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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.45 Belo Horizonte jul. 2016
O amor nos tempos da Internet
Love in the days of Internet
Vanessa Campos Santoro
I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
O texto trata dos laços e desenlaces amorosos na contemporaneidade. Para Lacan, o mal-estar da cultura tem outro nome, que é o discurso capitalista. O discurso capitalista não faz laço e forclui o amor. Não há lugar para o desejo, só há satisfação. Só o discurso do analista faz contraponto ao discurso do capitalista, pois preserva a singularidade do sintoma, promove os giros dos discursos e tem uma relação particular com o real e o gozo. Outra maneira de fazer frente ao discurso capitalista é o amor. Dificuldades do amor no mundo midiático, onde há ausência de intervalo para os dizeres, o saber e a falta.
Palavras-chave: Amores na internet, Discurso capitalista, Discurso do analista, Elogio ao amor.
ABSTRACT
The text is about loving ties and outcomes nowadays. To Lacan, the social unrest, or malaise in the culture has another name, which is the Capitalist Discourse. The Capitalist Discourse doesn’t create ties and rejects love. There is no place for desire, only satisfaction. Only the Analyst Discourse is a counterpoint to the Capitalist Discourse, because it preserves the singularity of the symptom, promotes the twists of the discourses and has a private relation to the real and the enjoyment. Another way of confronting the Capitalist Discourse is love. Constraints of love in the media world, where there is a lack of time interval for the sayings, the knowledge and the absence.
Keywords: Love in the internet, Capitalist Discourse, Analyst Discourse, Love compliment.
Só quando amo consigo olhar o mundo
por duas janelas que não se confundem,
a minha e a do ser amado.
Calligaris, 2010.
Deparamos no consultório com clientes que, estando inscritos em sites de relacionamento como o Tinder, o Lovoo, Hot or Not e Badoo procuram parceiros(as) amorosos(as).
Algumas falas insistem e se repetem:
“É tudo igual. No começo vai bem, parece que encontramos o príncipe, mas daí ele vira um sapo e sai do ar de repente.”
“Marcar encontro no Tinder, ficar horas conversando”... “Já fui pedida em casamento, mas quando tentei conhecer pessoalmente meu futuro noivo, ele me bloqueou.”
“É só dar uma pressão, que os castelos de areia desmancham. Parece que é para viver só isso, a ilusão e nada mais.”
“É só pra transar mesmo, qualquer coisa serve.”
O que a psicanálise tem a dizer sobre o amor nos tempos da internet?
Seria o amor virtual um sucedâneo do amor cortês?
Carlos Mello (2013) se refere ao amor cortês, expressão criada no século XI por Gaston Paris (1883), próprio dos trovadores provençais, que enalteciam a mulher colocada no lugar de Dama, destituída de toda corporeidade e transformada num ideal inatingível.
No Seminário 20, Lacan ([1972-1973] 1988, p. 94) afirma que
[...] o amor cortês é uma maneira inteiramente refinada de suprir a ausência de relação sexual, fingindo que somos nós que lhe pomos obstáculo.
Mello fala do “desencadeamento de certas consequências do amor cortês nos relacionamentos contemporâneos”, quando caem as idealizações de ambas as partes, e as ilusões fantasmáticas montadas pelos parceiros não se sustentam, o que provoca decepção, desilusão e muitas vezes violência.
Há uns 20 anos me chamou a atenção o filme Denise está chamando, dirigido por Hal Salwen e premiado na época. Trata-se do completo desencontro amoroso entre um suposto casal de amigos que, absorvidos pelo trabalho midiático, tentam fazer laços amorosos pelo telefone e marcar encontros que nunca acontecem. Surpreendidos pela morte da mulher num acidente de trânsito quando falava ao celular, não conseguem sequer ir ao enterro.
Um dos casais passa a se relacionar sexualmente pelo telefone, na falta do que dizer um ao outro sobre seu sentimento. Mas passam um pelo outro sem se reconhecerem num dos encontros planejados. Uma das protagonistas descobre a identidade do homem que lhe doou o esperma. Apesar da alegria do casal, todo contato é feito por telefone; até o parto é irradiado com todos participando. No final são os únicos que vão à festa, se conhecem e saem juntos. O nome da filhinha? Afrodite.
Há 20 anos as redes sociais estavam apenas começando. No entanto, imersos no discurso capitalista que rege os laços na contemporaneidade, enfrentávamos essa questão ética: o discurso capitalista não faz laço e forclui o amor.
Então, laço e desenlace são um problema da atualidade, quando se trata dos laços de família, dos laços afetivos e dos laços amorosos.
Lacan em O avesso da psicanálise ([1969-1970] 1992) vai formalizar o campo do gozo através dos discursos, estabelecendo as modalidades de laço social. Não há relação sexual, mas há laço. Os discursos são escritos que escrevem os laços e os desenlaces.
Não pretendemos no presente texto desenvolver os discursos do mestre, da histérica, do universitário nem do analista, embora todos tenham sua verdade.
Vamos privilegiar o discurso capitalista como aquele que prejudica o amor, este sim, nosso tema, e o discurso do analista como aquele que promove os giros dos discursos e tem como especificidade a ética da psicanálise. Sabemos que, para circular, os laços precisam dos giros dos discursos que sofrem com o discurso capitalista.
Para Lacan ([1969-1970] 1992), o mal-estar contemporâneo tem outro nome, que é o discurso capitalista. Esse discurso é fomentado pela ciência e pelo mercado que, quando se juntam tornam-se poderosos e implacáveis, impossibilitando o tratamento do gozo.
Fica tudo reduzido a seu lugar de troca. Aqui não há lugar para o desejo, só há satisfação. O discurso capitalista propõe um solipsismo, um autismo que não faz laço com o outro. É a segregação conhecida nos fatídicos campos de concentração. Uma das características do discurso capitalista é a Verwerfung: rejeição da castração, tudo é permitido. Deixar de lado as coisas do amor é uma das suas consequências, bem como a incapacidade para amar.
Só o discurso do analista faz contraponto ao discurso capitalista.
Em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise Lacan ([1953] 1998, p. 322) exorta o analista a se preocupar com a subjetividade de sua época, de tal modo que ele saiba de sua função na discórdia das linguagens. O discurso do analista preserva os efeitos revolucionários do sintoma, promove cada giro de discurso e tem uma relação particular com o real e o gozo que lhe dá sua característica.
A cada mudança de discurso, um novo amor, um novo laço. Por que mudamos de discurso? Porque esbarramos nos impasses da vida. Enfim, a voracidade do mercado invade os espaços afetivos de modo que preservar a singularidade hoje é a ética da psicanálise.
Vivemos a era da depressão e do medo. O sentimento de impotência diante das demandas do mercado, para as quais não temos respostas espontâneas e próprias, nos lança na comparação a superideais, e daí vêm a apatia e a sensação de fracasso e solidão. Como competir com o mercado?
Confinados diante da máquina, vivemos a ilusão da inclusão virtual e imaginária. No mundo midiático a transmissão é instantânea (eficaz). O enunciado pode ser emitido sem intervalo entre emissão e recepção, entre o dito e o ouvido. A ausência de intervalo não abre espaço para os dizeres, o saber e a falta.
O Outro tem o estatuto de uma imagem virtual, e é possível dizer de uma forma muito escancarada as formas de gozo, tanto através das fantasias sexuais vividas a dois quanto das violentas palavras de discórdia e descontentamento, quando algo cai da idealização imaginária. É o amor descortês!
Não podemos esquecer as raízes narcísicas profundas do amor e sua dependência dos fenômenos de linguagem. Para Lacan “[...] o amor certamente faz signo, ele é sempre recíproco” ([1972-1973] 1988, p. 12).
Quanto ao amor que faz signo, isto é, representa alguma coisa para alguém, lembramo-nos de Dante enamorado do piscar de olhos de Beatriz. Lacan opõe o signo do amor ao sexo. O objeto amado é diferente do objeto desejado. Não há amor sem a palavra de amor.
Colette Soler em Um mais de melancolia (1999) fala da equivalência entre a angústia de castração própria do homem e a angústia de perder o amor próprio da mulher em Freud.
Lacan nas fórmulas da sexuação nos diz que a mulher se sustenta com o amor, única identificação a suportar o ser mulher. O homem diferentemente se afirma do lado do ter. Quando ama, ele o faz como mulher.
O ser mulher se sustenta enquanto ser amada, e só se ama a partir da própria falta. As mulheres chamam o amor, enquanto o homem vai mais pelo lado erótico e sustenta o amor pelo lado do desejo.
As mulheres fazem mais do amor uma causa e ficam arrasadas quando ele falta. Portanto, precisam mais das palavras de amor.
Assim, que se preste ou se esquive, o amor sempre programa algum desencanto e, ao entregar-se a ele, toda mulher sempre será um pouco... viúva! (SOLER, 1999, p. 106-107).
Em nossa cultura Alain Badiou (2013), em Elogio ao amor propõe o amor como a saída para os relacionamentos contemporâneos. Segundo o autor, o amor precisa durar um tempo porque é uma construção. Reinventar o amor a dois é uma tarefa difícil. Não se pode desligar o Facebook ou a Internet a qualquer desilusão ou impasse.
Um amor verdadeiro é o que triunfa duravelmente, vezes, duramente, dos obstáculos que o espaço, o mundo e o tempo lhe propõem (BADIOU, 2013, p. 25).
Parafraseando García Marques em O amor nos tempos do cólera (1985), aposta-se no amor para fazer barreira ao gozo, como nos diz Lacan, apesar do prejuízo aos laços amorosos que o discurso capitalista impõe à contemporaneidade.
Referências
BADIOU, A. Elogio ao amor. São Paulo: Martins Fontes, 2013. [ Links ]
CALLIGARIS, C. A coragem do amor que dura. Folha de S.Paulo, de 27 maio 2010. Caderno Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2705201027.htm>. Acesso em: 15 ago. 2015. [ Links ]
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Endereço para correspondência
E-mail: vansantoro@uol.com.br
Recebido em: 04/05/2016
Aprovado em: 09/05/2016
SOBRE A AUTORA
Vanessa Campos Santoro
Psicóloga.
Psicanalista.
Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.