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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.41 Belo Horizonte jul. 2014
Caso clínico - A esquizofrenia sob o olhar da psicanálise
Clinical case - schizophrenia under the scrutiny of psychoanalysis
Maria Izabel Fernandes Karlin
ICírculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
RESUMO
Caso clínico de um paciente jovem diagnosticado como esquizofrênico, encaminhado ao CAP do CBP-RJ. O rapaz de 22 anos apresentava um quadro de mutismo, embotamento afetivo e ausência quase total aos estímulos externos. O histórico familiar é relatado, assim como as técnicas desenvolvidas no set analítico. A elaboração de um espaço criativo e de estímulos originados na relação psicanalista e paciente produziu ao longo do tempo, elementos presentes no tratamento psicanalítico, incluindo a transferência, a contratransferência, a resistência e a associação livre.
Palavras-chave: Esquizofrenia, Desejo, Objeto, Libido, Fragmentação e Integração.
ABSTRACT
Report of a clinical case of a young schizophrenic patient presenting mainly negative symptoms that has been followed under the psychoanalytic technics. A historical report of the Family is presented as well as a description of the methods used to handle the case, showing that the creative ambient created by the professional and the patient lead to most of the aspects presented in a psychoanalytical set, including elements like transference, countertransference, resistance and free association.
Keywords: Schizophrenia, Desire, Object, Libido, Fragmentation, and Integration.
Introdução
Esse artigo relata o caso clínico de um jovem paciente, diagnosticado como esquizofrênico que segui por quatro anos. Dentro do possível, o caso foi tratado sob um olhar psicanalítico com a intenção de investigar o quanto a técnica psicanalítica pode ser utilizada em pacientes psicóticos, sobretudo em um caso da gravidade desse paciente, bem como do quanto essa técnica tenha que ser ajustada sem, contudo, deixar de lado os pressupostos básicos da psicanálise.
O grande impasse da técnica psicanalítica com o sujeito psicótico é a dificuldade no estabelecimento da transferência desse com o psicanalista, e sabemos o quanto a transferência é uma “conditio sine qua non” para o êxito de uma análise.
Nesse caso, a escuta sob o viés psicanalítico do paciente foi o elemento fundamental no desenvolvimento do trabalho. Existe uma fala em um paciente esquizofrênico, e a questão que se põe ao psicanalista é como interpretar essa fala, que, mais do que em pacientes neuróticos, pode se apresentar por mutismos, gestos, palavras aparentemente soltas e muitos “não ditos”.
Um aspecto, que também me interessa ao relatar esse caso, é a observação de como é importante para o psicanalista envolvido com o paciente estar constantemente atento para o quanto e como ele suporta trabalhar nas condições apresentadas, considerando o processo que vive quando deparado com um paciente que sofre, mas que ao mesmo tempo adoeceu a ponto de não expressar nenhuma demanda.
Entrar em contato com o estado fragmentado do sujeito psicótico pressupõe entrar em contato com as nossas fragmentações e, mais que tudo, olhar de frente a nossa sensação de impotência diante do sujeito que aparentemente não nos deseja e que nos coloca quase sempre diante de um questionamento – o que você quer de mim – e do que eu quero de você.
Caso clínico
O paciente foi encaminhado ao CAP do CBP-RJ por indicação de uma escola estadual da Zona Sul do Rio de Janeiro, com ficha de entrada no dia 03/11/2008. Ele era aluno daquela escola e estava cursando pela segunda vez o segundo ano do ensino médio, com 22 anos de idade.
Aceitar ou não o paciente foi uma das primeiras questões levantadas no âmbito do CAP. Não só o paciente não chegou até ali por vontade própria, bem como seu quadro gerava dúvidas quanto a seu diagnóstico. Após algumas discussões entre os coordenadores, foi decidido que aceitaríamos o paciente.
O pai do paciente era porteiro de um prédio na zona sul do Rio de Janeiro, e a mãe, empregada doméstica. O casal teve dois filhos, e o paciente era cerca de três anos mais novo que a irmã. A família morava havia muitos anos nesse mesmo prédio onde o paciente passou toda a sua infância e adolescência.
Na primeira triagem não foi possível obter praticamente nenhuma informação acerca do paciente, pois ele não conseguia falar e emitia apenas alguns sons.
Minha primeira iniciativa foi refazer a entrevista para tentar obter mais informações, solicitando a presença do pai e da mãe.
Nesse primeiro encontro o paciente veio acompanhado somente pelo pai, que justificou a ausência da esposa, seja por estar muito ocupada com seu trabalho, seja descrevendo-a como uma pessoa que naquele momento estava muito fragilizada devido a uma doença que, segundo ele, quase a levou à morte. Eu pedi que o pai relatasse o que tinha acontecido com o filho. Ele então contou que certo dia o filho teve uma crise na escola e foi acompanhado até a casa por um colega. Pelo que foi reportado a ele, durante a aula o paciente improvisamente tinha se levantado de sua cadeira e iniciado a fazer um discurso muito confuso e desconexo. E ao chegar em casa ele tinha continuado a falar coisas estranhas. Quais eram essas coisas estranhas expressas pelo filho o pai não conseguia repetir (com muita dificuldade ele conseguiu dar a entender que o filho tinha utilizado a palavra “diabo”).
Segundo o pai, ao chegar em casa, o rapaz continuava muito agitado, o que o obrigou a chamar o Corpo de Bombeiros, que os conduziu ao Hospital Rocha Maia, que por sua vez os encaminhou ao Pinel, onde ele ficou internado por alguns dias. Quantos dias o paciente ficara internado e quais as indicações dadas pela instituição o pai se recusava a falar. As poucas vezes que conseguiu falar sobre o argumento era para dizer que o Pinel era um lugar muito ruim e que seu filho não pertencia àquilo, pois era um lugar para drogados.
Perguntei se já haviam ocorrido episódios como esse anteriormente, e sua resposta foi que esse tinha sido o único.Ele também relatou que o filho tinha sempre sido um rapaz normal até esse evento.
O discurso do pai era impregnado por muita ansiedade, mas em alguns momentos conseguiu revelar que um dos motivos que o convenceram a procurar ajuda no CBP-RJ era seu medo de que o comportamento do filho pudesse de alguma maneira prejudicar seu trabalho, já que a família vivia no prédio onde ele trabalhava.
Também ficou bastante evidente a sua preocupação e o desejo de que seu filho fosse homem e que gostasse de mulheres. Repetia sempre “esse é o meu único filho homem”. Repetiu várias vezes como o filho jogava bola com ele quando era pequeno, mas que após a crise se recusava a jogar bola ou ir à praia com o pai.
Embora o paciente não tivesse participado ativamente dessa conversa, achei prudente a sua presença, pois estávamos falando sobre ele. Durante o tempo em que falei com pai, seu olhar era vago e fixo em direção à porta da sala. Foi nessa condição que o paciente chegou para ser atendido e, segundo o pai, ele não estava sendo medicado.
Até então, a família tinha tentado trata-lo na Igreja Universal, e pelo discurso do pai ficou claro que o tratamento na Igreja era vontade da sua esposa. Ao final da entrevista ficou acordado que o paciente teria duas sessões por semana, que seria seguido por um médico psiquiatra e que o pai se comprometia a ajudar seu filho a seguir rigorosamente a medicação dada pelo médico. Também condicionei o início do tratamento ao comparecimento da mãe dele para que eu pudesse conversar com ela.
Através do CBP-RJ consegui um psiquiatra ligado à instituição para acompanhar o paciente. O pai, nessa ocasião, apresentou uma série de exames neurológicos do filho que não apresentavam nenhuma anormalidade. Ao que tudo indicava, esse pai estava buscando tratamento para o filho junto aos médicos, mas a médicos neurologistas. Como acontece frequentemente com pacientes que sofrem no campo psíquico, os pais e familiares negam o problema e preferem ouvir um diagnóstico confirmando um mal físico do que ouvir a palavra “esquizofrenia”.
Embora o paciente não falasse nem me olhasse, expliquei a ele as condições para seu acompanhamento, ou seja, a necessidade de tomar os remédios prescritos pelo médico e que nossos encontros seriam para falar ou ficar em silêncio, mas que só ele ficaria comigo enquanto seu pai o aguardaria na sala de espera.
Na segunda entrevista a mãe do paciente compareceu. Fiquei surpresa ao ver que aquela pessoa que estava na minha frente não tinha nenhuma semelhança com a descrição dada por seu marido, de uma mulher praticamente à beira da morte. Contrariamente, eu encontrei essa mulher muito bem vestida, com uma aparência jovem (apesar dos seus 50 anos) e sem rugas no rosto. Tentei cumprimentá-la, mas sua mão escorregou sobre a minha evitando qualquer contato de pele. Os movimentos que ela fazia com as mãos eram os mesmos do filho (esfregar as mãos), e seu olhar era distante como o do filho.
A doença grave da mãe tinha sido uma cirurgia para retirada do útero, mas não tinha sido nada relacionado a um câncer ou a outra doença grave que a levasse necessariamente a um risco de morte. Diante dessa dissonância de relatos, pude perceber que o pai era um sujeito com um núcleo bem histérico. A mãe me passou uma sensação de indiferença e falta de vida.
Finalmente estávamos os três juntos. Meu paciente, sempre silencioso, olhando o vazio; o pai muito agitado, ansioso e interrompendo sempre a conversa, e a mãe, calada.
Decidi fazer algumas perguntas para a mãe e devo dizer que ela descrevia muito melhor o quadro do filho do que o pai. Fornecia mais detalhes, mas ao mesmo tempo falava do filho sem sinal de sofrimento. Para ela seu filho era assim. Talvez a única coisa que a perturbasse um pouco era que ela o achava muito preguiçoso. Ela percebeu que o filho não estava bem muito antes do episódio na escola, mas ao mesmo tempo ela deu a entender que nunca tinha achado seu filho muito normal.
Sua descrição do filho era bem diferente da do pai. Ela relatou que o paciente tinha sido sempre um menino diferente, que sempre teve dificuldades na escola e que ela não sabia nem como ele tinha chegado até o ensino médio. Contou que ele nunca foi de ter amigos e que por volta dos 14 anos começou a usar só roupas pretas e óculos escuros, ficando sempre trancado no seu quarto, isolado. Segundo ela, toda a sua família e amigos percebiam que ele era diferente e deu a entender que isso a envergonhava bastante.
Além de usar só roupas pretas, ele tomava vários banhos durante a noite e se olhava constantemente no espelho. Não suportava televisão ou rádios ligados em casa e, antes da crise, começou a repetir o final das palavras que lhe eram faladas e, em particular, a palavra SOS. Segundo ela, SOS se referia ao nome de um curso de computação que o rapaz frequentava. (Imediata é a associação de SOS com socorro.)
Perguntei sobre a gravidez do filho, e ela disse que tinha sido tudo normal e que ele tinha sido um bebê que chorava muito. Ela repetiu várias vezes que ele chorava muito.
As informações da mãe esclareceram que nem tudo estava bem com o paciente antes da suposta crise e que ele já emitia sinais de que precisava de ajuda: isolamento social, se olhar no espelho obsessivamente, fazer percursos longos de bicicleta (a mãe se preocupava porque ele ficava muitas horas andando de bicicleta e tinha medo que acontecesse algo com ele, tanto que por fim ela decidiu tirar a bicicleta dele).
Segundo a mãe, o quadro do filho teria piorado após o casamento da irmã (o casamento acontecera poucos meses antes do episódio na escola). Em alguns momentos ela tentou culpar o pai pela situação do filho, dando a entender que ele interferia muito na vida dele.
Nessa conversa ficou bastante evidente que o casal tinha conflitos, mas que fazia questão de manter uma certa aparência de que estava tudo bem.
A mãe não demonstrou grande entusiasmo pelo tratamento que eu estava propondo e disse que ela não acreditava que o filho pudesse melhorar. Segundo ela, só mesmo a fé o podia curar.
Durante os 4 anos que seu filho foi atendido por mim, ela compareceu apenas duas vezes para falar do filho, e mesmo assim porque eu insisti muito. Ela sempre tinha uma desculpa que quase sempre era o trabalho.
Após essas primeiras entrevistas o paciente foi a um médico psiquiatra que o diagnosticou com esquizofrenia e passou uma medicação adequada. Quem acompanhava o paciente às consultas era o pai, que o aguardava na recepção. Também era o pai que acompanhava o filho ao psiquiatra e que providenciava os remédios para ele. A mãe não se ocupava de nada relacionado ao filho, exceto que, pela fala dele, mais tarde soube que ela cozinhava bem.
Embora agitado e nervoso, o pai tentava fazer alguma coisa para reverter o quadro do filho, enquanto ficava cada vez mais claro que a mãe tinha desistido dele há muito tempo.
O trabalho no set analítico
As sessões duravam cerca de vinte minutos que era o máximo que o paciente conseguia ficar na sala. O paciente não se deitava até porque não é indicado o divã para pacientes psicóticos, pois algumas vezes até na poltrona eles têm dificuldade de ficar. Eu o deixei livre para escolher onde ele queria se sentar.
Não tínhamos muita comunicação e após vinte minutos estávamos os dois bastante angustiados. Ele controlava seu relógio praticamente a cada minuto que passava e fazia uma série de movimentos com o rosto e com a boca, olhando o tempo todo para a porta de saída, literalmente querendo escapar.
Eu sempre falava para ele que, caso quisesse ir embora, ele poderia ir, mas em geral ficava os vinte minutos combinados. Aprendi com ele que, quando combinava alguma coisa, ele cumpria. Os vinte minutos eram respeitados por ele e por mim.
Em uma das primeiras sessões eu disse a ele: “Tudo bem que você ainda não consegue falar, mas você consegue me escutar, certo? Então vamos estabelecer um código para nos comunicarmos”.
Escolhi o primeiro objeto que vi na minha frente, ou seja, uma caneta azul e uma vermelha e estabeleci que a caneta azul iria significar “sim” enquanto a vermelha significaria “não”.
Claro que a minha primeira dificuldade foi lidar com um paciente sem uma demanda explícita. A minha primeira pergunta foi, literalmente: como é que eu vou sustentar o desejo de um paciente que não deseja nada?
Não demorou muito para que eu concluísse que o desejo, naquele momento, era meu e assumi meu desejo sem culpa. Eu queria muito entender o paciente.
Estamos agora na situação de apreciar que o indivíduo com uma tendência esquizoide tem outro motivo para guardar seu amor dentro de si, além do que surge da sensação de que esse amor é demasiado precioso para separar-se dele. Também mantém encerrado seu amor porque o sente como demasiado perigoso para descarregá-lo em seus objetos Assim não só guarda seu amor numa caixa-forte, mas até o guarda numa prisão. Porém... Como sente que o próprio amor é mau, está disposto a interpretar o amor dos outros em termos similares (FAIRBAIRN, [1941] 1980, p. 21).
Ele tinha suas razões para não desejar dar nada às pessoas, e cabia a mim lidar com a minha contratransferência.
Uma coisa eu também entendi: Eu teria que inventar e criar muito nesse trabalho, mas também me deixei levar pela minha intuição. Claro que não podia utilizar o método psicanalítico puro e simples, mas eu sabia que eu podia ter uma escuta psicanalítica e deixei que minha intuição fluísse no set.
Além de criar o nosso código de “sim” e não”, decidi que eu falaria com ele. Acho que pensei que ouvir histórias é sempre bom e, quem sabe, ele pudesse gostar de ouvir alguma história.
Comecei a trazer livros para o consultório. Não eram livros especiais, eram livros que eu pegava na minha casa de acordo com o seguimento do nosso relacionamento. A primeira vez eu trouxe um livro muito antigo e raro sobre um personagem histórico e famoso. Primeiro mostrei o livro, expliquei a ele que era antigo, por isso estava um pouco deformado, mas que naquele livro estava escrita a história de uma pessoa, que tinha sido muito especial e importante, única na história para o mundo e, mais que tudo, tinha o mesmo nome dele. Embora a escolha do livro tenha sido intuitiva, no meu íntimo, eu estava mostrando a ele um livro de fato muito especial, um objeto histórico do qual eu cuidava atentamente para que não se perdesse com o tempo. Era talvez o prelúdio de como seria meu trabalho com ele; um trabalho quase que artesanal, cuidadoso em relação a alguém que não podia continuar a se perder com tempo.
O personagem do livro com o mesmo nome dele era a minha tentativa de fazê-lo reconhecer que existiam outras pessoas com seu nome, mas que a história de cada um era diferente.
Eu percebi que ele me escutava, chegando a olhar o livro ainda que sua expressão fosse de indiferença. Eu frisava sempre que ele poderia pedir para eu parar de falar caso a minha fala o incomodasse, mas ele permanecia silencioso.
Como ele carregava no peito a mochila da escola, eu pedi para ver seus cadernos e vi que ele conservava os cadernos dos anos anteriores. Sua letra era perfeita e bonita. Perguntei se ele queria me mostrar seus deveres e a partir daí, no início da sessão ele costumava mostrar seus cadernos. Os cadernos novos estavam praticamente em branco, mas ele continuava a me mostrar também os antigos. Assim como eu tinha trazido um livro antigo, ele trazia seus cadernos antigos, cadernos esses que representavam um momento em que talvez sua libido não estivesse tão submersa.
Na quarta sessão eu aguardei o paciente, e ele não apareceu. Depois de esperar trinta minutos, liguei para a casa dele, e o pai respondeu dizendo que tinha esquecido de levar o filho ao consultório. Perguntei se estava tudo bem e pedi que aquilo não se repetisse, pois eu tinha esperado por ele.
Não passou uma hora, e o pai me ligou dizendo que o filho estava tendo uma crise forte, que estava muito agitado e que já tinha jogado uma garrafa pela janela.
Naquele momento eu pensei: eu preciso ver esse paciente durante uma crise, eu preciso entender o que acontece com ele quando ele sai desse estado passivo e robótico que sempre o vejo. Pedi ao pai para ligar para o psiquiatra informando sobre o que estava ocorrendo e que me aguardasse, pois eu estava indo até a casa deles.
Acredito que tenha sido uma atitude boa ter ido até lá, embora isso possa contrariar a técnica psicanalítica tradicional na qual a saída do set pode de alguma maneira contaminar a relação com o paciente, só que eu não queria que ele fosse internado de novo. Ao chegar na casa encontrei o rapaz tranquilo como o via no consultório. Perguntei se estava tudo bem, e ele falou que sim. Pedi ao pai para conversar sozinha com o paciente no quarto dele, me sentei no chão com ele, perguntei se ele tinha jogado a garrafa pela janela, e ele negou. Perguntei se tinha acontecido alguma coisa que tenha aborrecido; ele também disse que não.
Ao mesmo tempo ele muito amistosamente mostrou seu quarto, seu computador e a fotografia da irmã (uma moça muito exuberante) e o mais interessante é que pela primeira vez ele conseguiu falar um pouco.
Enquanto eu estava na casa dele o psiquiatra ligou e, embora eu não achasse que o rapaz estivesse tendo um surto, achei melhor que ele fosse até o consultório.
Chegando ao consultório o psiquiatra lhe deu uma injeção (embora ele não estivesse agitado) e disse que não era caso de interná-lo. Eu achei desnecessária a medicação, pois o rapaz estava realmente muito calmo, mas, não sendo médica não cabia a mim interferir no trabalho do outro profissional, até mesmo porque ele estava me dando um suporte muito grande no tratamento desse paciente.
Não posso negar que cheguei a pensar que quem estava precisando de um calmante era o pai.
Enquanto ele era medicado, eu percebi que o pai falava com ele como se ele fosse uma criança de 5 anos. Explicava para seu menininho que ele estava tomando uma vacina. Passado esse episódio, ele retornou as suas sessões e nunca mais faltou.
Eu fiquei com uma série de interrogações sobre o que tinha acontecido e cheguei a cogitar que tudo não tivesse passado de uma encenação, mas de fato o pai tinha me mostrado alguns papéis onde estava escrito “jogar a garrafa pela janela”, “jogar a cadeira pela janela” e aparentemente a letra era do meu paciente (o pai praticamente não sabia ler ou escrever).
É bem verdade que a garrafa tinha sido jogada, mas em um lugar muito seguro, de maneira que não machucasse ninguém e a cadeira não poderia ser jogada pela janela, pois o apartamento era todo gradeado. Que esse episódio estivesse relacionado à não vinda dele à sessão também me parecia provável.
Vale salientar que em todo esse episódio a mãe do paciente não apareceu nenhuma vez. Ela estava o tempo todo no prédio trabalhando em um apartamento abaixo do deles. Alguém pode pensar que ela estava presa no trabalho, mas isso não correspondia à realidade, pois ela tinha total liberdade de ir até a sua casa quando ela precisava (essa informação eu tive depois).
A casa deles era simples, mas a primeira sensação que eu tive era que naquela casa não havia uma presença feminina. Faltava basicamente a sensação afetiva de cuidado e tinha uma forte impressão de abandono emocional.
Também durante esse episódio percebi que a única frase que saiu sem querer por parte do pai foi que, antes do suposto surto, seu filho estava no terraço conversando com um rapaz do prédio, informação confirmada pelo paciente. Nunca mais ouvi falar sobre esse amigo do prédio.
Recomeçamos nosso trabalho e acredito que meu paciente tenha voltado um pouco mais aberto do que antes. Continuava com seu comportamento robótico, mas algumas palavras começaram a aparecer.
Percebendo que ele estava um pouco mais receptivo, propus a ele que em vez de sentar na poltrona poderíamos sentar no chão e propus jogar com ele. Achei que sentar no chão seria mais relaxante para ele. A sua tensão era visível, e achei que criando um espaço lúdico pudesse facilitar o nosso relacionamento.
Só que até brincar não é algo simples, mesmo porque eu não queria fazer um show para o paciente. Eu tinha que tentar ao máximo criar um espaço para ele se expressar. Com uma visão lúdica certamente, mas sem infantilizá-lo, pois ele já tinha um pai que o tratava como uma criança. As tentativas de “brincar” com ele foram inúmeras. Eu buscava algo que pudesse despertar nele algum interesse, o que não era nada fácil. Nossas sessões eram divididas em duas partes: na primeira eu via os trabalhos dele na escola; na outra procurávamos brincar.
Comprei uma caixa de jogos (dama, dominó, etc.) e levei para as sessões. Jogávamos dama ou dominó, o paciente não jogava muito bem, mas eu decidi não fingir que ele jogava bem e quando ele errava muito eu sinalizava onde ele estava errando. Enquanto jogávamos, eu lhe fazia perguntas da escola e, pouco a pouco, com a voz ainda muito embargada, ele começou a responder a essas perguntas.
Desde o início eu sempre falei com ele de forma adulta e percebi que a fala com ele tinha que ser clara e sem enganos. Por isso até no jogo era coerente. Se ele perdia, eu dizia que ele tinha perdido, sem fingimentos.
Embora ele não conseguisse seguir as aulas, ele gostava muito de frequentar a escola, gostava dos professores e se sentia tratado bem lá dentro.
Ele se dava conta de que suas dificuldades de aprendizado eram grandes, mas ele queria continuar a frequentar as aulas. A escola era muito simbólica para ele e era o único lugar que ele queria ir.
Pouco a pouco ele passou a jogar cada vez melhor e a prestar mais atenção no que fazia. Adorava jogar dominó e quase sempre ganhava de mim, e não porque eu deixasse ele ganhar. No jogo de damas ele tinha mais dificuldade, mas mesmo assim continuamos a jogar, e ele sempre escolhia as peças pretas. No final de cada sessão ele me ajudava a arrumar a sala e ia embora, e nesse ponto ele sempre foi muito colaborativo.
Após uns seis meses de tratamento, eu pedi ao pai para não acompanhá-lo e deixá-lo vir sozinho. Eu sabia que meu paciente conseguia ir sozinho até a escola e voltar sozinho para casa. Logo ele podia vir sozinho até o consultório, que era muito perto da sua casa. Esse meu pedido também tinha como objetivo afastar o pai das sessões, pois ainda que ele ficasse na sala de espera, eu sentia que ele estava sempre tentando ocupar o lugar do filho. O pai aceitou a minha proposta com muito medo, mas combinamos que o paciente teria um celular para ligar para mim ou para seu pai caso ele precisasse de alguma coisa na rua. No início o pai ficava muito agitado em deixar o filho vir sozinho e costumava ligar para a secretária para saber se ele tinha chegado bem, mas com o tempo ele se tranquilizou. O paciente vinha sozinho e terminada a sessão pegava seu ônibus e ia para escola.
Quando ele passou a vir sozinho, percebi que ele parava na frente do elevador, mas não apertava o botão para o elevador chegar. Ele ficava esperando que o elevador de alguma maneira chegasse. Expliquei-lhe que o elevador só ia chegar se ele o chamasse e que o mesmo acontecia com a porta do consultório; ela só se abriria se ele tocasse a campainha e a mesma coisa na saída. Uma vez que isso foi explicado, ele logo aprendeu a chegar sem problemas e, mais do que isso, ele começou a usar também as escadas. Um dia ele chegava pela porta dos fundos, pois tinha subido a pé; outros dias ele chegava de elevador, mas ia embora pela escada.
Após algum tempo ele fazia esse caminho circular, entrava pela porta da frente e saía pela porta dos fundos, e vice-versa.
Quando percebi que ele começava a falar mais, começamos a ler um livro juntos e o primeiro livro foi A volta ao mundo em 180 dias. Eu lia uma parte do livro, e depois ele continuava a ler mais um pouco.
Na sessão seguinte ele sempre lembrava onde tínhamos parado de ler, e eu pedia a ele para me contar o que tínhamos lido. Ele tinha ótima memória, seja para os nomes, seja para os lugares, e invariavelmente conseguia contar sobre o que tínhamos lido.
Em princípio eu tive a ideia de ler com ele para ajudá-lo a recuperar seu vocabulário e queria ver se ele conseguiria interpretar os textos. Como já citei antes, ele não tinha dificuldades em interpretar o texto. Mesmo que algumas palavras fossem mais difíceis, ele conseguia entender o contexto e me perguntava o significado das palavras mais difíceis. Aproveitando que o livro falava de continentes e países diferentes, comecei a trazer alguns livros com mapas e costumes dos países que eram referidos no livro. Enquanto líamos os livros, falávamos de comidas diferentes, de roupas diferentes, enfim falávamos das diferenças no comportamento das pessoas.
Com esse hábito de levar livros, algumas vezes eu perguntava se ele queria levar algum livro para casa, e algumas vezes ele aceitava.
Eu sempre achei que livros ligam as pessoas e de certa forma eu acreditava que levar os livros com ele era um modo de ele interiorizar o trabalho que estávamos fazendo juntos. Não ousaria dizer que ocupariam o lugar de um objeto transacional, mas de certa forma era o início da ligação do paciente com algo que também era meu, talvez um pouco de seio bom.
Quando percebia que ele se entediava com a leitura, eu propunha que fizéssemos alguns desenhos e algumas pinturas e, dessa forma, intercalávamos as sessões de leitura com sessões de pintura ou desenho.
Nisso já estávamos com mais de um ano de análise, e o paciente já falava normalmente, embora seu relacionamento comigo continuasse privo de qualquer demonstração de afeto.
Seja na tarefa de desenhar, seja na de pintar, eu participava com ele e observava que o que ele gostava mesmo era de copiar desenhos. Sua capacidade de criar estava empobrecida, e não havia espontaneidade. No entanto, quando se tratava de copiar desenhos, ele era muito bom. Ele chegou a copiar um quadro de Modigliani com bons resultados.
Eu tentava trazê-lo mais para a pintura livre e disse-lhe que podia simplesmente jogar as cores na tela e que não importava o resultado. Na minha opinião, a pintura livre seria uma forma de o paciente expressar seu inconsciente, mas ele resistia a essa ideia. Pela primeira vez o paciente criou uma palavra para definir essa nossa atividade. Ele dizia que iríamos pintar “bagunça”. Ele sempre fazia questão de dizer que ele preferia copiar a fazer “bagunça”, ele necessitava das coisas ordenadas.
Numa dessas sessões de desenho, pedi ao paciente para desenhar sua família. Não sou especialista em interpretar desenhos, porém pude observar que no desenho apresentado o paciente é privo do órgão sexual, a mãe usa calças compridas e também não tem um órgão sexual, enquanto a irmã e o pai apresentavam um órgão sexual pouco definido mas igual para os dois. O conceito de masculino e feminino não era definido no desenho. Ele e a mãe não apresentavam o órgão sexual, a mãe usava calças compridas enquanto ele usava calças curtas como o pai.
Como o paciente preferia copiar desenhos, comecei então a trazer revistas e livros e, a partir desses, ele escolhia o que ele queria copiar. As cores dos desenhos eram um pouco modificadas, mas ele gostava de usar cores mais vivas e, quando podia, desenhava um sol (símbolo do pai). Seus desenhos eram alegres.
Intercalando com a iniciativa livre, pedi a ele um dia para desenhar sua casa. Ele desenhou três casas separadas, uma cadeira que tinha no seu quarto, o ventilador da sala e os óculos do pai. Observe-se que ele fez questão de desenhar três casas, uma para cada membro, e os conteúdos das casas, como o detalhe dos óculos do pai, mas os objetos não eram integrados demonstrando que sua noção de dentro e fora ainda era muito rudimentar.
Ele passou a gostar de copiar motocicletas e carros e era impressionante como ele chegava a ser detalhista ao desenhar uma motocicleta.
A cisão dele ficava muito clara nos desenhos, pois, ao retratar a família e a casa, o resultado era muito infantil, enquanto ao copiar um carro ou uma motocicleta, o desenho era de um adulto.
Ele fez questão de levar para sua casa e guardar no seu armário a maioria dos desenhos que ele fez e dos quadros que pintou, deixando apenas alguns exemplos comigo.
Sempre aproveitando o seu gosto pelo desenho, trouxe livros sobre pintores famosos e aos poucos eu tentava introduzir a ideia do corpo inteiro de uma pessoa. Um dia, ao pedir a ele para escolher a figura de um nu para desenhar, ele escolheu o de uma mulher.
Sua fala melhorava a cada dia, mas era uma fala sem afeto. As palavras retornavam, mas desconectadas de sentimento.
Um dia meu celular tocou durante a sessão. Eu tinha um celular vermelho com alguns bonequinhos que lutavam na tela e, como o telefone estava no chão do consultório, quando fui pegá-lo para desligá-lo percebi que ele olhou o celular de uma forma diferente. Era um olhar com sentimento. Então perguntei se ele queria pegar o celular e ele disse que sim. Disse que era bonito, viu os jogos que eu tinha e chegou a tirar uma foto sua com meu celular. Pela primeira vez seus olhos brilharam e pela primeira vez ele olhou para mim.
Algo tinha acontecido naquele momento. Talvez estivéssemos criando um laço mais afetivo e tínhamos um objeto comum: um celular que eu gostava e que ele também gostava. Já tinha passado mais de dois anos desde o início da terapia.
Nesse dia nossa sessão durou sessenta minutos; sessenta minutos nos quais ele não controlou o relógio. Ele mexeu no celular, explorou suas funções e fez algumas fotos.
Após essa sessão seu pai me disse que ele tinha pedido uma máquina de fotografia de presente. O celular ele já tinha, mas ele tinha gostado muito de tirar fotos. Óbvio que seu pai ficou feliz com esse pedido e deu um jeito de comprar uma pequena máquina fotográfica que também filmava. A partir de então ele tirava fotos da família, filmava sua casa e me trazia suas filmagens. Nesse período o pai dele também me disse que o filho tinha procurado seus brinquedos antigos e que estava brincando com um carrinho em casa.
Nessa etapa do tratamento, o pai do paciente tinha aceitado fazer análise, o que tinha sido uma iniciativa muito boa. Como ele disputava muito o lugar do filho comigo e não se descolava dele, foi aconselhado que ele também fizesse análise com outro psicanalista. Isso melhorou muito minha relação com o paciente, pois o pai passou a cuidar de si próprio e deixou de projetar toda a sua falta e sua ansiedade no filho. O ideal teria sido que a mãe também aceitasse fazer análise, mas esse objetivo nunca foi atingido, pois ela sempre se recusou.
A partir daí, meu paciente já conseguia se expressar e começou a falar e a mostrar os filmes que fazia nas suas viagens a Miguel Pereira. Sua irmã morava em Miguel Pereira e ele ficava muito feliz quando viajava para lá.
Eu pedi a ele que sua irmã viesse conversar comigo, afinal ele tinha um grande amor por ela. Isso nunca aconteceu, embora ela viesse muito no Rio. Segundo ele, ela alegava não ter tempo para vir me visitar. Assim como a mãe, a irmã também não tinha tempo.
Em um certo momento a escola chamou o pai para comunicar que o filho teria que repetir de ano de novo. Seria a terceira vez que ele faria o segundo ano do ensino médio. Mesmo com essa notícia, o paciente manifestou seu desejo de continuar a frequentar a escola, mas queria ir à noite, pois, segundo ele, à noite haveria pessoas da sua idade. Esse era um pensamento muito lógico, mas o pai não pensava assim porque tinha medo que o filho, saindo à noite, fizesse amizade com pessoas de má índole.
Eu também fui informada que o programa de estudos à noite era muito puxado e que provavelmente ele não conseguiria seguir seus colegas. Conversei com meu paciente sobre essas dificuldades e sobre as preocupações do seu pai e combinamos que, assim que ele se sentisse mais seguro para frequentar a escola, ele poderia retornar para um curso supletivo.
Eu reconhecia que era mais uma tentativa do paciente de tentar crescer. Sair à noite era frequentar adultos e fazer coisas que os adultos fazem, mas lidar com pacientes nesse estado significa lidar com sua família e significa responsabilidade. Não me senti em condições de afirmar com convicção que ele poderia continuar seus estudos à noite.
Não foi um momento fácil para ele, pois a escola era um ambiente que o paciente não queria deixar apesar do fracasso em superar o ano escolástico. Por outro lado, a realidade era que ele não conseguia seguir o programa. Por fim, foi decidido que ele deixaria a escola. A partir daí, em vez de seus livros da escola dentro da mochila, ele passou a carregar os livros que eu emprestava para ele e os desenhos que ele fazia.
Várias vezes eu tentava adentrar no assunto do que ele gostava de fazer. Sua resposta era “nada”. Se eu perguntava se ele tinha vontade de trabalhar, ele dizia que “não”. Certa vez pedi ao pai se ele não poderia ajudar no prédio lavando carros, por exemplo, já que ele gostava de carros. Ele chegou a lavar duas vezes um carro e segundo o pai ele tinha feito um ótimo trabalho, mas parece que depois disso o pai ficou com medo que o síndico do prédio criasse algum problema. O pai tentava esconder esse filho no prédio pelo preconceito das pessoas e pelo seu próprio preconceito.
Como ele gostava de verde e da natureza, propus a ver com ele um curso de jardinagem no Jardim Botânico. Ele chegou a manifestar uma certa vontade de fazer, mas ao mesmo tempo afirmava não conseguir sair de Copacabana. Ele saía de Copacabana só para ir ao Shopping Rio Sul e, mesmo assim, só se fosse acompanhado do pai. Gostava de comprar camisas, e não necessariamente tinham que ser pretas, embora o preto continuasse a ser sua cor preferida, mas era curioso observar como o preto nunca era usado em suas pinturas.
Como a sua linguagem tinha melhorado muito, já era possível conversar mais com ele e comecei cuidadosamente a perguntar mais sobre seu passado.
Ele falava muito da sua primeira escola (uma escola primária que fica no Corte do Cantagalo na Lagoa). Falava dessa escola com muito afeto e como se tivesse sido o lugar que ele mais gostou de frequentar. Lembrava o nome de sua professora e dizia que ali brincava muito. Ele tinha deixado essa escola aos seis anos e relatou esse fato com uma certa tristeza.
Contou-me sobre sua viagem junto ao pai para a Paraíba, quando foi conhecer sua avó. Dizia que sua lembrança mais forte era que a casa da avó era muito pequena. Falou sobre sua avó materna, que morava em Duque de Caxias, e disse que gostava muito de ficar lá.
Contava-me dos fins de semana em casa e dos churrascos que o pai organizava para a família. Esses churrascos incomodavam o paciente, pois segundo ele sempre tinha muitas fofocas. As pessoas sempre falavam mal uma das outras, e ele não gostava disso. A palavra fofoca era trazida por ele de modo muito frequente.
Chegamos a falar de sexo e ele disse que se masturbava. Falou com muita vergonha e me contou que seu pai o levava frequentemente a uma sexy shop para pegar filmes pornográficos. Perguntei se ele gostava desses filmes, mas ele apenas riu. Foi interessante que, ao falar da sexy shop onde o pai o levava, ele fez questão de frisar que era “aquela” que ficava do lado de uma igreja em Copacabana. Mais tarde soube, de forma indireta, que, antes da crise que ele teve na escola, o pai o teria levado para ter sexo com uma prostituta.
Certa vez perguntei-lhe se mentia, e ele rapidamente respondeu que não. Eu perguntei de novo: “mas nenhuma mentirinha?”. Então ele disse que sim... que de vez em quando ele falava algumas mentiras, mas sem citar nenhuma.
Perguntei se ele achava que seus pais mentiam, e ele prontamente disse que não... mas após um silêncio disse:
Na verdade não sei... eu tinha um cachorro, e esse cachorro sumiu. Meus pais me disseram que ele fugiu, mas eu acho que não é verdade. Eu também tinha um pássaro... meu pai disse que um pássaro maior o havia comido, mas eu também acho que isso não é verdade. Eu também tive um gato, e meus pais disseram que esse gato tinha fugido, mas eu não acredito, pois acho que seria muito difícil ele fugir. E tem também a bicicleta... meus pais disseram que ela foi roubada, mas eu acho que eles venderam minha bicicleta.
A partir desse discurso falamos sobre o afeto que ele nutria por esses animais e por sua bicicleta. Ele gostava dos seus animais e sentia muita falta da sua bicicleta, embora aceitasse que seus pais não gostavam muito que ele andasse com ela, pois era muito perigoso.
O assunto dos animais de estimação retornou em várias sessões seguintes. Ele lembrava do seu cachorro, do seu nome e manifestou seu desejo de ter um outro animal, mas era consciente de que os pais não permitiriam. Da família o que pude notar é que ele sempre ressaltava o fato de serem muito fofoqueiros.
Ir para Miguel Pereira visitar sua irmã era um programa que o divertia muito, e sempre quando voltava de lá me trazia filmes da viagem.
Ele se recusava a falar da mãe e continuava a repetir que ela tinha que trabalhar muito e que a dona da casa onde ela trabalhava não deixava ele entrar lá dentro, mas sempre dizia que a mãe cozinhava muito bem.
O pai dele resolveu comprar uma casa para a família em Miguel Pereira e o paciente chegou a dizer que gostaria de viver lá, pois era tranquilo e silencioso. Nesse período eles viajavam bastante para Miguel Pereira em busca dessa casa.
Uma das casas que poderia ser a escolhida não foi do agrado do paciente porque tinha um barranco atrás e, como foi no período de chuvas fortes no estado do Rio, ele achou que esse barranco poderia cair sobre a casa. Nesse período de chuvas ele me trazia muitas notícias que tirava dos jornais, notícias que relatavam os desabamentos em diversas cidades.
Essa atividade de troca de notícias foi mais uma das coisas que fazíamos juntos. Recortávamos notícias e as relatávamos nas sessões. Ele só trazia notícia de tragédias naturais. Ele não trazia notícias de assassinatos ou coisas do gênero. Ele pesquisava nos jornais notícias relativas a enchentes, tsunamis, terremotos, vulcões e outros. Muitas sessões foram dedicadas a essas tragédias naturais, o que não deixava de ser uma forma de relatar a sua própria tragédia interna, o seu desmoronamento. Talvez esse fosse o sentimento que ele tinha por dentro. Um desastre. Uma catástrofe.
Um dia eu telefonei para o seu celular para pedir se seria possível trocarmos nosso horário, pois eu tinha um compromisso. Ele não respondeu ao meu telefonema e eu tive que ligar para seu pai. Na sessão seguinte eu perguntei a ele por que não respondia, já que ele tinha recebido esse celular para falar comigo ou com seu pai ou mesmo qualquer outra pessoa. Ele respondeu que não tinha respondido porque: “Ninguém liga para mim!” E eu lhe disse: “Mas eu ligo para você!”. A partir de então ele passou a usar seu celular, e alguns dias depois quis me contatar para dizer que tinha que trocar o horário, pois tinha um compromisso com o pai. Ele começou a me ligar às 05:00 da manhã! Quando acordei vi todas as ligações dele e devolvi a chamada. Foi quando eu soube a razão de ele ter telefonado. Isso aconteceu outras vezes, ele ficava tão ansioso para comunicar um fato que precisava começar a me ligar de madrugada. Como já mencionei no início, qualquer mudança por pequena que fosse, gerava nele uma profunda ansiedade.
Sempre na linha da leitura, certo dia levei alguns livros para que ele escolhesse qual gostaria de ler. Ele escolheu Caixa preta, um livro sobre desastres aéreos, mas todos com sobreviventes. Eu tinha certeza de que ele escolheria esse, mesmo assim dei outras opções. Nós lemos esse livro com muito prazer. Chegamos a superar sessenta minutos de sessão, pois ele não queria parar a leitura. Além de narrar os acidentes, o livro explicava por que tinham acontecido e apresentava relatos dos sobreviventes. Ele não se interessava muito pelas mortes, mas queria saber como o desastre tinha acontecido e como as pessoas sobreviveram. Os sobreviventes lhe interessavam muito.
[...] uma catástrofe mundial desse tipo não é infrequente durante o estado agitado em outros casos de paranoia [...] e essa catástrofe seria [...] O fim do mundo e a projeção dessa catástrofe interna (FREUD, 1969, p. 77).
Quando terminamos de ler o livro, ele quis ler de novo. Era como se de alguma forma o conteúdo do livro trouxesse um alívio para sua angústia. Eu diria que foi atividade que ele mais gostou. Após esse tipo de leitura se via nitidamente como ele se sentia mais aliviado. Tenho que dizer que eu também gostava dessa leitura e tenho muita curiosidade por acidentes aéreos. Esse livro nos unia inconscientemente.
Por acaso um dia, abrindo um livro didático de geografia que eu tinha levado, ele mesmo encontrou um pequeno quebra-cabeça para montar. Vi que o paciente ficou superinteressado em montar o quebra-cabeça. Foi interessante que após terminar de montar esse quebra-cabeça o paciente se apegou a ele e com tanto cuidado que para levá-lo para casa ele pediu ao pai que viesse buscá-lo para que o não se desmontasse de novo.
Transformar aqueles pedaços sem sentido em algo inteiro trouxe um prazer para o paciente. O prazer de criar. Winnicott (1975, p. 95) afirma: “É através da percepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida”. Depois desse primeiro quebra-cabeça fizemos outros, e cada vez mais ele juntava os pedaços com mais facilidade.
Algumas vezes eu viajei durante o período da análise do paciente. Todas essas vezes eu falava com ele com antecedência, dizia para onde eu ia e também o dia em que eu iria voltar. Ele sempre lembrou a data da minha volta e estava sempre lá no dia planejado da sua sessão.
Numa dessas viagens eu trouxe um quebra-cabeça com muitas peças. Ao olhá-lo, o paciente reconheceu imediatamente que era um quadro de Van Gogh. Eu fiquei surpreendida quando ele me disse: “O vaso do Van Gogh”. Ficamos alguns meses trabalhando nisso, e era um trabalho difícil para mim e para ele. As cores eram muito parecidas e para completá-lo tínhamos que trabalhar preenchendo primeiro as bordas e pouco a pouco indo para o centro. Nesse período o paciente começou a chegar um pouco antes da hora de ser atendido e sozinho pegava o quebra-cabeça na secretaria e começava a montá-lo. Quando eu chegava, ele já tinha organizado tudo sobre a mesa para trabalharmos.
Notava-se que ele se sentia bem dentro da instituição. Ele tinha criado um vínculo não só comigo mas também com todos que estavam lá dentro. E a recíproca era verdadeira, pois ele era considerado de casa até mesmo pela paciente que eu atendia após o horário dele. Ele controlava se ela vinha ou não, e ela o presenteava com balas. Se faltasse alguém ao trabalho, ele perguntava pela pessoa.
Certa vez reclamou que a persiana da sala de atendimento estava quebrada e que estava feia, assim como observou com felicidade quando foi trocada. Ele gostava das coisas arrumadas.
No período em que montávamos esse quebra-cabeça mais complicado, o paciente me avisou que, quando o trabalho tivesse terminado, ele pararia de vir à análise. Eu o questionei sobre a sua vontade de parar, e ele respondeu simplesmente que não gostava mais de vir. Coincidentemente nesse período seu pai passou a não me pagar, e o paciente contou que o pai tinha comprado uma televisão muito grande e que tinha que pagar as dez prestações. Pude perceber que o discurso do dinheiro da análise estava permeando o discurso na casa deles e, dessa forma, chamei o pai para conversar. Acordamos que ele pagaria quando pudesse desde que o filho continuasse a vir. Mesmo assim a resistência do paciente foi se fazendo presente, e ele mesmo começou a telefonar para dizer que não vinha.
Ele voltou a frequentar a igreja, embora me dissesse que não gostava de ir lá e que tampouco estava certo da existência de Deus. Mesmo assim ele ia, pois sentia que isso era muito importante para a mãe.
O pai também foi abandonando a análise dele e, mais que tudo, eu percebi que algo tinha decepcionado o pai. Desde o início do tratamento do filho, seja eu, seja o psiquiatra tentamos ajudar o pai a conseguir uma pensão para o filho junto ao INSS. Com um diagnóstico de esquizofrenia, considerada uma doença degenerativa, teoricamente o paciente teria direito a esse beneficio.Apesar de todas as tentativas, a resposta do INSS foi que o paciente não tinha direito a nenhum beneficio, pois seu pai tinha um salário considerado muito alto. O pai ganhava R$ 1.200,00 por mês, logo era considerado suficientemente rico para manter um filho nesse estado. A ajuda que conseguimos foi o pagamento dos remédios que eram muito caros. Eu acredito que esse fato tenha colaborado um pouco para que o pai desistisse do tratamento do filho dando de novo espaço à voz da mãe que desde o início era contra.
Concordo que não tenha sido só isso. Havia as resistências do pai a sua própria análise, as resistências do paciente ao seu próprio tratamento, porque também ele estava melhorando, possivelmente eu também tenha contribuído para isso, pois esse trabalho exigia muito de mim, e embora eu visse melhoras no paciente, elas não eram suficientes, ao meu ver, para melhorar a qualidade de vida dele.
Eu queria muito ter escutado mais a mãe dele ou mesmo a irmã, para ter um quadro mais claro da situação familiar, e isso eu não consegui. Para o pai, um homem de origem simples, bancar junto à família o desejo de fazer psicanálise não era fácil, e o pai dele conseguiu bancar essa situação por algum tempo, mas a mãe nunca colaborou em nada.
Quando o pai do paciente veio para confirmar que o filho não iria mais voltar, ele entrou na sala de atendimento e olhou o divã, começou a chorar porque estava sentindo que não iria mais se deitar naquele lugar. Naquele momento aquele homem se quebrou na minha frente chorando como uma criança.
O filho se defendeu melhor. O quebra-cabeça estava terminado. Me ligou e me disse de forma muito categórica que não voltaria e também não levou o quebra-cabeça pronto.
Como diz H. Rosenfeld sobre a transferência em pacientes psicóticos:
A maior parte dos analistas tem-se abstido, ate há pouco tempo, de tratar pacientes esquizofrênicos, na convicção de que o esquizofrênico é incapaz de estabelecer transferência. Minha experiência me demonstra que aqui tratamos não com a ausência de transferência, mas com o árduo problema de reconhecer e interpretar as manifestações transferenciais do esquizofrênico (ROSENFELD, H. 1965, p. 121).
Não melhorar era de certa forma um ganho para o meu paciente. Seu mutismo era sua doença, mas era também sua hostilidade em relação ao pai e à mãe. Essa era a forma na qual ele conseguia exteriorizar sua agressividade em relação a um ambiente que era hostil a ele. Um ambiente que não permitia que ele crescesse e que ele se tornasse sujeito.
Para a mãe não interessava que o marido começasse a questionar a relação dos dois, e de certa forma ela sempre foi muito firme em dizer que só a fé curaria seu filho.
Não me restou senão dizer seja para o pai, seja para o filho que, se precisassem de alguma coisa, eles tinham meu telefone e o do CBP-RJ.
Discussão do caso
Descrever um caso clínico não é uma tarefa muito simples, principalmente se tudo que ocorreu no set não foi anotado.
Eu temo que anotar e escrever sobre um paciente enquanto ele ainda se encontra em análise, possa de alguma maneira interferir na comunicação inconsciente entre o analista e o analisando. Talvez seja uma característica minha, que não tem que ser tomada como verdade para todos. Assim como cada analisando é um sujeito singular, o mesmo vale para o analista.
De vez em quando fazia algumas anotações com o intuito de pesquisar, mas dificilmente esqueço o que acontece no set. Talvez seja exatamente porque no set, algo sempre acontece, mesmo com muitos “não ditos”.
Ao me deparar com esse caso, fiquei curiosa, assustada, com medo de não dar conta, mas acredito que esse estado durou muito pouco. A cada encontro, algo acontecia reforçando a minha percepção de que era possível trabalhar com o paciente.
Eu utilizei a palavra intuição para descrever algumas atividades que eu escolhia para trazer ao set, mas hoje acredito que eu e o analisando estávamos nos comunicando inconscientemente e que tais atividades se encaixavam em um lugar de desejo de relacionamento.
Entender o silêncio desse paciente foi para mim como a experiência de entender o choro de um bebê. O choro de um bebê pode ser de dor ou de fome, mas só a mãe consegue diferenciar esses sons. Com o tempo fui entendendo quando seu silêncio era muito angustiado, menos angustiado e quando o movimento do seu corpo demonstrava uma certa tranquilidade ou não.
Também ao ler a descrição do caso, o leitor pode ter a impressão de que tudo ocorreu de forma muito rápida. Não foi assim. Na verdade foi um processo muito lento, com momentos de desânimo e muitas dúvidas. E foi nesses momentos que o suporte de meus supervisores foi muito importante. Era com eles que eu ganhava determinação para continuar.
Se me perguntassem se esse paciente chegou a fazer associação livre, eu diria que sim. Lógico que eu dirigia perguntas a ele. Mas, se não fosse dessa forma, acredito que ele não teria sequer iniciado a falar. Com pacientes nesse estado de embotamento, o desejo do psicanalista tem que se fazer presente.
Se me perguntassem se eu interpretava a fala do paciente, eu diria que não. Sei que alguns psicanalistas fariam isso, mas eu achei perigoso. O que poderia provocar uma interpretação errada em um paciente com um ego tão fragmentado era algo que eu tinha medo de experimentar. Eu diria que, em vez de interpretar, eu vivia a experiência com ele.
A minha escolha foi mais em direção a fazer uma maternagem e criar um ambiente no qual ele se sentisse à vontade para se expressar.
Se me perguntassem se ele apresentou resistência, eu responderia que sim. Ele parou a análise no momento em que ele estava se sentindo melhor. O que seria isso senão um sinal de que a resistência vinha operando contra essa melhora?
Em proporções menores esse paciente teve uma rede de atendimento, que se constituía de um médico psiquiatra, psicanalistas para ele e para o pai, assistência jurídica e, mais que tudo, uma casa, que era a Instituição. Uma casa equivale a dizer um útero, um corpo e uma pertinência.
Acho até que a fala dele “Quando terminarmos esse quebra-cabeça eu vou parar” poderia ser traduzida como: me sinto mais inteiro e quero parar, ou mesmo, me sinto mais inteiro, mas tenho medo de continuar!
Esse paciente necessitava ser visto como sujeito e principalmente não como sujeito esquizofrênico. Sua existência ia além dessa psicopatologia. Por essa razão temos que lutar contra esses rótulos. Ninguém é psicótico 24 horas por dia, assim como todos nós temos nossos momentos de regressão ao nosso estado esquizo-paranoico. Um paciente psicótico tem uma dificuldade maior para viver esse processo de entrar e sair desse estado.
Um paciente psicótico se sente muito invadido e, dessa forma, a posição do analista é muito delicada exigindo uma grande dose de sensibilidade, pois trabalhando no limiar do suportável psíquico do sujeito é importante saber respeitar esses limites. Por isso, eu sempre falei com ele de forma muito verdadeira. Um mundo falso e de segredos ele já vivia em casa, e eu não queria que essa experiência se repetisse no set, assim como sempre respeitei seu tempo dentro do set.
Quando viajava, eu dizia para onde ia e por que eu estava viajando. Retornando contava para ele como tinha sido a viagem. Quando ele me perguntou onde eu morava, eu disse a ele onde eu morava. Eu dava a ele algo meu e acho que em contrapartida ele me dava algo dele, ainda que fosse seu olhar através da sua pequena filmadora. Através daquela filmadora eu continuava presente para ele, assim como através daquela filmadora eu conheci mais seu mundo, por exemplo, sua irmã, seu sobrinho, que nasceu durante o período da análise, seu cunhado, sua mãe e a casa que seus pais compraram em Miguel Pereira.
Eu cuidava dele, e ele me retribuía cuidando para que o ventilador da sala estivesse sempre ligado quando eu chegava. Ele sabia que eu me confundia com os botões do ventilador e, cuidando do ventilador, ele compartilhava comigo os cuidados do set.
Ele me fazia escutar sua música tech, e eu o fazia escutar as músicas que eu gostava. Sem cerimônia, ele dizia que as músicas que eu gostava eram muito chatas, e eu dizia a ele que eu não entendia nada da música tech. Houve muitas trocas, e houve transferência sim.
A inclusão do pai no processo analítico ajudou muito no tratamento do seu filho. Ainda que ele não tivesse conseguido sustentar essa situação por muito tempo, eu diria que ele foi muito corajoso ao tentar. Infelizmente a ausência da mãe não contribuiu para o trabalho com seu filho. A mãe desse paciente era detentora de um saber que se negava a compartilhar. Ela, como ninguém naquela casa, poderia dizer coisas importantes para que pudéssemos entender o que tinha acontecido ao seu filho para que ele entrasse naquele silêncio mortal.
Ela não estava completamente alheia ao que ocorria com o filho; ela simplesmente preferia silenciar sobre muitas coisas. Havia muitos silêncios e segredos naquela família.
Que o ambiente em que o paciente cresceu não tenha sido suficientemente bom para que ele se desenvolvesse psiquicamente de forma mais sadia, não era uma dúvida. A figura materna ausente, não fisicamente mas psiquicamente, era evidente, muitas vezes aparentando que a própria mãe do paciente sofresse de um distúrbio muito próximo ao do filho e que de certa forma ela também estava bastante distante e desinteressada da realidade. Ela tinha dificuldade de dar amor, assim como o paciente.
Estamos agora na situação de apreciar que o indivíduo com uma tendência esquizoide tem outro motivo para guardar seu amor dentro de si, além do que surge da sensação de que esse amor é demasiado precioso para separar-se dele. Também mantém encerrado seu amor porque o sente como demasiado perigoso para descarregá-lo em seus objetos Assim não só guarda seu amor numa caixa-forte, mas até o guarda numa prisão. Porém... Como sente que o próprio amor é mau, está disposto a interpretar o amor dos outros em termos similares (FAIRBAIRN, 1941 [1980], p. 21).
Apesar desse comportamento da mãe, não gostaria que ela fosse a única a ser responsabilizada. A maternidade ainda é muito idealizada, e poucos ousam falar sobre esse assunto. Mãe nasce filha! Ela se torna mãe através de uma vivência de maternidade que pode ser muito difícil ou muito fácil dependendo do ambiente e da sua experiência pessoal com sua mãe.
O paciente sofria de uma esquizofrenia, qual tipo não saberia descrever. Seus sintomas se encaixavam na esquizofrenia do tipo catatônica, mas algumas vezes pensei que ele fosse portador de algum tipo de autismo que já vinha se apresentando desde o inicio da sua infância. Pelos relatos da mãe o paciente já apresentava muito dos sintomas desde criança. Muito retraído e pouco social.
Por incrível que pareça ele conseguiu frequentar a escola dos 5 anos até os 22 anos, e parece que em momento algum essas dificuldades foram relatadas a um psicólogo ou assistente social. Se isso aconteceu, a família omitiu essa informação.
É provável que, se seu diagnóstico tivesse sido feito antes, teria sido mais fácil tratá-lo, seja sob o ponto de vista médico, seja sob o ponto de vista psicanalítico. Os remédios disponíveis hoje conseguem lidar muito bem com os sintomas positivos. Já com o embotamento e a apatia dos sintomas negativos a questão é mais complexa.
Duvido muito que o comportamento do paciente não tenha sido notado pelos professores, mas o descaso do nosso sistema optou por “negar” e deixá-lo no sistema que finge que “inclui”. Apesar dessa crítica concordo que ter deixado que frequentasse a escola para que ele não se sentisse excluído foi melhor do que excluí-lo totalmente. Sem dúvida alguma se ele tivesse sido segregado em uma instituição psiquiátrica seu estado seria muito pior.
O que fez com que ele tivesse uma crise na escola restará sempre um mistério. É muito possível que ter perdido a irmã para um outro homem e ter sido forçado a ter relações sexuais com uma prostituta possam ter deflagrado a crise. Certamente algo aconteceu de muito forte para que todas as suas defesas caíssem, mas era algo indizível.
O paciente parou em um estágio no qual ele ainda não sabia se queria amar um homem ou uma mulher. Aliás, quando eu pedi que fizesse o desenho de sua família, ele se desenhou sem sexo. Interessante notar que os símbolos do sexo do pai e da irmã são os mesmos, sem definir claramente se masculino ou feminino.
Edipicamente por esse desenho ele parecia ainda muito fusionado à mãe, enquanto o pai e a irmã apareciam misturados entre eles.
Nos primeiros anos da infância, manifestam-se ansiedades, características das psicoses que obrigam o ego a desenvolver mecanismos específicos de defesa. Nesse período se encontram os pontos de fixação para todos os distúrbios psicóticos (KLEIN, 1982, p. 314).
O casamento da mãe e do pai era um casamento de fachada, era uma mentira. Segundo seu pai essa mulher teria sido mandada da Paraíba para se casar com ele. Ela não o desejava sexualmente levando o casal a não ter uma vida amorosa e sexual que fizesse com que o paciente elaborasse o complexo de Édipo e passasse pela castração.
A neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id, ao passo que na psicose o desfecho análogo é de um distúrbio semelhante nas relações entre o ego e o mundo externo (FREUD, 1969, p. 167).
Poderia ser uma homossexualidade que o paciente não podia manifestar? Pode ser uma hipótese, embora eu acredite que ele não tenha nem mesmo chegado a esse ponto de identificação sexual.
Do que pude depreender dos relatos quanto à perda da escola, dos animais e da bicicleta, tudo isso indicava que a castração de seus desejos era a forma na qual ele tinha crescido e que seus objetos investidos de afeto lhe eram retirados de maneira misteriosa aos seus olhos. Por que ele deveria continuar uma vida, investido em objetos que seriam perdidos?
Ao que tudo indicava, esse paciente não gozava do direito a ter desejos. Ele era o objeto do pai e objeto da mãe. Subjetivamente não existia para eles.
Quando chegou para ser tratado, seus rins estavam parando de funcionar sem uma causa fisiológica. Após a análise, esse problema renal estava resolvido, ele falava, caminhava sozinho no perímetro do seu bairro, fotografava, escutava música e assistia televisão.
Sustento que a ansiedade nasce da atividade do instinto de morte dentro do organismo, que é sentida como medo de aniquilamento (morte) e assume a forma de medo de perseguição. O medo do impulso destrutivo parece se ligar imediatamente a um objeto, ou melhor, é sentido como o medo de um incontrolável e prepotente objeto. Outras fontes importantes de ansiedade primária são o trauma do nascimento (ansiedade e separação) e a frustração das necessidades corporais (KLEIN, 1982, p. 318).
De certa forma ele se acomodou em casa sem trabalhar, mas hoje em dia, isso não seria um sintoma tão grave. Inúmeras pessoas consideradas “normais” por seus familiares vivem às expensas de suas famílias sem trabalhar.
Conclusão
Acredito firmemente que os psicanalistas devem sim aceitar pacientes esquizofrênicos, pois só a investigação e a clínica podem nos levar a algum aprendizado sobre os mistérios desse estado psíquico. Um contato mais estreito entre psicanalistas e psiquiatras também seria muito relevante, embora isso seja ainda muito difícil.
Assim como as histéricas por muito tempo foram confinadas e tratadas como doentes, sofrendo todo tipo de experimento por parte das instituições médicas, hoje não segregamos os esquizofrênicos em instituições porque os manicômios foram fechados, mas são medicalizados na tentativa de curá-los de algo a respeito do qual os próprios médicos sabem muito pouco.
O esquizofrênico não vai ao médico porque se sente mal. Ele vai ao médico porque os “outros” o levam e dizem que ele tem algo errado. Quem denuncia seu sintoma são os “outros”. Os remédios controlam o esquizofrênico, mas não devolvem afeto e não os tiram dos sintomas negativos. Aliás, o próprio termo sintoma negativo já soa estranho pois “negativo” é o sintoma que não se mostra. O remédio pode ajudar a criar a base para que o psicanalista possa intervir, mas só o remédio também não basta.
Em resumo, eu diria que a psicanálise funciona sim! Até o “não quero mais ir aí” dita pelo paciente de maneira zangada foi a expressão de um afeto, agressivo mas um afeto. Acredito que após 4 anos de relacionamento, o paciente tenha internalizado algo de bom.
Ele ter interrompido a análise é normal, pois o equilíbrio da família estava sendo modificado, e nós, psicanalistas, sabemos o quanto o ser humano é preso à sua compulsão à repetição.
É um trabalho de muita dedicação, mas é também um grande aprendizado.
Referências
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Endereço para correspondência
Av. Epitácio Pessoa, 4476/803-I
22471-003 - Rio de Janeiro/RJ
E-mail: karlin_bel@yahoo.it
Recebido: 31/03/2014
Aprovado: 07/04/2014
SOBRE A AUTORA
Maria Izabel Fernandes Karlin
Advogada. Master in Comparative Law - University of Miami (1998). Psicanalista e Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ.