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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.51 Belo Horizonte enero/jun. 2019
ARTE E PSICANÁLISE
Estranho ato perturbador
Disturbing uncanny act
Messias Eustáquio Chaves
I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Círculo Brasileiro de Psicanálise
III International Federation of Psychoanaytical Societies
RESUMO
Este artigo tem seu eixo temático baseado em Das Unheimlich (FREUD, [1919]), texto traduzido como O estranho, com significações variadas, tais como: estranho-familiar, inquietante, sinistro, perturbador e, ultimamente, infamiliar. A narrativa do filme A nossa espera conta a vida de uma família composta de pai, mãe e dois filhos pequenos. Produção Bélgica-França com atores competentes e trama boa de ver. Esse filme dramático revela o efeito do inconsciente na política de uma família e de uma empresa. Paradoxalmente, o filme produz satisfação e enorme desprazer quando chega ao núcleo do seu próprio ser, despertando um profundo sentimento de estranheza e intensa perturbação, levando a pensar em pulsão de morte, angústia, encontro assustador com o real, o não-todo, essa estrutura do impossível de ser de outra maneira a não ser repetindo sofrimentos de perdas. No entanto, há uma virada lógica na trama trágica dessa história, apontando para a experiência do tratamento psicanalítico e a construção de um saber lidar com o Real lógico da “não relação sexual”.
Palavras-chave: Pulsão, Angústia, Ato perturbador, Moral e ética, Elaboração simbólica.
ABSTRACT
The thematic approached by the author is supported in Das Unheimlich (Freud, 1919) translated as The Uncanny (Standard Edition) and has diverse meanings such as strangely familiar, disturbing, sinister, disquieting, and, more recently, unfamiliar. The film’s narrative Our Struggles tell from family life composed of father, mother and small children. Belgic-French production with very capable actors and a good plot. This drama film reveals the effects of the unconscious over the politics of a family and a firm. Paradoxically this film produce satisfaction and great displeasure when approaching to the core of itself, waking up an vigorous feeling of strangeness and great perturbation, leading to think in death instinct, anguish, a frightful encounter with the real, the non-all, the structure of the impossibility of being otherwise except through the repetition of suffering from losses. However, there is a logical turning at the story’s tragic plot, pointing out to the experience of psychoanalytic treatment and a way how to manage with the logic Real of the ‘there’s no such thing as a sexual relationship’.
Keywords: Instinct, Anxiety, Disturbing act, Morality and ethics, Symbolical elaboration.
– A lógica do estranho infamiliar
– A lógica da não relação^proporção^complementaridade sexual
Um filme dramático, feito para ser apreciado e de se atormentar e de querer comentar, debater (SENEZ, 2018). É possível dividi-lo em duas partes: na primeira, ele produz bem-estar; na segunda, mal-estar e o sentimento de susto, medo, estranheza, absurdo, perturbação e sofrimento, levando-nos a pensar na angústia, na pulsão de morte, no real, em algo familiar e muito estranho, soando como infamiliar (2019). Tudo que é recalcado como familiar, como estar próximo, volta como estranho, transformado em fantasias às vezes assustadoras, como assombração e terror, causando muita perturbação com sentimentos de perigo de morte.
Freud ([1919] 1976, p. 306) afirma:
Pode ser verdade que o estranho [unheimlich] seja algo que é secretamente familiar [heimilich-heimilich], que foi submetido a repressão e depois voltou, e que tudo aquilo que é estranho satisfaz essa condição.
Na primeira parte, a mãe cuida de seus dois filhos – um menino de 5 anos, uma menina de 3 anos –, em casa o dia inteiro, com os dois na alimentação, no banho e nos deveres escolares, contando histórias, participando de brincadeiras, levando-os e buscando-os na escola, ajudando-os em tudo e ficando muito cansada. O marido trabalha numa grande empresa o dia inteiro e sempre fazendo horas extras. Não é tanto porque quer, embora percebamos que ele queira. Trata-se de sua política pessoal, para ser reconhecido pela gerente geral e salvar o seu emprego ameaçado pela crise social e econômica. Ele chega a sua casa quase sempre após as 20 horas. Encontra a esposa exausta no quarto dos filhos, contando histórias para eles dormirem. Enquanto isso, ele toma banho, janta, vê noticiário na TV e quando se deitam em sua cama de casal, só querem dormir. A cena mostra os dois num sono profundo, cada um virado para o outro lado.
O dia amanhece, e vemos a repetição do mesmo, dia após dia, semana após semana. Não há brigas, não há discussões. Ambos se respeitam, procuram educar bem os filhos e quando a avó aparece, é motivo de alegria e troca de carinho entre todos. Apesar de muito trabalho e cansaço, ainda há um ou outro sorriso, há perguntas e respostas sobre coisas domésticas. Pode ser que haja respeito, mas fica a dúvida se há amor. O que é o amor? O que é a verdade do amor?
Esse cenário evolui para outro tipo de repetição. Ele passa a chegar ainda mais tarde, porque precisa ir primeiro às reuniões da militância política, que planeja uma revolução para destituir o prefeito de suas funções. Entrementes, nesse movimento, fica conhecendo uma jovem militante e estreita laços com ela. O clima de sedução aumenta. Eles passam a ter relações sexuais. Quando chega a sua casa, encontra a mulher e os filhos em profundo sono. E tudo se repete no dia seguinte.
Cada um procura lidar com essa realidade da melhor maneira possível. Tudo indica que o supereu dela determina que ela cumpra com os seus deveres de mãe e goze d’Isso. Já o supereu dele determina que ele cumpra todas as metas da empresa, exaustivamente amedrontado com as ameaças de perder o emprego. Ele obedece e d’Isso ele goza. Isso repete, repete, constantemente, voltando sempre ao mesmo lugar.
Assim Marta Gerez-Ambertin (2009, p. 39, grifos da autora) afirma:
Foram necessários vários anos e trabalhos (desde “O ego e o id” até “O mal-estar na civilização”) para Freud reconhecer que linguagem, desamparo e dependência configuram a base do supereu, que, como alheio, está excluído mas dentro da praça central do sujeito, como sua mais íntima exterioridade.
Há uma virada lógica da primeira para a segunda parte – o autor deste artigo é quem nomeia dessa forma. Certa noite o marido chega e encontra a sua mãe com os filhos, porque a esposa sumiu! Simplesmente sumiu!!! Esse é o âmago do filme, o seu ponto de esgarçamento, seu ‘buraco negro’ impactante e norteador do vazio. É procurada por todos os cantos da cidade, diariamente, e nenhum sinal dela. No cinema, vendo o filme sente-se afetado pelo sentimento de estranheza radical. Assustador!!! Sinistro!!! Perturbador!!! A associação com O estranho [Das Unheimlich], ‘estranho familiar’ ou familiarmente estranho (FREUD, [1919] 1976) é inevitável. Sente-se aflição, perturbação, angústia. Ela sumiu, abandonou marido e filhos, que se sentem completamente perdidos! Atravessados por tamanho impacto e forte mal-estar, eles se veem diante de muitas questões.
Ela está viva? Ela foi para outra cidade atrás de seus parentes? Ela foi se encontrar com algum ex-namorado? Teria sido sequestrada? Seria uma escolha pessoal calculada, abandonando a família temporariamente ou para sempre? Ela morreu em algum acidente e o corpo não foi encontrado?
A verdade é que muito tempo se passou, e não se teve notícia dela. Nenhum sinal, Nenhuma palavra. Nenhuma pista. Muito estranho!!! A plateia está chocada. Parece sentir forte desprazer. Um mal-estar angustiante nesse encontro com o ‘estranho familiar’ no inconsciente de cada um. Trombada com o impossível no terreno do real. Experiência com a pulsão de morte, com o sofrimento singular de cada um como sujeito.
Contudo, o filme revela uma primeira mudança no contexto dessa trama dramática. O desaparecimento estranho, a falta da esposa e da mãe deixam marido e filhos atordoados. Tudo se passa como se sua ausência a tivesse tornado muito mais presente – a presença simbólica da ausência física, carnal, pessoal no contexto familiar. O efeito dessa falta causou o desejo de mudanças radicais na rotina do marido e filhos. Ele abandona o medo de perder o emprego, pede férias-prêmio acumuladas e, dando mais importância à vida e à educação dos filhos, deixa de ir às reuniões da militância política. Com a ajuda da mãe, passa a ser um pai próximo dos filhos, um pai como antes nunca havia conseguido ser.
No entanto, a vida lhe reserva mais um dramático encontro com o real, mais um forte sentimento de estranheza, mais uma experiência assustadora. Certo dia, esse pai amoroso vai buscar os filhos na escola e ouve o porteiro dizer que seus filhos já tinham saído. “Vi-os caminhar na direção de um carro que seria o seu”, diz o porteiro. Descobre-se que não era o carro do pai e este, muito aflito, passa a procurá-los por toda parte e não os encontra. Constatação: Sumiram!
A polícia e o corpo de bombeiros passam a procurar por todos os cantos da cidade. Nenhum sinal. Ninguém sabia responder sobre o paradeiro deles. No dia seguinte, alguém conta que duas crianças iguais às das fotos mostradas foram vistas numa locomotiva a caminho de outra cidade. Ah, que alívio!... Pelo menos uma luz no meio da escuridão!...
O pai, os policiais civis e do corpo de bombeiros procuram, imaginando encontrá-los numa determinada estação ferroviária. Tal ideia foi recompensada. Quanta alegria e paz ao encontrá-los, reconhecê-los e abraçá-los entre sorrisos e lágrimas. O pai pergunta: Que aconteceu? Por que vieram parar aqui nesse lugar longínquo? A resposta dos filhos é emblemática, “A gente estava procurando a mamãe. A gente achava que iria encontrá-la em algum lugar”. Estremecido, o pai deduz que os filhos, sem saber por onde andavam, procuravam-na a ermo, como se seguissem o próprio destino.
Considerações sobre o contexto
Este filme é um excelente canteiro de ideias para uma abordagem de Das Unheimlich – em Freud e em Lacan. Primeiro, sobre o contexto psicanalítico da escrita de Das Unheimlich. Segundo, sobre o contexto político-social-econômico vivido por Freud no espaço-tempo de antes, durante e pós-escrita de Das Unheimlich. Terceiro, sobre a influência que Das Unheimlich teria produzido em Lacan durante a sua leitura da obra de Freud, especialmente em sua escrita de A agressividade em psicanálise ([1948] 1998), O estádio do espelho como formador da função do eu ([1949] 1998) e o Seminário 7: a ética da psicanálise ([1959-1960] 1988).
Os anos da Primeira Guerra Mundial foram extremamente difíceis. Contudo, o espaço-tempo a posteriori estimulou novas ideias, pensamentos analíticos no âmbito da criatividade em Freud. Foram nomeados como ‘os anos da virada’, da torção, da construção da segunda tópica, da descoberta da pulsão de morte, da angústia como sinal ‘causa-dor’ do recalcamento das moções pulsionais e da formação do sintoma neurótico. Mas foi em 1918, pouco antes de escrever Das Unheimlich que Freud (com 63 anos) teria dito, muitas vezes, que sua vida parecia estar perto do fim e que teria de lutar bravamente para ter domínio sobre si. Ele parecia ter uma ideia sensata sobre o destino e “o eterno retorno das mesmas coisas”. É possível enxergar aí uma antecipação do real teorizado por Lacan?
Assim, Jorge (2017, p. 152-153) afirma:
Real: não sentido – ex-siste // Simbólico: duplo sentido – insiste // Imaginário: sentido – consiste.
Cada uma das três paixões implica a relação que ela sustenta entre dois dos três registros do seguinte modo: o amor se situa na junção do simbólico e do imaginário; o ódio se situa na junção do imaginário e do real; a ignorância se inscreve na junção entre o simbólico e o real. Cada uma das três paixões promove e elisão de um dos três registros psíquicos:
Amor: S-I // R ... Ódio: R-I // S... Ignorância: S-R // I.
Por sua estrutura mesma, que visa preencher o vazio deixado pela inexistência da relação sexual, o amor como essencialmente narcísico não tolera o real: ele não admite a perda, a separação ou algo que introduza qualquer falha que evoque o impossível inerente à relação sexual. Claro que seu grande rival é a morte, representante máxima do não sentido do real para todo sujeito. Articulando o simbólico e o imaginário, o duplo sentido ao sentido, o amor é capaz de iluminar a vida do sujeito [...]
Pulsão de morte – a agressividade, a violência, a destruição das guerras, o mal-estar, as vozes do supereu (Gerez-Ambertin, 2009), o sentimento de culpa, a angústia, a fantasia como anteparo protetor, o sadismo, o masoquismo – marcada pelo significante desde que o ser humano entrou na linguagem. Pedaços d’Isso das pulsões no inconsciente. O objeto a como o motorzinho, que do centro do nó, faz girar a representação topológica borromeana dos três registros e de suas três paixões como acabamos de ver?
Percebe-se que o estilo de Freud e o estilo de Lacan são como um caminhar para frente voltando atrás em suas descobertas, reflexões e elaborações. Há um depois ‘efeito de’, há um antes ‘causa de’. No entremeio de seus rascunhos, escritas, conferências, seminários há um espaço-tempo, cuja topologia pode ser representada pela fita de Möebius. Que reflexões é possível fazer à medida que se lê esse estranho “infamiliar” freudiano?
Pode-se assinalar que em 1919, Freud escreveu: (a) Sobre o ensino da psicanálise nas universidades, (b) Uma criança é espancada – uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais, (c) Introdução à psicanálise e as neuroses de guerra. Verifica-se também que em 1919, ele escrevia Das Unheimlich e, ao mesmo tempo, como se escrevesse sobre outra mesa, já rascunhava Além do princípio de prazer, em março de 1919, terminando-o em maio do mesmo ano, mês no qual ele concluiu o texto Das Unheimlich.
Provavelmente, devido a esse contexto ele antecipa nesse artigo alguma coisa sobre ‘compulsão à repetição’, tema trabalhado em Além do princípio de prazer, publicado em 1920. Convém lembrar que nesse mesmo ano, ele escreve Psicologia de grupo e análise do eu, publicado em 1921.
Em janeiro de 1919, foi fundada em Viena a Internationaler Psychoanalytischer Verlag, a casa editora que haveria de desempenhar uma larga atuação na vida de Freud. O primeiro livro publicado foi Psicanálise e as neuroses de guerra.
Em 1920, houve a fundação oficial do partido nazista [NSDAP em alemão] Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores, fundado por ex-combatentes da Primeira Guerra e liderado por Adolf Hitler. Entre 1920-1923, o partido nazista criticou os princípios da democracia liberal da República de Weimar, preocupando-se com o fortalecimento das ideias comunistas no país.
Curiosamente, foi nesse espaço-tempo (1919-1923) que Freud elaborou alguns escritos importantes baseados em sua experiência em escutar cidadãos extremamente afetados pelos efeitos da Primeira Guerra: O estranho, Uma criança é espancada, Introdução à psicanálise e as neuroses de guerra, Além do princípio de prazer, Psicologia de grupo e análise do eu, O ego e o id.
Reflexões e impressões causadas por Das Unheimlich
Trata-se de um texto muito denso, no qual Freud parece se interessar muito pela temática, tanto que se entrega a uma vasta pesquisa etimológica em vários textos de escritores criativos na língua alemã e em várias outras línguas. A palavra “heimlich” não deixa de ser ambígua. Ela pertence a dois conjuntos de ideias que, mesmo não sendo contraditórias, ainda assim são muito diferentes: por um lado, significam o que é familiar e agradável; por outro lado, o que está oculto, fora da visão de quem quer que seja. Pode-se detectar que Freud, subjacentemente, faz alusão a um significado paradoxal, ao mesmo tempo unheimlich e heimilich. Uma contradição lógica, de matemática de conjunto, efeito do funcionamento do inconsciente. Estaria Freud pensando na estrutura lógica central do seu conceito de inconsciente, ou seja, um inconsciente paradoxal?
Freud ([1919] 1996, p. 282-283) detalha sua pesquisa, ressaltando Schelling:
[...] Este dá um novo esclarecimento ao conceito do Unheimlich, para o qual não estávamos preparados. [...] Heimilich como afastado do conhecimento, inconsciente, obscuro, inacessível ao conhecimento. [...] Heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que finalmente coincidir com o seu oposto Unheimilich que é, de um modo ou de outro, uma subespécie de Heimlich. Tenhamos em mente esta descoberta. Unheimlich, diz Schelling, é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz.
O inconsciente é a política
Falando de tantas coisas importantes da experiência clínica, principalmente de A direção do tratamento e os princípios de seu poder, Lacan ([1958] 1998, p. 591) fala de “estratégia da transferência, tática da interpretação e política de direção ou manejo do ser no âmbito da falta-a-ser”. É o mesmo que falar da ética da psicanálise. A ética e a política apontam para o desejo de analista, ou seja, ética do ‘desejo de analista’, que se fez analista pela sua análise pessoal e através da qual passou pela experiência da castração simbólica, nos encontros com o real do Isso das pulsões – sexualidade e agressividade –, as vozes do supereu, suas fantasias e até mesmo fantasmagorias, seus sintomas, elaborando perdas, se submetendo à castração simbólica do ser, à ‘falta-a-ser’.
No Colóquio de Royaumont (1953) Lacan discursa sobre “a direção do tratamento” e seis anos depois está começando a falar da “ética da psicanálise”. Lacan dedicou dois anos à transmissão da ética, retomando Freud desde o Entwurf, para fazer uma distinção fundamental entre a ética tradicional – aquela do bem supremo, construída pelo grande filósofo Aristóteles –, e a ética da psicanálise. Lacan aprofundou e multiplicou as ideias inauguradas por Freud a respeito de ética e de técnica no tratamento analítico. “Princípio do prazer e princípio da realidade, das Ding, da lei moral, as pulsões e os engodos, o objeto e a coisa, da criação ex nihilo, o paradoxo do gozo, a pulsão de morte, o amor ao próximo, a função do bem, a demanda de felicidade e a promessa analítica, as metas morais da psicanálise, o ‘entre-duas-mortes’, a sublimação. O paradoxo da ética ou agiste em conformidade com teu desejo?”
Lacan está sempre voltando aos paradoxos, ao significante no real, ao desejo e às proibições da moral, aos engodos do amor ao próximo e do bem supremo. Quando ele fala de religião, às vezes ressalta que não está falando das necessidades de religião, mas falando e apontando para o significante, ou seja, a religião como um significante.
Nesse contexto ou nesse âmbito, vale a pena reproduzir o que disse Lacan ([1959-1960] 1988, p. 382-383, grifos nossos):
Proponho que a única coisa da qual se possa ser culpado, pelo menos na perspectiva analítica, é de ter “cedido de seu desejo”.
Essa proposição, aceitável ou não em tal ética, expressa suficientemente bem o que constatamos em nossa experiência. Em última instância, aquilo de que o sujeito se sente efetivamente culpado quando apresenta culpa, de maneira aceitável ou não pelo diretor de consciência, é sempre na raiz na medida em que ele “cedeu de seu desejo”.
Frequentemente, cedeu de seu desejo por um bom motivo e frequentemente o melhor, a fim de constituir certas zonas da experiência histórica, ser promovida no primeiro plano das discussões de teologia moral, digamos, no tempo de Abelardo, não fez pessoas avançar mais. A questão, que se reproduz no horizonte, é sempre a mesma. E é justamente por isso que os cristãos da observância mais comum nunca estão bem tranquilos. Pois, se é preciso fazer as coisas pelo bem, na prática deve-se sempre se perguntar pelo bem de quem. A partir de lá, as coisas não caminham sozinhas.
[...] Se a análise tem um sentido, o desejo nada mais é do que aquilo que suporta o tema inconsciente, a articulação própria do que faz com que nos enraizemos num destino particular, o qual exige com insistência que a dívida seja paga, e ele torna a voltar, retorna e nos traz sempre de volta para certa trilha, para a trilha do que é propriamente o nosso afazer.
Tudo indica que no mesmo espaço-tempo em que está transmitindo o Seminário da Ética da psicanálise ([1959-1966] 1988) Lacan está publicando A direção do tratamento e os princípios do seu poder (Écrits, 1966). E talvez não seja por acaso que um ano depois ele estará transmitindo o Seminário 14: a lógica do fantasma (1967).
Assim, Lacan (na sessão de 10 de maio de 1967, p. 6, grifos nossos), afirma:
Se Freud escreveu em algum lugar que a anatomia é o destino, haverá talvez um momento quando se revelará a uma sã percepção exatamente isso que Freud nos descobriu e que também se dirá que – eu não disse exatamente que a política é o Inconsciente, mas, tão simplesmente: o inconsciente é a política. Eu quero dizer que o que liga os homens entre eles, o que os opõe, é precisamente o que nos tem motivado a produzir os ensaios que nos levem ao instante de articular a lógica.
O que Lacan quer nos transmitir? O que Lacan realmente quis dizer? O que a psicanálise tem a ver com Isso? O que liga os indivíduos? O que os opõe? O que seria um ato/desato social? O que leva as pessoas à agressividade, ao enfrentamento, às lutas de todos os tipos, tanto quanto ao amor, à solidariedade e ao sacrifício pelo semelhante? O que Lacan quer dizer com “instante de articular a lógica”? Penso nos grafos e nos objetos topológicos inventados por ele, desde a fita de Möebius até a matemática do nó borromeano, aquele dos três registros – o real, o simbólico, o imaginário.
Caminhando para finalizar
O que vem pela frente até o final do filme é positivo e surpreendente do ponto de vista psicanalítico. Percebe-se como a arte cinematográfica é pródiga em condensar, demonstrar a vivência da alienação e o processo de separação daquela mãe revivendo a experiência singular do próprio inconsciente. A angústia do pai e seus dois filhos pequenos na intensa procura de ajuda junto a todos os que estivessem dispostos a encontrar aquela mãe desaparecida. Todos ficaram muito cansados, procurando por toda parte e não encontrando; momento lógico de vivência da separação, da perda e da possível elaboração do luto.
A partir desse brutal encontro com o real, o pai parece despertar para uma nova realidade. Coloca os filhos numa terapia e, ao mesmo tempo, submete-se a um tratamento psicanalítico. Tudo indica que ele trabalha a perda da esposa, falecida ou não, ajuda os filhos a elaborar a perda da mãe, mesmo se ela estivesse vivendo em algum lugar com outro homem. É possível enxergar nessa trama a construção de um saber sobre o real do ser da pulsão e sobre a experiência com a falta-a-ser humana no campo da castração simbólica. Esse processo de elaboração tornou-os capazes de respeitar a escolha dela e do seu desejo de viver outra vida, porque deveria estar enojada da vida que vinha vivendo. Possivelmente, ela teria pensado que a separação seria boa também para perderem a rotina antiga, a repetição constante de uma vida supostamente alienada. Bom seria também a família inteira perder a mesmice, a fantasia de possibilidade de uma vida perfeita, completa, coisa que nunca existiu. Essa mãe – como objeto da intensa demanda dos filhos –, só poderia sentir-se existindo como viva e morta ao mesmo tempo. Era preciso que todos na família passassem pelo processo da simbolização e da sublimação possível dessa experiência.
A saída encontrada por essa mãe foi libertar-se do marido e dos filhos, ao mesmo tempo, paradoxalmente, libertando-os de si mesma. Ética do desejo do sujeito? Se a moral é dos costumes da família e da sociedade – tal como cuidar exaustivamente dos filhos e trabalhar exaustivamente para cumprir metas –, a ética é o ato de um juízo crítico salvaguardando o desejo face aos regulamentos morais instituídos, tal como o ato ‘perturbador’ de uma mãe em seu ponto de basta? Trata-se de um ato inconsciente ou de um ato bem pensado, consciente, calculado? Difícil saber, a não ser que essa mãe passe pelo divã e pela experiência do tratamento analítico. Mas não há garantias!
Assim, o filme termina apontando um caminho a seguir, uma rota de libertação, de transformação através do simbólico, um caminho calçado para produzir perdas de gozo, um saber o que fazer com os restos, um saber transformar desejos de demanda de amor narcísico em desejo de amar e ser amada pelo Outro constituído e estruturado na vivência da castração simbólica. Dito de outro modo, sair das garras do supereu e cair nos braços do desejo: do real para o simbólico, do mal-estar para a falta-a-ser, e para o savoir y faire, ou seja, saber o que fazer com ISSO.
Caberia ao ser humano morrer a cada dia no simbólico e nascer de novo um pouquinho melhorado – separar de sua alienação, construir uma nova realidade psíquica, pagar um preço menor pela vida, cortar ilusões, domesticar as pulsões, sublimar o sofrimento de viver e morrer cada dia nessa passagem para a realidade simbólica, realidade de linguagem e de discurso. Pois d’Isso se sabe – nascer é caminhar para a morte. Importante é, entre a vida e a morte, cada ser humano construir a sua sabedoria de – o que fazer, para que fazer e como fazer com Isso e o estranho d’Isso. O Isso-Id da natureza, das pulsões, do Real impossível.
Conclusão
Num cálculo conclusivo esboçado para este escrito, o autor pergunta:
É possível aproximar os cenários da clínica, da família, da gestão política de uma nação e o filme Nossa espera, já que todos esses cenários são vividos por indivíduos humanos assujeitados ao próprio inconsciente?
Como sujeitos singulares do Inconsciente, diferentes um do outro no laço social, o fio condutor da ética e da política seria o mesmo em cada cenário particular e coletivo?
Há lugar, ao mesmo tempo, para a moral e a ética em cada um desses cenários?
A moral é dos costumes regulamentados como leis de um supereu no inconsciente e a ética é do desejo do sujeito do Inconsciente?
Qual é a espera do supereu e do desejo de cada indivíduo?
Qual é a nossa espera coletiva, social, institucional?
O que se ganha e o que se perde no individual e no coletivo?
O que é possível de sublimar?
O que é impossível?
• O autor deseja aos leitores deste artigo – Saúde. Amor. Paz.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: mesquioves@gmail.com
Recebido em: 05/05/2019
Aprovado em: 20/05/2019
SOBRE O AUTOR
Messias Eustáquio Chaves
Psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS).
Especialista em Psicologia Clínica – Conselho Regional de Psicologia, 4ª Região-MG, 2002.
Psicanalista, Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Responsável pela transmissão do Seminário Estruturas Clínicas no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, desde 1992.
Coordenador de Grupo de Estudos e Produção no CPMG.
Membro do Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP).
Coeditor da revista Estudos de Psicanálise, publicação semestral do CBP.
Sócio da International Federation of Psychoanaytical Societies (IFPS).