gozo funciona hoje efetivamente como um estranho dever ético, indivíduos sentem-se culpados não por violar inibições morais entregando-se a prazeres ilícitos, mas por não serem capazes de gozar. Nessa situação, a psicanálise é o único discurso em que você tem permissão para não gozar – você não é proibido de gozar, apenas é liberado da pressão para fazê-lo.

Essa transformação do gozo sexual em obrigação “moral” que exige que se “Goze!” – e quero ressaltar o modo imperativo e categórico do verbo – implica a entrada num registro que pode ser mortífero para o sujeito, pela captura derrisória que o dirige para fora do discurso, para um gozo estranho ao desejo, pois a falta da proteção simbólica admite a invasão da vociferação alucinatória do Outro.

Nessa vertente, focalizamos os efeitos de mal-estar. Falamos de uma qualidade da ordem do horror e da angústia, podemos melhor compreender e confirmar sua ocorrência na cultura, tomando não apenas a clínica psicanalítica mas também a literatura no trabalho de escritores como Clarice Lispector, por exemplo, que em A paixão segundo G.H. descreve o encontro com “A Coisa”. Segundo Lacan ([1974] 1975), “[...] o que se chama um encontro quer dizer, no final das contas, algo que nos vem de nós mesmos” e, nesse caso, conduz G.H. à sua Coisa.

Para esclarecer a que me refiro, faço um recorte rápido do texto de Clarice (2009):2

É que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno. [...] Eu ia me defrontar em mim com um grau de vida tão primeiro que estava próximo do inanimado (p. 22). O meu bem eu não sabia qual era, então vivia com algum pré-fervor o que era o meu “mal” (p. 31). [...] e eu sentia com susto e nojo que “eu ser” vinha de uma fonte muito anterior à humana e, com horror, muito maior que a humana (p. 57). A primeira ligação já se tinha involuntariamente partido, e eu me despregava da lei, mesmo intuindo que iria entrar no inferno da matéria viva – que espécie de inferno me aguardava? Mas eu tinha que ir. Eu tinha que cair na danação de minha alma (p. 58). Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma verdade [...] uma verdade infamante que me fizesse rastejar e ser do nível da barata. [...] aos poucos estava me reduzindo ao que em mim era irredutível [...] (p. 59). Mas que abismo entre a palavra e o que ela tentava (p. 66). Não, não te assustes! Certamente o que me havia salvo até aquele momento da vida sentimentalizada de que eu vivia, é que o inumano é o melhor nosso, é a coisa, a parte coisa da gente. [...] e meus sentimentos humanos eram utilitários, mas eu não tinha soçobrado porque a parte coisa, matéria do Deus, era forte demais e esperava para me reivindicar (p. 68-69). [...] o imundo é a raiz – pois há coisas criadas que nunca se enfeitaram e conservaram-se iguais ao momento em que foram criadas, e somente elas continuaram a ser a raiz ainda toda completa. E porque são a raiz é que não se podia comê-las, o fruto do bem e do mal (p. 71). Minha agonia [...] num gozo sem esperança [...] (p. 73). [...] com fascínio e horror [...] Eu havia prendido defronte de mim o imundo do mundo – e desencantara a coisa viva (p. 74). Essa coisa cujo nome desconheço [...] Era-me nojento o contato com essa coisa sem qualidade nem atributos, era repugnante a coisa viva que não tem nome, nem gosto, nem cheiro. [...] senti então uma espécie de abalada felicidade por todo o corpo, um horrível mal-estar feliz em que as pernas me sumiam, como sempre em que eram tocadas as raízes de minha identidade desconhecida (p. 85). E nem ao menos eu estava tocando na coisa. Estava apenas tocando no espaço que vai de mim ao nó vital (p. 137). Pois a coisa nunca pode ser realmente tocada. [...] A coisa para mim terá de se reduzir a ser apenas aquilo que rodeia o intocável da coisa [...] e não consigo dar o passo para mim, mim que és Coisa e Tu (p. 138). Mas é a mim que caberá impedir-me de dar nome à coisa. O nome é um acréscimo e impede o contato com a coisa. A vontade do acréscimo é grande – porque a coisa nua é tão tediosa (p. 140). Mas eu sei que devo me destituir: o contato com a coisa tem que ser um murmúrio, e para falar com o Deus devo juntar sílabas desconexas. [...] Não, não tenho que subir através da prece: tenho que, ingurgitada, tornar-me um nada vibrante. O que falo com Deus tem que não fazer sentido! (p. 161). A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem (p. 176).

Ao final do relato, após o clímax do encontro com a Coisa, G.H. termina dizendo:

Enfim eu me estendia para além de minha sensibilidade. O mundo independia de mim [...] e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! Nunca mais compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim? [...] A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro (LISPECTOR, 2009, p. 179).

Dessa rápida e precária seleção de alguns pequenos e fecundos flashes da história vivida por G.H., pretendo extrair uma vaga ideia da ambiguidade dos efeitos que rodeiam a noção de Das Ding, “A Coisa” freudiana. “Pois a coisa nunca pode ser realmente tocada. [...] terá de se reduzir a ser apenas aquilo que rodeia o intocável da coisa [...]”, diz G.H. (LISPECTOR, 2009, p. 138).

Esse além da linguagem condensa, ao mesmo tempo, a “felicidade” da experiência de satisfação que introduz o princípio do prazer e o mal-estar do seu além: “[...] uma espécie de abalada felicidade por todo o corpo, um horrível mal-estar feliz; viver com um pré-fervor o que era o meu “mal”, gozo sem esperança; com fascínio e horror”, como tenta dizer G.H.; “Pois como poderia eu dizer sem que a palavra mentisse por mim?” (LISPECTOR, 2009, p. 179).

Esse gozo sem esperança, sem sentido, ousaria equipará-lo ao que Lacan chamou de Outro gozo [J(A)], pela própria ambiguidade que atravessa esse termo e também na medida em que ele é definido na vertente do que permanece exterior ao gozo sexual e ao próprio sentido.

Ao mesmo tempo em que se torna claro, através de G.H., o viés de horror e estranhamento da Coisa, também fica explícito um viés de êxtase, de felicidade, que podemos identificar ao que é proposto no Seminário 20, inclusive pela imagem da capa da edição estabelecida por Jacques-Alan Miller. Na escultura de Bernini, O êxtase de Santa Teresa – que sugere o “horrível mal-estar feliz em que as pernas me sumiam” de G.H. –, vemos representado o momento de êxtase quando o anjo, propondo “preencher seu vazio”, trespassa sua “zona sagrada” com uma lança cedida por Deus para “satisfazer seu desejo mais eterno”.3

Pode parecer que o Outro gozo, então, esteja ali articulado ao prazer da satisfação de um desejo sexual pela via da fantasia, que inclui o outro (o anjo) e a lança (objeto fálico, simbólico). Mas não é isso que Lacan propõe. O que ele propõe é a possibilidade de um gozo que não corresponde nem complementa o gozo sexual, que seria apenas suplementar, ou seja, um gozo mais além do falo, que ele articula como indefinível, indecifrável. Independentemente de ser tratado como próprio da posição feminina na sexuação, já que só pode ser atingido através da destituição de tudo que pertence à ordem fálica. O que interessa aqui é que deve ser pensado como consequência da interseção entre o Real – irrepresentável – e o Imaginário, onde a representação surge na forma de imagem.

Em que isso implica a clínica? Como psicanalistas, nos convoca a uma abordagem do que permanece “a-ser-dito”, “a-ser-representado”, do não colonizado pela linguagem, se assim posso dizer, para além da interpretação do não dito, porque interditado, inconsciente.

Isidoro Vegh (2013), tratando da questão das intervenções do analista em seminário recente e inédito, utiliza o modelo da informática para pensar essas questões através de um “diagrama de fluxo”. Seu diagrama começa por duas entradas: uma no campo da “vida”, no sentido do pulsional e outra no campo da “linguagem”, no sentido da fala. As duas se encaminham em direção ao falasser (parletre). Nas duas vertentes – no campo do Real e no campo do Simbólico – para aceder à condição de sujeito, de ser falante, temos de passar pelo que ele chama de “operador lógico da castração”, ou então de “processador do Inconsciente”. Aquilo que escapar à castração permanecerá atuante enquanto “gozo parasitário”. Na vertente Real, ele gera efeitos de “tentação pulsional”; no campo da linguagem, seus efeitos são “mandatos” ao estilo superegoico.

Tento reproduzir o diagrama a partir de minhas anotações:

 

 

A “tentação pulsional” é silenciosa, insistente e gera efeitos de ato, enquanto o “mandato”, em sua articulação entre Ideal e supereu, gera inibição e efeitos depressivos; nos dois casos, separando o sujeito de seu desejo. Ele dá como exemplo o usuário de cocaína que, mesmo desejando, não consegue se libertar da compulsão ao gozo da droga.

Quanto ao Outro gozo [J(A)], considerado como gozo do Outro, ele afirma que esse gozo não existe, já que o Outro completo não existe. Entretanto, mesmo não existindo, sua hipótese é necessária, e poderia ser entendido como “o sonho do paraíso perdido com o qual o neurótico vive sonhando”,4 pois através dele é possível manter a ficção de um Outro completo. Podemos entender que se trata de uma construção hipotética para dar conta da lógica da incompletude e do “ao menos um” para aqueles que, submetidos à castração, sonham com a realização do incesto, livre da interdição.

Esses sujeitos não nos procuram necessariamente por detectarem sua compulsão como tal, mas terminam revelando fatos e atos que poderiam parecer passagens ao ato perverso, na medida em que supostamente realizam uma satisfação direta, desmentindo a castração. Entretanto, nesses atos, fica expressa a ausência da satisfação própria do ato perverso. Atos cheios de ambiguidade, entre o prazer e a dor, nos quais a única coisa que fica evidente é a defasagem em relação ao desejo, a não satisfação do ponto de vista sexual e a ausência de sentido.

Como exemplo, poderia mencionar o jovem, filho exemplar, “empregado padrão”, moral inatacável, que ciclicamente “sai de si mesmo” [sic] e, mesmo não sendo usuário tradicional, se envolve em orgias regadas a drogas diversas, que terminam sem sexo e num caos financeiro e moral devastador, mas “só depois” do ato. A repetição reiterada dessa cena, que tem o aspecto de uma atuação perversa, poderia ser aproximada da chamada tentação pulsional?

Outro jovem, executivo bem-sucedido, não estabelece relacionamentos continuados com as mulheres, já que não pode abrir mão do gozo solitário com seu laptop. Mas sobre isso ele não se interroga, pois considera que essa é a maneira mais adequada aos nossos tempos informatizados, mesmo que isso o impeça de sustentar um laço amoroso extravirtual. Poderíamos pensar sua compulsão como um mandato, uma exigência de gozar, na perspectiva mencionada por Zizek?

Mesmo que, aparentemente, estejamos no circuito do gozo sexual, permeado pela linguagem, algo nessas duas situações permanece fora, escapa ao laço social e se expressa como um mais além da sexualidade, resistente e persistente na repetição do mesmo.

Há também duas adolescentes que encontram, na escarificação do corpo, o meio de resolver qualquer indício de angústia. Recorrem ao ato mecanicamente, como pura catarse resistente à significação. O ato só aparece na análise, pela via da queixa materna, como ato irrefreável que permanece sem levantar questão para as meninas. Nota-se que é algo diferente do ritual, que introduz um significado simbólico, que nomeia, que carrega mensagem. Distingue-se aí o caráter de ação motora – apontado por Freud no Esboço – como satisfação direta acéfala, ou seja, como efeito de um real que escapa à castração e, por isso, gera angústia e se resolve através do corpo.

Temos ainda a jovem que, para além das repetições sintomáticas, interpretáveis, da novela familiar, não consegue escapar dos maus encontros, que acaba definindo como seu “gozo com o sofrimento”. Seria esse um mandato, um chamado a “um horrível mal-estar feliz”?

As intervenções interpretativas do analista, operando pela linguagem, visam a relação do sujeito com o Ideal e com o desejo. Através delas se pretende conseguir a colonização dos gozos em desejo, a simbolização dos mandatos do supereu e a possibilidade de um discurso que permita surgir o “ser falante” no lugar do “ser gozante”.

Esse gozo, o sujeito só pode examiná-lo no âmbito de um raciocínio lógico, sem poder integrá-lo no contexto da significação, pois isso está ex-cluído do sentido. Isso nos explica magistralmente G.H., com uma linha associativa em que as palavras são buscadas em sua definição, escolhidas, adotadas ou descartadas na construção de um caminho que possa aproximá-la do inapreensível e no qual os sentimentos, enganosos em suas coberturas e predicados, só afastam do “si mesma”, pois se referem ao “eu”, ao “mim”, e não ao mais íntimo desse “si”. Isso que ela qualifica como anterior à humanidade, só pode ser precariamente chamado “coisa” e tratado com intervenções no campo do Real, como ela propõe ao lamber “a coisa” na barata. Em ato.

Desse tipo de intervenção no Real, espera-se um efeito de enlaçar os gozos ao desejo, o que corresponde a um ato, do lado do analista, e a uma tarefa, do lado do analisante. Convocados ao ato diante dessa hegemonia dos gozos, nós analistas, tradicionalmente acostumados a trabalhar no nível da escuta, na posição de objeto, para o surgimento do sujeito no analisante, cada vez mais nos vemos não apenas tentando desatar nós, mas também dar nó onde se faz necessário. E, nesse trabalho, que mais parece o de “dar nó em pingo d’água”, muitas vezes nos perguntamos com que ato intervir nesse além da interpretação.

Suzanne Hommel conta, no documentário de Gerard Miller intitulado Encontro com Lacan, como, na sua análise, fez uma associação entre um sonho e uma lembrança infantil relativa à Gestapo. Nesse momento, diz ela, “Lacan se levantou como uma flecha de sua poltrona, veio na minha direção e me fez um carinho muito doce no rosto”. O gesto de Lacan, que poderia ser traduzido por “GESTE À PEU” é um exemplo de como o analista pode operar pela via do Real, em ato, que deixará ao analisante a tarefa de interpretar, elaborar e integrar à sua rede de significações.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua João das Botas, 185/310
C. M. João das Botas - Canela
41110-160 - Salvador/BA
E-mail: barbieri.cibele@gmail.com

Recebido: 15/03/2014
Aprovado: 31/04/2014

 

 

SOBRE A AUTORA

Cibele Prado Barbieri
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia. Editora da Revista Cógito, publicação do Círculo Psicanalítico da Bahia.

 

 

1 Este texto foi apresentado na plenária do XX Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise e na XXXI Jornada de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, realizados em Belo Horizonte, de 26 a 28 set. 2013 sobre o tema “O sexual e as sexualidades: da era vitoriana aos dias atuais”, com o título O mais além da sexualidade na clínica psicanalítica. Aqui foi acrescentado o “diagrama de fluxo”, de Isidoro Vegh, mencionado no texto.
2 Que, aliás, merece ser lido na íntegra, principalmente pelos psicanalistas, em continuidade ao Projeto e aos Seminários 7 e 20, de Jacques Lacan.
3 O êxtase de Santa Teresa tornou-se um dos contos obscuros escondidos pela Igreja. Bernini revelou-o numa escultura. As expressões aqui usadas são do artigo O ÊXTASE de Santa Teresa.
4 Encontramos um comentário similar no livro As intervenções do analista (VEGH, 2001).

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