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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.49 Belo Horizonte jan./jun. 2018

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

O Outro no ensino lacaniano: algumas considerações

 

The Other in Lacanian teaching: some considerations

 

 

Breno Ferreira PenaI, II; Ronildo Deividy Costa da SilvaIII, IV

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Universidade Federal do Pará
III Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano/Belém
IV CAPES

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo acompanhar a trajetória de Lacan no que se refere à formalização conceitual do estatuto teórico-clínico da noção de Outro (A). Nesse sentido, o texto destaca três momentos dessa formalização: as formações do inconsciente, a alienação/separação e a inconsistência do Outro.

Palavras-chave: Outro, Formações do inconsciente, Alienação/separação, Inconsistência.


ABSTRACT

The present article aims to follow the trajectory of Lacan on the formalization of the theoretical/clinical status of the notion of Other (A). In this sense, the text highlights three moments on this formalization: the formations of the unconscious, the alienation/separation, and the inconsistency of the Other.

Keywords: Other, Formations of the unconscious, Alienation/separation, Inconsistecy.


 

Ein anderer Schauplatz. Essa foi a sentença usada por Freud para nomear o registro do Inconsciente: a Outra cena, o Outro palco. Com Lacan, essa Outra cena adquire uma dimensão central, pois corresponde a um lugar (A) no qual ocorrerá a determinação do sujeito, ou seja, é no campo do Outro que o sujeito estará às voltas com sua própria condição de ser falante.

O Outro como o campo simbólico do sujeito é introduzido por meio do uso da linguagem, função apropriada e introduzida inicialmente por aquele que cuida do bebê, geralmente a mãe, um outro experimentado, que exerce o lugar do Outro; por exemplo, ao interpretar o seu choro para lhe dar um significado, favorecendo ao bebê um início na linguagem.

É a inserção da criança, ainda infans, no jogo simbólico. Inserção no mundo simbólico que favorecerá à criança tornar-se um ser que habita a linguagem, que o antecede e o constitui, na medida em que a mãe idealiza seu bebê em suas fantasias, antes mesmo que ele nasça. E depois de nascer oferece mais significantes para representá-lo, significantes nos quais essa criança se aliena para dar início a sua constituição enquanto sujeito.

Lacan parte da evidência de que a linguagem, a cadeia simbólica, determina o homem antes do nascimento e depois da morte. O bebê vem ao mundo humano marcado por um discurso, no qual se inscreve a fantasia dos progenitores, a cultura, a classe social, a língua, a época etc. Enfim, podemos dizer que tudo isso constitui o campo do Outro, lugar onde se forma o sujeito. Por essa razão Lacan não só insiste na exterioridade do simbólico em relação ao homem, mas também na sua sujeição ao discurso (JORGE, 2005, p. 44).

Lacan é, inclusive, enfático ao afirmar que as relações com o Outro irão favorecer ou não a inserção da criança no mundo simbólico:

[...] o estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro A (LACAN, [1958] 1998, p. 555).

Portanto, o Outro, que é fundamental para a inserção da criança na linguagem e na cultura, se mostra simbólico como o próprio inconsciente. Assim, esse conceito ganha destaque no seu Seminário 5, no qual, ao trabalhar as formações do inconsciente, Lacan ([1957-1958] 1999) se debruça mais especificamente no funcionamento do Outro no psiquismo por meio do Witz, do ato falho, do sonho e do sintoma. Nesse seminário, então, retoma os textos freudianos sobre o tema das formações do inconsciente e, com o apoio da linguística,1 expõe o estatuto do inconsciente como linguagem.

Ao trabalhar, por exemplo, com o Witz, que pode ser traduzido por “tirada espirituosa”, Lacan ([1957-1958] 1999) demonstra como é o Outro que o constitui, enquanto formação do inconsciente. O Outro é o eixo da tirada espirituosa.

Além disso, refere-se sempre a uma língua, uma época e um local específicos já que esse Outro simbólico se faz como e pela rede simbólica, inserida por significantes de uma determinada cultura. Esse fato traz como consequência que a tirada espirituosa, ao ser transcrita e traduzida de um país para outro, por exemplo, possa não ter o efeito e o sentido esperados.

Portanto, é preciso a presença in loco do outro que encarna o Outro, de certa forma histórico, para que a tirada espirituosa aconteça. O Outro funciona como o terceiro que autentica o sentido e traz algo da dimensão do inconsciente do sujeito para a cena que o representa.

Ressaltar que o Outro, na perspectiva da tirada espirituosa, funciona como um terceiro, já é completamente límpido em Freud, como destaca o próprio Lacan ([1957-1958] 1999). Dessa maneira, Lacan apenas ressalta que, apesar de todo discurso partir indiscutivelmente do Outro, é no exato instante do riso que há essa segunda invocação ao Outro, que é quem, no lugar do terceiro, necessariamente deve sancionar o Witz como tal. Com isso, Lacan também destaca a função do Outro no Witz, como sua própria condição de existência.

Nesse momento de seu ensino, na condição de fazer circular o sujeito no discurso, Lacan frisa que é por meio do Outro, das formações do inconsciente, que se pode chegar a fisgar o sujeito do desejo, mesmo que esse sujeito seja evanescente e completamente imprevisível:

A relação com o Outro é essencial, uma vez que o caminho do desejo passa necessariamente por ele, mas não porque o Outro seja o objeto único, e sim na medida em que o Outro é fiador da linguagem e a submete a toda sua dialética (LACAN, [1957-1958] 1999, p. 145).

Nesse início do seu ensino, com a primazia do significante, Lacan incentiva a busca do analista pela palavra plena, que, ao contrário da palavra vazia, tocaria o Outro do sujeito, seu inconsciente simbólico, permitindo a esse sujeito, em análise, obviamente, questionar o lugar que ocupa na rede simbólica que o fundou, que o determina e o aliena. É preciso questionar o estatuto do desejo e suas vias, de maneira singular, já que, como frisa Lacan, o desejo a princípio é vinculado ao desejo do Outro.

Porém, como ressalta Miller (2005), é importante destacar que, para Lacan, nesse momento teórico, o do primeiro ensino, o desejo, apesar de ser concebido como desejo de desejo, ainda traz algo de um objeto mirado, condição que mudará somente com a formalização teórica do objeto a, no Seminário 10: a angústia. Assim sendo, o desejo mudaria radicalmente seu estatuto e passaria de objeto-visado, agalma, para objeto-causa. Eis um passo essencial para se iniciar o segundo ensino lacaniano, mais voltado para o real do que para o simbólico.

 

O Outro na alienação/separação

No Seminário 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Lacan ([1964] 1985) retoma suas formulações sobre o Outro levando em conta sua conceituação do objeto a como resto inassimilável, impossível de simbolizar. Dessa feita, no entanto, propõe as operações de alienação e sobretudo de separação, com o auxílio da lógica, da teoria dos conjuntos e do objeto a, para elucidar a constituição do sujeito do desejo.

Por meio da operação de separação, há a castração do Outro, que é a própria castração do sujeito, nunca totalmente simbolizada e, em função disso, deixa resto, que irá funcionar a partir daí na economia psíquica como objeto causa do desejo, algo que impulsiona o sujeito desejante.

Lacan ([1962-1963] 2005), inclusive, já havia ressaltado que o legítimo objeto a deve ser pensado não adiante do sujeito, mas atrás dele. É um objeto para todo o sempre perdido, mesmo que nunca tenha sido tido, já que seu estatuto é real. Antes da separação, todavia, é preciso que o sujeito passe pela alienação.

A operação de alienação ocorreria com a introdução da criança na linguagem, registro simbólico pela ação da mãe que, na função de quem cuida, representa um Outro primordial para a criança e favorece sua inserção na dimensão da linguagem.

A inserção no simbólico no campo do Outro dará a ela um lugar no mundo em relação a si mesma e aos outros, por meio de um entalhe do significante em seu ser:

O entalhe tem muito bem a função de ser para o Outro, de lá situar o sujeito, marcando seu lugar no campo das relações do grupo, entre cada um e todos os outros (LACAN, [1964] 1985, p. 195).

Porém, Lacan alerta que nessa operação de alienação há uma situação não simétrica, pois ocorre um profundo assujeitamento da criança a esse Outro; situação que, em compensação, lhe possibilita entrar no mundo da linguagem, onde um significante a representará, substituindo seu ser em essência.

Em outras palavras, haveria aí uma perda de si mesmo, já que, como propõe Lacan ([1953-1954] 1986), nessa mesma vertente de pensamento, ainda em seu primeiro seminário, Os escritos técnicos de Freud, o significante é a morte da coisa. O sujeito jamais poderá ser totalmente representado pela palavra. De toda forma, é pela ação de um Outro materno junto à criança que depende seu próprio advento como sujeito do significante. Portanto, com a alienação há a possibilidade de o simbólico representar esse ser, mesmo parcialmente. Não o faz como um todo, há uma perda, um resto, um sujeito dividido pela linguagem.

Lacan se refere a esse ponto como um momento de escolha para a criança, uma escolha, entretanto, forçada, e a exemplifica com sua célebre frase:

A bolsa ou a vida! Se escolho a bolsa perco as duas. Se escolho a vida, tenho a vida sem a bolsa, isto é, uma vida decepada (LACAN, [1964] 1985, p. 201).

A bolsa e a vida, nesse contexto, representam o sujeito e o Outro, respectivamente, na medida em que o sujeito enquanto ser é quem sairá, necessariamente, derrotado. Ante tal escolha forçada, a bolsa já está perdida. Resta apenas saber se a criança vai se permitir escolher pela vida, mesmo que tenha que viver, a partir de então, sem a bolsa.

Lacan ([1964] 1985) explica, com o auxílio da teoria dos conjuntos, que na alienação, em um primeiro momento, há um sujeito petrificado pelo significante do Outro, um determinismo sem questionamento, resultado de um ser transformado pela linguagem. Petrificação imposta por um significante (S1), que se funda na interseção do campo do ser do sujeito com o campo do Outro. Mas daí outro significante (S2) se produz a partir do campo do Outro, já inserido no sujeito. Isso dá a esse ser alienado na linguagem, por meio do Outro, a possibilidade de fazer um deslizamento na busca de algum sentido para si. Ocorre, portanto, por meio da articulação da própria cadeia significante, enquanto S1-S2.

Na alienação, esse seria impreterivelmente o destino de todo ser falante, petrificação significante e busca de sentido:

O que é, então, o destino desse sujeito do significante? Seu destino é uma vacilação entre petrificação e indeterminação, petrificação por um significante e indeterminação no interior do deslizamento do sentido (SOLER, 1997, p. 62).

A operação de alienação, entretanto, é somente o primeiro passo lógico para a constituição do sujeito desejante. Para que de fato ele se constitua, é preciso jogar também com o outro lado da moeda nessa interação, nessa intercessão do sujeito com o Outro, e aí entra a operação de separação.

Na operação de separação, esclarece Soler (1997), diferentemente da operação de alienação, não há destino: é algo que pode ou não vir a acontecer, na medida em que implica uma condição totalmente expressa, a simbolização da castração, o encontro com a falta no Outro. Essa operação irá possibilitar o desejo como causa, com a extração do objeto a, do campo do Outro.

Lacan ([1964] 1985) destaca que, ao entrar na linguagem, o sujeito já é falta, pois perdeu definitivamente seu ser. Mas agora, na separação, esse sujeito se depara com ela de novo em sua interseção com o Outro. Não mais com o significante S1, que o petrifica na alienação, mas com a falta vinculada pela castração – falta algo ao Outro e ao próprio sujeito, e nesse movimento de superposição da falta, encontra-se a possibilidade do desejo, a partir de um resto, o objeto a.

Assim, na operação de separação não se trata do mesmo Outro da operação de alienação. Ambos estão, inclusive, em perspectivas bastante diferentes diante do sujeito:

O Outro implicado na separação não é o Outro implicado na alienação. É um outro aspecto do Outro, não o Outro cheio de significantes, mas ao contrário, um Outro a que falta alguma coisa (SOLER, 1997, p. 63).

Portanto, como explica Lacan, trata-se de duas faltas. A primeira, precedente, decorrente da alienação, que deixou um vazio no ser do sujeito submetido à linguagem; um ser que não pode ser totalmente representado. E uma segunda falta, suscitada no segundo tempo, o da separação:

Duas faltas aqui se recobrem. Uma é da alçada do defeito central em torno do qual gira a dialética do advento do sujeito a seu próprio ser em relação ao Outro – pelo fato de que o sujeito depende do significante e de que o significante está primeiro no campo do Outro. Esta falta vem retomar a outra, que é a falta real, anterior, a situar no advento do vivo, quer dizer, na reprodução sexuada. A falta real é o que o vivo perde, de sua parte de vivo, ao se reproduzir pela via sexuada. Esta falta é real, porque ela se reporta a algo de real que é o que o vivo, por ser sujeito ao sexo, caiu sob o golpe da morte individual (LACAN, [1964] 1985, p. 194).

Na operação de separação há uma falta na interseção do campo do sujeito com o Outro, o que produz uma espécie de junção entre seu desejo e o desejo do Outro, tudo isso em função da dialética da falta, que ressoa nesse buraco do Outro, que é o do próprio sujeito.

A incompletude do Outro não mais se esconde e possibilitará a esse sujeito, enfim e de fato, advir enquanto desejante com a queda do objeto a, pela sua consequente extração do campo do Outro como resto de sua divisão.

Assim, é somente nesse momento, o da separação fundada na falta do Outro, que é a própria, que vai ser possível a constituição do sujeito do desejo:

Pela separação o sujeito acha, se podemos dizer, o ponto fraco do casal primitivo da articulação significante, no que ela é de essência alienante. É no intervalo entre esses dois significantes que vige o desejo oferecido ao balizamento do sujeito na experiência do discurso do Outro, do primeiro Outro com o qual ele tem que lidar, ponhamos, para ilustrá-lo, a mãe, no caso. É no que seu desejo está para além ou para aquém do que ela diz, do que ela intima, do que ela faz surgir como sentido, é no que seu desejo é desconhecido, é nesse ponto de falta que se constitui o desejo do sujeito (LACAN, [1964] 1985, p. 207).

O sujeito da separação, constituído através dessa dialética da falta, que ressoa no campo do Outro e possibilita a extração do objeto a, segundo Soler (1997), é a verdadeira novidade desse seminário de Lacan, pois o sujeito alienado ao Outro, ao significante, esse já vinha sendo sistematizado desde o início de seu ensino. No entanto, ressalta ela, ainda há um acréscimo na teoria da alienação, nesse mesmo seminário, em termos lógicos, a estrutura lógica do sujeito da alienação, em contraponto ao da separação.

 

A inconsistência do Outro

De toda forma, no Seminário 16, de um Outro ao outro, Lacan ([1968-1969] 2008) dá outro passo que se mostrou decisivo em suas teorizações sobre o Outro. Nas primeiras elaborações lacanianas, pode-se pensar, o Outro foi concebido como barrado por ser incompleto e agora passa a ser barrado por ser definitivamente furado ou, como o caracteriza Lacan, estruturalmente inconsistente.

Além disso, para que exista o Outro, é preciso uma aposta do sujeito, e mesmo que o sujeito aposte na existência do Outro, não o torna, de fato, consistente. Não há como o Outro, em hipótese alguma, garantir um saber absoluto.

Para Guèguen (2008), inclusive, é importante frisar que não por acaso o Seminário, 16 traz a gênese do pensamento lacaniano da inexistência do Outro. Isso foi possível, pois nesse momento do ensino de Lacan, já no final dos anos 1960, o que está em questão em suas teorizações é realmente o campo do gozo.

Ao teorizar a profunda inconsistência do Outro, Lacan precisou se utilizar do conceito marxista de mais-valia, para situar a função do objeto a como objeto mais-de-gozar:

É de um nível homológico calcado em Marx que partirei para introduzir hoje o lugar em que temos de situar a função essencial do objeto a (LACAN, [1968-1969] 2008, p. 16).

O homem contemporâneo, para tentar tamponar a inconsistência do Outro, submerge às demandas do mercado em comprar cada vez mais objetos que se referem a um mais-de-gozar. Isso, no entanto, nunca preencherá o campo do gozo, que é insaciável. Nem por outro lado restituirá o que se esvai do campo do Outro, revelando ainda mais sua inconsistência atual:

Por outro lado, num outro registro, há o campo em que, aparentemente, o gozo espera o sujeito. É justamente aí que ele é servo, e justamente da maneira como, até aqui, era possível censurar a psicanálise por desconhecê-lo, ou seja, ele está submetido ao social, como se costuma dizer. As pessoas não percebem que se contradizem, e que o chamado materialismo histórico só tem sentido ao nos darmos conta de que não é da estrutura social que ele depende, uma vez que o próprio Marx afirma que é dos meios de produção. Dos meios de produção, isso é, daquilo com que se fabricam coisas que enganam o mais-de-gozar e que longe de poderem ter a esperança de preencherem o campo do gozo, nem sequer estão em condições de bastar ao que se perde, em função do Outro (LACAN, [1968-1969] 2008, p. 100).

Para Lacan, nesse estágio o Outro se mostra não mais por sua incompletude, mas por sua inconsistência:

[...] esse grande Outro em sua função, tal como já abordei, não encerra nenhum saber que se possa presumir, digamos, que um dia seja absoluto (LACAN, [1968-1969] 2008, p. 61).

Essa afirmação, é bom lembrar, não invalida as formulações anteriores de Lacan sobre o papel do Outro no psiquismo, pois há uma função constitutiva que depende desse grande Outro barrado ().

A inconsistência do Outro, inclusive, é a condição para inscrição do sujeito no campo da linguagem ao preço da castração:

O drama é que, seja qual for o destino reservado ao Outro por esse questionamento, a mesma experiência demonstra que é do desejo dele que eu sou – [...] – que eu sou seu vestígio (LACAN, [1968-1969] 2008, p. 70).

O Outro simbólico, todavia, esclarece Lacan no mesmo seminário, deve ficar de certa forma “ausente”, no momento em que se trata da verdade do sujeito desejante, porque a verdade é externa ao universo do discurso:

Se em parte alguma do Outro é possível assegurar a consistência do que é chamado verdade, onde está ela, a verdade, a não ser naquilo a que corresponde a função de a? (LACAN, [1968-1969] 2008, p. 24).

O que se destaca nesse momento teórico de Lacan, portanto, é que esse Outro não é o portador da verdade do sujeito; essa verdade pode ser vislumbrada somente por ele em sua fabricação enquanto objeto a, objeto causa de desejo e objeto mais-de-gozar. O Outro, como garantia, passa a ser questionado por ter sido ratificado no passado de alguma maneira, em última instância, como uma espécie de Deus garantidor de toda estrutura.

Para Lacan, na atualidade, essa ilusão definitivamente não se sustenta mais:

Surgiu para Descartes o problema de saber se existe ou não um Deus que garantisse esse campo. Ora, esse problema está hoje totalmente deslocado por não haver no campo do Outro a possibilidade de uma consistência completa do discurso (LACAN, [1968-1969] 2008, p. 24)

Nessa fase de seu ensino, Lacan ([1968-1969] 2008) elabora o campo do Outro, exemplificado em S (), falta um significante no campo do Outro, que, segundo ele próprio, é o matema, que, apesar de já formulado anteriormente, se traduz como o suporte do que ele anuncia nesse seminário, a saber: que não existem garantias no Outro, em nenhuma medida, no que se refere à consistência do discurso que se articula nesse Outro e em função dele. O Outro simbólico é na verdade barrado. O sujeito nunca poderá ser totalmente representado; além disso, o Outro não lhe dá realmente garantias.

Não existe um Outro que possa servir de álibi ao sujeito, que lhe possa dar um significante que diga quem é seu ser por completo ou que possa lhe dar garantias verdadeiras de alguma coisa:

O Outro não constitui um universo completo, e sim furado – pois falta um significante que permitiria dizer que é um conjunto totalizador de todos os significantes da linguagem ou, melhor dizendo, de uma determinada língua. Paradoxalmente ele não existe, pois por ser furado não tem consistência. No inconsciente como discurso do Outro, sempre falta um significante último que daria um sentido último à vida, à historia e às questões do sujeito. Isso faz com que a cadeia significante que compõe o inconsciente seja infinita, pois se pode sempre agregar um significante a mais, e falar, falar, falar..., e, assim, não se “pega” esse Outro cuja alteridade insiste, mas não “existe” (QUINET, 2012, p. 30).

Lacan passa, portanto, a questionar o que Pascal caracteriza como Deus dos filósofos, o Deus garantidor, e conclui que sem nenhuma dúvida é melhor dizer não a esse Deus dos filósofos, que, em certa medida, para eles, poderia responder por uma verdade:

Entendam que, ao questionar a função do Outro com base no próprio princípio de sua topologia, o que eu abalo é propriamente o que Pascal chama de Deus dos filósofos (LACAN, [1968-1969] 2008, p. 69).

Lacan esclarece que o Deus de Pascal também não é o Deus dos filósofos que o equivalem à verdade última. Para Pascal, Deus, ao contrário do Deus filosófico, não pode garantir algo da verdade, não tem um saber, até mesmo porque não se sabe nem o que ele é, sequer se é.

Para demarcar a inconsistência do Outro, Lacan ([1968-1969] 2008), ainda no Seminário, 16, recorre novamente a Pascal, por meio de sua conhecida “aposta”, para então trabalhar com a inconsistência estrutural do Outro, apoiado na perspectiva articulada por esse autor.

Blaise Pascal (1623-1662), francês, que desde muito cedo teve seu potencial matemático reconhecido, também era filósofo e teólogo. A ideia da aposta de Pascal consiste em apostar na existência ou na não existência de Deus. Ele considerava a melhor opção apostar na existência.

Utilizando essa aposta, Lacan trabalha a inconsistência do Outro, pois o Deus de Pascal não é algo consistente e incontestável, senão não haveria por que apostar:

A epistemologia de Pascal é mais complexa, pois, segundo ele, Deus está em qualquer lugar e em lugar nenhum, seu lugar não está designado. O Outro não é somente incompleto como em Descartes, e dependente de uma base suposta. O Outro de Pascal é inconsistente, em todo lugar e em lugar nenhum, ele não existe, é por isso que ele deve ser objeto de aposta. É a aposta que faz existir o Outro e não o saber; é o ato do sujeito, sua crença. Já podemos aí perceber porque Lacan desenvolveu um interesse tão particular em Pascal à medida que começava a considerar que o Outro era não só incompleto como também inconsistente. Isto é, que não existe Outro universal. (GUÈGUEN, 2008, p. 4).

Por acreditar que não seja possível compreender Deus, Pascal propõe que sua existência seja motivo de aposta. O que Lacan indica é que nesse jogo o sujeito joga sozinho. O Outro não aposta, ele não tem rosto, mas não é preciso que o tenha.

A aposta de Pascal resulta em quatro possibilidades. Se Deus existe e se se acredita nele, há um ganho infinito; se Deus existe e não se acredita, há uma perda infinita. Por outro lado, se Deus não existe e se se acredita nele, haverá uma perda finita; e se Deus não existe e não se acredita nele, haverá um ganho finito. Dessa forma, Pascal conclui que vale a pena acreditar em Deus, seguir seus preceitos, já que o que se contrapõe é o finito contra o infinito.

Para Pascal, no fundo, a aposta deve ser apenas uma. Se o infinito está em jogo, é preciso que o homem dê tudo de si. O autor ressalta, inclusive, que, mesmo que não se tenha fé, a fé deve ser estimulada, o que seria no mínimo benéfico para o fortalecimento do caráter.

Para Lacan, metaforicamente esse é o destino do homem neurótico: há somente esta escolha – apostar no Outro – para que possa advir enquanto sujeito. Chegar à extração do objeto a do campo do Outro. O homem, todavia, quer reencontrar o gozo perdido por entrar na linguagem e buscar um suplemento de gozo, mais-de-gozar. O que engendra a busca pelo mais-de-gozar, portanto, é a própria perda, a renúncia ao gozo. A aposta é algo que tem esse mesmo viés de perda e tentativa de recuperação, já que, quando se aposta, o valor apostado é algo a priori também perdido, mesmo que se pense em sua recuperação futura:

Se existe a possibilidade de comprometer no jogo algo a ser perdido, é porque a perda já está nele (LACAN, [1968-1969] 2008, p. 145).

Como algo que é inerente à própria aposta, a perda pode levar à seguinte pergunta: o que levaria o sujeito a apostar? Nesse ponto Lacan afirma que a aposta põe em jogo o real absoluto através do cara ou coroa, que propõe uma escolha pela existência ou inexistência do Outro, operação que tem como esteio o Nome-do-Pai.

E é por meio do Nome-do-Pai que o sujeito é impelido a jogar, na medida em que o Nome-do-Pai exerce um efeito de fascinação, que não depende da vontade do sujeito:

Um efeito de fascinação destaca-se de todas as confusões feitas em torno da aposta de Pascal. Anunciar-lhes desde já que aqui se trata do Nome-do-Pai [...] (LACAN, [1968-1969] 2008, p. 123).

Portanto, com a aposta de Pascal, Lacan de certa forma exemplifica o que vinha afirmando nesse seminário. O Outro, que não existe a priori, somente pode existir por meio de uma aposta do sujeito, a ser paga com uma renúncia de gozo, mas com a possibilidade implícita de poder ganhar ao habitar e beneficiar-se da linguagem. Compensação de gozo inerente ao próprio discurso funcionando enquanto mais-de-gozar.

Essa aposta tem como fiador o Nome-do-Pai e se faz necessária para a constituição do sujeito:

Essa é a escolha do neurótico, apostar no Outro para garantir que existe o outro. O objeto a é uma extração do A, ir do Outro ao outro é fazer parte deste Outro que, afinal, não existe, mas mesmo sendo parte do que não existe, garante minha existência (PITTERI, 2012, p. 5).

Entretanto, segundo Miller (2013), é no Seminário 20: mais, ainda que Lacan (1972-1973) consagrará definitivamente a ideia da inexistência do Outro. Nesse seminário, o Outro não é representado como o tesouro dos significantes.

Segundo Lacôte (1995), nesse momento do ensino lacaniano, o Outro designa o Outro sexo, aquele do lado direito da fórmula de sexuação, que marca uma relação direta com S(). É interessante notar que esse mesmo matema S() anuncia a inconsistência do Outro, sua falta de garantias no Seminário 16.

A questão é retomada por Lacan no Seminário 20, para falar da posição feminina definida como não toda. Assim, não por acaso, segundo Miller, esse aspecto também representará a inexistência do Outro.

A posição feminina, por não estar totalmente submetida à lógica fálica, será, portanto, outro sustentáculo para que se possa entender o pensamento lacaniano, que articula a inexistência do Outro como tal:

A estrutura que Lacan chama não todo corresponde ao Outro que não existe, e a universalização, longe de escrever-se no espaço do para todo X (), é o não todo generalizado, não o geral, mas o não todo em todas as partes, que se manifesta pela estrutura de rede2 (MILLER, 2013, p. 77, tradução nossa).

No Seminário 20, Lacan desenvolve a análise do Outro sexo, como o lugar de alteridade absoluta, ou seja, o Outro sexo como o que concede especificidade à mulher por meio da posição feminina não toda. Essa alteridade se contrapõe à posição masculina, toda fálica, na repartição dos seres sexuados.

No encontro dos sexos, entretanto, Lacan diz que o homem por ser todo fálico não consegue gozar do corpo da mulher, pois só goza do próprio órgão. Ao gozar do corpo do Outro, que simboliza essa alteridade, o sujeito apenas goza com seu objeto a, reluzente em uma parte do corpo do Outro:

Gozar tem essa propriedade fundamental de ser em suma o corpo de um que goza de uma parte do corpo do Outro (LACAN, [1972-1973] 1985, p. 35).

Assim, o que está implícito nessa afirmação é que a parceria do sujeito é com o seu próprio objeto a e que, portanto, a relação sexual não pode existir:

Em particular, se a sexualidade só está representada no inconsciente pela pulsão, não está representada no inconsciente, está representada por outra coisa, é uma representação não representativa. E a consequência desta não representação é o que Lacan formulou de maneira fulgurante com a não relação sexual, que supõe que o parceiro essencial do sujeito é o objeto a, algo de seu próprio gozo, seu mais-de-gozar. Por isso sua invenção deste objeto já significa que não há relação sexual, que o parceiro do sujeito é o dito objeto e não o outro sexual3 (MILLER, 2013, p. 294, tradução nossa).

Mais uma vez pode-se pensar que o Outro aparece aqui quase como uma aposta do sujeito, na medida em que, como frisa Miller (2013), o Outro, mesmo como parceiro sexual, se mostra também por sua inexistência. A verdadeira parceria sexual do sujeito é com o objeto-mais-de-gozar, revestido em outra pessoa. Para o sujeito, por mais que ele queira, não encontra em sua vida o Outro como álibi, ou seja, o Outro é furado, sem garantias e não pode fiar o sujeito diante de suas questões existenciais.

Pode-se concluir, portanto, que, embora esse Outro insista, enquanto inconsciente simbólico, ainda assim, mostra-se inexistente:

A inexistência do Outro seria, na verdade, a inexistência de um universal transcendente dado de antemão, seja ele virtual ou não, e que fosse a mirada última de nossos pensamentos (FRANÇA NETO, 2009, p. 654).

 

Considerações finais

Este breve percurso teórico pela noção de Outro tornou possível situar mudanças que aconteceram nesse conceito ao longo do ensino de Lacan. Em vez de anular, essas mudanças acrescentaram seu entendimento anterior sobre o tema, isto é, passou-se à ideia de que o Outro só teria efetivamente sua existência se houvesse uma aposta nele: o Outro não seria mais dado a priori.

Para que ele exista, é preciso que o sujeito faça sua aposta.

 

Referências

FRANÇA NETO, O. Por uma nova concepção de universal. Revista latinoamericana de psicopatologia fundamental, São Paulo, v. 12, n. 4, p. 650-661, 2009. Publicação da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Breno Ferreira Pena
E-mail: brenopena@hotmail.com

Ronildo Deividy Costa da Silva
E-mail: ronildosilva010@yahoo.com.br

Recebido em: 09/04/2018
Aprovado em: 25/05/2018

 

 

SOBRE OS AUTORES

Breno Ferreira Pena
Psicólogo.
Bacharel em administração de empresas.
Psicanalista.
Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Pós-graduado em gestão de pessoas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Mestre e doutor em psicologia pela PUC Minas.
Professor adjunto da graduação em psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Professor e orientador de pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Ronildo Deividy Costa da Silva
Psicólogo.
Mestre e doutorando em psicologia do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará na linha de pesquisa “Psicanálise: teoria e clínica”.
Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano/Belém (EPFCL/Belém).
Bolsista da CAPES.

 

 

1 Nos seus primeiros seminários, Lacan, à sua maneira, se apropria das teorias linguísticas de Saussure de modo a formalizar o inconsciente estruturado como linguagem.
2 La estructura que Lacan llama no todo responde al Otro que no existe, y la universalización, lejos de inscribirse en el espacio del para todo X (?X), es el no todo generalizado, no lo general sino el no todo en todas partes, que se manifesta por la estructura de red.
3 En particular, si la sexualidad solo está representada en el inconsciente por la pulsión, no está representada en el inconsciente, está representada por otra cosa, es una representación no representativa. Y la consecuencia de esta no representación es lo que Lacan formuló de manera fulgurante con la no relación sexual, que supone que el partenaire essencial del sujeto es el objeto a, algo de su propio goce, su plus de gozar. Por eso su invención de este objeto ya significa que no hay relación sexual, que el partenaire del sujeto es dicho objeto y no el otro sexual.

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