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Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.35 no.2 São Paulo  2017

 

Inclusão e diversidade na imagem feminina de Sofia

 

Inclusion and Diversity in the feminine image of Sophia

 

Inclusión y diversidad en la imagen femenina de Sofía

 

 

Claudia Morelli Gadotti*

 

 


RESUMO

O presente artigo faz uma interpretação da imagem arquetípica de Sofia como um símbolo de inclusão e tolerância. Para o desenvolvimento dessa ideia, baseia-se na reflexão de C. G. Jung em relação ao escrito bíblico Livro de Jó. Sofia é apresentada como uma força arquetípica que se contrapõe à dinâmica de Narciso, tão presente nos dias atuais. O autor reflete sobre as definições do Bem e do Mal, ideias que inevitavelmente emergem quando o tema é inclusão.

Palavras-chave: Sofia, Narciso, Bem, Mal, imagem arquetípica


ABSTRACT

This paper proposes an interpretation of the archetypal image of Sophia as a symbol of inclusion and tolerance. It is based on the understanding of C. G. Jung regarding the Book of Job. Sophia is developed as an archetypal power that is just the opposite of the Narcissus dynamic, so usual in our present days. The author reflects about the definition of good and evil, ideas that inevitably emerge when the topic is related to "the inclusion".

Keywords: Sophia, Narcissus, Good, Evil, archetypal image.


RESUMEN

El presente artículo interpreta la imagen arquetípica de Sofía como un símbolo de inclusión y tolerancia. El desarrollo de la idea se basa en la reflexión de C.G. Jung en relación al escrito bíblico El Libro de Job. Sofía es presentada como una fuerza arquetípica que se contrapone a la dinámica de Narciso, tan presente en los días actuales. El autor reflexiona sobre las definiciones del Bien y del Mal, ideas que inevitablemente emergen cuando el tema es la inclusión.

Palabras clave: Bien, Mal, Sofía, inclusión, imagen arquetipica.


 

 

E o demo - que é só assim o significado dum azougue maligno - tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses, só que tem os depois - e Deus junto. (Riobaldo, Grande Sertão Veredas, p. 11 (2006).

Entre tantos conceitos desenvolvidos por Carl Gustav Jung, os de arquétipo e inconsciente coletivo são, a meu ver, os mais interessantes e contemporâneos. A definição de arquétipo é sempre bastante complexa e, portanto, sujeita a diferentes níveis de compreensão. Mas basicamente sua conceituação parte do pressuposto anunciado por Jung de que há uma outra estrutura psíquica além da consciência, cuja natureza é impessoal e que é igual para todos os indivíduos, o que ele denominou como inconsciente coletivo, de onde os arquétipos se originam. Arquétipos são como depósitos de experiências ancestrais que nos remetem às nossas raízes humanas. São dinâmicas coletivas que oferecem o molde das nossas experiências, dependendo, no entanto, de nossas vivências individuais para se atualizarem. Acredito que em um mundo de intolerância e desrespeito em relação às diferenças, o conceito de arquétipo nos relembra de uma importante realidade, isto é, apesar das multiplicidades de expressões, somos todos iguais na nossa estrutura psíquica básica, e a consciência de todos emerge e se desenvolve a partir do mesmo ponto, mantendo, porém, as particularidades de cada experiência individual. A vivência arquetípica é responsável pelas similaridades entre diferentes civilizações e culturas, entre homens e mulheres. Por esse motivo, em minha opinião, o conceito de arquétipo é uma das ideias mais "democráticas"1 desenvolvidas dentro da psicologia, lembrando-nos de uma realidade de extrema importância em um mundo cada vez mais narcisista e excludente. Em uma bela passagem Jung afirma:

Toda referência ao arquétipo, seja experimentada ou apenas dita, é "perturbadora", isto é, ela atua, pois ela solta em nós uma voz muito mais poderosa do que a nossa. Quem fala através de imagens primordiais, fala como se tivesse mil vozes... (JUNG, 1966, §129).

Jung desenvolveu a noção de diferentes arquétipos que se atualizam no decorrer da vida conforme as experiências do indivíduo e descreveu a relevância de cada um deles no que ele chamou de processo de individuação, o caminho através do qual atingimos a experiência da totalidade. Apesar da crítica de alguns autores, como Hillman (1975), em relação a esse conceito desenvolvimentista, dentro de uma visão junguiana clássica, o que é compreendido como processo de individuação acontece a partir de uma sequência onde a atualização de um arquétipo se dá em consequência e continuidade à experiência de outro. Para Jung, no entanto, a integração da anima é o principal passo dentro de todo o processo, "é a obra-prima da individuação" (JUNG, 2000a, §61).

Também o conceito de anima é bastante complexo e intensamente discutido, apresentando incoerências e polêmicas no decorrer de sua obra. Jung exibe diversas definições e, consequentemente, em alguns momentos sua conceituação, carrega em si algumas ambiguidades, o que, a meu ver, é condizente com a própria essência do arquétipo do feminino. Jung começou a contemplar a ideia de anima quando, após o rompimento com Sigmund Freud em 1913, passou a viver uma vida de reclusão dedicando-se intensamente a suas reflexões e fantasias. Foi o período em que desenvolveu um trabalho de imaginação ativa, mobilizando vários diálogos com seu inconsciente através dessa técnica. O resultado desse material, como todos sabem, tornou-se o que ele chamou Livro Vermelho. Foi em uma dessas atividades quando, questionando-se se o que fazia era arte ou ciência, Jung ouviu vozes de seu interior afirmando que seu trabalho era arte (JUNG, 1965). Ele atribuiu a essas vozes internas um caráter feminino, associando-a, inclusive, a uma antiga paciente que atendera anos antes. A partir deste insight, ele desenvolve a ideia de anima como a contraparte feminina no inconsciente do homem, afirmando que "o feminino pertence ao homem como sua própria feminilidade inconsciente, o que chamei de anima" (JUNG, 1989). Ele descreve a anima como a ponte intermediária e necessária para que o homem entre em contato com sua totalidade psíquica. Já em outro momento ele associa a anima ao Eros materno, (JUNG, 1988a) que tem uma numinosidade na vida consciente do homem, trazendo-lhe sensibilidade ao seu mundo interior, a anima é introjetada como o arquétipo que dá o sentido da vida. A partir dessa reflexão, e baseando-se nas próprias experiências, Jung finalmente sugere que anima é o arquétipo da vida (JUNG, 2000a) é a "alma que é o sopro mágico da vida" (JUNG, 2000a). Hillman (1985) aprofundou-se nessa concepção e desenvolveu a ideia de anima como intercambiável ao conceito de alma e psique. Para Hillman, um arquétipo, por ser um conceito de universalidade e transcender as diferenças biológicas e sociais de homens e mulheres, não pode ser atribuído ou localizado dentro da psique de nenhum dos sexos. Nesse artigo, portanto, entendo a imagem arquetípica do feminino de forma similar ao que Hillman postulou, como "alma, como feminilidade interna onde a vida adquire um significado e o sentido da vida se faz notar" (GADOTTI, 2011, p. 131).

Em outro trabalho (JUNG, 1988b), Jung descreve os quatro estágios do feminino, e os relaciona à escala erótica inicialmente enunciada pelos antigos gnósticos. Eva, o primeiro estágio, refere-se a uma relação puramente instintiva e sexual. Helena, o segundo grau, ainda diz respeito a uma relação carnal, mas já com alguns componentes românticos e estéticos. O terceiro estágio é representado por Maria, como uma personificação da relação celestial. Por último encontramos Sofia, o eterno feminino e a representação da Sapientia alquímica, e, como descrito por Jung, "a espiritualização de Helena e consequentemente o Eros propriamente dito" (JUNG, 1988b). Apesar de Jung descrevê-la como uma sequência, vejo que na prática as vivências dessas imagens arquetípicas acontecem de forma aleatória. Atualizamo-nas de acordo com as experiências que temos no decorrer da vida e essas diferentes imagens vão encontrando similaridades e se interconectando o tempo todo. Por esse motivo, entendo essa escala como uma espiral, na qual uma imagem interfere e existe com a outra, propiciando sempre um maior aprofundamento na psique. Em trabalho anterior (2011), desenvolvi uma interpretação das características de cada uma delas mostrando seus dinamismos e funções na psique e, apesar de todas serem extremamente instigantes, neste momento pretendo me aprofundar na imagem de Sofia que, a meu ver, representa duas qualidades de extrema importância nos dias atuais, nossa inerente capacidade de simbolização e a predisposição humana de inclusão e tolerância a tudo que é diferente daquilo que consideramos conhecido. No entanto, é principalmente essa segunda qualidade de Sofia, a de inclusão e tolerância, que me mobiliza a pensar e escrever sobre o tema.

A figura mítica de Sofia incorpora vários significados que são inicialmente encontrados na alquimia e no Gnosticismo, no livro apócrifo A Sabedoria de Salomão. A primeira característica atribuída a Sofia é a sua divindade. Ela é considerada a rainha celestial. A natureza dessa divindade varia de acordo com as diferentes tradições. Em alguns casos ela é a passiva companheira de Deus, mas em outros ela é a rainha que tem seu próprio poder. Para o gnóstico Simon Magus, Helena representa a encarnação de Sofia na terra, portanto através dela Sofia se torna também mortal. Por outro lado, ela é a companheira de Deus com quem compartilha intimidade e de quem é conselheira. Apesar de Sofia ter reencarnado em uma forma humana, sua natureza nunca deixou de ser divina. Ainda no livro Sabedoria de Salomão, Sofia é considerada a esposa de Deus, e, embora venha depois dele, estava presente mesmo antes da Criação. Para os alquimistas, Sofia representava a sabedoria e, ao mesmo tempo, a guia das almas. O analista junguiano Raff (2003), através da escuta de sonhos de seus pacientes, observa algo semelhante a essa ideia pois conclui que tanto para homens como mulheres, Sofia representa psicologicamente uma forte imagem de totalidade na psique.

Na tradição cristã, Sofia é uma importante protagonista no escrito da Bíblia Hebraica Livro de Jó. De acordo com Jung (2001), toda a transformação do divino só é possível através da interferência de Sofia, da Sabedoria. Ela é quem intermedeia o difícil conflito entre Jeová e Jó, entre a divindade e o humano. Para Jung, Jeová é capaz de refletir e rever suas atitudes através do aconselhamento de Sofia que traz o olhar sobre a natureza humana, sendo inclusive capaz de se identificar com Jó. Ela é a companheira de Deus e espírito como ele, mas, ao mesmo tempo, seu trono encontra-se na terra, portanto é também humana. É considerada o Espírito Santo feminino e, segundo Jung, "é o espírito amigo dos homens" (JUNG, 2001). Ela traz a reflexão na sua capacidade empática, desenvolvendo um pensamento através da vivência, podendo dessa forma, ser considerada uma imagem de Logos ligado à alma. Ela faz a ponte entre o humano (Jó) e o divino (Jeová). Como psicopompo, ao mesmo tempo em que nos humaniza, transporta a psique para uma dimensão arquetípica, divina. Seguindo esse raciocínio, penso que Sofia pode ser considerada o potencial que nos possibilita a simbolização, uma vez que é justamente essa a função do símbolo, intermediar a relação entre o arquétipo e a experiência.

a bipolaridade do símbolo se baseia na sua qualidade de unificador dos pares opostos, em primeiro lugar do consciente e do inconsciente e, por conseqüência, de todas as outras qualidades ligadas a esse par. (JACOBI, 1959 p. 88).

Um símbolo sempre designa algo que, por trás do sentido objetivo e consciente, oculta um sentido invisível e inconsciente. Jacobi, nessa mesma reflexão, cita uma passagem na qual Oskar Doering explica o símbolo "como uma metáfora onde o imperecível e sua manifestação estão fundidos numa unidade de sentido" (JACOBI, 1959), ou poderíamos dizer, onde o arquétipo e sua expressão encontram-se unidos ou onde o divino e o mortal estão juntos. É o símbolo que, ao conter a numinosidade do arquétipo (Jeová), nos possibilita criar imagens que apesar de carregarem em si o fogo do arquétipo, trazem uma expressão de seu significado possível de contato (Jó). Através do símbolo, as dimensões arquetípica e humana da experiência se encontram. Somos humanos pois somos capazes de simbolizar, de criar imagens sobre a realidade vivida. Somos humanos porque psicologizamos, uma vez que a psique é constituída basicamente de imagens. Sob essa perspectiva, entendo que o potencial de Sofia tem, portanto, uma importante função de simbolização e humanização.

Mas é na sua capacidade empática que vejo sua maior colaboração pois Sofia também pode ser compreendida através de sua função conciliatória e relacional. Como rainha celestial e companheira de Deus, Sofia é a mediatriz que intermedeia a relação entre o poderoso divino e o humano. Ela é a conselheira de Deus, intermediando o diálogo entre Jeová e Jó e sua interferência possibilita um olhar para aquele que tem uma natureza distinta de Jeová. O divino distante aproxima-se do humano, através da natureza dupla de Sofia. Através de Sofia, Jeová é capaz de incluir em sua reflexão o sofrimento de Jó, tornando possível uma aproximação entre dois polos distantes. Nesse sentido, entendo que é a força arquetípica de Sofia que nos aproxima do estranho e nos permite tocar o antes intocável. A experiência em Sofia nos tira desse lugar onipotente e narcísico ao qual nos apegamos desesperadamente com medo de confrontar o diferente. Ela é como uma anfitriã que recebe diferentes convidados em sua moradia. A meu ver, a vivência da imagem arquetípica de Sofia é o que nos possibilita incluir o estrangeiro, o incompreensível e o "estranho" não apenas fora de nós, mas também dentro de nossa psique. Através de sua dinâmica conciliatória Sofia nos permite incluir as diversidades. O branco e o negro. O rico e o pobre. O homem e a mulher. O hetero, o homo e o transexual. O cristão e o islâmico. O judeu e o palestino. O bonito e o feio. O eu e o você, e tantas outras múltiplas possibilidades de ser. Sob esta perspectiva, acredito que Sofia representa, portanto, o potencial arquetípico que nos possibilita a inclusão e a tolerância diante do outro diferente de nós.

Infelizmente, num mundo de egos envaidecidos e fóbicos, a dinâmica de Sofia nem sempre está presente. Assim como Narciso na mítica grega, somos tomados pela ilusão de que o mundo é composto por reflexos idênticos à| imagem que olhamos diariamente no espelho das nossas vidas. Nossa vaidade psíquica se torna a prisão na qual nossa alma não consegue transitar entre as diferenças, ficando estagnada na pobreza da singularidade. Alguns são capazes de sair de sua cegueira e olhar para além de sua vaidade, mas, muitas vezes, se deparam com o medo do encontro. O outro muitas vezes mobiliza em nós os outros "eus", que nos é tão difícil confrontar. O diferente nos assusta não apenas porque não sabemos a receita de como lidar com ele e consequentemente controlá-lo, mas também porque de alguma forma nos traz novas possibilidades de vida que negamos existir. Viver em uma sociedade narcisista não significa apenas não olhar para as diferenças, mas significa também matar uma parte de nossa própria essência e de novas possibilidades de sermos e vivermos. Consequentemente, não olhar para fora das barreiras do nosso mundo não nos permite nos alimentar de conteúdos que de alguma forma nossa alma também necessita. No mundo contemporâneo, vivemos numa dinâmica na qual passamos a maior parte do tempo tentando proteger as bolhas narcísicas que habitamos de qualquer invasão daquilo que consideramos estranho a nós. No reino de Narciso o diferente é muitas vezes sinônimo de inimigo.

Narciso e Sofia são, portanto, de naturezas completamente diferentes. Na mítica grega, Narciso não atende aos chamados de Eco, ou nem mesmo a enxerga. Sofia, ao contrário, é sensível ao sofrimento de Jó e interfere a seu favor. Enquanto Narciso paralisa em frente a sua própria imagem e semelhança, Sofia se movimenta através de todas as possibilidades. Ela vê e abre-se aos opostos. Narciso exclui, mas Sofia inclui. Narciso é indiferente ao outro, Sofia mobiliza a empatia.

Mas a reflexão sobre a capacidade de inclusão de Sofia traz na sua esteira algumas questões em relação aos limites dessa tolerância. Descrevendo a potencialidade de Sofia dessa maneira é fácil imaginarmos que ela não é apenas a imagem da inclusão, mas pode tornar-se também um símbolo de abuso e anarquia, onde tudo e todos, sem nenhum impedimento poderão ser convidados a participar da comunhão dos homens de bem. Dentro dessa perspectiva, então, seríamos inclusive tolerantes em relação a comportamentos que excluem e discriminam, portanto Sofia representaria um imenso paradoxo. Mas será que Sofia representa a benevolência cega e irrestrita? Será que se aceitarmos Sofia em nossa existência, teremos de incluir todas as possibilidades de expressão e vida, sejam elas construtivas ou não? Devemos tolerar a intolerância alheia e incluir aqueles que nos excluem? Devemos aceitar a submissão e crueldade? Devemos incluir os fascistas, torturadores e assassinos? O que chamamos de Mal deve ser incluído na mesma proporção daquilo que chamamos de Bem? Qual o nível de elasticidade que podemos ter em relação aos aspectos sombrios, pessoais e coletivos? A sombra na sua faceta destrutiva deverá ser incluída assim como na sua dimensão criativa? Essas são questões complexas que não somos capazes de responder de forma binária. Não existe o sim e o não simplesmente, embora nosso maior anseio seja o de finalmente relaxarmos na segurança da certeza. De acordo com Rowland (2017), a tendência humana é de buscar no dualismo respostas objetivas aos mistérios do Cosmos que nos afligem. Mas como sabemos nem sempre isso é possível. Rowland nos lembra que mesmo Jung que estruturou sua psicologia a partir da teoria dos opostos acabou movimentando-se para uma abordagem holística em relação a alguns temas, tais como alquimia e sincronicidade. No que se refere à discussão do Bem e do Mal, não é diferente. Aqui o labirinto se torna realmente um emaranhado de caminhos sem fim.

Mas independentemente disso, acredito que, como todo movimento, a elasticidade de Sofia não pode ser infinita. Há de haver um momento onde a tensão rompe essa elasticidade, isto é, há de haver um limite para essa empatia e tolerância. O imenso desafio que se apresenta é como estabelecer esses limites sem perder o próprio sentido da imagem, que é a inclusão e tolerância ao diferente.

Cada novo conceito sobre o qual nos debruçamos e que desenvolvemos requer de nós uma atitude ética e de comprometimento. Não somos isentos dessa responsabilidade em relação à discussão sobre Sofia. A questão ética que se levanta a partir do pressuposto de Sofia como aquela que inclui todas as diferenças, amplia-se para uma antiga reflexão que muito já interessou Jung, e que se refere à natureza do Mal. Como entender a dinâmica daquilo que denominamos de Mal? Para responder a essa questão, precisamos inicialmente discriminar o que estamos chamando de Bem e de Mal. Tarefa árdua e talvez digna de Sísifo, pois estaremos provavelmente chegando sempre ao mesmo ponto uma vez que por serem categorias definidas culturalmente apresentam diferentes e contraditórias definições. Trata-se de uma extensa reflexão que nos encaminha àquele labirinto de possibilidades e perguntas, e que muito provavelmente não nos levará a um consenso que nos dê finalmente o alívio da convicção. Não é obviamente a proposta desse artigo, pois seria ingênuo tentar desmembrar essa questão em tão poucas palavras. Proponho aqui apenas uma reflexão, já que Sofia como a imagem da inclusão nos leva necessariamente a esse impasse.

Jung também não considerou discutir essa relação entre o bem e o mal como tarefa da psicologia, mas sim da filosofia. Apesar disso reforça que para a psicologia "trata-se de questões práticas" (JUNG, 2000b). Existem atitudes que para alguns são positivas e outras não e por isso não nos cabe julgar. Ele defende a liberdade de escolhas que aos olhos do coletivo podem ser vistas como nocivas. Apesar de toda essa complexidade e mesmo relativizando os conceitos de certo e errado, colocando-os a serviço do processo de individuação, Jung é mais categórico quanto a questão do Mal associado a crueldade e forças destruidoras.

o Mal é uma realidade tremenda! E assim o é na vida de cada indivíduo. Se considerarmos o princípio do Mal como realmente existindo, também podemos chamá-lo de "diabo". Pessoalmente acho difícil aceitar como válida a idéia de privatio boni (o mal como sendo apenas a privação do bem). (JUNG, 2000b, par. 879)

A idéia do Summum Bonum que está em Taciano - o Bem vem de Deus e o Mal vem do homem (JUNG, 1988a) ou como em Basílio, o Mal como mutilação da alma, são desdobramentos da ideia de que seria inconcebível que Deus, o Bem supremo, tenha criado o Mal. Para alguns, Deus criou o Bem e o menos Bem. Em Santo Agostinho, porém, já se pode vislumbrar uma consciência da totalidade que esses pares compõem. Para ele "todas as naturezas são boas, mas não suficientemente boas, para que sua maldade também não seja patente" (JUNG, 1988a). De acordo com Jung, existem coisas que são más e a natureza humana é capaz de criar maldades sem limites. O Bem e o Mal existem desde sempre como forma autônoma, não derivam um do outro, mas existem como pares opostos e portanto a psicologia deve insistir na realidade do Mal: "no campo de nossas experiências o bem e o mal são pares contrários, um não existindo sem o outro" (Jung, 1988a). Dentro dessa perspectiva, a concepção cristã da imago - Dei - é insuficiente, pois exclui o lado escuro e humano de Deus. Cristo como um símbolo do Self deve trazer em sua essência os opostos, Bem e Mal. Uma vez que Deus é bondade, em sua totalidade é também expressão de forças malignas, portanto Jung inclui a sombra e proclama a existência do Mal. Mas, apesar de insistir no fato de que a psicologia deve incluir a realidade do Mal, Jung obviamente também não nos dá o mapa de como reconhecê-lo e nomeá-lo. Continuamos perdidos no labirinto.

Arendt (1965), em seu livro A Banalidade do Mal, faz também uma profunda discussão sobre a questão ética do Mal. Arendt chega à conclusão que o mal pode ser banalizado quando em serviço a ideologias e radicalismos. Na paixão por um ideal, ou mesmo na patologia, a consciência do Mal fica contaminada pela intensidade do pathos, cegando aquele que é pego por seu fogo. Na compaixão, facilmente nos identificamos com o outro e deixamos no esquecimento a consciência crítica e ética. Na compaixão somos capazes de incluir e aceitar as facetas criativas, mas também destrutivas do objeto da nossa paixão. Estar com a paixão nos deixa conivente com o objeto de nosso "apaixonamento", seja qual for sua qualidade.

Podemos intuir portanto, que, independentemente da definição de seu conceito, o Mal compõe uma faceta de Sofia. Assim como todo arquétipo carrega em si a luz e a sombra, a imagem arquetípica de Sofia também apresenta essa bipolaridade. A inclusão do Mal, e consequentemente a sua banalização, pertence à esfera sombria de Sofia, que pode transformar a tolerância em conivência e a inclusão em anarquia. Limites tênues e perigosos, mas inevitáveis.

O importante, no entanto, é ressaltar que, perdidos nesse labirinto de reflexões ambivalentes e paradoxais, corremos o risco de não entrar em contato com a importante elaboração de Sofia no mundo contemporâneo. O terreno escorregadio dessa conceituação nos confunde e nos distrai da verdadeira internalização da imagem e atuação de sua dinâmica no nosso cotidiano. Mas, apesar dessa complexidade, vejo que o verdadeiro Minotauro desse labirinto de questionamentos e do qual nos tornamos presas fáceis é o medo. Se por um lado banalizamos as crueldades e injustiças, incorporando-as ao nosso cotidiano, por outro, a exclusão e a intolerância apropriam-se do discurso dos perigos do Mal transformando-o em escudo para continuar descartando tudo o que ameaça não apenas a integridade de cada um, mas também a vaidade e ganância. A fobia do Mal fica a serviço de Narciso e de diferentes interesses, disseminando a necessidade de nos protegermos na assepsia das nossas bolhas preconceituosas. Quando não sabemos como lidar com o diferente, o medo toma a cena. O Mal fica difuso e espalha-se por todos os lados transfigurando-se através de diferentes máscaras. Não sabemos reconhecê-lo. Ele está projetado em tudo que está fora de nós e que nos é estranho. Talvez tomados por um frenesi fóbico, somos iludidos pelos delírios dessa projeção, já não sabendo o que é real e o que é fantasia. A projeção do Mal no mundo que nos cerca é paradoxalmente uma proteção para que não entremos em contato com o que não sabemos ainda lidar. Enquanto isso, o chamado da inclusão se faz todos os dias diante das câmeras de televisão e páginas da internet. Está na criança abandonada das ruas, no homossexual agredido, no negro desrespeitado, nos muçulmanos banidos e refugiados. Mas acredito que a faceta criativa de Sofia também se multiplica por todos os lados manifestando-se das mais diferentes formas. A arte, a psicologia e as ciências humanas em geral vivem uma familiaridade com Sofia, pois sem seu olhar empático, não são capazes de existir. Quero crer que a imperiosa força arquetípica da inclusão trazida pela imagem de Sofia deve ser capaz de combater o monstro da fobia que se confunde com a vaidade de Narciso. Sofia é uma aliada do "bem", mas não do certo e da perfeição; esses são aliados de Narciso. Assim como Jung viu em Sofia a possibilidade de Jeová de se tornar um ser mais íntegro através de sua mediação, também a vejo como uma parceira no processo de cada um de nós de nos tornarmos mais tolerantes e humanos. Sofia nos compromete com o outro fora e dentro de nós. Ao confrontarmos e introjetarmos nossa sombra pessoal projetada no inimigo, somos capazes de aceitá-la como parte de nós. O outro deixa de ser alguém a quem temer e passa ser alguém com quem compartilhar. Consequentemente, ao trabalharmos nossa sombra pessoal, contribuímos para que a sombra coletiva seja também elaborada, pois liberamos a carga coletiva que nela se encontra. Sofia é nossa companheira nessa trajetória de inclusão de nossa sombra projetado no outro, transformado em vítima de nossa exclusão e intolerância.

 

Referências

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Recebido em: 15/08/2017
Revisão: 13/11/2017

 

 

* Psicóloga clínica, mestre pela Pacifica Graduate Institute, analista membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica - SBPA. E-mail: <clamgadotti@terra.com.br>
1 Não utilizo a palavra democrática no seu sentido político, mas sim como alegoria.

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