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Junguiana
versão On-line ISSN 2595-1297
Junguiana vol.40 no.2 São Paulo jul./dez. 2022
A imagem arquetípica do médico ferido1
C. Jess Groesbeck
O Dr. Groesbeck obteve uma certificação do Conselho Profissional em Psiquiatria, Psiquiatria Forense e Psicanálise. O Dr. Groesbeck foi analista treinador da Sociedade Inter-regional de Análise Junguiana da América do Norte, membro da Associação Internacional de Psicologia Analítica, ex-presidente da Sociedade Psiquiátrica Americana de Analistas Junguianos, membro da Academia Americana de Psiquiatria e Direito, e membro da Sociedade Psiquiátrica Americana. O Dr. Groesbeck foi autor de numerosos artigos e estudos profissionais
Introdução - A cura
Todo procedimento médico, inclusive o psiquiátrico e o analítico, tem como preocupação central a cura, uma vez que este é o seu objetivo pelo menos implícito. Isto pode fazer o reexame do conceito de cura parecer de início uma tarefa ampla demais, complexa demais e até desaconselhável. Não obstante, num momento em que a medicina moderna padece cada vez mais com a crescente especialização, parece valer a pena sair em busca de novo das raízes e das origens do processo de cura.
Essa busca pode nos ajudar, a nós todos, envolvidos com a psicoterapia e com a análise, no sentido de compormos um quadro mais nítido de nosso próprio trabalho, pois o processo de cura sempre foi enfocado de maneira muito difusa e, às vezes, abstrata. Mesmo porque sempre que um paciente ou um analisando nos procura, sua urgência maior é obter ajuda para a cura daquilo que o faz sofrer. Lembro-me de um professor da Faculdade de Medicina que sempre repetia que um dos motivos da crise atual da Medicina residia no fato de os médicos muito frequentemente se descuidarem da queixa principal do paciente e ficarem, enquanto isso, fazendo toda espécie de "outros milagres".
É interessante notar que existem, entre outros, dois princípios básicos de tratamento sobre os quais se baseia a maior parte das terapias modernas. O primeiro deles é a "alopatia, definida como um sistema de tratamento médico que se utiliza de medicamentos capazes de causar no organismo efeitos diferentes daqueles produzidos pela doença". O segundo é a homeopatia, "ramo da medicina que trata da investigação e da aplicação do fenômeno do símile, ou lei dos similares, ou seja, um conjunto de sintomas e sinais, que uma droga produz, ou por outra: similia similibus curantur, o semelhante é curado pelo semelhante". "O conjunto de sintomas e sinais que uma droga produz em pessoas sadias, quando presente na vigência de uma enfermidade, pode ser revertido ao estado normal pelo uso da mesma droga (reações inversas das drogas)". Ou "um sistema de tratamento médico baseado na teoria de que certas doenças podem ser curadas pela administração de doses ínfimas de drogas que, em grandes doses, poderiam causar em pessoas sadias sintomas semelhantes àqueles da doença" (BLAKISTON apud HAERE, OSOL, 1956). A conduta alopática tem gozado de uma confiabilidade cada vez maior em relação à homeopática, se bem que, aparentemente, as terapias médicas e psiquiátricas modernas lançam mão de ambos os princípios, ou conjuntos de opostos, quando, por exemplo, preconizam a quimioterapia do câncer (alopatia) e a aplicação da vacina antivariólica na prevenção e controle de uma doença infecciosa (homeopatia).
As formas alopáticas de tratamento são também as que se sobressaem na Psiquiatria e na Psicoterapia, de modo especialmente notável na Psicofarmacologia, na qual o que se pretende é produzir efeitos opostos à doença, por exemplo, "suprimir os sintomas da psicose". Por outro lado, a psicologia profunda, começando com Freud e a psicanálise, desenvolveu-se principalmente a partir de postulados que supunham uma aceitação da abordagem homeopática; por exemplo: a integração psíquica, ou cura, poderia ter lugar e "bloqueios do desenvolvimento" poderiam ser removidos, ao se reviver ou reexperimentar certas experiências, traumáticas, em pequenas doses de emocionalidade. Uma revisão geral da "abordagem de Jung ao processo de cura revela uma marcada ênfase sobre o ponto de vista homeopático, isto é, a cura procede do 'encontro de um significado para a doença' ou quando 'os sintomas se integram em uma totalidade significativa'" (MEIER, 1967, p. 128).
O princípio homeopático pode ser notado em um sonho de uma jovem contemporânea: "Sonhei que a mãe de um amigo tinha voltado à vida e morria de novo. Alguém dizia que tinha sido devido a uma dose excessiva de drogas na corrente sanguínea. Ao que meu amigo acrescentava: aquilo que deveria curá-la, matou-a; agora é tarde, já está morta". As contribuições da psicologia profunda, com uma maior ênfase homeopática aparentemente, então, poderiam ser consideradas como uma compensação necessária para a restauração do equilíbrio rompido pela excessiva preponderância dos métodos alopáticos de tratamento na medicina geral.
Um outro aspecto pouco compreendido da homeopatia é a insistência no tratamento não de um sinal ou sintoma isolado, e, sim, de uma "totalidade de sinais ou sintomas que um paciente apresenta, ou seja, o princípio da totalidade dos sintomas" (BLAKISTON apud HAERE, OSOL, 1956). Assim, a perspectiva homeopática possivelmente leva mais em conta a totalidade da vida do paciente do que o faz o ponto de vista alopático. Um dos aspectos mais destrutivos do ponto de vista psicológico nas "condutas médicas miraculosas de hoje em dia" é a especialização e a abordagem em compartimentos estanques do paciente, com perda de qualquer consideração por uma totalidade.
Um dos objetivos do presente trabalho será, pois, a investigação dos aspectos homeopáticos do tratamento psicoterápico. Mais especificamente, será feita uma tentativa de reexame dos aspectos intrapsíquicos do processo de cura, especialmente no contexto entre o médico (analista) e o paciente. Será dada especial ênfase aos componentes arquetípicos desse processo. Velhas questões serão retomadas: Como se dá a cura? Quem e o que a promovem? Quais as qualidades mais desejadas naqueles que se iniciam nas profissões que tem por objetivo o tratamento de pessoas, especialmente a psicoterapia? Embora admitindo que a cura é, em última análise, um mistério, a revisão criteriosa daquilo que transparece do processo pode nos ajudar a nos tornarmos mais competentes em nossa assistência e participação no ritual.
Começaremos a revisão pelo mito de Esculápio, o paradigma do médico ferido. Em seguida, examinaremos questões teóricas a propósito da transferência, com destaque para os aspectos arquetípicos. Daí passaremos à elaboração de uma aplicação específica da imagem arquetípica do médico ferido a um aspecto particular da transferência.
Esculápio, imagem arquetípica do médico ferido
Numa revisão dos relatos de antigas curas tal como praticadas nos templos de Esculápio, Meier notou que, na antiguidade, quando alguém se encontrava doente a solução era recorrer a um "médico divino e não a um médico humano" (MEIER, 1967, p. 4). A razão para tal procedimento era que o homem da era clássica via a doença como o resultado de uma ação divina, e só poderia obter cura através de uma outra ação divina. Nas clínicas da antiguidade praticava-se, pois, uma forma definida de homeopatia, em que um remédio divino vencia uma doença divina. Conferir uma tal dignidade à doença acarreta a vantagem inestimável de conferir-lhe também um poder curativo. A divina afflictio contém, dessa maneira, seu próprio diagnóstico, terapia e prognóstico, desde que, é claro, a atitude correta em relação a ela tenha sido adotada. O que possibilitava a atitude adequada era o culto, que consistia simplesmente em deixar a cargo do médico divino toda a arte da cura. Ele próprio era a doença e o remédio também. Estes dois conceitos eram idênticos. Por ser a doença, ele próprio também era afetado (ferido ou perseguido, como Esculápio ou Trofônio) e, sendo um paciente divino, ele também conhecia o caminho da cura. É a um deus nessas condições que se aplica o oráculo de Apolo: "Aquele que fere também cura" (MEIER, 1967, p. 5).
Graves (1955, p. 173-177), Meier (1967, p. 24-28) e Kerényi (1959) descrevem as origens de Esculápio como médico ferido. Na lenda de Epidauro, Apolo unia-se a Corônis, vindo esta dar à luz a um filho que logo em seguida ela abandona no Monte Títion, famoso pelas virtudes medicinais de suas plantas. Ali, cabras o amamentam e um cão o protege. Quando o pastor das cabras o encontra, ouve-se uma voz proclamar sobre a terra e sobre o mar que aquele recém-nascido viria a encontrar cura para todas as doenças e ressuscitaria os mortos. Num certo sentido, Esculápio seria o aspecto procriativo de Apolo desabrochando das entranhas da mãe, ao mesmo tempo luminoso e sombrio. Representaria então o lado da luz e do conhecimento, isto é, o lado racional da medicina e do processo de cura. Noutra versão, Corônis engravidada por Apolo tem, no entanto, um caso amoroso com Isquis e, quando Apolo toma conhecimento disto, mata-a. Um pouco antes, porém, da morte de Corônis, já na pira funerária, Apolo se enche de remorsos e resgata, através de uma incisão cesariana, seu filho ainda não nascido. Este mitologema reflete mais uma vez o princípio: "Aquele que envia morte, dá também a vida". Depois disso, Esculápio é entregue a Chíron, o centauro, para ser educado. Chíron já é conhecido e versado na arte de curar, e habita uma caverna no cimo do Monte Pelion. Kerényi afirma:
Tudo em Chíron, o médico divino e ferido, o faz parecer a mais contraditória figura de toda a mitologia grega. Apesar de ser um deus grego, sofre de uma ferida incurável. Além disso, a sua figura combina o aspecto animal com o apolíneo, pois apesar do seu corpo de cavalo - configuração pela qual são conhecidos os centauros, criaturas da natureza, fecundos e destrutivos - é ele quem instrui os heróis nas artes da medicina e da música (KERÉNYI, 1959, p. 96-7).
De modo que, num certo sentido, as características que entram na composição da figura de Esculápio são as do seu pai Apolo, o lado racional luminoso da medicina, e as do seu mestre e pai adotivo Chiron, o lado escuro e irracional. Kerényi continua:
Naquela metade do mundo pertencente à Chíron situa-se o lago Boibeis, ao pé do Monte Pélio, e, abaixo de sua caverna, o vale de Peletronion famoso pela profusão de ervas medicinais. Nesse vale, Esculápio familiarizou-se, sob a tutela de Chíron, como as plantas e seus poderes mágicos - e com a serpente. Aí também, crescia a planta chamada "kentaureion" ou "chironion", sobre a qual se afirmava ser capaz de curar qualquer mordida de cobra e até mesmo o ferimento causado por uma flecha envenenada, do qual o próprio Chíron sofria. O detalhe trágico, no entanto, é que a ferida de Chíron era incurável. De modo que o mundo de Chíron, com suas inesgotáveis possibilidades de cura, era também um mundo de doença eterna. Além de que, à parte todo esse sofrimento, a sua caverna, local em que se realizava um culto ctônico subterrâneo, era uma das entradas do inferno.
O quadro que se forma a partir de todos esses elementos é singular. O deus metade homem, metade animal, sofre eternamente de sua ferida; carrega-a consigo para o inferno, como se a ciência primordial, personificada para os homens de um remoto passado por este médico mitológico, precursor do luminoso médico divino, consistisse apenas do conhecimento de uma ferida eternamente aberta naquele que cura" (KERENYI, 1959, p. 98-99).
E a serpente passou a ser associada a Esculápio em seus poderes curadores devido principalmente a seu "olhar penetrante e à sua capacidade de rejuvenescer a si própria" (MEIER, 1967, p. 27). Isto é, a troca periódica da pele simbolizaria libertar-se da doença. Livrar-se da doença equivaleria a dar lugar ao novo homem. Segundo Meier, "As serpentes eram consideradas pelos antigos como um símbolo da vida" (MEIER, 1967, p. 77). Daí serem associadas intimamente à água da vida. Parece que água e fonte estavam associadas às curas de Esculápio tal como eram praticadas em seus templos. O bastão de Esculápio, associado à árvore, posteriormente passou a ser representado com uma cobra enrolada. De acordo com a observação de Henderson, o bastão de Esculápio possui apenas uma cobra enrolada em torno de si, simbolizando transcendência e renascimento. Já o caduceu, erroneamente referido à profissão médica como se fosse o bastão de Esculápio, era um bastão com duas expansões laterais, no qual enrolavam-se duas serpentes unidas sexualmente e simbolizava o deus Hermes (HENDERSON, 1964). O cão, o cavalo, a górgona (serpente com cabeça de cachorro), bem como um menino, eram todos auxiliares significativos de Esculápio quando este realizava suas curas. Também sua esposa e sua filha o acompanhavam. A isto acrescentava-se também como muito importante o toque na parte ferida do corpo. Meier afirma: "Apolo, como um deus curador, também utiliza o gesto de estender a mão. sobre a pessoa doente" (MEIER, 1967, p. 40). Também no nome de Chíron há implicações relacionadas com a cura pelo toque da mão. A palavra chíron é a raiz etimológica de cirurgia e significa "com a mão" (do grego chirurgia, "trabalho com as mãos").
Como então se davam as curas? De acordo com Meier e Kerényi, acontecia o seguinte: o paciente que buscava uma "cura era levado, através do processo de incubação, até a parte mais interna do templo, o ábaton, e ficava aguardando um sonho de cura. No sonho, o próprio deus deveria tocar a parte doente e assim efetuar a cura. Muitas vezes, no entanto, o deus aparecia sob a forma de um animal, ou seja, a serpente". Kerényi (1959, p. 32-33) descreve um caso:
um homem teve um artelho curado por uma cobra. Era um homem que estava seriamente doente com um abscesso no artelho. Durante o dia, os assistentes o levaram para fora e fizeram-no sentar-se numa cadeira. Quando ele adormeceu, uma cobra saiu da câmara mais recôndita do santuário, curou seu artelho com a língua e, tendo feito isto, retirou-se. Ao acordar, curado, relatou ter tido uma visão; havia sonhado que um menino se aproximava e aplicava uma salva em seu artelho.
Como diz Kerényi, "A visão daquele belo jovem que cura surgindo ao mesmo tempo em que o artelho do paciente é curado, é uma espécie de sonho dentro de um sonho, uma amplificação que demanda um sentido ainda mais profundo: a experiência imediata do divino no milagre natural do ato de curar" (KERÉNYI, 1959, p. 34). Nos templos de Esculápio, de fato, as serpentes estavam presentes e compunham o cenário adequado para a cura. Um outro exemplo, uma reprodução de um relevo votivo de Archinos, mostra como "o inválido sonha que o próprio deus o está operando, enquanto que, ao fundo, vê-se que é uma serpente que o está lambendo" (KERÉNYI, 1959, p. 36). Ou ainda: uma mulher estéril que veio a Epidauro para ser fertilizada pelo deus, "dormiu no santuário a fim de se tornar mãe de numerosa prole e enquanto isso teve um sonho. Sonhou que o deus vinha ao seu encontro seguido de uma serpente com a qual ela copulava. E antes de um ano ela veio dar à luz a dois meninos (KERÉNYI, 1959, p. 41). Estas crianças eram consideradas filhos de Esculápio. Em outro exemplo: "Um coxo se vê curado depois que num sonho Esculápio numa charrete puxada por um cavalo dá três voltas em torno o doente e, em seguida, faz o cavalo pisotear-lhe os membros paralizados" (MEIER, 1967, p. 28). Outro exemplo significativo e precursor da ideia de transferência, um exemplo vindo de Epidauro, sobre a transferência para as ataduras, pode ser encontrado em Milagre VI:
Pandarus, um tessálio, tinha cicatrizes na testa. Em seu sonho de cura teve uma visão. Sonhou que o deus colocava uma atadura sobre suas cicatrizes e ordenava-lhe que, ao deixar o recinto sagrado, retirasse a bandagem e a dedicasse ao templo. Quando amanheceu, ao levantar-se e arrancar a bandagem, viu que seu rosto havia ficado livre das cicatrizes, tendo estas passado para as ataduras, as quais dedicou votivamente ao templo.
As ataduras eram também penduradas em árvores existentes nos templos de modo a propiciar que as doenças se transferissem para as árvores (MEIER, 1967, p. 81-82). Meier acredita que o significado do termo "transferência" se originou, aparentemente, desta ideia (p. 82).
Dinâmica do processo de cura
De que modo a descrição do processo de cura nos tratamentos de Esculápio poderia nos ajudar a compreender o que transparece do mesmo processo nos dias de hoje? Quais os elementos da relação médico-paciente que constelam a cura? Certos aspectos do Esculápio mostram-se particularmente importantes.
Esculápio aprendeu com Chíron, como já foi mencionado anteriormente, a conhecer os poderes medicinais das ervas existentes no vale em que habitava, especialmente as virtudes da erva chamada "chirônio", que curava mordidas de cobras (KERÉNYI, 1959, p. 98-99). Dizia-se que era capaz de curar até o ferimento provocado pela flechada envenenada que Chíron recebera de Hércules. O detalhe trágico é que a ferida de Chíron era incurável. Não deveria nunca fechar. O paradoxo de que aquele que está sempre curando permanece eternamente doente ou ferido, parece estar no centro do mistério da cura. Na verdade, o princípio subjacente deste mistério é "simplesmente o conhecimento de uma ferida também experimentada, e de modo permanente, por aquele que cura" (p. 99).
Dois pontos surgem daí: em primeiro lugar, por que o médico tem de ter o conhecimento (consciência) de sua própria ferida? Por que necessita experimentá-la cada vez de novo a fim de efetuar a cura? Isto teria alguma relação com o conhecimento e a participação nas feridas do paciente (diagnóstico e terapia)?
O segundo ponto trata do mito de Esculápio refletido nos dias de hoje na relação médico-paciente como um aspecto arquetípico da transferência.
Guggenbühl-Craig sugere que existe um arquétipo "médico/paciente" que é ativado todas as vezes que uma pessoa fica doente. O doente procura um médico ou doutor externo, mas o fator intrapsíquico, ou "fator curador", ou ainda o "médico interior" é também mobilizado. Mesmo o médico externo sendo muito competente, as feridas e doenças não poderão ser curadas se não houver a ação do "médico interior" (GUGGENBÜHL-CRAIG, 1971, p. 89-91). Basta lembrar o grande número de pessoas que ainda morre de pneumonia, muito embora a pneumonia seja na doença "curável". É frequente ouvirmos explicações do tipo: "sua resistência interna cedeu" ou "ele não estava querendo melhorar". De um ponto de vista arquetípico, era o médico interior que não estava funcionando, Guggenbühl coloca a questão nos seguintes termos: "Isto significa psicologicamente que não somente o paciente tem um médico dentro de si mesmo, mas também que existe um paciente no interior do médico" (p. 91).
O paciente busca externamente alguém que o cure, um médico. O médico sai ao encontro dos pacientes, como sua vocação. Apresenta-se com todas as prerrogativas da sua profissão, treinamento específico, técnicas, reputação, autorização etc. No paciente, mobilizado por sua doença, ativa-se "aquele que cura, ou médico interior". Este, no entanto, não se integra à consciência, sendo projetado e constelado pela persona do médico. Da mesma forma, no médico ativa-se o seu lado interior ferido, sua própria doença - psíquica, somática, ou ambas - ainda não resolvida - ao entrar em contato com a pessoa enferma. Este outro polo da imagem arquetípica é mais projetado sobre paciente do que vivido no plano interior.
Se o relacionamento se dá nesse nível, mesmo com o emprego de remédios físicos ou psicológicos, o movimento em direção a uma cura de fato não chega a ocorrer. A verdadeira cura só pode acontecer quando o paciente entra em contato com o seu "médico interior" e dele recebe ajuda. E isto só pode se dar caso sejam retiradas as projeções feitas sobre a persona do médico. Para tanto, é necessário que o médico entre em contato com o seu próprio lado ferido. Na hipótese de as projeções serem mantidas, o que tanto o médico como o paciente vão tentar fazer é, conforme esclarece Guggenbühl, "curar a dissociação por meio de poder" (p. 94-95). Cada um manipulando o outro na tentativa de moldá-lo a um papel estereotipado. Existe, no entanto, um movimento espontâneo no sentido da restauração do equilíbrio (homeostase) interno da polaridade das imagens arquetípicas. Se isto de alguma forma não ocorrer, os problemas da sombra do médico podem ser ativados (p. 125-126).
O médico fica bem somente na medida em que o paciente fica mal. Resta um bloqueio na integração de seus conteúdos inconscientes, tanto no médico como no paciente. Esta condição pode, em muitos casos, explicar a ocorrência de níveis de tensão cada vez mais elevados nas relações médico-paciente da prática médica moderna. É comum em processos por abusos no exercício profissional a acusação de promessas de "serviços" e "curas" jamais terem sido cumpridas. É a imagem do médico como "milagroso" que tende a levar a esta situação. A expectativa de que a pessoa do médico, agindo externamente, mesmo com a ajuda de toda tecnologia, possa ser capaz de efetuar a cura, tanto quanto ou no lugar do "médico interior", é um grande erro de cálculo. Em um nível mais profundo, o médico pode estar sustentando o estado de projeções mútuas em cumprimento a uma primitiva lei de Talião vigente em seu inconsciente. Isto é, a fim de negar suas próprias feridas, sua doença e vulnerabilidade, afirma para si mesmo que "se a doença ficar no paciente, eu permanecerei sadio, a doença não me tocará". Caplan dá um exemplo disso (CAPLAN, 1970). O médico então procura superar a dissociação da imagem arquetípica dentro de si mesmo pelo caminho da projeção sobre o paciente, manipulando abertamente ou sob disfarces. O paciente por seu turno, participa do jogo com suas esperanças de uma "cura miraculosa". É impressionante notar como a agenda de certos médicos se enche de casos de um único tipo, ou somente de casos gravíssimos. Nestes casos, o médico tenta "manipular a cura" desempenhando um papel inflado, mas, no fundo, buscando curar a si mesmo; e tudo isso a uma distância segura.
Quando a cura demora a surgir, aumentam-se os esforços terapêuticos em termos de tempo e de frequência, muitas vezes de forma inconsciente. O que não deixa de ser contraditório em relação às ansiedades inconscientes de que o tratamento fracasse. Mas a esperança ilegítima do médico é conseguir manter a doença nos limites do paciente, de modo que não venha a tocar a sua pessoa. "As manipulações" e "orientações" asseguram mais uma vez um sentimento de se estar de algum modo dominando a situação, se bem que de uma forma vicariante. Trata-se de uma defesa antifóbica: "posso me aproximar do perigo da doença sem que ela me toque". Quando as coisas não dão certo, se ouve a exclamação: "este paciente é incurável; fiz tudo que Deus poderia fazer e continua doente!". Um exemplo disso, cada vez mais comum, é a administração de toda sorte de drogas e medicamentos em doses cada vez maiores, num esquema que se nega a perceber o fato que se vai evidenciando, de que não houve cura ou mudança real. Por exemplo, uma jovem senhora recebera de certo médico ajuda efetiva no tratamento de diversos males. Por fim surgiram enxaquecas, para as quais foi tentado um tratamento medicamentoso. Como isto não funcionou, ela passou a lhe pedir mais e mais narcóticos, no que era sempre atendida pelo médico. Quando propôs uma abordagem psicológica, a sugestão dela foi rejeitada. Finalmente o pacto inconsciente dos dois conduziu a um problema de dependência e adição a drogas de tal ordem que a questão das enxaquecas passou a ser uma preocupação menor. A paciente afirmava: "Na medida em que eu jamais o questionava, ele ia dando as prescrições de narcóticos tanto quanto eu desejasse". Um pesquisador chegou à conclusão de que certos médicos têm mais medo de morte e de doenças do que seria considerado normal estatisticamente (FEIFEL, 1965). Entrar na medicina seria uma forma intelectual de negar, mas, ao mesmo tempo, de também tentar controlar essas realidades; daí serem tão enormes suas necessidades de cura. Essa atitude colabora para que jamais se enxergue o lado sombrio, ferido, de si mesmo, ou a periferia das próprias limitações. No entanto, alguma coisa tem que ser elaborada a fim de que se retirem as projeções mútuas.
Como acontece para médico e paciente entrarem em contato com seus papéis complementares inconscientes de modo a abandonarem as projeções e permitirem a ativação do "médico interior" do paciente? Um bom médico tem pelo menos um certo número de sentimentos não ansiosos em relação à doença que trata. Recebeu treinamento genérico e trabalha no sentido de "despotencializar" sua ansiedade em relação à doença, tendo-se familiarizado com o seu curso natural. Além disso, a sua persona profissional é capaz de mobilizar a esperança do paciente. Tais atribuições capacitam-no a propiciar que o médico interior faça seu trabalho. É nisso principalmente que se baseia a confiança reiterada num bom tratamento médico-psiquiátrico de curta duração.
São outros os parâmetros que parecem operar em uma psicoterapia analítica quando se visa, presumivelmente, a mudanças mais profundas e de maior alcance. Na análise, o analista-curador deve manter sempre contato com seu lado inconsciente, podendo, assim, tornar-se até mesmo o guia do médico-interior do paciente. Mas como é que ocorre este processo? As comunicações inconscientes entre analista e paciente desempenhariam, aparentemente, um papel crucial.
Jung, em Psicologia da Transferência, descreveu detalhadamente como isso pode ocorrer (JUNG, 1946, p. 133-338). Ele enfatiza que o processo de mudança e transformação ocorre primariamente no inconsciente. Sua ênfase recai sobre o relacionamento inconsciente entre analista e paciente que determinaria os resultados (p. 261). Sublinha também os aspectos de arquétipos das figuras envolvidas (Anima e Animus), e o fato de ser errado e perigoso assumir uma identificação por demais personalística. Também Meier, em sua recente discussão sobre os tipos psicológicos e individuação, faz alusão a isto (MEIER, 1968). E acrescenta que é a esse mesmo nível de profundidade que ocorrem os fenômenos parapsicológicos.
Jung então prossegue acompanhando o desenvolvimento dessas imagens arquetípicas através das dez gravuras da obra alquímica. Como já havia afirmado anteriormente, existe uma "união trans-subjetiva" dessas duas figuras arquetípicas. Esta união, via morte, dá origem à figura alada do filius, também chamado de "símbolo de Cristo" (JUNG, 1946, p. 308). Em linguagem psicológica, trata-se de uma manifestação do Self.
Em sua essência, o processo analítico atingiu, a essa altura, um ponto em que um "Terceiro Ser Personificado" ou "Terceiro Elemento" deu entrada na relação, e passa a ser crucial na mudança e no desenvolvimento dos participantes. Jung vai mais além e afirma que o lápis ou filias é o Homem Primordial cosmogênico. É o Uroborus, a serpente que se fecunda e se dá à luz" (JUNG, 1946, p. 309). A seguir diz que o símbolo era um paradoxo, "melhor descrito em termos de opostos". O que é significativo para os nossos propósitos neste trabalho é que Jung descreve um processo dinâmico, fluido, dentro da transferência, em que as mudanças podem acontecer. Uma "Terceira Pessoa" ou Imagem Arquetípica, com sua polaridade de opostos, surge entre os participantes. A Figura 2 ilustra isso.
O sistema agora fica sendo primariamente "de três" em vez "de quatro". O "três" representa o sistema em movimento, com polarização e gradiente, enquanto que "o quatro é de estabilização e totalidade" (JUNG, 1946). Meier (1959) desenvolveu com mais detalhes o ponto de vista de Jung a respeito da transferência envolvendo a imagem arquetípica como um terceiro fator". Depois de discutir as projeções mútuas de sujeito e objeto, isto é, analista e paciente, concentra-se sobre a questão da interpretação dessas projeções.
O analista força cada vez mais para um nível mais profundo dentro do objeto, de modo que o 'corte' entre o sujeito e objeto (analista e paciente) vai-se situando cada vez mais no interior deste último. A percepção interna do analista passa a ser de tal grau de intimidade que ele já não pode afirmar se está lidando com o objeto ou se em parte já não é consigo mesmo (MEIER,1959, p. 30).
Finalmente, este processo pode avançar a ponto de se tornar impossível determinar a fonte de onde se originam as imagens (MEIER,1959, p. 30). A hipótese de que uma imagem personificada, arquetípica, está presente entre as duas partes, desenvolve-se a partir disso. Daí deriva também empiricamente a hipótese do inconsciente coletivo ou psique objetiva (MEIER,1959, p. 30).
Continua Meier: "Caracteristicamente, no entanto, estamos operando, o tempo todo, dentro de um sistema que constela uma terceira quantidade (para o analista e para o paciente), um objeto que age para os dois". Esta imagem arquetípica: "tem dois efeitos: a) Aumenta a consciência do paciente em particular e desperta-lhe o poder de curar-se; b) Tem um efeito reativo sobre o inconsciente coletivo, com alterações na imagem original ou com o surgimento de outras imagens". Isto deflagra um movimento pois segue um padrão inato, que Jung chamou processo de individuação (MEIER,1959, p. 30-31).
É muito variável a forma que esta "Terceira Quantidade" ou imagem arquetípica adotará. O número de formas sob as quais o Self pode constelar-se é infinito. Em seu trabalho sobre a resolução da transferência, Henderson (1954), discute algumas manifestações importantes mais comuns. Comenta as manifestações do Self sob forma de pedra preciosa, imagem de Deus, ou uma "amizade simbólica". O que é significativo para a presente discussão é que "uma terceira quantidade ou quantidade superior" constela-se a partir da transferência, adquirindo posição central no processo de cura.
Jung, Meier e Henderson, todos eles, concentram-se no sistema triádico da transferência como veiculador da individuação. De que modo esse aspecto da transferência pode nos esclarecer sobre o processo de cura, particularmente no que diz respeito à imagem arquetípica do médico ferido? Meier afirma que a interação reativa do paciente e imagem arquetípica "desperta nele (paciente) o poder de curar-se" (MEIER,1959, p. 30). Como é que isto ocorre, mais especificamente? E também o que acontece no interior do analista? Podemos agora postular o que ocorre quando um tratamento analítico profundo e completo tem lugar. Não deve ocorrer apenas a retirada das projeções entre os dois participantes para que aconteça a cura, mas é imprescindível que o paciente entre em contato, a nível profundo, com o arquétipo do médico ferido. Poderia ser o que Jung afirmou a respeito do "Animus e Anima" (JUNG 1946, p. 261) na coniunctio alquímica, que o principal processo no tratamento, a nível profundo, é a "união trans-objetiva" e a experiência dos pólos opostos da imagem arquetípica do médico ferido? Se é assim, então agora poderemos ter uma compreensão mais profunda e mais clara da necessidade do próprio médico analista "ter conhecimento e participação em suas próprias feridas incuráveis", de modo semelhante ao que ocorria no mistério primordial da cura que chegou até nós através do mito de Esculápio (KERÉNYI, 1959, p. 98-99). Pois, para que o paciente tenha a experiência integral dessa imagem arquetípica dentro de um processo dinâmico, cabe ao analista mostrar-lhe o caminho. E isto só pode acontecer se o analista tiver tido antes a coragem de vivenciar estes poderosos conteúdos arquetípicos. O processo poderia ocorrer da seguinte maneira (Ver Figura 5): analista e paciente encontram-se em um nível consciente - 1 e 2. Cada um deles identifica-se com apenas um dos aspectos da imagem do médico-ferido; o médico com o lado que cura e o paciente com o lado que está ferido. Em um nível inconsciente poder-se-ia também dizer que a imagem arquetípica se encontra em repouso, estando cada participante aí também identificado apenas com um dos polos da imagem.
Não obstante, desenvolve-se um relacionamento dinâmico dentro do processo analítico.
O analista "toma para si" a doença e as feridas do paciente e começa a experimentar, de maneira mais plena, o lado ferido da imagem arquetípica. Isto, por sua vez, ativa as suas próprias feridas, sua vulnerabilidade à doença em um nível pessoal e/ou em conexão com a imagem arquetípica do médico-ferido. Essas conexões, 5, 6, 7, 8, 9, 10, frequentemente não podem ser distinguidas no início, como afirma Meier (MEIER, 1959, pág. 29).
Meier explica porque o analista deve lidar intensivamente com os elementos arquetípicos da transferência (p. 32). Descreve também um caso famoso, publicado por Robert Lindner: um analista que havia tratado um físico atômico que tinha um grave delírio. O tratamento mostrou-se ineficaz até o momento em que, finalmente, Lindner dispôs-se a "entrar" no sistema delirante do paciente. O próprio Lindner passou a apresentar sintomas alarmantes, o que, oportunamente, liberou o paciente, que se mostrou capaz de se distanciar de seu sistema e a doença acabou por desaparecer (p. 32). Meier descreve a conduta de Lindner como tendo "captado os conteúdos do inconsciente coletivo, desviando os efeitos do paciente para si próprio" (p. 32).
Não é nada baixo o nível de solicitação num processo como esse. Jaspers afirma: "A solicitação de envolvimento pessoal do médico durante a psicoterapia é tão pesada que uma gratificação completa só ocorre em casos isolados, se é que alguma vez ocorre". V. Weizacker formulou o peso da solicitação da seguinte maneira:
Só quando o médico tiver sido tocado profundamente pela doença, infectado por ela, mobilizado, amedrontado, comovido; só quando ela tiver se transferido para ele, continuado nele e obtido um referencial em sua própria consciência - só então e só nessa medida poderá lidar com ela eficazmente (JASPERS, 1964).
Posteriormente, afirmar de maneira clara que "Psiquiatras responsáveis transformarão sua própria psicologia, a psicologia do médico, em objeto de sua própria reflexão consciente" (JASPERS,1964). É então que o analista está pronto para reexperienciar dinamicamente o aspecto curador do arquétipo - 5 - e, desta forma, o fenômeno da totalidade ou cura pode tornar-se efetivo. Se o analista evita este processo doloroso, não pode realmente ser chamado de um "médico-ferido". "Existem, no entanto, autênticos "médicos-feridos" entre os analistas; são terapeutas em quem o arquétipo não se encontra dividido. O tempo todo estão sendo, por assim dizer, analisados e iluminados por seus pacientes. Um analista desse tipo reconhece sempre de novo como as dificuldades do paciente constelam seus próprios problemas e vice-versa, o que o leva a trabalhar abertamente não apenas a problemática do paciente, mas também a sua própria. Nunca deixa de ser tanto um médico quanto um paciente" (GUGGENBÜHL-CRAIG, 1971 p. 129-130).
Não será fácil, porém determinar até que ponto o analista deve se envolver ao assumir a doença do paciente. Ao mesmo tempo em que precisa estar suficientemente próximo para poder envolver-se, ficar mobilizado e atento às suas próprias feridas a fim de catalisar o processo (de acordo com o que foi descrito), não pode também perder de vista nem os perigos da inflação, nem suas próprias limitações, até mesmo a possibilidade da sua morte. É exatamente nessas condições que a imagem arquetípica do médico-ferido pode melhor ajudá-lo. Ele estará em melhores condições se "a cura for entregue a Deus". Na verdade, foi Deus quem trouxe a doença, consequentemente, Ele é quem sabe a cura. Daí que, apesar de ser imprescindível um envolvimento profundo, paradoxalmente o excesso de zelo em curar deve ser evitado. O médico pessoal de Jung, que o tratou de um ataque do coração, passou por uma grande dificuldade por causa disso. Jung tinha tido um ataque cardíaco; permaneceu inconsciente durante o tratamento e teve uma série de visões. Sentia com toda certeza que estava prestes a morrer; isso porque atingira a "forma primal", um estado de extrema exaltação e "disponibilidade para experimentar tudo". Viu então o seu médico, Dr. H., personificado também numa "forma primal" como um "basileus (rei) de Kos". Quer dizer, estava personificado como uma figura curadora associada ao templo de Esculápio em Kos (o médico ferido). Trazia da terra a mensagem de que ainda não era o momento de Jung morrer. Jung ficou zangado, sentindo que já estava pronto para partir.
Depois de muita luta, finalmente Jung foi trazido de volta e começou a se recobrar da doença. Passou então a temer pela vida do Dr. H., como se este devesse morrer em seu lugar, uma vez que na visão aparecera também sob uma "forma primal", estado de completa preparação para a morte. No dia em que Jung deixou o leito, o Dr. H. caiu enfermo e nunca mais se recuperou! Jung tentara advertir o Dr. H., mas parece que este não admitiu discussão nenhuma a respeito. No caso, o médico-ferido arquetípico tinha estado pronto para interceder por Jung e salvar-lhe a vida. Poderia o Dr. H. ter se identificado tão profundamente com a necessidade de curar Jung e trazê-lo de volta à vida? Na visão, o Dr. H. é literalmente o médico Esculápio, rei de Kos. Está de tal forma identificado com esta "Terceira Figura, a arquetípica", que não se pode diferenciar entre as figuras pessoal e transpessoal (JUNG, 1963).
Ou teria ocorrido que o Dr. H., estando ele próprio pronto para morrer, identificou-se com o "médico final"? Kerényi afirma:
De acordo com os poemas e lendas que nos falam de Euripilo, filho de Telephos, foi Macaon que, dentre os filhos de Esculápio, de certa forma sucedeu o pai em seu aspecto mais sombrio, sua ligação com a morte. Ele representa a contraparte terrena do divino Paieon. O médico dos deuses no Olimpo é exclusivamente curador, não tem nada a ver com a morte. Mas o melhor médico da terra é um herói que fere, cura e é irremediavelmente ferido (KERÉNYI, 1959, p. 84, grifo nosso).
Igualmente deve-se recordar que Esculápio foi morto por Zeus por trazer muitas pessoas de volta à vida (GRAVES, 1955, p. 175). Tornou-se um deus exatamente por ser um "médico final", ou seja, por ter dado a própria vida pela vida do paciente!
De acordo com o Dr. Joseph Henderson (comunicação pessoal), o Dr. H. era um clínico geral, epítome do médico-curador. O próprio Dr. Henderson recorreu à sua ajuda médica em dada ocasião, tendo afirmado depois ter experimentado "a comunicação de um enorme sentimento de atenção pessoal e interesse". Era como se "o paciente fosse a pessoa mais importante do mundo". Jung e o Dr. H. eram muito amigos, conforme conta o Dr. Henderson, e, sem dúvida, a profunda identificação do Dr. H. com o "médico final" deve ter-se estendido a Jung quando este ficou doente. Seja como for, a morte sincronística do Dr. H. em seguida à recuperação de Jung deixa muitas questões em aberto. Jung afirma em outro ponto:
É um típico risco de insalubridade profissional para o terapeuta ser infectado fisicamente e envenenado pelas projeções às quais se expõe. O terapeuta tem de ficar continuamente em guarda contra a inflação. Mas o veneno não o afeta apenas psicologicamente; pode mesmo atacar o sistema simpático. Observei um bom número dos mais extraordinários casos de doenças físicas entre psicoterapeutas, doenças que não correspondiam aos sintomas médicos conhecidos e que eu atribuí ao efeito de um contínuo ataque de projeções, em relação às quais o analista não consegue discriminar sua própria psicologia. A condição emocional peculiar do paciente tem um efeito contagioso. Quase que se poderia dizer que desperta vibrações idênticas no sistema nervoso do analista e, por isso, da mesma forma que os psiquiatras, os psicoterapeutas tendem a tornar-se um pouco esquisitos. É um problema para se ter sempre em mente. Está relacionado de maneira definida ao problema da transferência (JUNG, 1968, p. 172-173, grifo nosso).
Jung descreve mais amplamente as "infecções psíquicas" que acometem o médico (JUNG, 1946, p. 176-177). A fascinação inconsciente do médico pelo paciente ativa conteúdos perigosos, "de nada adiantando para salvá-lo, esconder-se por trás da persona medici". É exatamente por trás dessa cegueira, afirma, "que a doença vai-se transferir para o médico". Adverte então, com sobriedade, que cada médico que se inicia nesse campo deve trazer à consciência sua própria disposição instintiva em relação à sua motivação na escolha desse campo como primeira opção. Sabe-se que entre os médicos a taxa de suicídio é maior que a da população em geral, e que entre os médicos são os psiquiatras que detêm os índices mais elevados. Será que isto significa que os psiquiatras simplesmente não estão psicologicamente preparados com o seu autoconhecimento para lidar adequadamente com o que irão se deparar em seu caminho? Jung diz:
O médico sabe - ou pelo menos deveria saber - que não foi por acaso que escolheu essa carreira; e o psicoterapeuta em particular deveria ter uma compreensão clara de que infecções psíquicas […] são os concomitantes predestinados do seu trabalho, e por isso mesmo totalmente coerentes com a disposição instintiva de sua própria vida (JUNG, 1946, p. 177)
Também Freud afirmava: "Não é de muita vantagem para os pacientes que o interesse terapêutico de seus médicos tenha uma ênfase emocional muito grande. Ajuda muito mais quando a tarefa é desempenhada sobriamente e tanto quanto possível em estrito cumprimento das normas" (FREUD, 1927).
Passando agora para a perspectiva do paciente, o que acontece parece ser o que se vê na Figura 5.
O paciente "toma para si" as forças curadoras do analista - 2 - e começa também a ter a experiência dos conteúdos do aspecto "curador" da imagem arquetípica - 4. Isso por sua vez ativa a própria energia e potência curativa do paciente - 11, 12 (se bem que, mais uma vez, como descreve Meier, é muito difícil separar desde o início as imagens e recordações pessoais dos conteúdos arquetípicos - 13, 14). O paciente agora começa a tomar parte ativamente no processo terapêutico. Consegue "distanciar-se" e ganha uma nova perspectiva. Começa ele próprio a participar da cura. Fica carregado energeticamente em relação a conteúdos do aspecto "ferido" da imagem arquetípica do, mais uma vez, "médico interior" - 3 - e a experiência de totalidade se constela.
Uma jovem cliente, com pouco tempo de análise, fornece-nos um exemplo disso. Eis o seu sonho:
Vejo o analista em minha casa; está deitado na cama (sofá) e eu numa cadeira de balanço ao seu lado. Sinto-me doente e ele interpreta os meus sonhos. De repente, acordo assustada de ver que são dezoito horas e não dezessete horas, que é o horário em que devo ver meu analista. Vejo-o então na cama, sorrindo compreensivamente e, percebo que caí num sono irresistível enquanto ele falava comigo durante a sessão. Decidimos tentar de novo, mas então me dou conta de que ele está doente, vomitando ao lado da cama e me apresso em socorrê-lo. Depois de acalmá-lo, começo a limpar e ele se opõe. Respondo que está tudo bem assim, que sou uma enfermeira e tenho prática nessas coisas. De repente estamos rodeados de assistentes que parecem ansiosos por atendê-lo; uma garota bonita, de cabelos castanhos curtos e cútis delicada, e uma senhora idosa, uma secretária, são especialmente prestimosas. Compreendo que sou um pouco intrusa; outras pessoas na vida dele são mais significativas, chegando a estarem 'presentes' em nossas sessões!
As associações foram as seguintes: ele, o médico, é um homem alto, forte, cabelos grisalhos, de aparência e feições duras e robustas como um lenhador. Mas também atraente, gentil, sensível, meio sem idade definida, cheio de sabedoria, e me desperta interesse. Refletindo sobre o sonho, reconheceu certas diferenças existentes entre o "médico-ferido" do seu interior e o seu "analista exterior". A mais notável dessas diferenças era que o "médico interior" era ao mesmo tempo um lenhador forte, capaz de realizar trabalhos duros, físicos, terrenos e também parecia estar muito à vontade no "reino espiritual interior", sensível, sem idade e sábio. Continha a imagem da totalidade, ainda que estando doente e necessitando de cura.
Seu analista externo, mesmo tendo em comum com o médico interior as qualidades espirituais, não possuía, porém, as mesmas características terrenas. Parecia bem mais ascético. No sonho, ela começa a tratar o médico ferido como se fosse enfermeira, o que de fato era. Isso mostra sua própria potência curadora se constelando. Daí por diante, sua participação consciente no processo terapêutico passou a ser maior. Este exemplo ilustra a presença da "terceira parte" da imagem arquetípica do médico ferido, e sua nítida diferenciação do analista-médico pessoal, exterior.
Voltando ao exemplo anterior, de quando Jung sofreu um ataque cardíaco e aparentemente foi salvo por seu médico, Dr. H., percebe-se uma dimensão similar à da jovem enfermeira do sonho acima, ou seja, Jung voltou, pela visão que teve, ao papel de analista-curador espiritual do seu próprio médico, ao ter uma revelação precognitiva de que a vida do Dr. H. estava em perigo (comunicação pessoal de Henderson). Com isso, Jung deslocou sua atenção de si mesmo e passou a preocupar-se com o que poderia ocorrer ao Dr. H., que agora era, de certa forma, "paciente de Jung". Aparentemente Jung procurou falar disso ao Dr. H., mas não conseguiu (JUNG, 1963). Sem dúvida isso mobilizou o poder de cura dentro do próprio Jung, mais ou menos da mesma forma que na jovem enfermeira citada. Claro que no caso de Jung surge também o difícil problema de médico tratar de médico. É sabido que médicos são os pacientes mais difíceis de tratar.
CASO nº 1
Uma senhora de 44 anos de idade, com uma história de sintomas psicofisiológicos intensos em associação com o seu quarto divórcio, sonhou que estava a caminho do hospital, mas, antes de chegar ao mesmo, viu uma grande serpente aproximar-se e lhe morder o seio direito. Seu então marido corria com um alicate para extrair a serpente. Não conseguia.
Refletiu sobre o sonho e sentiu medo. Associou com a história de Adão e Eva que também foram atormentados pela serpente. Sentiu-a como uma imagem do mal. Em seguida, porém, voltou como antes a achar que seus sintomas físicos "deveriam ser tratados basicamente com remédios ou cirurgia". Três meses depois desenvolveu-se em seu seio um nódulo definido e doloroso. Imediatamente associou ao seu sonho. A avaliação médica não sugeria processo mórbido alarmante. A interpretação encaminhou-se no sentido de ajudá-la a perceber que era necessário para ela, como para a Eva de antigamente, tornar-se mais consciente por meio da mordida da serpente. Neste caso, a serpente representaria o lado que fere da imagem arquetípica. Não poderia ocorrer cura senão após tornar-se mais consciente através do ferimento. Como disse Adler: "Ser ferido significa também ter a capacidade de curar ativada em nós; ou talvez pudéssemos dizer que sem ser ferido ninguém pode nunca aspirar possuir essa capacidade? Poderíamos chegar até a dizer que o próprio objetivo da ferida é nos tornar conscientes da capacidade de curar que existe dentro de nós" (ADLER, 1956, p. 18).
CASO nº 2
Uma moça de 28 anos com sintomas psicológicos sérios e portadora de uma verdadeira dissociação de personalidade decidiu, um tanto impulsivamente, mudar-se para outra cidade e com isso terminar a terapia. O trabalho analítico tinha apenas começado e nesses poucos meses tinha havido já um bom começo. Foi quando teve o seguinte sonho: estava numa cova e cercada de serpentes monstruosas por todos os lados. Muitas dessas cobras tinham nomes de homens que haviam influído destrutivamente em seu desenvolvimento, sexualmente ou de outras maneiras. Havia cobras em seu pescoço e em suas orelhas, sufocando-a. Acima da cova das serpentes postava-se uma outra parte sua, uma figura sombria que estava rindo. Acima também, sentado, estava o seu médico. Este nada fazia para ajudá-la, apenas falando: "Hum, hum, sei o que está acontecendo".
Interpretou esse sonho como uma advertência a respeito do que lhe aconteceria se interrompesse o trabalho analítico. Nesse caso poderíamos dizer que a imagem arquetípica do médico ferido, sob forma das serpentes, estava, outra vez, como no caso anterior, provocando um sintoma, a sufocação, a fim de preveni-la sobre o que ocorreria se não desse continuidade ao processo analítico. Enquanto isso, seu médico (aspecto curador) a aguardava.
CASO n° 3
Uma senhora de 41 anos estava em análise há um ano e meio, arrastando uma grave depressão, sobrecarregada pela responsabilidade da criação de seis filhos após um sofrido divórcio de seu marido alcoólatra. Depois de muitos altos e baixos começou finalmente a ter alguns sonhos que indicavam novas possibilidades de mudança. Teve o seguinte sonho: ela, sua filha de 19 anos e uma amiga de idade igual à sua, todas tinham tido bebês. Tinham até mudado para uma casa nova situada em uma colina. No entanto, a polícia veio atrás e tirou o bebê da paciente. Este bebê tinha seis meses de idade. Ao tomá-lo, o policial falou: "Este bebê lhe será tirado por um período de quatro meses". Tal fato no sonho deixou-a profundamente entristecida. Achava que era um momento muito importante no desenvolvimento da criança. Deixou então a casa e começou a descer acompanhando um comprido curso d'água. Aproximou-se de alguma maneira da água e serpentes de uma espécie desconhecida começaram a surgir, vindo em sua direção. Uma delas lhe mordeu a mão, na face lateral da palma. Ao segurar a mão atingida, um estranho desconhecido, de aparência sombria, aproximou-se afirmando: "Agora vou ajudá-la".
Suas únicas associações com esse sonho foi que odiava cobras e que poderia ter sofrido, numa idade muito precoce, privação emocional. O sonho parecia apontar para uma época de sua vida em que poderia ter sofrido algum trauma emocional grave, isto é, entre seis semanas e seis meses de idade. O médico-ferido neste caso apareceu infringindo-lhe um ferimento físico com a finalidade de pô-la em contato com as "feridas emocionais" que sofrera quando criança. Além disso, o ferimento provoca o aparecimento de uma situação por meio da qual "um agente curador desconhecido" irá operar. Até suceder isto, a paciente havia perdido quase que totalmente a esperança de melhorar. Foi também significativo que, pela primeira vez, a paciente se recordava da sua mãe ter uma mão deformada pela poliomielite, e que ela havia passado por provações semelhantes às que a paciente teve de suportar em sua vida adulta.
CASO n° 4
Uma moça solteira de 21 anos veio para análise por sofrer de asma crônica e múltiplos conflitos emocionais. Seu relacionamento com o médico na situação terapêutica era tumultuado e difícil. Achava perturbador revelar-se e examinar seus sonhos e as recordações do seu passado. Um dia, logo no início da terapia, teve um sonho: "estava no consultório do analista, mas era tudo muito diferente; de repente o médico se transformou em uma figura ameaçadora toda distorcida. Ficou bastante assustada com uma série de imagens complexas que lhe surgiram e finalmente viu-se num quarto adjacente ao consultório, onde havia uma cadeira de dentista. A secretária do analista estava ali tentando colocar um tubo em uma veia do seu pescoço, o que lhe provocou um imenso terror. Foi-lhe dito que isso era "necessário para ver se ela estaria trapaceando ou não".
Neste caso, a paciente parece estar sendo esmagada até pelas perspectivas de cura. O médico-ferido e sua assistente aparecem apenas em seus aspectos terríveis e ameaçadores, com a preocupação única de infligir o ferimento. Pouco tempo depois, houve outro sonho: "uma cobra saía do meio das árvores de uma floresta onde havia uma garota sentada e lhe mordia o pescoço". No sonho a paciente tentava extrair o veneno do próprio pescoço, o que se revelava uma tarefa extremamente difícil. Sentia-se isolada e sozinha, e seus esforços no sentido de encontrar uma saída eram muito débeis. É interessante notar que o seu pescoço era precisamente o ponto em que mais sofria durante seus ataques de asma, quando sufocava e era hospitalizada por não conseguir respirar. Não demorou muito e ocorreu outro sonho: Estava correndo para um hospital na tentativa de encontrar um médico que lhe desse uma máquina que lhe possibilitasse respirar. Desta vez também a experiência era horrível e amedrontadora.
Não muito tempo depois teve outro sonho: outra vez estava no consultório, só que desta vez deitada no divã. Começava a levantar-se quando ele gritava: "Não! Fique aí!". Mas a paciente retrucava "Sim!" e ficava sentada. O analista então começou a falar a respeito de seu filho e a idade dele. Neste ponto a imagem do médico-ferido parece estar se transformando em algo mais acolhedor e menos assustador.
Algum tempo depois sonhou que estava de novo com o seu médico, só que desta vez era ele quem a visitava em sua casa. Estava para adormecer no divã e o médico ia para a cabeceira do divã sentar-se numa cadeira de balanço, enquanto ela descansava das criancinhas de quem tomava conta.
Nesses dois sonhos aparece o motivo da incubação conforme era praticada nos antigos templos de Esculápio. A imagem do médico-ferido surge também numa forma menos amedrontadora do que anteriormente. Também o seu relacionamento concreto, com o seu médico concreto, passou a ser mais calmo e lhe permitiu começar a trabalhar mais efetivamente no processo analítico.
A seguir teve outro sonho em que se achava massageando com toda a força o pescoço do analista. Este lhe dizia no sonho que estava um pouco demais, quer dizer, com pressão demais. De repente, a sonhadora percebe que o segundo dedo de sua mão esquerda lhe havia sido cortado e admira-se de que isso tenha acontecido sem que notasse.
Nesse momento da sua terapia começava a sentir que seu analista realmente lhe dava atenção, coisa que nunca havia sentido antes. Interessante também é a associação que fez entre seu dedo cortado e o dedo médio decepado da mão direita do analista, que estava machucado. Aqui neste sonho começa uma identificação maior com o médico e, a nível arquetípico, uma tentativa forte demais de massagear ou "manipular" os aspectos de sua doença que gostaria de ver curados, ou seja, o pescoço de onde partiam a tosse e a sufocação. Isto é: o médico-ferido está se queixando de que seus esforços estão sendo por demais energéticos e mal colocados.
Pouco tempo depois veio outro sonho em que um médico desconhecido, de cabelos pretos, de quem realmente gostava, usava um instrumento para olhar em seus olhos. Após um longo intervalo de tempo, aquilo começou a machucar. O médico dizia por fim: "Quando a pele é fina tenho de agir assim". E a paciente: "Fico contente em saber que você é diferente. A maioria dos médicos dá só uma olhada no paciente e diz: 'está tudo bem'". Estava tendo algum problema com a vista esquerda e aquele exame cuidadoso tinha por fim tratá-la.
Nesse ponto começa a sua verdadeira cooperação com o processo de cura. O médico-ferido está tendo de lhe infligir um sofrimento, porém com o intuito mais elevado de promover a cura. Foi possível detectar, através das suas associações, a necessidade de melhorar sua capacidade de se perceber interiormente (visão deficiente, no sonho).
No sonho seguinte, encontrava-se com o seu médico que, para sua surpresa, explicava que tinha tido sempre de se sentar na cadeira mais desconfortável, enquanto lhe deixava a melhor durante as sessões de análise. Dizia também que sempre tinha dores de cabeça após as sessões. Isso a fez se sentir muito mal. Queria ajudá-lo de alguma maneira. De repente, o médico começou a tossir e isso a assustou ainda mais.
Neste sonho a paciente começa a perceber o lado ferido do próprio médico. É interessante notar que exatamente por essa época alguns dos seus sintomas de asma começaram a perder intensidade, permitindo-lhe começar a sentir, pela primeira vez, que poderia vir a melhorar da asma. É importante também assinalar que o analista começou a vivenciar subjetivamente mais sintomas de tosse.
Alguns meses mais tarde, sonhou que voltava a sentir (como em numerosos sonhos anteriores) terríveis dores de dente. Sentia que havia um abscesso e apanhou uma faca para rasgá-lo. Surgiram três homens e um bebê. Os três homens eram (em suas associações) seu pai, que a amava, seu namorado, que dela precisava, e seu médico, que a aceitava. O bebé seria ela própria. Daí, no sonho, os três homens sacavam pistolas e atiravam nos pescoços de três outros homens, matando-os. O pescoço sempre fora sua área mais vulnerável. Os três mortos eram figuras sombrias, escuras, que tinham o intuito de fazer-lhe mal.
Por fim, algumas semanas mais tarde, coincidindo com um momento em que se tornara possível diminuir-lhe a dose de um dos medicamentos usados no tratamento da asma, e em que o número de ataques havia diminuído, sonhou: dois médicos desconhecidos a visitavam, sendo um jovem e negro, e o outro, um branco sexagenário. Os dois queriam que ela viesse para a clínica naquela noite. O médico idoso falava a respeito da asma e mostrava como havia sido terrível ela não ter falado disso durante tanto tempo. Ficou imaginando se os dois médicos conheceriam o Dr. G., seu analista; e se deveria mencionar o nome dele. Disse àquele doutor que não iria para a clínica médica porque um certo Dr. B. (seu médico clínico pessoal) havia gritado com ela e porque um tal Dr. M. "também não era bom". Ambos "não queriam tê-la como paciente", explicou. Os dois médicos desconhecidos retiram-se. Ficou imaginando se conseguiria manter a consulta com eles.
Vemos que dois médicos desconhecidos, imagens arquetípicas do médico-ferido, assistem-na amigavelmente em sua enfermidade. Coincidentemente (ou sincronisticamente), seu analista, o Dr. G., sonhou, na mesma noite do sonho mencionado, que um dos seus dentes estava caindo, com muito sangue coagulado. As associações do Dr. G. referiram-se à paciente. Aparentemente as feridas desta estavam-se transferindo para ele, conforme ela ia começando a melhorar. Esse caso ilustra bem, em muitos aspectos diferentes, como a imagem arquetípica do médico-ferido pode funcionar na transferência entre médico e paciente.
O que ocorre na fase final do processo analítico pode ser o que vemos na Figura 6.
Este diagrama pretende mostrar a evolução final do processo de cura. O médico fica sendo um "curador que é ferido"; a imagem arquetípica do médico-ferido permanece a mesma, e o paciente tem a sua "ferida curada". Ao final, analista e paciente separam-se levando cada um dentro de si uma parcela da divindade.
Uma implicação interessante deste processo tão intenso é que fica explicado porque a psicoterapia analítica transcorre melhor quando seu contrato é feito dentro da clínica particular. Quando uma clínica ou uma instituição fornece as condições para que analista e paciente se encontrem, o "terceiro fator" arquetípico ou o "médico-ferido", é projetado sobre uma instituição externa e, como consequência, nem médico, nem paciente realmente se engajam no processo de cura. Será por isso que a análise é praticada da maneira que conhecemos? Será por isso que ocorrem tão poucas "curas" nas clínicas?
Outra importante conclusão a ser tirada do estudo do arquétipo do médico-ferido é que o analista-curador deve passar por uma análise didática completa. Cada vez mais se afirma, em círculos psiquiátricos, que a análise didática do terapeuta não é absolutamente necessária. Jung, é claro, há muito tempo já a recomendava a Freud, como um aspecto essencial do treinamento e da preparação para uma área na qual as solicitações são tão grandes. Os dados acima parecem reforçar sua necessidade absoluta, não apenas para terapeutas, mas até mesmo para aqueles que lidam em campos relacionados com o processo de cura, ou seja, as vocações -para as profissões de ajuda.
Fordham relembra, com o máximo cuidado, que é na análise didática que o futuro analista tem a oportunidade de tocar em "suas próprias feridas", algumas das quais jamais vem a ser curadas. Chega a sugerir que podem ser essas partes irredutíveis ou permanentemente danificadas, que constituem "a verdadeira base da motivação para a prática da psicoterapia". Acrescenta ainda que é na análise didática que doença e saúde surgirão para o analista em treinamento como um "par de opostos" que, após análise, "transcenderão um ao outro" (FORDHAM, 1968).
Nessas afirmações de Fordham está implícita a postulação de uma raiz para a criatividade, que pode funcionar como fonte perene de auxílio para o analista que terá de sobreviver aos rigores de anos de exposição ao sofrimento intenso experimentado em si próprio e nos outros. A semelhança de Chíron, o centauro da mitologia, ainda que certas feridas permaneçam incuráveis a fim de serem revividas sempre de novo, estas mesmas feridas podem ser transcendidas e/ou contrabalançadas por fontes de força e saúde sempre renovadas. Também Neumann devia ter isso em mente quando assinalou que o "o homem criativo está sempre muito próximo ao abismo da doença", em que suas "feridas permanecem abertas", não se fechando por meio da mera adaptação coletiva. No fundo, o próprio sofrimento é a fonte de um poder curativo e este "poder é o processo criativo". Por esta razão "só um homem ferido pode curar, pode ser um médico". (NEUMANN, 1959). Já que é o analista quem tem de achar suas próprias fontes de renovação interior permanente, a análise didática e sua periódica reciclagem podem ser meios para se atingir tal objetivo.
Sumário e conclusões
Gostaria de terminar relatando uma experiência de minha vida e que foi o estímulo do interesse pelo presente tema. Há alguns anos, ao longo de uma crise com mudanças e transições, vieram-me diversos sonhos e impressões importantes como instrumentos que me auxiliavam no longo caminho da análise didática. Muitos sonhos importantes pareciam dar direção e apoio ao trabalho de treinamento e desenvolvimento interior necessário para o crescimento. Um destes sonhos ficou quase esquecido. Mas um ano depois, em retrospecto, pode ser visto em sua verdadeira importância.
No sonho eu estava sozinho quando subitamente via minhas mãos sendo decepadas. Dizia então para mim mesmo: "sou igual à Sra. W. que leciona para minhas duas filhas". Começo de repente a chorar e experimentar um sentimento de verdadeira perda.
Acordei com lágrimas nos olhos e as associações se produziram em relação a antigas recordações de minha primeira infância, quando o dedo médio da minha mão direita foi violentamente cortado.
Na época em que tive o sonho, estava vivendo separado da minha família em vigência de um momento da transição. Minhas filhas frequentavam uma escolinha de interior onde tinham como professora uma senhora cujas duas mãos eram deformadas. Tinha me encontrado uma vez com essa professora.
Parece que nos anos imediatamente anteriores a essa época, esta senhora tinha carregado o grande peso de uma vida familiar extremamente difícil, de muitas tragédias pessoais, e dificuldades até para sustentar-se. Não era uma pessoa agradável de se olhar e sempre criou problemas na escola, e mais tarde como professora, por ser "uma pessoa para os outros". Por fim, com encorajamento da minha sogra, voltou à escola e diplomou-se professora. Sua popularidade com as crianças era incomum e possuía uma enorme habilidade para lecionar. Mesmo tendo as mãos deformadas, conseguia lidar efetivamente com seu defeito físico e estabelecia contato com as crianças de uma forma muito especial. Minhas filhas a descreviam como uma pessoa bonita.
O significado do sonho tornou-se claro para mim como uma resposta às necessidades de minha psicologia. Até então acreditara, como me havia sido ensinado no curso de medicina e residência em psiquiatria, que a pessoa deve sempre demonstrar sua força e esconder sua debilidade a fim de se tornar um bom médico. No trabalho analítico, porém, como se revelou a partir de muitas experiências, sonhos e contatos com pacientes, não se pode esconder feridas ou fraquezas; deve-se, na verdade, confrontá-las e trazê-las à consciência, quando se tem a esperança de um dia torna-se um genuíno médico-ferido. Como se viu antes, tentativas de esconder ou renegar as próprias fraquezas podem resultar em desastre e fracasso.
Bem mais recentemente tive um outro sonho em que me via perto de casa, procurando animais. De repente avistava um macaco com um camundongo que tinha uma mão direita esquisita semelhante à minha. No entanto, eu percebia que a mão estava crescendo ali diante dos meus olhos. Mas quando olhei para o macaco vi que ele estava com a mão direita numa cesta contendo fezes de onde a retirava e tornava a enfiar. O sonho parecia estar me dizendo que o trabalho de ser um curador requer também que, às vezes, o lado ferido, as tais áreas vulneráveis, deve ser constantemente submetido à exposição do lado sombrio da vida real, para ficar com as mãos sujas e se conseguir manter em contato com o que quer que seja que os pacientes tragam, numa relação bem terra à terra. Entre os analistas há uma antiga frase segundo a qual muitas vezes a pessoa se sente como um coletor de lixo. De modo que o sonho parecia dizer-me que, para eu ser verdadeiro médico-ferido, deveria lembrar-me constantemente de manter "a mão na massa" e somente isto poderia promover o processo de crescimento.
Por fim, devemos voltar à questão a respeito da essência do mistério da cura. Segundo a descrição antiquíssima no mito do Esculápio sendo educado por Chíron "a ciência primordial do médico ferido é apenas o conhecimento de uma ferida incurável experimentada para sempre pelo próprio curador". Na tentativa de responder a essa questão perguntamos: por que é que, para que aconteça a cura, o médico deve conhecer suas próprias feridas e realmente vivenciá-las cada vez de novo? Como procuramos demonstrar através de um exame detalhado da transferência que ocorre no processo analítico e em outros relacionamentos terapêuticos, só quando o próprio médico é capaz de se ligar e experimentar suas próprias feridas e doenças e confrontar as poderosas imagens de natureza arquetípica do inconsciente, é que o paciente, por sua vez, pode passar pelo mesmo processo. Pois se de fato ocorre alguma cura verdadeira, parece que é o próprio médico-ferido quem, pelo menos de alguma forma, deve efetuá-la; mas o analista deve estar presente. Jung disse-o de uma outra maneira (JUNG, 1951, p. 116):
Não há análise capaz de banir todo o inconsciente para sempre. O analista deve continuar sempre aprendendo e nunca esquecer que cada novo traz à luz, problemas novos e isso dá lugar a suposições inconscientes que antes nunca haviam se constelado. Podemos dizer, sem muito exagero, que uma metade de todo tratamento realmente profundo consiste no exame que o médico faz de si mesmo, pois só aquilo que pode consertar em si mesmo pode esperar poder consertar no paciente. Nem isso é menos verdade quando percebe o paciente recusando-o ou agredindo-o: é sua própria ferida que dá a medida da sua capacidade de curar. É este o sentido, e nenhum outro além deste, do mito grego de curador ferido.
Adler afirma também que a finalidade do confronto de nossas feridas pode ser a busca de um caminho para se chegar aos poderes de cura existentes dentro de nós (ADLER,1956). É possivelmente este o motivo por que tanta gente se vê atraída pelas profissões de cura. Como os loucos do provérbio, eles se aventuram por regiões em que os próprios anjos temem entrar. Há pouco um analista me disse que jamais abandonaria a prática analítica pois, se deixasse de ver pacientes, cairia doente outra vez. Em essência o que ele estava me dizendo era que só pela exposição de si mesmo no trabalho com os pacientes é que podia se manter em contato consigo mesmo e encontrar as raízes e fontes de totalidade num nível que lhe proporcionasse um certo tipo de equilíbrio.
Se bem que, apesar de tudo o que foi dito, a cura permanece sendo mistério, a tentativa de compreendê-la é uma aventura interminavelmente atraente, porque, ao longo dessa busca, podemos ficar conhecendo um pouco mais a respeito de nós mesmos. ■
Referências
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Agradecimentos a Joseph Henderson, M.D., Paul Kaufmann, M.D. Dr. Med. C. A. Meier, Elizabeth Osterman, M.D., Neil Russack, M. D., Benjamin Taylor, M.D, pelo incentivo na elaboração deste trabalho. ■
1 Este artigo foi publicado originalmente pelo Journal of Analytical Psychology, 20, 2, 122-145, 1975, The Society of Analytical Psychology. Publisher: John Wiley & Sons (https://doi.org/10.1111/j.1465-5922.1975.00122.x). A tradução para o português foi realizada por Pedro Ratis e Silva, com a colaboração de Maria de Lourdes Felix Gentil, sua publicação foi autorizada pelo Journal of Analytical Psychology e integrou a Revista Junguiana nº 1, 1983, p. 72-96.