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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.47 Belo Horizonte jul. 2017
É campo minado! Saca onde pisa, meu chapa1
It‘s a minefield! Watch your steps, fella
Luciana Knijni
I Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
RESUMO
É com a dinâmica pulsional que estamos sempre nos deparando. Fluxos de vida e de morte atravessam a história da sociedade em que vivemos, assim como a trajetória dos sujeitos que recebemos no consultório. A clínica mostra que, em grande parte, as queixas atuais dizem de um mal estar invasor e difícil de definir, um vazio em bloco e sem nome. Algo de um desamparo primordial, uma anestesia, uma incapacidade de sentir. Diante disso, consideramos que a problematização do narcisismo e suas formas mortíferas será útil para a compreensão dos modos de constituição das subjetividades contemporâneas nos desafios e interrogações que ensejam para o processo analítico.
Palavras-chave: Narcisismo de vida, Narcisismo destrutivo, Resistência, Psicanálise.
ABSTRACT
It is the drive‘s dynamic that we are always facing. Flows of life and death go over our society‘s history, as well as the trajectory of ones we receive in our psychological rooms. Psychological clinics shows that, most of the times, nowadays complaints are about an intrusive bad feeling and really hard to define, a massive chunk of emptiness with no name. Such a primordial loneliness, a sort of anaesthesia, an incapacity of feeling. Having said that, it‘s considered crucial to make narcissism and its mortal forms problematic in order to understand the paths that build contemporary subjectivity in the confrontation and doubts that leads toward the analytical process.
Keywords: Life‘s narcissism, Destructive narcissism, Resistance, Psychoanalysis.
Estrela, estrela
Como ser assim
Tão só, tão só
E nunca sofrer
VITOR RAMIL
Para onde vão os trens, meu pai?
Para Mahal, Tamí, para Camirí,
espaços no mapa, e depois o pai ria:
também para lugar algum, meu filho,
tu podes ir e ainda que se mova o trem,
tu não te moves de ti.
HILDA HILST
Em seu artigo intitulado Alguns impasses da clínica psicanalítica contemporânea e a sua operacionalização pelo desejo do analista, a psicanalista mineira Eliana Mendes diz: “[...] à psicanálise cabe abrir o espaço para a palavra, para o discurso ético e político” (MENDES, 2015, p. 38). Entendemos que, ao incluir o âmbito da política no território da psicanálise, a autora não se refere à política partidária, mas à política como forma de vida em sociedade.
Gilson Iannini e Vladimir Safatle (2015)2 afirmam:
Se a psicanálise tem consequência para o pensamento político, é por ela trazer uma concepção nova de conflito, de diferença e de singularidade com implicações sobre a economia de relações entre sujeito e sociedade. Pois desde seu início, a psicanálise nunca se contentou em ser apenas uma clínica do sofrimento psíquico [...]. Não por acaso, Freud assinalava que a linha que separa a psicologia do indivíduo da psicologia social é uma linha tênue.
Nesse caldeirão social em que a dinâmica pulsional toma corpo, há forças que visam a construção, o laço, a manutenção da vida e a criação e, junto delas, há forças que agem em outra direção. Não podemos subestimar a grandeza das forças mortíferas que põem golpes em cena, em maior ou menor escala. Golpes de Estado, com o uso das forças armadas, do Legislativo e do Judiciário. Golpes nos fluxos de vida, como beber e dirigir, esquecer os documentos no último dia de inscrição do processo seletivo, escolher os piores parceiros.
Cabe perguntar, até quando, enquanto Nação, seremos dominados por forças silenciosas que impedem nosso progresso, esmagando e dominando grande parte da população enquanto uma pequena parcela triunfa e goza.
É com a dinâmica pulsional que lidamos em nível macro ou micro. A força mortífera, em nossa clínica, se manifesta de muitas formas, seja no masoquismo, no sentimento inconsciente de culpa, nas reações terapêuticas negativas ou na resistência ao tratamento. Pode a clínica psicanalítica produzir alguma diferença na trajetória daqueles que caminham rente ao desfiladeiro?
Como afirmam Lazzarini & Viana (2010), a clínica mostra que, em grande parte, as queixas atuais dizem de um mal-estar invasor e difícil de definir, um vazio em bloco e sem nome. Algo de um desamparo primordial, uma anestesia, uma incapacidade de sentir. Estamos de acordo com as autoras quando afirmam que,
[...] no consultório clínico falamos daqueles pacientes cujas dinâmicas psíquicas se apresentam pautadas pelo mecanismo da clivagem, mais do que pelo recalcamento, e cuja característica é a de ser uma reação básica à atitude do outro da relação primordial (o objeto primitivo) que pode ser dupla: ou a falta de ligação ou um excesso de fusão. No mecanismo da clivagem, como salientado por Green (2001), o retorno dos elementos segregados se acompanha de grave ameaça de desamparo, o que é diferente do recalcamento, na qual o retorno do reprimido dá origem ao sinal de angústia (LAZZARINI; VIANA, 2010, p. 270).
Diante disso, consideramos que a problematização do narcisismo e suas formas mortíferas é útil para a compreensão dos modos de constituição das subjetividades contemporâneas.
Para o psicanalista André Green (2001 apud LAZZARINI; VIANA, 2010) os pacientes narcísicos podem ser definidos como indivíduos cuja capacidade de fantasiar é uma forma de preenchimento do vazio. Segundo ele, nota-se um retardo afetivo intenso, expresso pela aversão aos desejos sexuais e orais (como a anorexia, por exemplo). Nesses casos, o paciente se constitui imerso na vergonha de ser um sujeito pulsional. Insuportável será ainda a submissão ao desejo, à lei, ao limite, às humilhantes manifestações de seu corpo.
Os fluídos corporais são vividos como sujeira e ameaça ensejando hábitos de limpeza. As mãos são lavadas seguidamente, os pés precisam roçar o capacho antes de entrar na sala, o sexo é precedido e sucedido pelo banho. Em extensão, não será somente o corpo a solicitar a limpeza. Livre de sujeiras precisará estar também a palavra. A palavra também virá enfeitada e perfumada. Uma correção gramatical que eleva o sujeito à ascese asseando o vocabulário de terminologias chulas e populares. Instala-se uma busca pela purificação, visando ser aquele que não necessita de nada, que não é contaminado, que controla seu corpo.
Se, em sua fantasia, controla as manifestações corporais para não ser rebaixado, na cena analítica não será diferente. Tentará dominar o analista com a coerência de seu discurso lógico. Diminuirá a importância do trabalho reclamando do pagamento, solicitando diminuir a frequência das sessões, criticando a decoração da sala, questionando o método psicanalítico. Tentará, com todos os meios, fazer do analista o desvalido.
Seguindo a descrição de Lazzarini & Viana (2010) compreendemos que nessas patologias o sentido e o valor do eu é comprometido, já que o sujeito investe o próprio eu, visando uma redução ao nível zero de tensão. No plano das relações objetais a escolha de objeto de tipo narcísico assume uma forma defensiva que privilegia os mecanismos de recusa, com limitada elaboração psíquica. Ainda que mais próximos da condição neurótica, ao se descompensar, tendem à negatividade, apresentando sintomas psicossomáticos, pânico e comportamentos aditivos.
Fluxos de vida, fluxos de morte
Para alargar nossa compreensão acerca da negatividade, optamos por seguir a construção do pensamento de André Green no clássico Narcisismo de vida, narcisismo de morte (1988).
André Green (1988, p. 11) afirma que “[...] o narcisismo opõe uma das mais aferradas resistências à análise”. Por isso, considera fundamental entendermos as relações entre narcisismo e pulsão de morte, chamada por ele de narcisismo negativo.
Segundo ele, em alguns casos, o narcisismo está no âmago do conflito, expressando-se em estruturas e transferências narcísicas. Para ele, os narcisistas são pessoas feridas e carentes. Ele sabe que o pai não foi o homem escolhido pela mãe, outrossim aquele que restou, o prêmio de consolação. Ele intui ser apenas um joguete para a mãe, está a serviço das necessidades dela, é a peça maleável, a companhia. Frente à decepção com ambos os pais, o objeto que lhe resta é ele mesmo.
Nenhum sujeito sofre mais ao se ver na vala comum. Para ele não basta ser um, mas único, sem ancestral, sem sucessor. Precisa se destacar na multidão, ter o melhor projeto, produzir uma obra genial, ser o belo. Tentativas fracassadas de evitar perceber que se vê no reles do chão.
O autor esclarece igualmente que, no narcisismo (quando as relações se dão de modo suficientemente bom), o objeto, na fantasia ou na realidade, entra em conflito com o Eu, na medida em que a sexualização do Eu tem como efeito transformar o desejo pelo objeto em desejo pelo Eu. Lembra ainda que o desejo é o movimento através do qual o sujeito é descentrado, ou seja, a busca pelo objeto de satisfação implica o sujeito na experiência de que seu centro não está mais nele mesmo.
Nesse sentido, o bem-estar oriundo da experiência de satisfação remete à tentativa de se reunir ao objeto para reconstruir, por meio da unidade, seu centro. Desse modo, o desejo aponta para consciência de separação espacial e da dissincronia temporal com o objeto, “[...] criadas pela postergação necessária à experiência de satisfação” (GREEN, 1988, p. 23).
Como nem tudo são flores, diversos fatores irão se opor à plena realização do desejo sobre essa matriz simbólica primária, como o princípio de realidade, por exemplo. Diante disso, quais seriam os meios de lidar com essa impossibilidade de realização plena do desejo?
A primeira vivência de falta é solucionada pela realização alucinatória do desejo, sendo assim uma ilusão reparatória da falta do objeto. Apesar de ser um tanto imperfeita, essa solução continua sendo uma execução psíquica muito apropriada. O bebê não dispõe de meios para pensar que seu choro chamou a atenção da mãe, mas estabelece uma relação de causa e efeito entre a realização alucinatória do desejo e sua satisfação.
Quando as necessidades vitais são garantidas, em situações novas de falta, soluções inéditas serão engendradas. A identificação é a mais fundamental delas, na medida em que o próprio Eu torna-se o objeto, misturando-se a ele. O mecanismo da identificação comporta variações e é inicialmente narcísica. Nessa ocorrência, o Eu se sintetiza com um objeto indiferenciado, ou seja, o objeto está mais próximo de uma variante do Eu do que da alteridade.
Quando o modo de funcionamento narcisista se mantém para além da fusão com o objeto, o Eu é submetido a seguidas desilusões.
A alteridade não reconhecida inflige ao Eu incessantes desmentidos sobre o que se supõe que o objeto seja e provoca inevitavelmente a decepção sempre renovada quanto ao que se espera dele. A tal ponto que o Eu nunca pode contar com o objeto para reencontrar essa unidade-identidade que lhe garante encontrar seu centro por ocasião de uma experiência de satisfação sempre insaciada (GREEN, 1988, p. 22).
O prejuízo para o Eu é inegável, já que, tendo fracassado a experiência de deslocamento na direção de um objeto substituto, que repare as feridas do objeto originário, toda sequência dos deslocamentos atualizará o fracasso inicial. Se todo contato com o objeto só faz acentuar o descentramento (seja pela separação espacial, seja pela separação temporal) a ego-sintonia do Eu só pode ser buscada nos investimentos do Eu por suas próprias pulsões. Assim, Green descreve o percurso na direção do narcisismo positivo, como decorrência da neutralização do objeto.
Desse modo, o Eu, mesmo que precariamente (o Eu nunca substitui plenamente o objeto), adquire certa independência. Mesmo que alguma ilusão de prazer de existir na solidão seja vivida, ela será limitada. E, assim, será necessário que o Eu se nutra com um novo investimento dirigido a outro objeto idealizado, com o qual se fundirá, do mesmo modo que com o objeto primeiro.
Ao longo da existência, as produções do narcisismo de vida nunca são integralmente exitosas. O efeito da distância espacial não preenchível e da dissincronia temporal interminável pode fazer o descentramento resultar em ressentimento, ódio e desespero.
[...] o retraimento para a unidade, ou a confusão do Eu com um objeto idealizado, não estão mais ao alcance. É então a busca ativa não da unidade, mas do nada; isto é, de uma redução das tensões ao nível zero, que é a aproximação da morte psíquica (GREEN, 1988, p. 25).
O narcisismo possibilita a mimese do desejo através da saída que permite evitar que o descentramento obrigue a investir o objeto que possui as condições de acesso ao centro. O Eu adquiriu uma certa independência migrando o desejo do Outro para o desejo do Um. Contudo, a mimese pode se inverter, anular as injunções do modelo do desejo quando a realização unitária do narcisismo fracassa. Resulta, desse modo, na mimese do não desejo, ou seja, desejo de não desejo. Com o descarte do centro sua procura é anulada. Agora, o centro tomado como meta de plenitude tornou-se vazio, lacuna de centro.
Conclui-se, assim, que
[...] a procura da satisfação prossegue então fora de qualquer satisfação – como se esta tivesse realmente ocorrido – como se tivesse encontrado seu bem no abandono dessa busca (GREEN, 1988, p. 26, grifo nosso).
Green (1988, p. 26) introduz, desse modo, a figura, não da depressão, mas do neutro, uma anorexia do viver, em que a morte é a figura do Ser absoluto. O autor alerta ainda que não há um camuflado desejo de morte relativo ao objeto, pois ele “[...] foi morto na aurora deste processo que deve ser atribuído ao narcisismo de morte”.
Ao par prazer-desprazer Green (1988) introduz um terceiro modo, o neutro, efeito da realização alucinatória do desejo, modelo da atividade psíquica. Para ele, a metáfora do retorno ao inanimado, presente em Além do princípio de prazer (FREUD, [1920] 2010), é o congelamento do Eu em busca da anestesia e da inércia na morte psíquica. Um beco sem saída, que possibilita alcançar o objetivo e o sentido do narcisismo de morte.
O narcisismo destrutivo em Rosenfeld
Para Rosenfeld (1988), narcisismo e pulsão de morte estão diretamente relacionados no trabalho de Freud. Conforme sua observação, no desenvolvimento comum, os impulsos instintivos vividos na esfera das relações objetais são reconhecidos e dirigidos aos objetos. Já nas situações patológicas, em que se faz presente uma grave desfusão, uma organização narcisista destrutiva tende a se desenvolver. Tal organização onipotente exerce um poder destrutivo contra a vida aniquilando as ligações entre objetos e o self, partes do self ou mesmo contra objetos bons, visando depreciá-los e diminuir sua importância.
O trabalho da artista plástica brasileira Alice Miceli, intitulado Cambodjiana, interessa para pensarmos o terreno em que o analista se move. São onze imagens sobre uma mesma área: um gramado com uma árvore no centro, uma paisagem falsamente calma e tranquila, pois o que se vê é um campo minado, impenetrável a não ser visualmente. A fotógrafa adentra o campo minado orientada por um técnico.
Para Agnaldo Farias (2015),
[...] se cada foto equivale à morte do retratado, aqui cada passo pode significar a morte do fotógrafo. Se cada foto é um produto condensado da memória, cada campo desses traz a memória viva de um conflito, a lembrança e a presença da morte.
Primeira foto da série Cambodjiana, em que a artista, guiada por um técnico, começa a entrar num campo minado (foto: Cortesia da artista)
Fonte: <http://www.select.art.br/alice-miceli-paisagens-assassinas/>.
Foto número 11, a última da série Cambodjiana, com o ponto de vista mais próximo a que se pode chegar no campo minado, sem se desviar, sem explodir (foto: Cortesia da artista)
Fonte: <http://www.select.art.br/alice-miceli-paisagens-assassinas/>.
A analista anda igualmente às cegas, guiada pela intuição, pela técnica e pela escuta. Não está só. Formam um par a desarmar minas terrestres, a povoar desertos, a trazer para a profundeza da pele lembranças impenetráveis. No fio da navalha, ousam dar um passo a mais na direção da ampliação da vida em terreno fértil.
Certos pacientes resistem muito ao tratamento. Seus impulsos destrutivos sem ligação dominam toda a personalidade. Na relação com o analista tentam afirmar sua superioridade desperdiçando e destruindo o trabalho, a compreensão e a satisfação deste. Não é de admirar que, com esses analisandos, seguidamente algo é trabalhado em análise, para em seguida se desfazer do lado de fora. Situação em que se percebe um certo empenho, ainda que inconsciente, em agir de modo completamente diferente do que fora pensado junto com o analista. É comum notarmos também que o paciente adote comportamentos autodestrutivos como meio de tentar comprovar que a análise não está funcionando. Não há dúvida de que seu sentimento de superioridade ligado ao controle e à contenção de partes de si mesmo o defende da temida dependência do analista.
Nesse cenário, a perda de qualquer objeto de amor, inclusive o analista, aparenta ser indiferente ou até uma vitória. Em tais pacientes o desejo de morrer ou de se recolher em um estado de vazio e apatia, poderia ser visto como expressão da pulsão de morte (pulsão primária para morte).
Entretanto, de acordo com Rosenfeld3, há uma destrutividade ativa dirigida pelo self e direcionada não apenas contra objetos, mas contra partes do próprio self. Para o autor, a idealização de aspectos destrutivos do self e a submissão a eles pode ser chamada de narcisismo destrutivo. Tais aspectos destrutivos capturam a positividade do self, opondo-se a qualquer relação libidinal com o analista.
Nas primeiras sessões um paciente que seguidamente tentava se mostrar superior aos demais, falando sobre as relações competitivas que se estabelecem em seu trabalho (o chefe, os colegas, a disputa por projetos) me conta a fábula do sapo e do escorpião. O paciente fala do trabalho, mas nós sabemos que é a possível relação analítica que está em questão na medida em que esse rapaz está predisposto ao ataque, sem perceber que afundará junto ao inocular seu veneno.
Rosenfeld (1988, p. 144-145) nos alerta para a importância de reconhecer e distinguir entre
[...] a operação de uma organização defensiva narcisista, que é ativa, crônica e bastante organizada, e uma força mortífera mais sub-reptícia e oculta, que pode ser uma resistência paralisadora crônica, impedindo a análise de avançar por muitos anos.
O narcisismo mortífero, age de modo semelhante à pulsão de morte, como uma força oculta e silenciosa que se opõe a todo progresso e pode estar por trás da organização defensiva narcisista.
Mudar ou receber ajuda assume nesse caso a conotação de fracasso, vivenciado como algo errado ou como malogro da organização narcisista destrutiva que fornece ao paciente seu sentimento de superioridade. O sujeito imerso nesse funcionamento relata como uma atitude que atesta seu total fracasso o fato de ter solicitado a opinião de um colega mais experiente em um projeto. Um furo em sua superioridade calcada na crença de que não precisa de ninguém.
É preciso estarmos atentos para perceber que as partes narcisistas destrutivas do self podem estar ligadas a uma estrutura ou organização psicótica, cindida do restante da personalidade. Dominada por uma parcela onipotente, ela cria um mundo sem sofrimento, sustentando, assim, o não investimento em qualquer relação objetal. Fantasia ainda enredos complexos com diálogos, cenas e personagens. Como um esteta, elege as próprias cores e tonalidades, cria seu mundo particular.
Para Rosenfeld a atitude clínica deve ser de ajudar o paciente a reencontrar a parte sadia e dependente do self, além da tomada de consciência das partes onipotentes e destrutivas cindidas do self. A revelação desse processo mostrará que ele contém os impulsos invejosos e destrutivos isolados do self, já que essa parte só pode se manter toda poderosa em isolamento.
Assim, o paciente poderá perceber que
[...] é dominado por uma parte infantil e onipotente de si mesmo que não só o arrasta para a morte, como também o infantiliza e o impede de crescer, mantendo-o afastado de objetos que poderiam ajudá-lo a crescer e a se desenvolver (ROSENFELD, 1988, p. 147).
A delicada costura
No campo do saber analítico, teoria e prática andam de braços dados,
[...] a teoria e a prática, o pensamento e o psiquismo do analista, fazem parte do objeto de estudo (BOTELLA; BOTELLA, 2003, p. 425).
Entendemos, assim, que a teoria psicanalítica é inseparável da prática. Pouco importa se o conhecimento sobre os processos psíquicos inconscientes é oriundo do que se passa na sessão ou das ferramentas conceituais disponíveis na vasta literatura já produzida. Importa mesmo que o conhecimento seja útil para o psicanalista em seu ofício, na experiência da sessão em que
[...] participam os dois inconscientes, o do analista e o do analisando, o que organiza uma unidade profunda entre o instrumento de observação (o psiquismo do analista), o objeto de estudo (o psiquismo do paciente) e a relação recíproca entre os dois, funcionando ambos em estado de regressão; é esse conjunto que forma o verdadeiro objeto de estudo da psicanálise (BOTELLA; BOTELLA, 2003, p. 425).
O percurso até aqui realizado é efeito das questões que a prática clínica suscita. Uma prática sedenta, que absorve de imediato as contribuições do aprofundamento conceitual.
Em nossa amizade com a teoria produzimos um lugar para o que está sendo vivido, questionamos, agregamos, ouvimos de outro modo. Investigamos, colocamos as ferramentas em ação, liberamos o pensamento, aguçamos a sensibilidade e permitimos o encontro, em nossa amizade com a escuta clínica.
Apostamos em uma clínica que opera na contramão da lógica neoliberal dominante em seu pressuposto de extrair mais produtividade do sofrimento. Uma escuta que é sempre política, já que o sintoma é também social, “histórico, localizado e específico” (KOLTAI, 2017).4
Somos poeira de estrela. Forças mortíferas visíveis na dinâmica planetária operam também no diminuto universo de cada um. O homem que está diante de nós é também o do subsolo, doente, mau, desagradável e doente do fígado.
Diz ele:
[...] mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 15).
Ouvimos o homem que não é sedento de liberdade, e a partir dele recolocamos a questão do que pode a análise. Uma possível resposta passa pelo desejo, que sustentará o processo analítico. Desejo não somente do analisando, mas também do analista de levar seu trabalho adiante, desde que tenha experenciado a própria análise como “[...] um poderoso dispositivo de emancipação subjetiva” (KEHL, 2017). Essa emancipação leva não ao isolamento em um mundo particular, mas ao laço social, erigido no calor do contato, na generosidade, na solidariedade, e no amor.
Como no rock Campo minado, da emblemática banda gaúcha Bandaliera (1991):
Tudo em riba, é só prosseguir
Sem essa de recolher
Abre o jogo sai por aí
Cante um rock fique legal
A vontade é um instrumento
Que a telepatia sacou
Acho bom ir mentalizando
Pra não chutar o detonador
Acho bom ir mentalizando
Pra não chutar o detonador
É campo minado
É campo minado
Saca aonde pisa meu chapa
Desdobra esse lance
Dá uma pernada
Pra lá do arame farpado
É campo minado
É campo minado
Saca aonde pisa meu chapa
Desdobra esse lance
Dá uma pernada
Pra lá do arame
Pra lá do arame farpado
Referências
BANDALIEIRA. Campo Minado. In: Bandaliera - Ao vivo. Porto Alegre: Independente, 1991. Disco de vinil. [ Links ]
BOTELLA, C.; BOTELLA, S. A pesquisa em psicanálise. In: GREEN, A. (Org.). Psicanálise contemporânea. Rio de Janeiro: Imago, 2003. [ Links ]
DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo. 3. ed. Tradução de Bóris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2000. [ Links ]
FARIAS, A. Alice Miceli - paisagens assassinas. Select: arte e cultura contemporânea. n. 22. Publicada em 04 mar. 2015 [online]. Disponível em: http://www.select.art.br/alice-miceli-paisagens-assassinas/. Acesso em: 20 maio 2017. [ Links ]
FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920). In: _______. História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”): além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 161-239. (Obras completas, 14). [ Links ]
FREUD, S. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, 12). [ Links ]
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MENDES, E. R. P. Alguns impasses da clínica psicanalítica contemporânea e a sua operacionalização pelo desejo do analista. Reverso, Belo Horizonte, v. 37, n. 70, p. 37-42, jun. 2015. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952015000200005&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 16 out. 2016. [ Links ]
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Endereço para correspondência
E-mail: luknijnik@hotmail.com
Recebido em: 15/05/2017
Aprovado em: 29/05/2017
SOBRE A AUTORA
Luciana Knijnik
Psicóloga. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Membro do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul (CPRS).
1 O título é um trecho da música Campo minado , da banda Bandaliera (1991).
2 Ver mais em http://revistacult.uol.com.br/home/2015/12/a-psicanalise-e-as-formas-do-politico/.
3 Para Green (1988), Rosenfeld foi um dos poucos kleinianos a tentar integrar as pulsões de destruição à sua teoria.
4 Ver mais em: https://lavrapalavra.com/2017/05/19/a-psicanalise-e-o-neoliberalismo-entrevista-com-caterina-koltai-christian-dunker-maria-rita-kehl-nelson-da-silva-jr-paulo-endo-e-rodrigo-camargo/.