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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.46 Belo Horizonte dez. 2016

 

EDITORIAL

 

Ser psicanalista é:
escutar a dor daqueles que sofrem
e apostar no poder criativo e regenerador da palavra.
ZEFERINO ROCHA

 

Aceitar de imediato o convite para escrever o editorial da revista Estudos de Psicanálise número 46, na qual se homenageia o nosso sócio e fundador do Círculo Psicanalítico de Pernambuco (CPP) Zeferino Rocha, é uma tarefa paradoxalmente difícil e prazerosa. Difícil porque já se está advertido do quanto de vida, de lembranças e de histórias sobre o Homem Zeferino ficará fora deste editorial. Sabe-se da impossibilidade de o escrito dar conta do vivido e da história de alguém, mas quando esse alguém é do tamanho do Zeferino, temos a nítida sensação do limite do escrito para falar do Homem. E prazeroso porque escrever sobre o nosso Zef (como geralmente é lembrado pelos amigos) é uma oportunidade de rememorar a trajetória de vida de alguém que fez do vivido uma experiência significativa.

Zeferino costumava diferenciar a noção de vivência da noção de experiência. Vive-se muitas coisas, mas nem tudo que se vive se transforma numa experiência. A experiência para ele era a possibilidade de aprender com o vivido. Uma aprendizagem capaz de ressignificar a própria existência. E isso ele soube fazer até os últimos momentos de sua vida, quando se deparou com a “iniludível das gentes”, a “Caetana”, a morte.

Nessa experiência da difícil tarefa e ao mesmo tempo de prazer em escrever este editorial zeferiniano, deter-me-ei naquilo que me parece essencial para delimitar esta homenagem: discorrer brevemente sobre a formação e a obra do mestre, do professor generoso que decifrava o texto freudiano, do psicanalista, poeta, escritor e amigo.

A formação de Zeferino Rocha se deu entre os campos da filosofia, da teologia, da psicanálise e da literatura. Ele foi mestre em filosofia e teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, na Itália, no período de 1948 a 1952. Em 1973 concluiu seu doutoramento em psicologia pela Faculdade de Letras e Ciência Humanas da Universidade de Nanterre, em Paris. Lecionou a disciplina Introdução à Psicanálise na Universidade de René Descartes - Paris V, no período de 1970 a 1973. Foi professor de teologia na Faculdade de Filosofia do Recife, (Fafire) e professor de teologia e filosofia no Seminário Maior de Olinda e Recife, bem como no Seminário Regional do Nordeste. Entre 1974 e 1995 foi professor no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco. Quando se aposentou dessa universidade, foi convidado para trabalhar como professor do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco, ao qual permaneceu oficialmente vinculado até 2014, embora não tivesse se afastado completamente.

Zeferino ainda continuava participando de algumas atividades acadêmicas, como orientação de dissertações e teses, além de participação em bancas de mestrado e doutorado. Nesse programa de pós-graduação era membro efetivo do Laboratório de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise, destacando-se por sua capacidade de transitar tanto pelas diferentes disciplinas do conhecimento quanto pela sua singular e generosa contribuição às diferentes pesquisas apresentadas e discutidas no laboratório. Até aproximadamente dois meses antes de adoecer e vir a falecer, ainda permanecia contribuindo ativamente nessas atividades acadêmicas e nos escritos de seus livros e palestras. Foi membro fundador e sócio honorário do Circulo Psicanalítico de Pernambuco (CPP), fundado em 1975. Com frequência se lembrava do CPP e da história de sua fundação. Esteve pela última vez na Instituição em maio de 2016, para proferir uma bela palestra. E exerceu durante vários anos a prática psicanalítica em consultório particular.

No vasto currículo de Zeferino encontramos uma produção significativa de livros e artigos que transitam pelos campos da psicanálise, da filosofia e da literatura. Freud era o autor no qual se debruçou a investigar, a traduzir do alemão e a transmitir o seu pensamento. Mesmo fiel ao pai da psicanálise, Zeferino não hesitou em realizar uma leitura singular e uma nova interpretação da obra freudiana. Em diferentes trabalhos seus se observa a articulação da obra freudiana ao campo da filosofia, advertindo os leitores de que, embora fossem campos epistêmicos diferentes, cada um desses poderia iluminar o outro.

Era assim que enfrentava a tarefa da pesquisa psicanalítica: servindo-se da filosofia, da arte e dos mal-estares do nosso tempo, retornava ao texto freudiano para nele tanto encontrar alguma iluminação, uma orientação quanto, ao contrário, para oferecer a ele uma nova contribuição. Para exemplificar esse estilo do mestre, observamos em um de seus livros – Freud: novas aproximações, publicado em 2008 – o autor transitando pelos campos destacados acima. Não por acaso, o nome “Freud” vem acompanhado da expressão “novas aproximações”, necessárias para fazer circular entre os psicanalistas tanto os escritos iniciais de Freud quanto o novo que dele surge e para ele retorna.

No campo da literatura e da filosofia destacaria Aberlado-Heloísa. Cartas. As cinco primeiras foram traduzidas do alemão e comentadas por Zeferino, assim como A morte de Sócrates. Monólogo filosófico, entre tantas outras produções nas quais se constata o seu interesse em escrever e transmitir também os ensinamentos literários e filosóficos. Os escritos de Zeferino têm um estilo bastante singular: os textos são didaticamente estruturados de forma a facilitar a compreensão para o leitor, característica atenciosa do autor para com o outro. Com frequência se observa a sua preocupação em enunciar o percurso metodológico, o caminho e os objetivos por onde seguirão suas ideias, dando a impressão de desejar que o seu interlocutor o acompanhe na travessia pelo escrito. E da mesma forma aparece sempre nos artigos uma epígrafe poética que marca já no início o toque da sensibilidade e da paixão pela poesia, a exemplo dos inúmeros poemas que utiliza do seu amigo e poeta Daniel Lima.

Interessa destacar que, entre tantos Zeferinos reunidos num só, o Zeferino-Professor marcou gerações de psicanalistas de diferentes orientações teóricas, especialmente, os que foram e estão vinculados ao CPP, além de alunos da graduação e da pós-graduação. Escutá-lo nas aulas, nos cursos, nas palestras era uma experiência compartilhada por todos de estar diante de Um Mestre no sentido próprio a que a palavra nos remete: uma pessoa dotada de excepcional saber e competência em transmiti-lo, um talento na arte de ensinar e desejar que o outro aprenda.

Podemos afirmar que o desejo de Zeferino em transmitir o conhecimento e a experiência psicanalítica estava caucionado pela ética do cuidado ao outro. Quantas vezes argumentou, defendeu e articulou a clínica psicanalítica à ética do cuidado!

Nessa direção se aproximou do pensamento do filósofo Heidegger para se valer das noções de ocupação e ‘pré-ocupação’. Ocupar-se das coisas não é o mesmo que se ‘pré-ocupar’. A ‘pré-ocupação’ é uma forma de ocupação na qual o sujeito se implica, se envolve, com aquilo de que se ocupa. Zeferino não se ocupou das coisas. Mantendo-se vinculado e eticamente comprometido com o que acreditava, defendia e transmitia; se ‘pré-ocupou’ do mundo das coisas, das pessoas, do saber.

Para finalizar nosso breve escrito, dois comentários ainda se fazem necessários. O primeiro diz respeito ao livro que Zeferino deixou concluído na editora CEPE e que foi lançado um mês após seu falecimento, quando completaria 88 anos. O belo livro intitulado ensaios psicanalíticos em interface com a filosofia nos convoca a transitar pelos campos da psicanálise e da filosofia. O segundo comentário diz respeito à maneira como nosso Mestre-Amigo enfrentou seus últimos momentos de vida não se curvando à morte. Ele foi capaz de se valer das linguagens literária, poética, musical e da sua própria voz para cantar a vida até os seus últimos instantes. Resistiu à morte fazendo dessas linguagens sua arma e na companhia das pessoas que tanto amava: sua esposa, suas filhas e seus amigos mais próximos.

Zeferino fez do vivido uma experiência de vida significativa. E isso só foi possível porque foi um Homem que cedo descobriu que, para viver uma vida que vale a pena ser vivida, deve-se atentar para o cuidado destinado a cada instante, a cada momento vivido, como lembra seu amigo e poeta:

Não cuides nem das horas nem dos anos
mas dos instantes e do agora cuida apenas
Cuida de cada um deles.
Vive-o todo, como se o único fosse
ou derradeiro.

Daniel Lima

 

Ivo de Andrade Lima Filho
Coeditor da Revista Estudos de Psicanálise

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