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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.45 Belo Horizonte jul. 2016
Consequências traumáticas da violência em crianças e adolescentes de favelas do Rio de Janeiro: alguma diferença de atos terroristas em outras partes do mundo?1
Traumatic consequences of violence on children and adolescents in favelas of Rio de Janeiro: any difference from terrorist acts in other parts of the world?
Fernanda Ribeiro de Freitas
I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
RESUMO
Atos terroristas têm motivações políticas, ideológicas, étnicas ou religiosas que expressam intensa insatisfação por meio de extrema violência. Os métodos usados por traficantes nas favelas cariocas são semelhantes aos dos atos terroristas: tortura, explosões, sequestros, violência sexual e ameaças à segurança em geral. Independentemente das razões, ambos têm em comum a luta por poder. Suas vítimas se sentem impotentes e obrigadas a obedecer a regras ditatoriais e violentas. A banalização da violência no noticiário local faz pensar se o número de vítimas em favelas não seria similar ao número de vítimas nas zonas afetadas pelo terrorismo – ou maior. A noção de trauma concebida por Donald D. Winnicott relaciona trauma a falhas ambientais que interrompem a continuidade do ser e quebram a confiança neste ambiente. Expressas em diferentes formas, pode-se discutir as experiências traumáticas em termos específicos de acordo com o processo de maturação individual. O estudo das consequências traumáticas do terrorismo é válido para uma gama muito maior de casos, independentemente das motivações ou da cultura, nacionalidade e nível social das vítimas.
Palavras-chave: Trauma, Violência, Infância.
ABSTRACT
Terrorist acts are political, ideological, ethnic or religious acts to express intense dissatisfaction by means of extreme violence. The methods used by favela’s drug lords are very similar to those of terrorists: torture, bombings, kidnappings, sexual violence and threats to general safety and security. Irrespective of reasons, their motivations are very similar in terms of pursue of power. Victims feel compelled to abide by dictatorial and violent rules. The banalization of violence and the frequency of such acts broadcast in the local news makes one wonder if the number of casualties in favelas is not similar – or either higher. The notion of trauma as conceived by Donald Winnicott relates trauma to environmental failures interrupting the continuation of being and breakage of trust in the environment. Expressed in different ways, one can discuss traumatic experiences in specific terms according to the process of each individual’s maturation. The study of traumatic consequences of terrorism caters for a much wider spectrum of cases, irrespective of motivations or its victims’ cultural background.
Keywords: Trauma, Violence, Childhood.
O presente trabalho foi elaborado originalmente para o XIX Fórum Internacional de Psicanálise da International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS) ocorrido em Nova Iorque, de 12 a 15 de maio de 2016.
O tema Violência, terror e terrorismo hoje: perspectivas psicanalíticas pareceu-me uma ótima oportunidade de apresentar um recorte que já me chamava a atenção havia muitos anos: o conceito de terrorismo pode ser aplicado ao dia a dia de muitas favelas. Acredito que a psicanálise pode contribuir bastante para além do setting psicanalítico.
Apesar de parecerem tão distintas, as motivações de grupos terroristas e traficantes de drogas têm suas similaridades tanto pela despersonalização causada em suas vítimas quanto pelos recursos utilizados e, acima de tudo – ao menos em minha opinião – pela busca do poder e pela necessidade dos agressores de ser notados em seus grupos sociais.
Essas observações vêm de experiência pessoal em trabalhos voluntários com crianças e jovens carentes ao longo dos anos. Além disso, resido num bairro nobre do Rio de Janeiro, mas a poucos metros de uma favela. Apesar de vidas tão diferentes, são meus vizinhos. Impossível passarem despercebidos.
Entretanto, a elaboração do trabalho mostrou o quanto eu não sabia e o quanto ainda tenho que aprender. Sendo um assunto tão complexo, admito desde já que a discussão é incompleta. É mero recorte baseado em minha experiência pessoal e no único trabalho acadêmico que encontrei, em que crianças de comunidades carentes foram ouvidas: Infância e violência: cotidiano de crianças pequenas em favelas do Rio de Janeiro e Recife (2013), coordenado pelo Prof. Dr. Hermílio Santos, da PUC-RS.
Obviamente, concentrei-me nos dados a respeito do Rio de Janeiro, onde foram ouvidos moradores, formadores de opinião, adolescentes e 207 crianças de até 8 anos em seis comunidades distintas.
Apesar de ter lido bastante sobre terrorismo, tema principal do fórum, achei que seria mais valioso apresentar apenas minhas perspectivas sobre a favela, algo desconhecido para a maioria dos participantes.
A comunidade a que me refiro pessoalmente é Pavão-Pavãozinho-Cantagalo, localizada entre os bairros de Ipanema e Copacabana, onde durante um tempo fui voluntária numa escola comunitária. Minha principal tarefa era no berçário com bebês de 5 a 24 meses.
Durante o curso de Letras estagiei numa escola municipal que serve à mesma comunidade. Além disso, sou voluntária em ações promovidas pela empresa para a qual trabalho em visitas a abrigos, orfanatos e casas de ressocialização (comumente conhecidas como presídios para infratores menores de idade).
Uma definição precisa do termo “favela” é tarefa quase impossível, já que há particularidades em cada uma delas quanto à região do País e mesmo dentro de uma mesma cidade, dependendo da origem dos seus imigrantes e da forma como cada comunidade foi concebida.
A percepção mundial do que seria uma favela vai a extremos: desde a animação Rio (Blue Sky Studios, 20th Century Fox Animation, 2011), com pessoas felizes vivendo na pobreza, ao filme Cidade de Deus (O2 Filmes, VideoFilmes, 2002) e sua violência extrema.
Há também uma certa glamourização do termo, como o restaurante francês Favela Chic. Pessoalmente não consigo entender como as duas palavras podem funcionar juntas. Longe de interpretações extremas, deve-se ter em mente que nessas comunidades vivem seres humanos, famílias.
O fenômeno favela surgiu no final do século XIX, em parte como consequência da abolição da escravatura em 1888. Os então cidadãos livres continuaram a trabalhar para seus antigos donos, mas como haviam perdido a moradia do tempo de escravos, tinham que encontrar um novo lugar para morar – de preferência perto do trabalho. Em virtude das características geográficas da cidade, a ocupação irregular no Rio de Janeiro se iniciou nos morros que cercam suas áreas nobres.
Ao longo do século XX, em consequência das precárias condições de vida nas regiões Norte e Nordeste do País, o número de imigrantes no Sudeste cresceu exponencialmente, e muitos deles escolheram as favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo como nova residência. Esse fenômeno certamente adicionou elementos ao caldeirão cultural das comunidades.
O século XX também foi testemunha de considerável aumento da criminalidade. E mesmo que a maioria de sua população não esteja envolvida em atividades criminosas, a disposição das casas facilita tais atividades: há muito poucas ruas. As vias públicas muitas vezes não passam de vielas sem iluminação ou pavimentação.
Por não haver regulamentação, seus moradores pagam poucas taxas, muitas vezes nenhuma. O preço por isso é alto: falta de apoio governamental para as necessidades mais básicas. As casas – ou barracos – são construídas muito próximas umas das outras. É possível comprar um telhado (a famosa laje) em lugar de um terreno. E o novo dono também pode vender seu telhado posteriormente, se assim desejar.
Em muitas dessas casas, famílias e parentes próximos vivem em apenas um ou dois cômodos. O banheiro pode ser externo. A taxa de desemprego é alta, e as crianças, via de regra, frequentam escolas públicas.
Certa vez, ao subir o morro durante o dia, fui recepcionada por um rapaz jovem que vestia apenas um short, sem camisa. Também portava uma arma enorme. Ele foi simpático e perguntou aonde eu ia. Também se ofereceu para carregar minhas bolsas e me levar ao meu destino. Antes de seguirmos, tive que esperar alguns minutos porque ele vendia drogas enquanto falava comigo.
Esse mesmo rapaz, se descer o morro e circular pelos bairros nobres da cidade – mesmo desarmado – será invisível ou temido pela suposta violência que possa provocar. Isso ocorre com qualquer jovem de favela, seja por seu poder no tráfico, seja por uma liderança positiva que exerça na comunidade.
Tal invisibilidade, um sentimento de não pertencimento e a negligência do estado abrem o caminho para organizações paralelas, e o tráfico acaba por prover algumas necessidades básicas, tais como uma carona à emergência hospitalar, dinheiro para compra de medicamentos ou um botijão de gás de cozinha. São benefícios implicam o silêncio a respeito do tráfico e até mesmo a invasão da casa ou o assassinato de um parente numa troca de tiros.
Há também regras de conduta peculiares e distintas de uma resposta governamental. Por exemplo, no caso de violência doméstica, se a mulher se queixa do marido ou namorado ao líder do tráfico, o homem é expulso da comunidade. Se houver reconciliação do casal, nova agressão e a mulher se queixar novamente, ambos serão expulsos.
Tiroteios e disputas contra a polícia ou organizações criminosas rivais são parte da rotina. Além de armas de fogo, crianças são expostas ao tráfico de drogas, violência doméstica e agressão física em casa, nas áreas públicas e, às vezes, também na escola. Aquelas que não são vítimas diretas, ao menos relatam já terem presenciado agressões criança-criança, adulto-criança ou adulto-adulto.
De acordo com a pesquisa citada, mesmo que em seu discurso a maioria dos adultos afirme que o diálogo é a melhor forma de educação dos filhos e que, na perspectiva tanto de crianças quanto de adultos, a repreensão mais comum é o grito, crianças relatam mais agressões físicas a si como forma de correção do que os adultos são capazes de admitir.
Crianças mais velhas e adolescentes são muitas vezes responsáveis pelos cuidados diários dos irmãos mais novos, e a primeira gestação pode ocorrer antes dos 15 anos de idade. Estupros são perpetrados geralmente por policiais ou por quadrilhas rivais. O número de adultos que afirmam ter conhecimento de casos de abuso sexual contra crianças chega a 47% em uma das comunidades entrevistadas.
Berzolin (2012) pontua que Winnicott não elaborou uma teoria específica do trauma. O assunto e seus aspectos clínicos são encontrados ao longo de sua obra, já que para o autor, trauma é parte da constituição do ser, representando uma dissonância entre as necessidades do bebê e a provisão ambiental.
Vale salientar que algumas dessas falhas são saudáveis e essenciais para a formação de um sentido de self. Um exemplo é a mudança de comportamento da mãe em relação ao bebê entre os estágios de dependência absoluta e dependência relativa.
Sua experiência como pediatra, a técnica de observação de bebês e a influência do trabalho de Melanie Klein levaram-no a considerar a relevância dos aspectos primitivos da constituição da subjetividade anteriores à fase edipiana. De acordo coma teoria winnicottiana, a repressão freudiana de uma figura paterna libidinizada só importa se o indivíduo estiver suficientemente maduro em termos de desenvolvimento emocional.
Nos primeiros meses de vida o bebê vivencia um estágio de dependência absoluta, apoiando-se exclusivamente na mãe-ambiente para seu desenvolvimento. Mais do que uma questão de sobrevivência, essa é uma condição para começar a viver.
Falhas nessa relação podem levar à falta de confiança na continuidade do ser e a uma sensação de vulnerabilidade. Isso explica um dos mais famosos postulados de Winnicott: “[...] não há tal coisa como um lactente” (1960). O que há aqui é uma relação mãe-bebê, já que o bebê não se reconhece como unidade.
Assim, os olhos e as expressões faciais da mãe funcionam como um espelho que permite o desenvolvimento e a integração do self do bebê. Esse processo, que auxilia na formação de identificações organizadas como uma realidade psíquica interna, surge após várias incorporações e introjeções de representações mentais de forma contínua.
Aquilo que será sentido como falha ambiental está relacionado com a singularidade de cada interação, permitindo que o trauma se desenvolva ao longo da vida do indivíduo. Tanto o excesso quanto a falta de cuidados maternos são igualmente traumáticos.
Um bebê deixado à própria sorte ou uma mãe deprimida ou mesmo um ambiente caótico e imprevisível são apenas alguns exemplos de vivências traumáticas. No berçário no qual trabalhei, embora as famílias recebam fraldas descartáveis para trocas à noite e nos fins de semana, alguns bebês retornavam na manhã seguinte com a mesma fralda do dia anterior. Experiências assim forçam o bebê a permanecer em constante estado de alerta, sempre pronto a reagir por não saber o que esperar do ambiente.
Reagir neste estágio de desenvolvimento humano significa uma perda de identidade temporária. Isto oferece um sentimento de extrema insegurança e possibilita a expectativa de exemplos posteriores de perda da continuidade do self, e mesmo uma desesperança congênita (não herdada) a respeito da possibilidade de uma vida pessoal (WINNICOTT, 1958, p. 184, tradução da autora).
O indivíduo entende tais experiências como ameaças de agonias impensáveis e de aniquilação. Para enfrentá-las, utiliza a mais primária das defesas: a cisão. Em busca de proteção, é criado um falso self patológico, e essa perda de identidade representa o isolamento do gesto espontâneo – base do self verdadeiro.
A distinção self verdadeiro x falso self também existe na saúde. A diferença é que, no psiquismo saudável, o falso self protege o self verdadeiro, preservando a comunicação entre ambos. Consequentemente, são mantidos intactos o potencial criativo e a possibilidade de enriquecimento através das experiências – e a consequente integração do self.
Tanto nos resultados da pesquisa da PUC-RS quanto em minha experiência nessas comunidades, as crianças pequenas parecem ter mais memórias de cenas de violência que os adultos. Isso me faz pensar que há um limite de violência possível de absorção. Portanto, ao longo da vida, uma cisão ou mesmo a incapacidade de simbolização do sofrimento seriam as saídas mais óbvias.
Num nível extremo, o falso self se torna a personalidade total. Consequentemente, todas as experiências são vividas com um certo grau de agressividade, que será maior ou menor, dependendo da vivência de cada um. Assim, tais experiências acabam sendo percebidas como inúteis afetando a sensação de pertencimento. Em algumas situações, considerando-se um ego tão imaturo, certas experiências nunca serão sentidas como realmente vividas.
Trauma é uma experiência contra a qual o indivíduo não possui nenhum tipo de defesa organizada. Ele causa confusão, já que as defesas de um tipo mais primitivo devem ser reorganizadas (WINNICOTT, 1964, p. 201, tradução da autora).
O indivíduo pode estar mais (bem) organizado em determinado momento ou área e em outro utilizar processos defensivos arcaicos, tal como a dissociação. No entanto, mais importante do que a fixação da imaturidade é a relação entre a capacidade de organizar defesas e algo que solicite mais do que essa organização de defesas esteja em condições de suportar.
Winnicott estabeleceu diferenças entre os tipos de trauma de acordo com o estágio do processo de amadurecimento no qual ocorrem, já que não alcançar um determinado estágio de desenvolvimento e perdê-lo são situações distintas.
A necessidade do uso defesas primitivas no estágio de dependência absoluta leva à psicose. Quando falhas ambientais ocorrem num estágio de maior integração, em que o indivíduo já consegue diferenciar o EU-NÃO EU (me-not me), o trauma é vivenciado como uma quebra na confiança, e o ambiente é sentido como persecutório.
Então, quais seriam as consequências de falhas ambientais nesse segundo estágio?
A tendência antissocial é uma possibilidade de reparação da confiança inicial, numa demanda por aquilo que foi perdido. Nesse caso, o ambiente foi bom e confiável até certo momento, mas eventualmente desapontou. Nos estágios de dependência absoluta e relativa, a criança teve cuidados suficientes dos pais, cuidadores, parentes, vizinhos ou mesmo da creche. Ou seja, quando o trauma ocorreu, ela já tinha mais maturidade e integração, possibilitando o uso de defesas mais sofisticadas.
Para Winnicott (1967), há uma ligação estreita entre delinquência e privação doméstica. Um lar partido afeta o sentido de liberdade criativa da criança e gera ansiedade, mas se o indivíduo ainda tem alguma esperança, tentará encontrar estabilidade fora de casa. Delinquência nada mais é do que a busca de estabilidade contra a possibilidade de loucura.
Com raras exceções, o sistema público de educação brasileiro não oferece recursos materiais e humanos adequados. Profissionais, alunos e familiares não recebem nenhum apoio psicológico. A deficiência vem das necessidades mais básicas. Por exemplo, muitas dessas crianças têm na escola sua única chance de uma refeição completa e balanceada. Entretanto, nem nesse aspecto a escola é confiável.
Outro triste exemplo dessa realidade: trocas de tiros – entre grupos rivais ou contra a polícia – ocorrem normalmente durante a madrugada. No dia seguinte é quase impossível para os professores a execução de tarefas mais simples com seus alunos. Há um clima intenso de ansiedade e agressividade – inclusive física – entre as crianças, e muitas vezes das crianças contra os professores e demais funcionários da escola.
Seja porque talvez nunca tenham sido ouvidas, seja por vergonha, seja por medo, para essas crianças não é possível simbolizar a dor e o medo. O acting-out é a única alternativa que conhecem. Infelizmente, a maioria dos profissionais não está preparada para lidar com tamanha violência e seus consequentes traumas.
Uma das adolescentes mais agressivas com quem convivi é uma menina que, na época, tinha 13 anos. Depois de algum esforço para conhecê-la melhor, descobri uma jovem meiga, inteligente e até capaz de seguir instruções e ouvir conselhos. No entanto, seu humor podia mudar de forma rápida e drástica. Ela também era extremamente erotizada para sua idade.
Eventualmente, tive a oportunidade de conhecer sua casa: um barraco de apenas um cômodo, com banheiro externo. Ela vivia sozinha com o padrasto já que sua mãe falecera anos antes. Juntando todas as peças, pude entender de onde vinha tanta agressividade e seu constante estado de alerta, que propiciava mudanças bruscas de humor.
Afinal de contas, crescer num ambiente de tamanha ansiedade e privação força o indivíduo a desenvolver mecanismos de defesa para lidar com a situação. Tal sensação de abandono e impotência somada à impossibilidade de confiança no presente não permite que a criança tenha esperanças sobre o futuro.
Na busca pela estabilidade perdida, algumas crianças podem cometer pequenos furtos, também como um grito de socorro. No ato de furtar, a criança está buscando a mãe – mesmo que com alguma frustração – e, ao mesmo tempo, solicitando à autoridade paterna limites para tais atos impulsivos. A atuação é consequência de pensamentos que surgem num estado de excitação quando a simbolização de um evento traumático ainda não é possível.
Entretanto, caso não haja o estabelecimento de limites por parte da família ou dos cuidadores, pode ocorrer desde um aumento da depressão e do sentimento de despersonalização até a possibilidade de perda da realidade, exceto através de atos violentos.
Winnicott (1964) afirma que a agressividade pode ser uma reação direta ou indireta à frustração, que muitas vezes é descarregada naturalmente. Outras vezes é necessário que o agressor se depare com algo ou alguém para que maiores danos sejam evitados. A agressividade pode ser expressa abertamente ou aparecer como seu oposto.
Independentemente de idade, cultura, raça ou condição social, todos os seres humanos possuem sua carga de agressividade, que aparece primeiramente nos movimentos do bebê. Tal experiência é fonte de prazer e descoberta de um mundo separado dele. É outra forma de diferenciação entre EU-NÃO EU. Esses movimentos mais simples eventualmente progridem em expressões de raiva, ódio ou controle.
Uma criança pode expressar abertamente sua agressividade, enquanto outra pode parecer não tê-la em absoluto. Entretanto, sendo um traço básico da natureza humana, a agressividade está presente em ambos os casos. A diferença está na expressão individual, já que a criança tímida deposita sua agressividade no mundo externo, em forma de medo e insegurança. Ela vive em constante estado de perseguição. Por outro lado, a criança abertamente agressiva (a mais saudável, de acordo com Winnicott) consegue mais facilmente entender os limites da expressão de sua agressividade.
Outras expressões saudáveis da agressividade são os sonhos, a relação da criança com um objeto transicional (ensinando a possibilidade de amar e odiar o mesmo objeto simultaneamente) e o brincar construtivo. Na verdade, para Winnicott (1964), o brincar oferece infinitas possibilidades de construção de um mundo subjetivo.
Mas qual seria o ponto exato de origem da agressividade? Em minha opinião, esta discussão é essencial para o presente trabalho. Na mágica infantil, é possível destruir e recriar o mundo num piscar de olhos. No desenvolvimento normal a criança começa experimentando uma relação puramente física com a mãe, que aos poucos vai se recheando de experiências emocionais mais ricas e complexas.
A agressividade é, de fato, um sinal de civilização. Entretanto, se esse sentimento de criação/destruição mágica não se desenvolve em uma percepção do mundo externo, venenos, armas de fogo e explosivos continuarão a ser o parque de diversões para muitas pessoas, fazendo do nosso mundo um lugar bem diferente de algo mágico.
Moradias decentes e saneamento básico, apesar de muito importantes, não são suficientes para o desenvolvimento da subjetividade. A manutenção de símbolos, mitos e história de uma comunidade é igualmente essencial.
Vale lembrar que para Winnicott (1964) o abuso é tão traumático quanto a privação. A oferta insuficiente de necessidades básicas e o abuso da violência são a mistura perfeita para terror em qualquer instância.
Nossas estatísticas oficiais não são sempre confiáveis por várias razões. Entre elas está o fato de delegacias serem avaliadas pelo número de vítimas de seus policiais. Em algumas favelas ainda há áreas de execução sumária onde os corpos são queimados, e as famílias das vítimas nunca saberão o paradeiro dessas pessoas.
Por tais razões, eu realmente acredito que o número de vítimas nas favelas brasileiras seja maior que o número de vítimas no Oriente Médio. Pelo menos, o Atlas da violência 2016 (referente a 2014), relatório desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mostra que, apesar de sermos apenas 3% da população mundial, o Brasil respondeu naquele ano por 13% das mortes por armas de fogo em todo o mundo. A maioria das vítimas são homens negros.
Para situarmos o problema, estas mortes representam mais de 10% dos homicídios registrados no mundo e colocam o Brasil como o país com o maior número absoluto de homicídios. Numa comparação com uma lista de 154 países com dados disponíveis para 2012, o Brasil, com estes números de 2014, estaria entre os 12 com maiores taxas de homicídios por 100 mil habitantes (Atlas da violência 2016, p. 6).
De acordo com o Relatório sobre violência homofóbica no Brasil, publicado em 2012 pela então Secretaria de Direitos Humanos, somos também o país que mais mata transexuais no mundo. Essas vítimas em geral são das classes menos favorecidas. Se isso não é viver em terror, eu realmente não sei o que é.
Para Varvin, citando P. Waldmann (2003), terrorismo é uma estratégia de comunicação, na qual destruição e vítimas são não o objetivo, mas os meios de alcançá-lo. Demonstrações de violência são demonstrações de poder e, consequentemente, de controle sobre as comunidades – tanto em terrorismo quanto em violência urbana.
Abgail Golomb (2003) ressalta que outro efeito em comum desses atos é a destruição da individualização, já que as vítimas são reduzidas a estatísticas ou a uma moeda de troca. Um ambiente de tamanha violência é impessoal e enfraquece a sensação de segurança.
A autora oferece um exemplo do desenvolvimento de segurança na infância: num ambiente suficientemente bom, quando a criança quebra seu brinquedo, geralmente pode contar com seus pais ou cuidadores para consertar o objeto. Quando isso é impossível, ela aprende que nem tudo pode ser consertado e que deverá lidar com as consequências de seus atos – tudo isso de maneira compatível com seu estágio de desenvolvimento emocional. É um processo saudável de aprendizado sobre frustração, perda e medo.
O terror, por sua vez, opera com a instabilidade e o inusitado. Mesmo que os adultos possam lidar melhor com o trauma de eventos de extrema violência, é provável que não tenham condições psíquicas de ajudar a reparar os danos causados em suas crianças.
Um tema tão difícil pode sugerir certa falta de esperança. Entretanto, várias organizações não governamentais brasileiras e estrangeiras e milhares de voluntários trabalham incansavelmente com essas crianças em todo o Brasil, e os resultados são positivos.
Através das artes, do esporte e de programas de desenvolvimento de talentos e capacidades, muitas dessas crianças conseguem superar tamanha violência, e algumas acabam por se tornar exemplos positivos dentro de suas comunidades.
Um bom exemplo é Mariana (nome fictício). Aos 17 anos matriculou-se num curso básico de cabeleireiros em sua comunidade, oferecido gratuitamente por um profissional renomado. Os conhecimentos do curso permitiram que ela inicialmente oferecesse seus serviços a parentes e amigos. Posteriormente, especializou-se ainda mais e atualmente, ela e sua família puderam se mudar para um lugar mais seguro do que a favela em que viviam.
As marcas de experiências extremamente traumáticas permanecem, mas jovens que aproveitam as oportunidades oferecidas, mesmo que poucas, são capazes de usar seu potencial criativo para superar as falhas ambientais e viver uma vida rica e criativa.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: fernandafreitas.psi@gmail.com
Recebido em: 23/05/2016
Aprovado em: 30/05/2016
SOBRE A AUTORA
Fernanda Ribeiro de Freitas
Licenciada em Letras: Português/Francês pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Candidata a psicanalista e membro efetivo do Centro de Estudos Antonio Franco Ribeiro da Silva, pertencente ao Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Participante do NEPsI – Núcleo de Estudos Psicanalíticos da Infância do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
1 Texto agraciado com o Prêmio Benedetti-Conci pelo melhor trabalho apresentado por candidato de sociedades filiadas no XIX Fórum de Psicanálise da International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS) – Violência, terror e terrorismo hoje: perspectivas psicanalíticas, realizado no Roosevelt Hotel, Nova Iorque, de 12 a 15 de maio de 2016.