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Junguiana
versão On-line ISSN 2595-1297
Junguiana vol.39 no.2 São Paulo jul./dez. 2021
A importante contribuição da obra de Nise da Silveira para a Psicologia Analítica de Jung
Vera Macedo
Diretora Técnica da Casa das Palmeiras - Nise da Silveira. Analista didata do (IJRJ-AJB e IAAP - Zurich) - Psicóloga Clínica (UFRJ). E-mail: veramacedo@terra.com.br)
Em outubro do ano de 1932, aos 27 anos, Nise da Silveira foi residir no Hospício de Alienados, na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, para dar início ao seu curso de médica residente. Nessa mesma época, iniciou seu trabalho como médica auxiliar, no Pavilhão da Clínica de Neurologia, onde pretendia especializar-se. Porém, o professor titular em neurologia, Antônio Austregésilo, incentivou-a e orientou-a a seguir o campo da psiquiatria. Nise decidiu acatar as orientações de seu professor, mudando seus planos de especializar-se em neurologia e passou a estudar com empenho a literatura dos compêndios de psiquiatria.
Foi nesse mesmo espaço, no Hospício Nacional de Alienados, que ela deu início à sua residência em psiquiatria e onde também passou a conviver com os doentes psiquiátricos que lá estavam internados, para tratamento de seus distúrbios psíquicos. A observação empírica dos doentes no seu espaço cotidiano e os aprofundamentos nos estudos de psiquiatria deram a Nise, em pouco tempo, um olhar diferenciado sobre algo que não correspondia com algumas das premissas psiquiátricas que lia nos livros, conforme ela mesmo sublinhou: "Na época eu me atirei ferozmente a estudar para concurso e vi coisas inteiramente diferentes. Via que o louco extrapolava muito o livro"1.
Ao participar das primeiras aulas de psiquiatria, Nise logo se indignou com a forma antiética com a qual alguns dos professores de psiquiatria, em suas aulas, usavam e exibiam os doentes para serem observados em suas enfermidades e durante as manifestações de seus sintomas. Essa atitude de expor e manipular o doente, para uma plateia de estudantes, foi considerada por Nise como muito humilhante, pois deixava-se de lado o sofrimento do ser humano na sua totalidade, em prol de uma apresentação afrontosa e desumana. Dessa convivência com os ditos alienados, emergiu uma grande afetividade entre Nise e esses seres sofridos e marginalizados. Com determinação, ela decidiu não mais participar dessas aulas, pois percebeu que aprendia muito mais com a convivência diária junto aos internados do que com certas aulas ou mesmo com os volumosos compêndios psiquiátricos, como ela mesma assinalou: "Sentia que o doente não podia ser aquilo que estava sendo descrito ou mesmo mostrado"1.
No ano de 1933, Nise foi aprovada no concurso público da Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental com total apoio do seu professor Austregésilo que, naquela época, chefiava o setor de neurologia e que muito a motivou, tomando a iniciativa de pagar a inscrição para que Nise participasse do concurso de psiquiatria. Logo em seguida, ao ser aprovada, ela tomou posse no serviço público como médica psiquiatra.
No ano de 1936, Nise foi presa pelo Estado Novo, na ditadura do governo do presidente Getúlio Vargas, acusada de ser militante do Partido Comunista, o que era uma inverdade. Recebeu ordem de prisão no mesmo local em que fazia sua residência. Tempos depois, veio a saber que havia sido denunciada por uma enfermeira do hospital em que trabalhava, que comunicou ao diretor Valdomiro Pires que ela possuía, entre seus livros de psiquiatria, outros livros de autores "comunistas". Imediatamente, foi chamada à sala da diretoria, onde se deparou com o diretor do hospital, seu colega de medicina, junto com um grupo de policiais. Desnorteada com tal cenário de horror, Nise comentou, posteriormente que: "Não imaginava encontrar ao lado do diretor a polícia de Getúlio Vargas que veio para prender-me e ouvir perplexa: - É esta!"2.
Nise permaneceu confinada, no período de 26 de março de 1936 a 21 de junho de 1937, por ser considerada "perigosa comunista". Encarcerada na famosa sala 4, testemunhou e cuidou, como médica, de várias colegas de cela que foram terrivelmente torturadas de diversas formas, por exemplo, com choques elétricos, queimaduras de cigarros nas partes íntimas do corpo, e até mesmo mortas.
No entanto, paradoxalmente, a casa de detenção foi também para Nise, um espaço que lhe possibilitou profundas amizades, como as de Graciliano Ramos, Maria Werneck, Eneida, Beatriz Bandeira e Elisa Berger, entre outros amigos que lhe permaneceram fiéis até o final de sua vida.
Libertada em junho de 1937 da condição de presa política por não ter sido encontrada nenhuma prova de que fosse ativista da Intentona Comunista, Nise recordava:
Não descobriram nenhuma relação minha com o movimento de 35, então não me deram importância. Mas davam muita importância à coisa ideológica, tanto que eu saí, mas com a cláusula: Pertence ao ciclo de ideias que a incompatibiliza com o serviço público. Eu passei oito anos livre, mas desempregada, comendo o pão que o diabo amassou3.
Assim, Nise permaneceu num isolamento durante oito anos, desde seu afastamento do serviço público, tendo sofrido a rejeição e indiferença de pessoas conhecidas que fingiam não a conhecer. Com o surgimento da informação de que estaria novamente, ameaçada de uma nova prisão, Nise passou a viver em clandestinidade, refugiando-se em diversas cidades do Brasil.
Anistiada em 17 de abril de 1944, foi reintegrada ao serviço público, sendo designada para trabalhar no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, bairro da periferia do Rio de Janeiro. Ao lembrar desses tempos obscuros e sofridos, Nise comentava:
Saindo da prisão, após sete anos, fui reintegrada ao serviço público e reassumi o posto de psiquiatria... Quando eu voltei ao hospital, nenhum dos meus colegas - aqueles que me conheciam - comemorou ou me parabenizou... Ninguém me disse nada, mal falaram comigo. Alguns nem me cumprimentaram. Era como se nada tivesse acontecido4.
Nessa época, o emprego de novos métodos de tratamentos, considerados como revolucionários e tecnológicos pela psiquiatria convencional, foi bastante valorizado e amplamente aplicado, por exemplo, as intervenções cirurgias cerebrais de lobotomias, os comas insulínicos (Sakel), as convulsões terapia de cardiazol (von Meduna) e as séries de eletroconvulsoterapia (eletrochoque- ECT) proposto por Ugo Cerletti e Bini. Mas, essas novas técnicas de tratamentos psiquiátricos foram totalmente descartadas e recusadas por Nise, por considerá-las como práticas "violentas e de torturas". Sublinhou Nise: "O eletrochoque é uma espécie de tortura. Pessoas tem morrido deste tratamento. Alguns aguentam, outras não. Após meu retorno ao hospital, não aplicá-lo foi minha primeira rebeldia"5.
Assim, a "psiquiatra rebelde", como foi nomeada, quando lhe foi solicitado que fizesse uso desses procedimentos desumanos, disse "Não!", rejeitando com discernimento e perseverança tais métodos agressivos, Nise acentuou: "Após minha reintegração ao serviço público, me engajei em uma nova luta: contra a psiquiatria convencional. Esta é a briga mais importante de minha vida!"6.
Sem demora, ela comunicou ao diretor do hospital, Dr. Paulo Elejalde, a sua decisão por não fazer uso dessas técnicas invasivas. Ao ouvi-la, o diretor disse-lhe que, diante de tal cenário, só lhe restava a Seção de Terapêutica Ocupacional, um pequeno espaço do hospital, considerado pouco "nobre" ou "de segunda categoria", onde os médicos se recusavam a trabalhar. Com determinação, ela aceitou trabalhar nessa seção, mas logo avisou ao diretor do hospital que mudaria todo o serviço que ali estava sendo realizado. Comentou Nise:
Minha ida para a terapêutica ocupacional foi uma virada pelo avesso. Antes, os doentes do hospital eram usados para servir aos funcionários e a outros internos, costurar lençóis, faxinar enfermarias, limpar vasos sanitários, varrer e encerar chão, carregar roupas sujas... Ao chegar, mudei tudo: ali onde faziam trabalhos corriqueiros, os internos passaram a desenvolver trabalhos criativos...7.
Em setembro de 1946, Nise, com sua visão vanguardista da psiquiatria e em conjunto com as suas pesquisas arrojadas, consumou a tarefa de transformar o setor de Terapêutica Ocupacional, conforme havia prometido ao diretor do hospital. Fundou a nova Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR) do Centro Psiquiátrico do Pedro II, após construir uma sólida base teórica a partir de seus múltiplos estudos nas diversas áreas afins de conhecimentos: filosofia, psicologia, história da arte, psiquiatria, literatura, antropologia e, particularmente, a partir de suas observações empíricas dos doentes internados. Nise lembrou: "Depois da prisão, quando voltei a trabalhar no hospital psiquiátrico, teve início uma outra fase de minha vida - uma bela etapa do meu trabalho. É preciso ter tutano, para se fazerem certas coisas"8.
Nesse mesmo ano, muito antes do movimento antipsiquiatria, Nise deu início a uma verdadeira reforma psiquiátrica transformando o espaço de confinamento hospitalar num ambiente salutar com atmosfera agradável, implementando melhores condições para que os doentes criassem livremente, sem interferências, as suas produções. Para Nise, era fundamental que o ambiente fosse acolhedor, limpo e terapêutico. Transformou também, a forma como os doentes eram manipulados pela instituição nas tarefas de limpezas e serviços, passando a utilizar essas atividades como legítimo método de tratamento psiquiátrico na área de Terapia Ocupacional, que faz uso de diversas atividades expressivas não verbais.
Posteriormente, Nise denominou esse método de "Emoção de Lidar", ao criar diversos ateliês, entre os quais os de pintura e desenho, modelagem, xilogravura, colagem e costura, entre outros. Ao longo do tempo, cerca de 17 oficinas foram organizadas. Outras atividades recreativas de grupo foram também desenvolvidas com objetivos de reinserção social, assim como a organização dos primeiros cursos de Terapêutica Ocupacional para capacitação de monitores e de colaboradores. As diversas oficinas foram atraindo, cada vez mais, os internados que permaneciam abandonados e apáticos nos corredores e pátios do hospital. Mesmo assim, Nise foi muito estigmatizada e lidava com forte resistência da maioria de seus colegas psiquiatras que consideravam o método por ela empregado como subalterno e não científico - "uma brincadeirinha!". A esse respeito, em 1948, fez um registro, em um relatório interno hospitalar, denunciando o descrédito dos diretores e colegas em relação ao seu trabalho:
A Seção de Terapêutica Ocupacional ainda não logrou funcionar como uma unidade estreitamente articulada às demais unidades que fazem parte do plano geral de tratamento dos nossos doentes. Isso decorre do fato de a maioria não considerar as ocupações como agentes terapêuticos que necessitam ser dosados e individualmente receitados, porém como alguma coisa acessória e secundária, uma distração, um divertimento9.
Intuitivamente, Nise passou a arquivar todo o material expressivo produzido, espontaneamente pelos enfermos. Logo criou um grande acervo com as obras dos doentes diagnosticados com esquizofrenia. Muito criativa, produziu grandes álbuns com as séries de composições dos doentes, que exprimiam suas emoções, angústias, seus dramas pessoais e míticos que emergiram das camadas mais arcaicas da psique. Partindo do campo empírico, ela observou e compreendeu que
a principal função das atividades na Terapêutica Ocupacional seria criar oportunidade para que as imagens do inconsciente e seus concomitantes motores encontrassem formas de expressão. Numa segunda etapa viriam as preocupações com a ressocialização10.
Em 22 de dezembro de 1946, Nise organizou a primeira exposição com as imagens do inconsciente, produzidas pelos internados, nos ateliês de pintura, desenho e modelagem. Essa exibição mobilizou o interesse de diversos críticos de arte e gerou debates sobre os conceitos e/ou preconceitos enraizados na psiquiatria tradicional e comentários idôneos do grande público e da impressa, que lançou questões significativas sobre o valor artístico dessas produções plásticas.
Entretanto, os seus colegas psiquiatras prosseguiam recusando e não reconhecendo o valor significativo-expressivo dessas imagens, mantendo-se inflexíveis e repetindo os "velhos chavões" de que eram obras que refletiam a "arte psicótica ou psicopatológica", identificando nessas imagens exclusivamente os sintomas de uma mente fragmentada.
Em 20 de maio de 1952, criou o Museu de Imagens do Inconsciente, após reunir um conjunto de obras produzidas nos ateliês. Esse patrimônio público, conta hoje com aproximadamente 350 mil trabalhos. Em 23 de dezembro de 1956, Nise realizou seu grande sonho ao fundar o espaço Casa das Palmeiras - Nise da Silveira, considerado como "território livre" e humanizado, com a finalidade de reabilitar os doentes com distúrbios psíquicos e evitar as reinternações recorrentes. Nesse espaço, foi também desenvolvido o Núcleo de Pesquisa, objetivando o aprofundamento dos estudos das séries de imagens do inconsciente, produzidas livremente, pelos clientes da Casa. Esses estudos e pesquisa são fundamentados na psicologia analítica de Carl Gustav Jung e seguem a metodologia do Archiv for Research in Archetypal Symbolism (ARAS), o mesmo sistema de catalogação de imagens adotado pelo Instituto C. G. Jung de Zurique.
Certo dia, a competente psiquiatra, tendo como base as suas observações empíricas e seus estudos das séries das imagens, produzidas nos ateliês, constatou, de forma surpreendente, sequências de figuras circulares que pareciam ser mandalas, que emergiram, de forma natural, nas produções dos doentes. Inicialmente, ela permaneceu silenciosa, analisando esse símbolo hinduísta da integração e da harmonia e chegou até mesmo a duvidar, "por preconceito" da sua descoberta insólita. Considerou Nise:
Como isso é possível? Como seres cindidos psicologicamente podem desenhar, pintar tão bem um dos principais símbolos da unidade psíquica? De onde internos empobrecidos e incultos tiraram, tal imagem, se nunca a estudaram? Como podem estar surgindo figuras sânscritas orientais nos trópicos do ocidente?11.
Diante de tantos questionamentos, a dama do inconsciente mergulhou nos estudos sobre o tema, na busca de conhecimentos desse símbolo religioso oriental. E foi nos livros de psicologia analítica, do mestre Jung, que ela encontrou os fundamentos para seu método de investigação como ela mesma assinalou:
Pelos anos 40, pela primeira vez tive contato com os textos de Carl Gustav Jung, pois lia tudo o que me aparecia pela frente - não só obras relacionadas à área médica. Então, constatei surpresa que aquele psiquiatra suíço tinha escrito sobre mandalas... Foi assim que começou minha identificação com o mestre12.
Muito impressionada com as imagens circulares que se revelaram, ela decidiu mostrá-las, com certa reserva, para alguns colegas mais próximos, que trabalhavam com ela, mas, lamentavelmente, eles também, a subestimaram como ela mesma assinalou:
Então decidi mostrar os mandalas para amigos e colaboradores meus, comentando minhas conclusões e perguntando o que achavam. As pessoas - mesmo as mais próximas, que estudavam comigo - não enxergavam mandalas nenhuma nos desenhos. Pelo contrário, reagiam com ceticismo, dizendo: O que é isso Nise? Mandalas no Engenho de Dentro?... Estou vendo só desenhos, rabiscos, garatujas. Como é que doentes mentais pobres, num hospício da periferia do Rio de Janeiro, vão reproduzir figuras sânscritas?13.
Desapontada e frustrada com o descrédito e com os comentários negativos de seus críticos, a "arqueóloga do inconsciente", não esmoreceu! Arquitetou secretamente, seu plano de ação e pensou:
Não há de ser nada. Não me dou por vencida! Vou enviar fotografias com as imagens dos mandalas do Engenho de Dentro para Carl Gustav Jung. Arranjo o endereço e mando pelo correio. Então, sem que ninguém saiba, vou aguardar a resposta - se houver resposta... E fiz exatamente isso14.
Assim, em 12 de novembro de 1954, Nise concretizou um dos "atos mais ousados" de sua vida, como foi considerado por ela, ao enviar uma carta, escrita em francês, ao caríssimo mestre Jung que dizia:
Professor C. G. Jung
Mestre,
No centro psiquiátrico do Rio de janeiro existe, ao lado de outros setores de terapia ocupacional, um ateliê onde os doentes desenham e pintam com mais completa liberdade. Nenhuma sugestão lhes é dada, nenhum modelo é proposto. E eis que surgem imagens primordiais em suas pinturas, apresentando uma demonstração empírica e convincente da psicologia analítica.
Como minhas mais respeitosas homenagens, eu vos envio algumas fotografias de pinturas que me parecem mandalas (ou formas aproximadas). Elas foram pintadas espontaneamente pelos esquizofrênicos. Está descartada qualquer possibilidade de influência cultural.
Eu mal poderia expressar, Mestre, o quanto o estudo de seus livros tem trazido luz ao meu trabalho como psiquiatra, além de muito me ajudar pessoalmente.
Creia-me sua mais humilde discípula.
Nise da Silveira15.
Nise, num estado de grande ansiedade, com a expectativa da resposta de sua carta, abria diariamente a caixa de correspondências, sonhando encontrar a carta resposta do mestre Jung. Ao mesmo tempo refletia: "Será que Jung vai se dar o trabalho de ler? Será que terei resposta?". A resposta de Jung não demorou. Passado um mês, em de 15 de dezembro de 1957, Nise recebeu a resposta tão aguardada, escrita em nome de Jung por sua colaboradora e secretária Aniela Jaffé. Nise relembrava com entusiasmo o momento em que recebeu a correspondência:
Quando vi o envelope com selo europeu, não pude acreditar... sim era verdade. Eu estava com uma carta enviada de Zurique nas mãos. Remetente: Aniela Jaffé. Respirei fundo e abri. Já nas primeiras linhas, as palavras me causaram grande euforia. No papel, li quase incrédula:16
Senhor
O Professor Jung pede-me para agradecer-lhe pelo envio das interessantes fotografias de mandalas desenhadas por esquizofrênicos.
O Professor Jung faz diversas perguntas, que reproduzo a seguir: o que significam esses desenhos para os doentes, do ponto de vista de seus sentimentos? O que eles quiseram exprimir por meio dessas mandalas? Será que esses desenhos tiveram alguma influência sobre eles?
Ele ainda observou que os desenhos têm uma regularidade notável, rara na produção dos esquizofrênicos, o que demonstra forte tendência do inconsciente para formar uma compensação à situação de caos do consciente. Ele também notou que o número 4 (ou 8 ou 32 etc.) prevalece.
Eu por minha parte, acho que as cores dão ainda mais força expressiva aos desenhos. Eu agradeceria muito se nós pudéssemos guardar as fotos, caso não sejam necessárias. Talvez, o Senhor possa responder às perguntas do Prof. Jung, o que lhe será de grande interesse.
Queira receber a expressão de nossa alta consideração.
Ass: A. Jaffé.
P.S: Para a compreensão psicológica, seria também interessante saber alguns dados biográficos dos pintores17.
Nise da Silveira divertia-se muito ao comentar que Jung, inicialmente, havia a tratado como "Senhor" e extremamente emocionada, a dama das imagens, complementava: "Pronto! Estava confirmado: as imagens pintadas em Engenho de Dentro eram realmente mandalas... Eu me via diante de uma abertura nova para a compreensão da esquizofrenia"18.
Um novo cenário abriu-se para Nise a partir da concordância de Jung, ao confirmar que as pinturas dos esquizofrênicos brasileiros eram realmente mandalas! Nise sentiu-se muito confiante e reconhecida com a corroboração do mais importante psiquiatra suíço: Carl G. Jung. Em estado de grande entusiasmo, ela mostrava a carta aos seus familiares, amigos e aos profissionais das áreas da psiquiatria e psicologia e aos colaboradores.
Logo a notícia difundiu-se pelo hospital e pelos círculos médicos e intelectuais. Agora, mais ainda motivada, a psiquiatra rebelde, diante de novo trajeto para a compreensão do distúrbio esquizofrênico, continuou com seu trabalho para consolidar uma psiquiatria mais humanizada. Tratou dos doentes com respeito, dignidade e afetividade, observando empiricamente todo o material das produções psíquicas por eles criados. Partindo de suas observações, encontrou pistas de como os doentes poderiam ser tratados, ouvidos nos conteúdos de seus delírios, de suas alucinações, de seus devaneios e fantasias. Percebeu-os não só do pondo de vista da comunicação verbal, mas também, corporalmente, em seus gestos típicos, nos seus movimentos corporais simbólicos e, ao verificar esse conjunto de fenômenos, descobriu nas séries de imagens produzidas pelos doentes evidências de confirmação das teorias que leu nos livros de Jung.
Nise continuou mantendo uma correspondência com Jung, enviando novas fotos de imagens de pinturas e esculturas criadas pelos doentes além de outras informações. Em sintonia com a psicologia junguiana, ela foi verificando, progressivamente, a imensa riqueza de novos temas arquetípicos que emergiam do inconsciente coletivo, como o fallus do sol, a anima-animus, a grande mãe, o arquétipo do pai e muitas outras personificações míticas e dos contos de fada relacionadas com as premissas da psicologia analítica.
Em 18 de janeiro de 1955, Jung entusiasmado com o amplo material fotográfico dos doentes brasileiros, que Nise lhe enviava, solicitou autorização para doar todas as imagens, fontes para novas pesquisas, ao acervo do Instituto C. G. Jung de Zurique, onde permanecem até os dias atuais. Em 8 de agosto de 1956, Nise, foi surpreendida ao receber o convite de Jung para participar dos cursos do Instituto C. G. Jung de Zurique e do II Congresso Internacional de Psiquiatria que se realizaria no ano de 1957, em Zurique. Assim, em 3 de outubro de 1956, Jung enviou uma carta de apresentação de Nise, ao Instituto junguiano de Zurique, assinada por ele, que declarava:
Senhores!
O signatário desta convida a doutora Nise da Silveira a fazer parte, no semestre do verão de 1957, do Instituto C. G. Jung de Zurique. Os cursos, os seminários e o contato com meus colaboradores serão de grande importância para a preparação da exposição de arte psicopatológica, que deverá ser organizada por ocasião do Congresso Internacional de Psiquiatria, que se realizará em Zurique, em 1957. Eu ficaria contente se o contato entre os psiquiatras do Brasil e da Suíça se aprofundasse. Certamente, esse encontro será importante para o futuro tanto da psicologia quanto da psiquiatria.
Ass: C.G.Jung 19.
Nise foi aprovada no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), recebendo uma bolsa de estudos com validade de um ano. Viajou em 18 de abril de 1957, para Zurique, na busca do aprofundamento de seus conhecimentos nos cursos de psicologia analítica, além do reconhecimento científico de seu trabalho. Participou dos diversos cursos do Instituto de Zurique, mas não fez formação, "Não gosto de títulos!", afirmava ela. Por indicação de Jung, fez análise pessoal com Marie Louise von Franz, com quem, até o final de sua vida, manteve uma correspondência cordial. Durante sua permanência em Zurique, no dia 14 de junho de 1957, foi recebida, por Jung, em sua bela residência em Küsnacht, onde conversam, afetuosamente, a respeito de suas ideias e trabalhos. Registrou este encontro significativo logo após voltar para o Brasil:
Chego às 11:15h em ponto. Leio a inscrição no alto da porta da casa: "Invocado ou não, Deus está presente", e entro cheia de emoção. A empregada conduz-me a uma pequena sala de espera, onde passo momentos de grande ansiedade...
A porta se abre eis-me na presença do professor Jung. Ele me conduz a sua biblioteca... me diz que as fotografias que lhe mandei do Brasil lhe interessaram muito... sento-me defronte dele... não contenho as lágrimas. Choro dizendo: "Que alegria!" Ele ri brandamente e diz: "Que alegria! Mas que fantasias você fez de mim?" - Não é uma pequena emoção estar aqui, diante do senhor. Pergunta-me como encontrei seus livros. Respondo-lhe que seus livros são facilmente encontrados nas livrarias do Rio e que, entre os psiquiatras brasileiros, alguns estão interessados pela psicologia junguiana. Ele ficou surpreendido. Digo-lhe que me aproximei de sua psicologia porque encontrei nela esclarecimento para problemas pessoais e, de outra parte, porque via na produção plástica dos meus doentes a confirmação daquilo que lia em seus livros...20.
Continuando a conversa, Nise comentou que se sentia dividida em opostos, e Jung considerou que, quando as mulheres têm a tarefa de dedicar-se mais aos estudos, mobilizam forças intensas de seu animus que está em oposição à natureza feminina. E assegurou-lhe ainda que podia verificar o quanto "meu animus é violento - como um galo de briga". Muito sensibilizada, narrou um sonho que teve dias antes de sua vista. Sonhou que via Jung próximo a uma pequena mesa coberta por uma toalha cheia de estrelas que formavam uma espécie de uma "constelação". A interpretação realizada por Jung, apontou a relação estreita das estrelas com o psiquismo, a astrologia, o horóscopo... e afirmou que: "Cada indivíduo é como uma estrela, como uma mônada... como dizia Leibnitz"21.
Além disso, Jung sublinhou que os "acontecimentos entre essas mônadas operam por sincronicidade"22. Após discorrerem sobre seus trabalhos e seus estudos, ele orientou-a a que estudasse a literatura da mitologia. Finalmente, Nise sentindo-se muito acolhida, pediu a Jung que autografasse o exemplar do livro "Resposta a Jó", que muito a mobilizou e, como um verdadeiro oráculo respondeu-lhe algumas perguntas sobre suas questões pessoais. Ao se despedirem, de forma espontânea, Jung prometeu-lhe que tornaria a vê-la novamente, antes do seu retorno ao Brasil.
No dia 2 de setembro de 1957, aconteceu o evento que foi o ponto alto da viagem de Nise. Nesse dia, realizou-se no edifício da Escola Politécnica Federal de Zurique (ETH), o II Congresso Internacional de Psiquiatria de Zurique, para o qual a dama das imagens organizou, em cinco salas, a exposição "A Esquizofrenia em Imagens", com várias obras do acervo do Museu de Imagens do Inconsciente. Na mostra havia também a exibição de obras de outros países, mas Jung, ao chegar à exposição e ser recepcionado por um vasto grupo de admiradores, ao ser perguntado quais exposições de arte ele gostaria de conhecer, ele respondeu com determinação: "Eu já escolhi. Vou à exposição brasileira, da Dra. Nise", e dirigiu-se para as salas com as obras brasileiras. Nesse evento, foi registrado o primeiro encontro em público entre essa grande psiquiatra brasileira e o eminente psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. Plena de alegria e felicidade, Nise e o mestre Jung, lado a lado, dirigiram-se para o espaço das obras brasileiras, onde foram fotografados juntos, comentando, analisando e interpretando as fascinantes "Imagens arquetípicas" expostas. Mais uma vez, Jung demonstrou o seu reconhecimento ao valor do trabalho de Nise, que lutou por décadas contra as adversidades, superando-as inteiramente, tornando-se vitoriosa na realização do seu grande projeto humanitário.
Considerações quase finais
A vida de Nise da Silviera é também a história de um "inconsciente que se realizou", como bem assinalou, o mestre Jung, em suas memórias. Nise, no seu processo de individuação, "tornou-se aquilo que se é" mediante a sua postura intuitiva ética e sábia. Lutou com as descrenças dos colegas psiquiatras e contra uma psiquiatria tradicional descritiva. Desenvolveu cientificamente um método humanista e revolucionário de tratamento terapêutico - "Emoção de Lidar", para reabilitar os sofridos doentes mentais. No seu trabalho de vanguarda no campo da psiquiatria, denunciou os procedimentos considerados por ela como agressivos e frios e afirmou que: "a meta de todo tratamento psiquiátrico não pode mais continuar sendo a remoção de sintomas, porém a recuperação do indivíduo para a sociedade"23.
Ao defender uma nova atitude ética na relação entre médico e doente, sofreu discriminações e incompreensões, particularmente por parte de alguns colegas psiquiatras que rejeitavam a eficácia de sua prática renovadora de tratamento terapêutico, por considerar os doentes como pessoas em ruínas, embotadas, incapazes de restabelecer o seu equilíbrio emocional.
Mesmo assim, Nise não desistiu de seus sonhos e de seus ideais. Tornou-se pioneira na luta pela Reforma Psiquiátrica do Brasil e no trabalho experimental, na década de 1950, ao utilizar os animais - "coterapeutas", como excelentes catalisadores de afetos incondicionais. Tratou os seus doentes mentais, que antes eram marginalizados e segregados, com respeito, dignidade e com "Emoção de Lidar".
Partindo de seus estudos e pesquisas experimentais, embasados na psicologia analítica de Jung, que contribuiu de forma significativa para os campos da psiquiatria, das artes e da psicologia, ao evidenciar nas produções espontâneas dos esquizofrênicos brasileiros, paralelos que confirmavam as premissas feitas por Jung acerca das estruturas e da dinâmica da psique. Assinalou a dama das imagens:
Aos poucos, fui constatando que a obra de Jung me oferecia novos instrumentos de trabalho, chaves, rotas para distantes circunavegações. Delírios, alucinações, gestos, estranhíssimas imagens pintadas ou modeladas por esquizofrênicos, tornavam-se menos herméticas se estudadas segundo seu método de investigação. E também não lhe faltava o calor humano de ordinário ausente nos tratados de psiquiatria. Encontrei, na psicologia junguiana e nas obras deste mestre, o meu melhor instrumento de trabalho24.
Em 1955, fundou o grupo de estudos C. G. Jung, com a intenção de estudar a psicologia analítica de Jung e aprofundar o conhecimento dos processos do inconsciente coletivo, onde se encontra a história da humanidade. Com a fundação deste primeiro grupo de estudos, Nise converteu-se na primeira pessoa no Brasil e da América Latina a difundir as ideias e a psicologia desenvolvida pelo mestre Jung.
Assim, o conjunto das obras de Nise, juntamente com os acervos de imagens da Casa das Palmeiras - Nise da Silveira e do Museu de Imagens do Inconsciente, é patrimônio vivo que registra e guarda um importante e raro material do processo psíquico, que se constitui num verdadeiro legado científico e cultural deixado por Nise para a humanidade.
Como vimos, nenhum psiquiatra brasileiro valorizou ou reconheceu o árduo trabalho revolucionário de Nise. Entretanto, o importante psiquiatra suíço C. G. Jung, famoso em toda Europa e nos Estados Unidos, deu importância, valor e celebrou a Obra da maior psiquiatra do Brasil, que não tinha medo de mergulhar no inconsciente. Para Nise, Jung era um cientista
sensível e perspicaz... Ele tinha um olho desgraçado, que atravessou o Atlântico e chegou até o Brasil. Conseguiu perceber que o esquizofrênico pintava, em primeiro plano, sua realidade obscura e triste - e, ao fundo, um outro contexto, que não costuma ser o seu. Só mesmo Jung para perceber, naquelas pinturas o ambiente do ateliê do Museu do Engenho de Dentro e o clima de afeto e liberdade em que se faziam as pinturas25.
Encontro de Almas
Não poderia abordar a história da Mestra Nise sem registrar algumas das muitas passagens marcantes que tivemos ao longo de mais de 10 anos de uma afetuosa e respeitosa convivência (Figura 1).
Tudo começou no final do ano de 1989, quando decidi estagiar na Casa das Palmeiras como colaboradora. Pouco depois, passei a participar do Grupo de Estudos C. G.Jung, dirigido por Dra. Nise, na Rua Marques de Abrantes, no Flamengo. Dois anos depois, no final do meu estágio, fazia, aproximadamente, seis ou sete anos que ela não frequentava a instituição e raramente saia ou dava entrevistas. Nos anos 1990, fiz parte do grupo de colaboradores que participaram do projeto de reestruturação da Casa das Palmeiras dirigido pela própria Dra. Nise que estava bastante insatisfeita com a forma de funcionamento da instituição, não reconhecendo mais ali, a aplicação de suas ideias e dos fundamentos de sua metodologia. Seu plano foi voltar a frequentar a Casa e, com a equipe escolhida, revitalizar e restaurar todos os setores pilares: técnico, administrativo e financeiro. E assim foi feito, a presença e a participação da Mestra foi historicamente fundamental na luta de resistência da manutenção legítima de seu trabalho e isso motivou-me a continuar na instituição. Nossa primeira reunião ocorreu em sua residência quando ela me "convocou" para fazer parte da nova diretoria. Levei um susto quando meu nome foi indicado por ela. Meu primeiro impulso foi recusar, argumentando que havia passado para o mestrado e não teria como dar conta de tantos compromissos ao mesmo tempo. Marcamos um encontro a sós, em sua residência, apresentei minhas justificativas de que já estava, após dois anos, saindo da instituição, pois o meu objetivo de estagiar na Casa estava vinculado ao meu desejo de trabalhar no meu consultório particular com pessoas com distúrbios psicóticos, uma vez que tinha percebido que poucos profissionais da área de psicologia tinham esse interesse. Reafirmei que estava feliz com o convite, me sentindo privilegiada pela indicação, mas nunca havia trabalhado na função de diretora administrativa! Na verdade, estava apavorada, pois não possuía nenhum conhecimento e preparo de como administrar uma instituição. Naquela época, nada sabia sobre contas, taxas, impostos etc. Porém, meus argumentos de nada adiantaram, ela com muita determinação, disse que ia me orientar e supervisionar em tudo que necessitasse e me convenceu da relevância daquele novo empreendimento. Sai desse encontro ainda hesitante, mas, ao conversar com meu marido, tudo fez sentido e decidi enfrentar o desafio do projeto nisiano. E assim foi constituída a nova diretoria da Casa das Palmeiras: Dra. Nise da Silveira - Diretora Técnica, Pedro Pellegrino - Presidente, Dra. Alice Marques dos Santos - Vice-presidente e Vera L.M. de Macedo - Diretora Administrativa. Na luta pela transformação, toda equipe se empenhou bastante e trabalhou muito. Inicialmente, nem mesmo nos fins de semana, tínhamos folga! Dentre algumas mudanças principais, destaco a criação de um novo estatuto da instituição; a transformação da arquitetura dos espaços internos da Casa, para melhor funcionamento dos ateliês; configuração de novos planos de aplicação das atividades expressivas e das supervisões, desenvolvimento de cursos de capacitação para colaboradores e estagiários, publicações de livros e manuais, além da reestruturação do Núcleo de Pesquisa da Casa das Palmeiras para estudos das séries imagens dos clientes, guardadas nos acervos da instituição, entre outros importantes implementos. Esse trabalho foi um marco em minha vida pessoal e profissional e me aproximou muito de minha Mestra Sofia.
Nesse novo cenário, a Casa das Palmeira, tal como uma fênix, ganhou um ambiente altamente saudável, acolhedor e criativo. Nos diversos eventos comemorativos, eu levava a Mestra, no meu carro, até a instituição. Como era bom vê-la feliz, emocionada, por ter conseguido realizar concretamente do seu projeto de restauração e, ao mesmo tempo, retornar à instituição. Nos eventos comemorativos, ela recebia manifestações carinhosas, espontâneas, dos clientes e das pessoas que ali estavam presentes! Era muito habitual a Mestra Nise constelar nas pessoas o arquétipo da Grande Mãe e, assim, ela recebeu diversas denominações como: "minha mãe doutora", "minha mãe caralâmpia" (guerreira, heroica...), "minha mãe Nise", "grand mère" etc. E eu também vivenciei esse forte vínculo afetivo. Cada vez mais ela solicitava a minha presença e apoio. Decidi, por um tempo, diminuir minhas idas na Casa das Palmeiras e doar meu tempo a "minha mãe arquetípica" que tanto necessitava de presenças, verdadeiramente, amigas. Passei a frequentar diariamente sua residência e juntas líamos as correspondências dela com Jung, com von Franz e de outras pessoas. Escutava, silenciosamente suas histórias acerca da psicologia analítica no Brasil, a criação do Museu de imagens do Inconsciente, da Casa das Palmeiras, de seus familiares, de suas viagens a Zurique, à Alemanha e outros lugares que traziam boas recordações. Também escutei seus lamentos, mágoas, muitas decepções com o "bicho homem" que a fizeram preferir os gatos, os animais que eram fiéis e davam amor incondicional.
Em 1996, pretendendo dar novos ares no cotidiano da Mestra, perguntei-lhe em qual lugar ela gostaria de passear e se distrair. Então, ela recordou uma viagem que havia feito à Conservatória e da qual guardava agradáveis recordações. Incentivei-a a voltar, disse-lhe que não conhecia e que planejaria com meus familiares a nossa ida. Aprovou a ideia, alugamos uma van e nós fomos para cidade rural das serestas, a 140 km do Rio. Viagem que foi cansativa para ela, mas que enfrentou sem reclamar! Na bagagem, poucas roupas, mas muitos livros: poemas de Eliot, de Baudelaire, de Teilhard de Chardin, de von Franz, de Artaud e outros. Nos hospedamos numa confortável e charmosa pousada. No dia seguinte, meus familiares chegaram para seu grande contentamento. Fomos passear pela cidade, tiramos fotos para registrar esses momentos felizes, nas ruas dos casarios, as tradicionais e famosas serenatas. Os violeiros entoavam cantigas preferidas e recitavam poesias. Nessa atmosfera romântica-musical agradável, em conjunto com a deslumbrante paisagem das montanhas ao fundo e o céu límpido e estrelado, a Mestra deleitava-se! De manhã, após o café, pegávamos sol, debaixo das copas das grandes árvores que cercavam os jardins da pousada. Eu fazia leituras em voz alta, para ela, das poesias ou do livro escolhido; às vezes, ela dava bons cochilos e eu ficava observando-a naquele estado de plenitude, de serenidade e paz, e isso me proporcionava grande satisfação. Essa viagem foi mais uma das muitas experiências inesquecíveis que desfrutei com minha Mestra Sofia!
Em 1998, um ano antes de sua passagem para outras dimensões, enfrentando problemas com dificuldades na sua visão, ela convidou-me para ajudá-la num novo projeto de escrever um livro. Percebi o quanto aquele projeto era significativo. Não só concordei, como a incentivei a que logo iniciássemos a tarefa. Então, demos início ao seu último livro publicado: "Gatos, Emoção de Lidar". Mestra ditava e eu digitava no computador. Completamente deslumbrada com a tecnologia do computador, ela dizia: "mas que máquina diabólica mais interessante!". Foram momentos únicos, divertidos e sofridos, particularmente quando os temas do livro se referiam aos preconceitos contra os animais. A ideia desse livro surgiu de um antigo projeto entre ela e o fotógrafo Sebastião Barbosa que elaboraram o formato do livro com as séries de fotografias de animais, principalmente de gatos e com textos criados pela Dra. Nise.
Essa obra surpreendeu a muitos, pela escolha do tema sobre os felinos. Nessa obra, ela deixou explícito o seu amor incondicional e a defesa em favor dos animais, especialmente aos gatos, com quem se identificou. Com eles, aprendeu muito sobre a natureza humana, conforme dizia: "Na próxima encarnação, se houver, quero vir como gata ou gato". Posteriormente, ela descobriu que, sincronicamente, o último livro escrito, por sua querida analista e amiga Von Franz, que faleceu em 1998, foi sobre um conto de fada romeno, cujo tema também, se relacionava com gato: "O Gato - Um Conto da Redenção Feminina".
Recordo um outro acontecimento que destaco com profunda alegria que foi a vinda da Mestra Nise à minha residência, para passar duas semanas. Nessa altura, ela já fazia parte da minha família. Mestra tão reservada e discreta, aceitou meu convite para tirar umas "férias" do ambiente, muitas vezes "tenso", em que vivia. Instalada no seu quarto, numa cama de casal, algumas noites, dormimos juntinhas! Conversávamos sobre tudo o que nos divertia e gargalhávamos para meu e dela espanto!
Deu apelido à minha família de Caralâmpios e adorava contar estórias divertidas como, por exemplo, lembrou da primeira vez que foi ao cinema, em Maceió, com sua mãe, quando ainda era criança. O filme era policial e numa das cenas, quando a polícia correu para prender os ladrões, ela subiu na cadeira e gritou: "Fujam que a polícia vem ai!!". Dona Lídia, sua mãe envergonhada, sentou a filha na cadeira enquanto os espectadores não paravam de rir. Divertidamente, ela comentava: "Ali estava uma pequena subversiva...". As duas semanas foram de dias maravilhosos que objetivaram trazer alegria, descontração e muito amor àquela "pessoinha miúda", aparentemente frágil, que nos contagiou com sua amizade e afeto. O mais importante foi o forte vínculo que se desenvolveu entre nós, a ponto de considerá-la como um membro de nossa família.
Nos últimos anos de sua vida, pressentiu a sua partida, teve um grande sonho muito significativo. O tema sonho girava em torno da morte, nas imagens oníricas, ela se via dançando muito alegre, logo compreendeu que "a morte é dançável e alegre. É uma viagem para regiões desconhecidas e essa será a minha grande e última aventura". No dia 30 de outubro de 1999, minha "mãe arquetípica" iniciou sua última viagem para "outras galáxias", como dizia.
Aprendi muito com Mestra, aprofundei ideias sobre a sua obra, de Jung, de Artaud, von Franz entre outros. Acima de tudo, ela ensinou-me muito sobre os estudos das séries das imagens do inconsciente, supervisionou minha práxis clínica tanto com os clientes da Casa quanto os meus analisandos do meu consultório. Hoje, posso afirmar que fui sua "filha arquetípica" privilegiada, cujos laços afetivos nos uniu eternamente. Minha vida é marcada por uma antes e depois de minha "mãe arquetípica" que pediu a todos nós: "Após minha morte, quero ser lembrada com emoção".
Finalizando, lembro-me com carinho de que, quando perguntavam a Mestra Nise o que deu sentido em sua vida, ela respondia com convicção: "O AMOR AOS LOUCOS!".
Ave Nise!!!
Saudades!
Vera Macedo
Recebido em: 10/06/2021
Revisão 01/11/2021
1 Revista Rádice, n. 3, p. 8
2 Mello, 2014, p. 13.
3 Mello, 2014, p. 14.
4 Horta, 2008, p. 87.
5 Idem, p. 87.
6 Horta, 2008, p. 80.
7 Idem, p. 92.
8 Idem, p. 80.
9 Mello, 2014, p. 17.
10 Silveira, 1981, p. 13.
11 Horta, 2008, p. 163.
12 Horta, 2008, p. 163.
13 Idem, p.164
14 Idem, p.165
15 Mello, 2015,p.145
16 Mello, 2015,p.145
17 Mello, 2008, p.145
18 Horta, 2008, p.167
19 Mello, 2008, p.153.
20 Mello, 2014, p.167.
21 Idem, p. 169.
22 Mello, 2008, p. 169.
23 Silveira, 1981, p. 96.
24 Horta, 2008, p. 174.
25 Horta, 2008, p. 176.