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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.49 Belo Horizonte jan./jun. 2018

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

A teoria da loucura em Lacan como crítica ao patetismo da doença mental

 

The theory of madness in Lacan as a criticism to the pathos of mental disease

 

 

Martín Mezza

I Apertura Sociedad Psicoanalítica de Buenos Aires
II Universidade Federal da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nesta oportunidade apresentaremos a tese de que a “fórmula geral da loucura”, tal como foi elaborada por Lacan, implica – necessariamente - a crítica da doença mental. Procura-se evidenciar que essa crítica tanto faz série com objeções levantadas por diversos saberes quanto mantém uma particularidade ligada à originalidade do objeto da psicanálise; ao mesmo tempo, seu desconhecimento leva a desvios teóricos e impasses clínicos já presentes em Freud.

Palavras-chave: Loucura, Lacan, Doença mental, Psicanálise.


ABSTRACT

In this opportunity we will present the thesis that the “general formula of madness”, as elaborated by Lacan, necessarily implies the critique of mental disease. It is tried to show so much that this critic makes series with objections raised by diverse knowledges as it maintains a particularity linked to the originality of the object of the psychoanalysis; at the same time, his ignorance leads to theoretical deviations and clinical impasses already present in Freud.

Keywords: Madness, Lacan, Mental disease, Psychoanalysis.


 

No silêncio que é privilégio das verdades indiscutíveis,
os psicanalistas encontram o refúgio
que os torna impermeáveis a quaisquer outros critérios,
salvo os de uma dinâmica,
uma tópica e uma economia que eles são incapazes
de fazer valer do lado de fora
.
LACAN, [1955] 1998, p. 327

 

Descontinuidades e críticas

Entendemos que não resulta em controvérsia afirmar que a psicanálise nasce, senão como crítica da psiquiatria, pelo menos com todo um “potencial crítico”, efeito da sua descontinuidade radical com o discurso médico. Essa descontinuidade – a psicanálise – não vem do exterior; pelo contrário, surge no interior, na falha que testemunha e denuncia a inadequação da união entre psiquiatria e neurologia, entre moral e ciência.

Do berço da neuropsiquiatria francesa – Salpetrière –, cujo embalo tem o traço inesquecível do “Napoleão das neuroses”,1 surgiram valiosas contribuições para o campo médico.

Józef Franciszek Feliks Babinski identifica a relação entre o reflexo plantar e o dano do sistema piramidal, estabelecendo o que se conhece como reflexo de Babinski. Também Tourette, antes que a violência inscrita na hipnose lhe retornasse em forma de bala, reconhece uma série de tiques que passam a compor a doença de “Gilles de la Tourette”.

Gilbert Ballet, embora não tenha conseguido ligar seu nome a uma síndrome, pelo menos teve a possibilidade de criar o serviço psiquiátrico do Hôtel-Dieu e descrever uns dos maiores quadros da psiquiatria moderna: a esquizofrenia paranoide.

Finalmente, devemos a Jean Leguirec e a seu método Bénedicte (combinação de hipnose e psicoterapia breve) a inspiração dos atuais e “científicos” tratamentos a curto prazo (neurocognitivos em sua maioria).

Já o outro grande aluno de Charcot, Sigmund Freud, foi o ponto fora da curva. No lugar de um descobrimento médico ou da identificação de uma síndrome, adveio uma criação (pai da psicanálise) sancionada pelo prêmio Goethe que, por si mesmo, indica bem a materialidade linguageira da obra. E em vez de fundir seu nome com a descrição de uma síndrome, quis o destino que fosse lançado ao espaço para nomear um pequeno buraco (astroblema) na materialidade que orbita a Terra.

Sigmund Freud, mediante a noção de defesa e o método da associação livre, dá os primeiros passos para se libertar do poder psiquiátrico inerente à hipnose (Charcot) e da fisiologia imperante na catarse (oriunda de Josef Breuer). A talkin cure abre os caminhos, desgarra a junção entre a moral da desrazão e a consciência analítica da psiquiatria moderna, permitindo o desenvolvimento da experiência do inconsciente.

O próprio da psicanálise – da posição inicial de Freud – é se manter em descontinuidade com o movimento ético, epistêmico e técnico da psiquiatria moderna, ou seja, como fenda interna que testemunha a inadequação do processo de medicalização da loucura.

Qual é esse processo inadequado de medicalização? Michel Foucault o descreve como a passagem da psiquiatria asilar (desrazão) para a psiquiatria moderna (científica), mediante a retranscrição da negatividade da loucura (falta de juízo e erro) em signos positivos (delírios, alucinações, conversões, estados do humor, etc.) da doença mental.

Neste conhecimento, a doença mental encontra-se ao fim presente, a desrazão tem desaparecido de si mesma, salvo aos olhos de quem se pergunta o que pode significar no mundo moderno esta presença obstinada e repetida de uma loucura, necessariamente, acompanhada da sua ciência, da sua medicina, de seus médicos, de uma loucura totalmente incluída no patetismo de uma doença mental (FOUCAULT, [1964] 2009, p. 324).

A doença mental é patética porque movimenta os afetos que suscitam piedade ou tristeza. Afetos que perpassam as ‘campanhas’ de algumas associações psiquiátricas que têm por finalidade ‘sensibilizar’ a população. Sabem Deus e os cientistas sociais que a empresa desenhada sobre a ‘normalidade’ dos transtornos mentais é empresarial. Dobra irônica do discurso patologizante que, sem se satisfazer com a normalização dos sujeitos, pretende tornar ‘normais’ os transtornos e, assim, acaba por incluir a população insensivelmente sadia no diagnóstico que a estigmatiza como ‘psicofóbica’. Mas também é patética por causar desdém, por ser ridículo e/ou exagerado o gesto que promove a inclusão total da loucura na materialidade do corpo e na existência do-ente mental.

Essa operação ‘inadequada’ e ‘patética’, assim categorizada por Foucault, além de reproduzir a desrazão e o poder médico, exprime um mal-estar particular da modernidade.

E nesse momento, a loucura aparece não como uma perturbação do juízo, mas como uma alteração na maneira de atuar, de querer, de sentir as paixões, de adotar decisões e de ser livre; enfim, já não se inscreve no eixo verdade-erro-consciência quanto no eixo paixão-vontade-liberdade (FOUCAULT, 1996, p. 51-52).

É sob essa mudança de eixo que a “psiquiatria de produção zero”, de Babinsky, dá o passo inicial para a sobremedicalização da loucura, depois continuado pela psicocirurgia e a psicofarmacologia de nossos dias. Pretende-se reduzir o “pitiatismo” da loucura (termo cunhado por Babinsky), mascarar a relação entre médico e paciente, em que se entrelaçam e confundem a verdade e a teatralização da loucura com a sugestão e a persuasão do médico (os experimentos hipnoides de Charcot) na produção ou redução de doenças e sintomas.

Mediante a retranscrição a signos mínimos e positivos, se avança na objetivação da loucura, que desloca e mascara tanto o poder do médico quanto a verdade da loucura. O novo conhecimento da doença mental já não precisa de figuras napoleônicas; os signos da doença se abrem às técnicas e às terapêuticas mais que aos poderes dos médicos (FOUCAULT, 1996).

Digamos que as diferentes antipsiquiatrias, a de Szasz, Kingsley Hall, de Cooper e a psiquiatria democrática de Basaglia, apontam a eliminar por diversos meios tanto esse poder médico quanto a medicalização que o mascara ou oculta.

Basaglia ([1979] 2008) já advertia que a psiquiatria democrática devia se ocupar das novas formas de poder da psiquiatria científica e não se limitar apenas à crítica da psiquiatria asilar.

A categoria proposta para essa tarefa, retomada por outras figuras do dito movimento como Rotelli (2014) e Amarante (2015), não é outra senão o ‘duplo’ da doença mental. Com a noção do “duplo” se criticará a doença mental na medida em que indica tudo aquilo que se constrói em termos institucionais (poder institucionalizante) em torno do sofrimento das pessoas. Assim, se entende a doença mental como uma negação (não dialética) que possibilita que os fenômenos do sujeito se tornem fenômenos da doença.

Como bem destaca Renault (2010), há trinta anos que a noção de “sofrimento social” vem ocupando um lugar central em diferentes programas de pesquisas sociológicas. A partir dessa noção, se realiza uma crítica social que enlaça fenômenos macro e microssociais, em que a medicalização da vida cotidiana e a realidade em torno ao discurso da doença – em particular a doença mental – ocupa um lugar de privilégio.

Assim, vemos se desenhar toda uma produção que vai desde a escola de Frankfurt e as elaborações de Bourdieu, passando pela psicologia social de Pichon Rivière ou Vincent de Gauléjac e Christophe Dejours, até a antropologia médica de Arthur Kleinman (1991; 1997).

Também a divisão conceitual da noção de doença em desease, ilness, skinner, tão utilizada nas ciências sociais e no campo da saúde coletiva (ALMEIDA FILHO, 2006), representa outra forma da crítica ao discurso biomédico.

Como vemos, a psicanálise não é a única a se opor ao poder psiquiátrico e ao patetismo da doença mental, tornando necessário tanto reconhecer sua participação nessa série de saberes e movimentos, quanto não perder de vista a particularidade da sua crítica. O inconsciente freudiano resiste à retranscrição da loucura nos signos positivos da doença mental, se nega a abandonar a relação entre verdade e erro para abraçar a liberdade que se aprisiona no dualismo psicofisiológico da paixão e da vontade.

De alguma maneira, a psicanálise mantém aberta a relação entre erro e verdade, já não vinculados à consciência senão ao inconsciente: atos falhos, sonhos, lacunas de consciência, chistes, sintomas. Não pretende anular porque sabe da sua impossibilidade, nem mascarar o poder porque lida com ele mediante o artifício da transferência.

Apesar disso, a pena de Foucault (1996, [1976] 2003) não vacila em colocar a psicanálise freudiana numa tradição autoritária e na trilha de uma sobremedicalização explorada pela psicocirurgia e pela psicofarmacologia.

Por quê?

Quais as suas razões?

Nós, psicanalistas, devemos admitir que não lhe faltam motivos para tal diagnóstico e não apenas pelos “desvios pós-freudianos”, reinantes na época do filósofo, senão também pela própria letra do pai da psicanálise.

Digamos para nos fazer entender melhor: o “último Freud”. Aquela teorização da experiência analítica que, ao ceder ao preconceito cientificista do século XX, acaba por contrariar a força radical do seu descobrimento, sua verdade e a dos sintomas que pretendia conjurar, alinhando-se sem mediações ao eixo paixão-vontade-liberdade da psiquiatria moderna:

Nosso plano de cura baseia-se nessas descobertas. O ego acha-se enfraquecido pelo conflito interno e temos de ir em seu auxílio [...] O médico analista e o ego enfraquecido do paciente, baseando-se no mundo externo real, tem de reunir-se num partido contra os inimigos, as exigências instintivas do id e as exigências conscienciosas do superego (FREUD, [1938] 2006, p. 188).
[...]
Não ficaremos desapontados, mas, pelo contrário, acharemos perfeitamente inteligível, se chegarmos à conclusão de que o desfecho final da luta em que nos empenhamos depende de relações quantitativas da cota de energia que podemos mobilizar no paciente, em nosso favor, comparada a soma de energias das forças que trabalham contra nós [...]. O futuro pode ensinar-nos a exercer influencia direta, através de substâncias químicas específicas, nas quantidades de energia e na sua distribuição no aparelho mental (FREUD, [1938] 2006, p. 196).

Sabemos que essa claudicação teórica originou os mais variados desvios. Desde a ortopedia defensiva dos “pós-freudianos” que, mediante a noção de contratransferência, conseguiram recolocar o psicanalista no rastro do poder da figura médica – passando pelos neofreudianos (FROM, HORNEY, NEUMANN, etc.), que, tentando se afastar da antropologia pulsional e da autoridade implícita na obra freudiana, acabaram por dessexualizar a psicanálise e abraçar uma posição social ingênua que se resolveu no favorecimento da adaptação ao status quo social – até o anti-historicismo das instituições psicanalíticas dos EUA, que não deixaram de contribuir tanto na construção da ética do indivíduo “de sucesso e felicidade” (LACAN, [1956] 1998) quanto com o DSM III, prelúdio da medicalização da vida cotidiana.

Contra todo esse movimento, contrário ao descobrimento freudiano, se ergue a obra de Lacan como tentativa de refundar o estatuto do inconsciente e da experiência freudiana.

 

A fórmula geral da loucura

A posição de Lacan, aquela que se propõe como base do seu pensamento, é muito diferente da conclusão freudiana em torno das “quantidades químicas”. No centro do principado da psiquiatria francesa, sabendo que, se suas palavras poderiam incomodar (já incomodavam) o artifício da razão, a presunção do poder e os “inimigos do gênero humano”, não sem dificuldades, enuncia sua posição “radical” do problema da psicogênese da neurose e da psicose:

Para dizer a verdade [...] constatei – meu exemplar traz a marca disso – tudo o que o aproxima e deveria torná-lo ainda mais próximo de uma doutrina do distúrbio mental que creio incompleta e falsa, e que se designa a si mesma em psiquiatria pelo nome de organicismo (LACAN, [1950] 1998, p. 153).

Serão levantadas duas objeções centrais ao organodinamicismo de Henri Ey:

• por mais dinâmica que se proponha, em última instância não faz outra coisa senão remeter a gênese da doença mental aos órgãos do corpo (organicismo);

• sob a influência do evolucionismo de Jackson, se retorna à oposição orgânico/psíquico, desconhecendo que o dualismo de Descartes é entre pensamento e extensão, o que contribui para amarrar a psicogênese ao paralelismo psicofisiológico.

Antes de continuar desenvolvendo essa crítica, que também alcançará Freud, devemos apresentar qual é a sua motivação. Ela servirá para provar nossa tese (apresentada na primeira página) de que a psicanálise nasce como uma descontinuidade no seio do campo médico, desgarrando, rachando a junção entre psiquiatria e neurologia, entre o tratamento moral da loucura (desrazão) e o “científico” da doença mental.

[…] o problema dos limites da neurologia e da psiquiatria, que por certo não teria maior importância do que em relação a qualquer outra especialidade médica, se não comprometesse a originalidade própria do objeto de nossa experiência [...]. Haverá alguma coisa que distinga o alienado dos outros doentes, a não ser pelo fato de o encerrarmos num asilo, enquanto hospitalizamos estes últimos? Ou ainda, será que a originalidade de nosso objeto é de prática – social – ou da razão – científica? (LACAN, [1950] 1998, p. 155).

As tensões entre psicanálise e psiquiatria, a crítica à neuropsiquiatria, não são uma questão de moda ou de velhas e inócuas disputas ideológicas como alguns querem fazer ver. O que está em jogo é a função social da psicanálise, a originalidade do seu objeto e a autenticidade da sua prática.

Manter aberta essa brecha (social/científico; des-razão/neuropsiquiatria) é o que possibilita à psicanálise continuar na verdade do seu descobrimento e no redescobrimento da sua verdade. O ensino de Lacan pode se entender como a fronteira traçada para evitar cair no abismo da biologia ou no da posição culturalista da norma social.

Uma objeção benevolente e externa à psicanálise poderia advertir que as palavras de Lacan foram pronunciadas em 1946, ou seja, antes da década de 1950 quando começaram a se desenvolver os primeiros psicofármacos (clorpromazina, iproniazida, etc.).

Também desde dentro do campo psicanalítico, poder-se-ia invocar o espírito evolucionista a partir do qual se estimula o desconhecimento do pensamento de Lacan e se pretende anular todas as discussões baseadas na argumentação e, assim, objetar que esse Lacan é o primeiro e que o terceiro, o quarto, o último já não poderiam continuar sustentando essas ideias.

Para responder a ambas as objeções temporais, seguem duas citações de diferentes momentos da obra do autor:

Manter a necessidade de falar da realidade última, como se estivesse em algum lugar diferente do próprio exercício de falar dela, é desconhecer a realidade onde nos movemos. Posso qualificar essa referência, hoje, de supersticiosa. É uma espécie de sequela do postulado chamado organicista, que não pode ter literalmente nenhum sentido na perspectiva analítica (LACAN, [1956-1957] 1999, p. 35).

Essa tendência de redução chamada “materialista” merece ser considerada pelo que é, a saber, sintomática: [...] toda essa construção chamada materialista ou organicista, digamos em medicina, é muito bem recepcionada pelas autoridades espirituais. Tudo isso nos leva até o ecumenismo (LACAN, [1967-1968] p. 13)

Podemos apreciar a coerência e o aprofundamento de uma ideia que está na base do seu pensamento. Depois de 22 anos (1946) continua a afirmar que a teoria organicista do “distúrbio mental” é “falsa e incompleta”. Mas há que advertir que esse organicismo está não apenas na neuropsiquiatria, mas também como sintoma na teoria e na prática psicanalítica. Qual?

Aqui nossa fragmentada comunidade se une para gritar a uma só voz: nos desvios dos pós-freudianos! Lacan retorna a Freud. Lacan é freudiano. Viva o lacanofreudismo!

Bom, para esse tipo de religião sempre muito preocupada em resgatar a figura imaculada do pai a preço de esquecer sua verdade, apresentamos nossas provas e nossos argumentos.

Reconhecemos aí a posição de Henri Ey [...] pela fórmula segundo o qual “o ataque ao eu se confunde, em última análise, com a noção de dissolução funcional”.

Será possível censurá-lo por ela, quando o preconceito paralelista é tão forte que o próprio Freud, contrariando todo o movimento da sua investigação, permaneceu prisioneiro dele [...]. Sabemos, com efeito, que Freud identifica o Eu com o “sistema percepção-consciência”, que constitui a soma dos aparelhos pelos quais o organicismo se adapta ao “princípio de realidade”.

Se refletirmos sobre o papel desempenhado pela noção de erro na concepção de Ey, veremos o laço que une a ilusão organicista [neuropsiquiatria] a uma metapsicologia realista [freudiana].2

Embora as melhores mentes da psicanálise requeiram avidamente [...] uma teoria do Eu, há pouca chance de que esse lugar seja marcado por outra coisa senão um furo hiante, enquanto elas não se resolvem a considerar obsoleto o que efetivamente o é na obra de um mestre sem igual (LACAN, [1950] 1998, p. 179-180).

Por mais amizade e carinho que Lacan tenha professado a Ey, nunca o chamaria de mestre sem igual. Sim, o obsoleto que Lacan pede para abandonar é o paralelismo, o organicismo e a teoria do “ego” da obra freudiana. As “melhores mentes da psicanálise” não inventaram o desvio; em todo caso, o aprofundaram ao seguir o legado obsoleto do mestre sem igual.

Lacan chama a retomar o caminho abandonado por Freud uma vez que cedeu ao preconceito paralelístico, já que essa claudicação não fez outra coisa senão desenvolver uma “metapsicologia realista”, que se une à “ilusão organicista” da psiquiatria.

A partir da segunda tópica (id-ego-superego), toda a prática analítica se exprime no eixo epistêmico da psiquiatria moderna: paixão-vontade-liberdade que, em termos freudianos, poder-se-ia traduzir como pulsão-eu-supereu.

A estratégia, a posição radical de Lacan ([1950] 1998, p. 155) é resgatar para a psicanálise a noção de loucura, mesmo sabendo que, devido a seu “antigo bafio de sagrado”, essa noção é suspeita tanto para a ciência quanto para a consciência moderna. Prefere-se esse risco à redução positivista e organicista da noção de doença mental.

Com o termo “loucura”, Lacan se afasta do eixo paixão-vontade-liberdade e do paralelismo psicofísico, que promovem a ideia de que as paixões (pulsões) do corpo afetam a vontade (Eu) e as ideias (representações) causando uma limitação da atividade livre da psique.

A psicanálise evidencia que a subjetividade não é o canto a liberdade, já que nela o homem se encontra capturado na cadeia significante (LACAN, [1958/1959], 2016, p. 19) e que a paixão da qual é servo não advém do organismo senão de uma virtualidade (narcisismo) que ocupa a falha aberta no seu ser: castração.

Um louco que se imagina príncipe só difere do príncipe que efetivamente o é pelo fato de aquele ser um príncipe negativo, enquanto este é um louco negativo. Considerados sem seu sinal, eles são semelhantes (LACAN, [1950] 1998, p. 171).

Essa é a fórmula geral da loucura. Com ela se afirma, contrariamente a Descartes (Meditações) e a toda a neuropsiquiatria, que a loucura não é um desvio da normalidade, ou seja, um fato patológico, senão a essência mesma do homem. A loucura abraça tanto a um “Zé Ninguém” que se acha “Rei” quanto ao “príncipe” que se acha príncipe.

Portanto, a estrutura da loucura não se exprime numa crença fraca ou numa ilusão da consciência, não responde à dualidade psique/realidade exterior, senão a um “desconhecimento” em que o homem compromete – arrisca – sua verdade e seu ser (pode-se sentir a retomada do eixo epistêmico em que a verdade ocupa o papel central: verdade-erro-consciência).

A loucura é a “virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essência” (LACAN, [1950] 1998, p. 177. E assim, ao enlaçar loucura e essência ou tornar substituível loucura e homem, Lacan pode extrair todas as consequências, inclusive clínicas, das lições de Kojéve sobre a obra hegeliana: “O Homem é uma doença mortal do animal”. Inversão dos termos “homem” e “doença”, que prova suficientemente o alcance e o material de que está feita a crítica sobre o discurso (patético) do-ente mental.

A loucura está amarrada a uma estrutura de desconhecimento que recai menos sobre a profundeza do organismo do que sobre a ficção da verdade.

Na loucura, seja qual for sua natureza, convém reconhecermos, de um lado, a liberdade negativa de uma palavra que renunciou a se fazer reconhecer [...] (LACAN [1956] 1998, p. 281).

A forma como se exprime essa falta de reconhecimento, ou seja, os paradoxos entre sujeito da palavra e linguagem determinam os diversos tipos de loucura:

• a psicose, em que as estereotipias do discurso evidenciam que o sujeito é mais falado do que fala;

• as neuroses, em que a palavra é expulsa do discurso concreto para constituir os “hieroglíficos da histeria”, os “brasões da fobia” e os “labirintos da Zwangsneurose”;

• as identificações imediatas com o ideal do Outro, em que o sujeito perde seu sentido nas objetivações do discurso.3

 

Conclusão

Mediante o resgate da noção de loucura, Lacan retoma a originalidade do descobrimento freudiano – a relação entre sintoma e linguagem, entre loucura e verdade, ou seja, a significação do delírio – e a crítica radical ao discurso da doença mental.

Mas o profundo desconhecimento a seu respeito (não se trata de ignorância), que percorre o silêncio de amplos setores do campo psicoanalítico, produz um verdadeiro obstáculo epistemológico (GASTÓN BACHELARD), que leva a desvios teóricos e profundos impasses clínicos.

Dessa forma, a loucura se inclui totalmente na psicose (considerada doença), produzindo logicamente que o campo da neurose seja o depositário de uma suposta e elástica “normalidade”. Nas instituições analíticas pode-se ouvir falar sobre as “neuroses graves” e as “neuroses de todos nós”. A partir daí, queiramos ou não, a psicanálise se psiquiatriza.

A fórmula geral da loucura, a teorização implícita e desenvolvida a partir dela faz com que seja impossível identificar (como habitualmente se faz) as estruturas clínicas com os quadros ou transtornos psiquiátricos. As estruturas clínicas (neurose, psicose e perversão) não são narrativas gerais ou traços mínimos e elementares das descrições mais largas contidas na diversidade dos transtornos psiquiátricos.

Não se pode entender de forma esquemática que os transtornos depressivos, de ansiedade, do sonho, etc. formem parte das estruturas neuróticas; que os delírios, alucinações, etc. se incorporem sem mais nem menos à psicose; e que os quadros psicopáticos se correspondam com as perversões.

As estruturas clínicas formam parte de uma teoria da loucura – paradoxo entre palavra e linguagem; falta de reconhecimento de uma palavra (melhor dito significante) em que se arrisca a verdade e o ser do homem – que se opõe de forma ética, epistêmica, teórica e prática ao patetismo da doença mental.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: mezzamartin@yahoo.com.ar - martinmezza@hotmail.com

Recebido em: 02/04/2018
Aprovado em: 10/05/2018

 

 

SOBRE O AUTOR

Martín Mezza
Psicanalista argentino, atualmente residente em Salvador (BA).
Membro de Apertura Sociedad Psicoanalítica de Buenos Aires (Argentina).
Mestre em Saúde Mental Comunitária pela Universidad Nacional de Lanús (UNLa - Arg).
Doutorando no Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia.
Trabalha com clínica de adolescentes e adultos.
Vinculado aos movimentos de reforma psiquiátrica.
Foi professor da Universidad de Buenos Aires (UBA).
Trabalhou na gestão de saúde.

 

 

1 Jean-Martin Charcot.
2 Os colchetes são nossos.
3 Sobre a particularidade dessa forma de loucura ver MEZZA (2017).

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