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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.44 Belo Horizonte dez. 2015

 

 

O mal-estar contemporâneo e alguns ensinamentos a respeito da relação entre inconsciente e linguagem

 

The contemporary malaise and some teachings about the relationship between unconscious and language

 

 

Gabriela Lazarini

I Círculo Psicanalítico da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As novas formas de relação entre os sujeitos, marcadas pelo potencial das novas tecnologias e pela rapidez dos meios de comunicação, trazem questões para os profissionais que trabalham com a subjetividade. A consequente quebra de tabus e paradigmas que desencadeia mudanças sociais, ou seja, mudança nos signos, nos códigos e nos referenciais de nossa cultura, coloca a psicanálise defronte de importantes desafios. Entendida como um instrumento clínico, cuja teoria e técnica estão assentadas no campo simbólico, campo onde são inscritos os processos de subjetivação, a psicanálise pode se deparar com a ineficácia de seus dispositivos quando as características e particularidades dos novos sujeitos são ignoradas.

Palavras-chave: Psicanálise, Linguagem, Subjetividade, Contemporaneidade, Mal-estar.


ABSTRACT

The new forms of relationship between subjects, characterized by the potential of new technologies and the velocity of the media, bring issues to the professionals who work with subjectivity. The resulting breaking of taboos and paradigms that triggers social changes, such as alterations in the signals, codes and references from our culture places psychoanalysis in front of important challenges. Understood as a clinical tool, with theory and techniques sited in the symbolic field, where the subjective processes are inscribed, psychoanalysis may face the inefficiency of its devices when the features and particularities of the new subjects are ignored.

Keywords: Psychoanalysis, Language, Subjectivity, Contemporary, Malaise.


 

 

Os estudos mais recentes analisam a contemporaneidade e seus efeitos como uma variável para a compreensão não só dos clientes em análise, mas da técnica e da teoria psicanalítica. O imediatismo, a facilidade no acesso a todo tipo de informação, os novos valores e ideais que caracterizam o discurso social bem como a progressiva queda dos ideais patriarcais são alguns fatores que atravessam os sujeitos de nosso tempo e que trazem implicações quando o que está em questão é o sofrimento psíquico e suas formas de expressão.

As consequências do avanço tecnológico desencadeado nas últimas décadas podem ser observadas na área da saúde e na clínica, onde inúmeras técnicas terapêuticas tentam dar conta de um aumento significativo de síndromes como a do pânico e de quadros depressivos.

Em contrapartida, na contramão de todo o potencial tecnológico desenvolvido ultimamente, uma análise do contexto social evidencia o alto índice dos atos de violência, do uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas bem como uma necessidade ilimitada por bens e materiais de consumo.

Este artigo buscou reunir na literatura psicanalítica o pensamento de alguns autores que entendem esses dados da realidade como expressões de uma sociedade que vivencia um típico mal-estar. A primeira delas é a seguinte: De que maneira os referenciais simbólicos que prevaleceram na cultura dos tempos de Freud influenciam a prática e a teoria psicanalítica nos dias atuais? E a segunda: as mudanças nos códigos e referenciais simbólicos trazem consequências para os processos de subjetivação?

Joel Birman analisa e problematiza a contemporaneidade, levanta questões acerca das implicações decorrentes do pensamento freudiano, que reconheceu o mundo da realidade psíquica em detrimento do mundo da realidade material confrontando paradigmas prevalentes no século XIX.

Segundo Birman, Freud contribuiu para a construção dos novos referenciais que marcam a cultura na atualidade ao romper radicalmente com a ideia de realidade de percepção e impelir os sujeitos

[...] para a transformação do mundo, para a invenção de outros mundos possíveis e para a criação de novas modalidades da linguagem (BIRMAN, 2012, p. 47).

Ainda de acordo com Birman, revolucionário no pensamento de Freud foi ele ter colocado em primeiro plano as potencialidades humanas de mudança, tanto é que no século seguinte ao surgimento da psicanálise, a paisagem da sociedade moderna enraizada nas ideias iluministas e patriarcais já estava radicalmente transformada.

Birman (2006, p. 299) compreende os processos de subjetivação afastados “[...] de um quadro de referência centrado na epistemologia e na história das ciências”. Os processos de subjetivação, compreendidos como jogos de verdade, estariam implicados na transformação de uma realidade mediada pelos discursos que podem ou não se tornar verdadeiros, de acordo com as circunstâncias em que são ditos e com a maneira pela qual determinado tipo de objeto se relaciona com o sujeito.

Jogos de verdade, um conceito de Foucault (2004, p. 235), significa

[...] não a descoberta das coisas verdadeiras, mas as regras segundo as quais, a respeito de certas coisas, aquilo que o sujeito pode dizer decorre da questão do verdadeiro e do falso.

Os conceitos de Foucault são utilizados por Birman como a costura que entrelaça o sistema de pensamento freudiano com o sistema que rege as relações contemporâneas. Os processos de subjetivação mediados pelos signos e códigos da cultura estão comprometidos atualmente por pertencerem a um contexto que os submete às potencialidades dos aparatos tecnológicos, à variedade de informações difundidas nos meios de comunicação, ao alto consumo de medicações.

Segundo Birman, nos relatos dos sujeitos contemporâneos, o imediatismo e a urgência em aliviar-se da dor e do mal-estar restringem da inscrição do sofrimento a dimensão temporal. Os discursos e os sintomas mais comuns na atualidade, a exemplo das síndromes de pânico, indicam que tudo é vivenciado como um “eterno presente” favorecendo a repetição do mesmo, como se algo poderoso se anunciasse como impossibilidade de ruptura e descontinuidade.

Entre os valores prevalentes na atualidade, a competitividade e os padrões elevados de exigência na saúde e no trabalho dificultam a interação do sujeito com a alteridade e favorecem o individualismo. Nos modos de relacionamento cotidianos, um acontecimento comum ou banal tende a se tornar uma ação imperativa, que exclui da experiência subjetiva o tempo de espera necessário para se planejar uma ação específica e adequada.

Quanto ao registro da ação que tem como marca o sujeito da “indeterminação”, ou seja, aquele que age de maneira hiperativa sem ao menos poder explicar suas ações, a “explosividade”, a “afetação”, “a irritabilidade” e a “violência” se impõem como tentativas de proteção contra o desprazer.

Segundo Birman, é nos registros do corpo e da ação que o mal-estar decorrente de um excesso pulsional se inscreve na contemporaneidade restringindo da experiência subjetiva a possibilidade de fantasiar a realidade.

O intervalo variável de tempo que se passa entre a tradução de uma necessidade, a subsequente ação específica e o posterior alívio do excesso de excitação corporal sentido como desprazer é o que está na origem do sujeito psíquico freudiano.

Maria Rita Kehl (2009, p. 111-112) explica que

[...] a primeira manifestação da onipotência do Outro primordial, para o infans1, consiste em submeter a urgência da satisfação das necessidades do recém-nascido a uma certa demora.

Isso porque a instauração do psiquismo se daria

[...] a partir do trabalho de representação do objeto de satisfação esperado, na tentativa de anular o angustiante intervalo de tempo vazio (KEHL, 2009, p. 111-112).

Em A interpretação dos sonhos, Freud ([1900/1901] 1996) nos diz que as alucinações que caracterizam o autoerotismo, não podendo ser mantidas até o seu esgotamento, se mostram insuficientes para promover o prazer ligado à satisfação proveniente das relações com os objetos. Segundo Kehl, é esse fracasso que possibilitará uma mudança de qualidade no sistema psíquico que irá substituir a identidade perceptiva do objeto resultante da vivência de satisfação por uma identidade mental.

Freud escreve que tal substituição instaura no psiquismo a possibilidade de já não ‘representar (apenas) o prazeroso, mas o real, ainda que desagradável’ (FREUD, [1900/1901] apud KEHL, 2009, p. 112).

Ou seja, em vez de

[...] presentificar imediatamente o objeto faltante na forma de uma alucinação, o aparelho psíquico passa a representá-lo como aquilo que não está, mas deverá retornar (KHEL, 2009, p. 112).

Como o desejo é a corrente que parte do desprazer e segue em direção ao prazer, ao descarregar a excitação acumulada, só ele é capaz de colocar o sistema psíquico em movimento. O sujeito do desejo seria esse intervalo sempre em aberto, “[...] que pulsa entre o tempo da pulsão e o tempo urgente” da demanda/oferta do Outro (KHEL, 2009, p. 112).

Kehl conclui que é nisso que se resume a alienação, um processo que diferencia o humano das demais formas de vida animal e que nos impõe a condição de não sermos senhores da nossa relação com o tempo.

As patologias e os modos de relação contemporâneos mantêm relações diretas com a prevalência do tempo da alucinação, tempo que presentifica o objeto faltante e que é a dimensão da apresentação do objeto num presente absoluto, num “presente sem presença, presente louco”.

De acordo com Knobloch (1996, p. 64), nesse tempo sempre presente – “[...] ao contrário do presente histórico, que fixa uma presença, uma identidade”, e que segundo Deleuze é o presente do humano propriamente dito – tudo se dissolve: não há mais sujeito, não há mais oposição entre sujeito e objeto. Ainda segundo Knobloch (1996, p. 64), é esse o tempo que está em jogo quando Ferenczi fala de uma “memória do corpo”, quando “[...] as sensações de uma experiência são retidas sem que estas adquiram a função de lembrança”.

Os histéricos sofreriam “principalmente de reminiscências” (FREUD [1893] 1996, p. 43 e 45), ou seja, de lembranças que corresponderiam “[...] a traumas que não foram suficientemente ab-reagidos”. O recalque estaria implicado na causa do esquecimento fazendo emergir o sujeito cujo paradigma para sua compreensão teria como modelo a histeria. O recalque é a resultante da dissolução do complexo de Édipo, um operador responsável pela diferenciação do que seria da ordem da realidade psíquica e do que seria da ordem da realidade concreta ou material. Num primeiro momento da teoria psicanalítica, é esse operador que diferencia o campo das representações-coisas do campo das representações-palavras e que instaura as instâncias psíquicas conhecidas como inconsciente, pré-consciente e consciente.

Na saída do Édipo, o sujeito, ocupando uma das posições sexuais masculina ou feminina, toma para si modos mais definidos de obter satisfação, abre mão do predomínio do prazer pela via da alucinação, recalca a tendência bissexual da sexualidade e seu caráter perverso polimorfo. A travessia edípica implica o que podemos chamar de cerne das estruturações neuróticas marcado pela diferenciação sexual na histeria e pela angústia de castração ou de morte nas neuroses obsessivas.

No entanto, o que Birman vem apontar é que, na contemporaneidade, as novas configurações familiares decorrentes da superação conferida ao falo como organizador da sexualidade masculina e feminina trariam dificuldades conceituais para o Édipo, porque, ao considerar a figura do pai como um signo de exceção e representante da lei, o discurso da psicanálise daria subsídios teóricos “[...] para a lógica, a ética e a política do patriarcado” tão questionados atualmente conferindo “[...] uma aura de superioridade hierárquica da figura do homem em relação à mulher” (BIRMAN, 2006, p. 303).

Os ideais contemporâneos influenciados pelos interesses dos grupos feministas, pelos interesses defendidos pelos gays e pelos transexuais, pelas conquistas em prol da igualdade de direitos entre homens e mulheres e a favor da liberdade de expressão sexual consolidada pelo surgimento da pílula anticoncepcional, todos esses valores agora em voga em nossa cultura colocariam em cheque essa leitura do complexo de Édipo.

Se nos ativermos à estruturação histérica, por exemplo, perceberemos que na atualidade as diferenças entre os gêneros estão cada vez mais estreitas, e as possibilidades de satisfação são muito maiores do que os impedimentos repressores da sexualidade. Quanto às estruturas mais próximas da neurose obsessiva, os avanços da medicina e da genética assim como todo o potencial das novas medicações prometem e realizam a cura de doenças antes consideradas terminais. O que temos em nosso horizonte são possibilidades inimagináveis de prolongamento da vida, o que nos faz pensar se tais possibilidades podem distanciar os sujeitos de uma confrontação com a morte capaz de produzir sentido para a existência.

As noções lacanianas a respeito do simbólico e do universal do Édipo podem ser fundamentais quando tratamos desses impasses característicos da atualidade, que atravessam a teoria e a clínica psicanalítica. Vale lembrar que Lacan, ao se basear na filosofia de Heidegger e na linguística de Saussure, questionou o estatuto de verdade, do ser e do desvelamento do sujeito na psicanálise, além de ser o psicanalista que extraiu uma concepção muito própria sobre o significante.

Dos trabalhos de Lévi-Strauss Lacan

[...] deduziu a noção de simbólico [...], assim como uma leitura universalista da interdição do incesto e do complexo de Édipo (ROUDINESCO; PLON 1998, p. 448).

Deduções possíveis de nortear a teoria e a clínica psicanalítica no contexto da atualidade.

Lacan retoma o sentido atribuído por Freud ao sonho, ou seja, o sonho como um rébus, como uma adivinhação, para explicar que o sintoma neurótico exprime algo de estruturado e organizado como linguagem. Nas palavras de Lacan, o sintoma histérico, como algo equivalente a uma atividade sexual,

[...] é sempre plurívoco, superposto, sobredeterminado, e, para resumir, construído exatamente da mesma maneira que as imagens são construídas nos sonhos. Existe aí uma concorrência, uma superposição de símbolos, tão complexa quanto o é uma frase poética que vale ao mesmo tempo por seu tom, sua estrutura, seus trocadilhos, seus ritmos, sua sonoridade. Tudo se passa em diversos planos, e tudo é da ordem e do registro da linguagem (LACAN, [1953] 2005, p. 23-24).

A linguagem é um emergente,

Agora que emergiu, jamais saberemos quando nem como começou, nem como era antes que fosse (LACAN, [1953] 2005, p. 24).

A linguagem designa alguma coisa, isso se pensarmos em sua significação. Porém, Lacan sublinha que, antes de designar algo, a linguagem desempenha um papel, uma função. A noção da psicanálise em relação ao neurótico e seus próprios sintomas seria a de uma palavra presa,

[...] em que se exprime certo número, digamos, de transgressões a determinada ordem, que, por si próprias, anunciam a ordem negativa na qual se inscreveram. (LACAN, [1953] 2005, p. 27-28).

Lacan diz que é importante compreender o que se diz e, para isso, é necessário entender os substitutos, as ressonâncias e as superposições significativas próprias de uma estrutura de linguagem. E é a partir desses pressupostos e da aplicação de conhecimentos de áreas da matemática, da linguística e da física que ele irá definir o sujeito da psicanálise como sujeito do inconsciente e diferenciará o sujeito da anunciação (je) do Eu (moi), compreendendo este último como uma inscrição do registro do imaginário.

Lacan retoma Freud ao afirmar que no discurso do cliente, para ser considerado analítico, um sintoma teria que apresentar uma duplicidade simbólica essencial, ou seja, significar um sinal,

[...] um substituto de uma satisfação instintual que permaneceu em estado jacente [...] consequência do processo de repressão (FREUD [1926] 1996, p. 95).

No entanto, na comunicação de um acontecimento vivenciado pelo paciente e expresso através da sua fala, ou seja, num acontecimento inscrito nas dimensões de tempo e espaço, o inconsciente não estaria necessariamente implicado.

Lacan ([1955-1956] 2010, p. 196) irá dizer que

[...] o fenômeno analítico como tal, seja ele qual for, é não uma linguagem no sentido em que isso significaria ser um discurso.

Os sonhos, os chistes e os atos falhos expressam aquilo com “que lidamos no sintoma e na neurose” e que é estruturado como linguagem por apresentarem “sempre a duplicidade essencial do significante e do significado”.

Em A significação antitética das palavras primitivas, Freud ([1910] 1996, p. 163) percebe que “[...] tudo neste planeta é relativo e só tem existência pela diferenciação de outras coisas com as quais esteja relacionada”. O pensamento estaria intimamente relacionado com a produção de conceitos como consequência da articulação de significantes que uma vez fora de um contexto antitético de relação não teriam sentido algum.

É Lacan quem introduz como algo a ser identificado no discurso do analisando a noção e a lógica do significante, como o que ordena a dimensão simbólica, desencadeia deslocamentos metonímicos e que, assim como a pulsão, é um sinal que não remete a um objeto. O significante é um sinal de ausência que

[...] remete a um outro sinal, que é como tal estruturado para significar a ausência de um outro sinal, em outros termos, para se opor a ele num par. [...] A linguagem começa na oposição – o dia e a noite. E a partir do momento em que há o dia como significante, esse dia é entregue a todas as vicissitudes de um jogo por meio do qual ele acabará por significar coisas bem diversas (LACAN [1955-1956] 2010, p. 196-197).

Essa mesma lógica também pode ser lida em Freud quando ele explica o pensamento como um substituto do teste de realidade e entende que o julgamento que põe fim ao adiamento da satisfação, ao reconhecer os atributos de um objeto como bom ou mau, interno ou externo ao sujeito, dentro de um contexto que compreende a polaridade entre o significante ‘sim’ – representante de Eros, da união –, e o significante da negativa – sucessor da expulsão, pertencente à pulsão de destruição, corresponderia à oposição dos dois grupos de pulsões em psicanálise: a pulsão de vida e a pulsão de morte.

O significante ‘não’, assim como os assuntos relacionados à morte, carece de representação no inconsciente. Por isso, a fórmula negativa é a maneira pela qual os pacientes representam suas associações em análise interpretada como “[...] um repúdio de uma ideia que acaba de ocorrer” (FREUD, [1925] 1996, p. 265), o modo como o inconsciente se exprime. O resíduo de um afeto totalmente abrangente a um vínculo íntimo entre o eu e o exterior marcado pela impossibilidade de encontro real com o objeto perdido silencia o discurso, abre possibilidades de sentido e é a expressão da pulsão de morte.

De acordo com a noção estruturalista proposta por Lacan, tornar-se sujeito é “sustentar-se rumo à subjetivação de sua carga pulsional” (SOUZA; PARAVIDINI, 2013, p. 109) tendo como direção o campo da linguagem. Quando pensamos a criança, por exemplo, levamos em conta “o modo pelo qual o sujeito, como efeito da linguagem e da fala (insubstancial), vincula-se ao ser vivo, à substância gozosa” (SOUZA; PARAVIDINI, 2013, p. 110).

Nos primórdios da constituição psíquica, o sujeito, por não ter acesso ao que seria da ordem da natureza, a não ser através da captação espacial manifestada no estádio do espelho, primeiramente realiza imagens desordenadas que substituem sua realidade orgânica. Lacan irá dizer que “[...] evidentemente, é isso que vai primeiro e desde já, se interpor a toda e qualquer relação simbólica verdadeira”.

Isso significa dizer que, por não utilizar o símbolo como parte de um ritual predeterminado pela espécie, por não utilizar uma comunicação simbólica única, comum a todos os seres, que lhe garanta a sobrevivência e a reprodução nos diversos contextos e situações, o ser humano faz uso da linguagem, desse sistema de códigos, desse referencial, capaz de organizar o que é apreendido desde o nascimento pelo sistema perceptivo. Essa apreensão perceptiva se dá primeiramente através de imagens, imagens acústicas, visuais, olfativas e táteis, e irá compreender o registro das primeiras representações da realidade orgânica do bebê.

No seminário destinado ao estudo das psicoses e no artigo O estádio do espelho como formador da função do eu, Lacan explica que o registro imaginário, aquele que compreende tudo o que é da ordem da fantasia, tem como origem a imagem especular, na medida em que é essa imagem que dá o complemento ortopédico a uma “insuficiência nativa”, referindo-se à prematuridade do recém-nascido.

A função do estágio do espelho revela-se para nós, por conseguinte, como um caso particular da função da imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade – ou, como se costuma dizer, do Innenwelt com o Umwelt2 (LACAN, [1949] 1998, p. 100).

Essa relação do homem com sua natureza se altera quando comparada à mesma relação estabelecida pelos animais, devido a “[...] uma Discórdia primordial que é traída pelos sinais de mal-estar e falta de coordenação motora dos meses neonatais” (LACAN, [1949] 1998, p. 100); dito de outro modo, devido ao que Freud chamou de pulsão de morte. No estádio do espelho, a forma total de um corpo é dada ao sujeito como Gestalt e antecipa numa miragem a maturação de sua potência.

Essa imagem primordial será alterada devido à falta de coordenação motora dos primeiros meses de vida, devido à “[...] noção objetiva do inacabamento anatômico do sistema piramidal, bem como de certos resíduos humorais do organismo materno” (LACAN, [1949] 1998, p. 100).

Birman (2012, p. 108) explica que é através da mediação dessa imago que o infante adquire “uma forma corporal e uma imagem de si, constituindo uma verdadeira armadura corpórea, que lhe provocaria uma experiência originária de alienação”. Nesse processo, é importante considerar que o olhar materno é o que confirma que a imagem vista no espelho é uma projeção do bebê. O plano de significação que Lacan atribui ao estádio do espelho pode ser definido como um correlato do sistema continente-conteúdo.

No esquema óptico do vaso continente em relação às flores conteúdo, a finalidade é representar a relação da criança com a função “mais ou menos mítica do continente” para, somente no fim, ela poder suportar o vazio (LACAN, [1953-1954]2009, p. 142).

Nessa relação entre real e imaginário, poder suportar a vacuidade do continente “[...] é identificá-lo enfim como um objeto propriamente humano, quer dizer, um instrumento, capaz de ser destacado de sua função” (LACAN, [1953-1954] 2009, p. 142).

Segundo Birman (2012, p. 108), a experiência do estágio do espelho

[...] seria estruturante para o infante, que se ordenaria como forma contra o fundo da deiscência corporal, constituindo então o eu e a imagem corporal como seu correlato.

Lacan ([1949] 1998, p. 113), irá dizer que essa unificação corporal

[...] não será jamais completa porque é feita precisamente por uma via alienante, sob a forma de uma imagem estranha, que constitui uma função psíquica original.

Essa ambiguidade inerente à relação especular colocaria em evidência a natureza de uma tensão agressiva presente entre o eu, “[...] esse mestre que o sujeito encontra num outro, e que se instaura em sua função de domínio no cerne de si mesmo” e o outro eu “que sempre é em parte estranho a ele”, um senhor “implantado nele acima de suas tendências, de seus comportamentos, de seus instintos, de suas pulsões” (LACAN, [1955-1956]2010, p. 114).

O sentido do complexo de Édipo seria o de fazer valer a intervenção de um terceiro, “que seja a imagem de alguma coisa de bem-sucedido, o modelo de uma harmonia”, a fim de instaurar “uma lei, uma cadeia, uma ordem simbólica” superposta ao registro imaginário incestuoso nele mesmo, destinado ao conflito e à ruína.

Lacan ([1955-1956]2010, p. 118) irá definir a intervenção simbólica como da ordem da palavra, “isto é, do pai. Não o pai natural, mas do que se chama pai”.

Dessa perspectiva, seria apenas com a triangulação edipiana, com a emergência da imago do pai no psiquismo, que o infante sairia da servidão da imago materna e da imago fraterna3, que o condenariam à relação dual e violenta com o outro. Com efeito, os horizontes do outro e da alteridade se constituiriam pela mediação da imago paterna, que possibilitaria a ascensão à ordem simbólica (BIRMAN, 2012, p. 110).

A ordem que impediria o rebentar da relação imaginária estaria fundada “na existência desse Nome-do-Pai”, que subsiste como tal “fora do sujeito, distinta de sua existência e do determinado”. Isso que implica que o nome de um sujeito chamado “Senhor Fulano”, inscrito numa lápide, ultrapasse sua existência vital, atribuindo a esse mesmo sujeito um lugar ou uma significação na ordem social que independe da crença na imortalidade, que independe do destino mortífero e final dos seres vivos.

Lacan entende o discurso psicótico de Schreber como dominado por uma invasão imaginária na subjetividade. Na fala registrada no diário do paciente, a desordem de sua realidade sensorial, marcada pelas imagens e fantasias de fragmentação corporal substituem o delírio evidenciando a falta de referencial simbólico que ordenaria estas imagens e fantasias.

Lacan explica que, no fragmento do discurso de Schreber, quando ele revela que sua morte aconteceu e foi anunciada nos jornais no ano anterior, “[...] o próprio sujeito é apenas um exemplo segundo de sua própria identidade” (LACAN, [1955-1956] 2010, p. 119).

Nesse processo de dissolução imaginária, “[...] há uma dominante totalmente surpreendente da relação em espelho, uma impressionante dissolução do outro enquanto identidade” (LACAN, [1955-1956] 2010, p. 119).

A articulação entre os registros imaginário e simbólico pode ser entendida com mais clareza no texto freudiano sobre o sentimento do ‘estranho’, quando Freud ([1919] 1996, p. 238) define a estranheza como uma “[...] categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”.

O estranho é um estado afetivo despertado quando o sujeito se depara com um objeto exterior, com ‘uma coisa’, que não encontrou uma representação inconsciente para se ligar, quando a consciência não pode lhe conferir sentido.

Essa é a sensação característica da relação imaginária descrita por Lacan no estágio do espelho e que necessita de um regulador capaz de relativizar a ausência da representação inconsciente do objeto da realidade.

Enquanto a dimensão imaginária compreende a representação da coisa ou do objeto através de imagens e palavras, ou seja, representa uma realidade mediada pelos ideais, pela representação dos primeiros objetos de satisfação, a dimensão simbólica produziria o sentido ao introduzir a noção de ausência da coisa em si. A possibilidade de o significante não representar a coisa em si é o que abre caminhos para a significação e transforma o objeto em para sempre perdido.

Lacan ([1955-1956] 2010, p. 58) explica que nas neuroses o sujeito age sobre o recalcado pelo mecanismo do recalque e que ele não quer saber de nada que aparece no real por ter sido rejeitado no simbólico, que “[...] há no sujeito, fuga parcial da realidade, incapacidade de enfrentar essa parte da realidade, secretamente conservada”.

Nas psicoses ocorre que “[...] é realmente a própria realidade que é em primeiro lugar provida de um buraco, que o mundo fantasmático virá em seguida cumular” (LACAN, [1955-1956] 2010, p. 58). Diante de uma lacuna, de uma ausência ou de vazio de representação o neurótico tem como artifício a fantasia, enquanto o psicótico tem o delírio.

No discurso que prevalece na atualidade, a dimensão simbólica da linguagem estaria mais restrita em decorrência de uma falta de barreira reguladora da realidade psíquica. A quebra dos antigos tabus, ao flexibilizar os modelos predeterminados de relações, enfraquece uma ordenação fundamentada na hierarquia, guardando em si mesma uma promessa de satisfação e de felicidade, evidenciando a perda do sentimento que causaria horror social em situações que dizem respeito inclusive ao tabu do incesto.

Longe de se tratar de uma questão moral ou de gênero, o recalque é um operador psíquico na medida em que possibilita a produção de sentido para a existência norteando, através do falo enquanto significante, a estruturação psíquica dentro dos referenciais da neurose, da psicose e da perversão. A castração como barreira para a relação sexual entre pais e filhos relativiza a dimensão imaginária do ter ou não ter o falo possibilitando tanto para o homem quanto para mulher o reconhecimento de seu ser mediado pela falta/ausência.

Identificado e ocupando uma posição masculina, significa para o sujeito, independentemente de ser ele macho ou fêmea, reconhecer que ‘obtenho o falo, mas posso perdê-lo’, já na posição feminina, significa reconhecer ‘não obtenho o falo, mas posso obtê-lo’.

Segundo Lacan ([1955-1956] 2010, p. 210), a dimensão simbólica é o que

[...] dá uma forma na qual se insere o sujeito no nível de seu ser. É a partir do significante que o sujeito se reconhece como sendo isto ou aquilo.

Quanto às diferenças subjetivas entre o masculino e o feminino, a falta de material simbólico é o que caracteriza o feminino como um signo de ausência, de vazio e de buraco, e essa ausência de referencial seria a responsável por todo sentido atribuído à existência e a sexualidade. Nas sociedades ocidentais, o menosprezo social atribuído a figura da mulher em razão do patriarcado implicaria numa interpretação um tanto quanto desmerecedora por parte da psicanálise a respeito da posição feminina. Podemos ao menos perceber após esse breve percurso teórico que não é bem isso o que Freud e Lacan vem nos dizer.

Podemos concluir que entre as características da atualidade levantadas ao longo do texto, o imediatismo seria o responsável por um predomínio do que pulsa de real nos processos de subjetivação. As relações virtuais evidenciam a prevalência de modos de satisfação num âmbito imaginário ocupando grande parte da energia psíquica destinadas às trocas sociais, ou seja, à satisfação propriamente dita. O registro simbólico teria sua dimensão esvaziada visto que as leis e os tabus que vigoraram em épocas anteriores a nossa estão sendo questionados e até mesmo descartados.

Duas questões foram postas como ponto de partida para este estudo e podemos agora retomá-las, a fim de concluir algo a respeito, nos afastando da tentativa de esgotá-las. Os referenciais simbólicos que prevaleceram na cultura dos tempos de Freud e que influenciam a prática e a teoria psicanalítica na atualidade são fundamentais para a compreensão da dimensão significante da linguagem, visto que ainda são reconhecidos como leis ordenadoras da cultura.

No que se refere às mudanças desses mesmos códigos e referências e suas consequências para os processos de subjetivação, entendemos que o sofrimento psíquico típico da atualidade pode significar um clamor para que novos reguladores mais coerentes com os ideais de nosso tempo sejam estabelecidos.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: gabilazarini@gmail.com

Recebido em: 31/08/2015
Aprovado em: 04/09/2015

 

 

SOBRE A AUTORA

Gabriela Lazarini
Psicóloga. Pós-graduada em psicologia organizacional e do trabalho.
Candidata em formação e aspirante a membro do Círculo Psicanalítico da Bahia.

 

 

1 Aquele que ainda não fala.
2 Innenwelt, mundo interior e Umwelt, mundo exterior, são termos utilizados por “Von Uexküll, biólogo alemão que revolucionou o estudo da antropologia ao construir uma teoria do comportamento mostrando que o pertencimento de um animal (inclusive o homem) a um meio devia ser pensado como a interiorização desse meio no vivido de cada espécie” (Os espelhos de Lacan. Opção lacaniana online, nova série, ano 2, n. 6, nov. 2001. ISSN 2177-2673, nota 8).
3 Birman (2012, p. 108) se refere aqui às experiências infantis de transitivismo. Quando “duas crianças pequenas e com idades muito próximas são colocadas juntas, uma se confunde com a outra, e o terror que cada uma delas sente de perder a imagem especular faz com que um ataque a outra com violência, para não perder essa identificação”.

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