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Psicologia Clínica
versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438
Psicol. clin. vol.28 no.2 Rio de Janeiro 2016
SEÇÃO TEMÁTICA
A pulsão de morte contra a pulsão de morte: a negatividade necessária
The death drive against the death drive: the necessary negativity
La pulsión de muerte contra la pulsión de muerte: la negatividad necesaria
Marianna T. de OliveiraI; Monah WinogradII; Isabel FortesIII
IMestre em Psicologia Clínica – Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIProfessora Associada – Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIIProfessora Adjunta – Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO
Tradicionalmente definida como traumática, como o que esgarça a rede representacional e alimenta a compulsão à repetição, levando o psiquismo ao esgotamento e à dissolução, a pulsão de morte apresenta, mais profundamente, uma outra face que é preciso sublinhar e que constitui o objeto central deste artigo. Se ela realiza um trabalho do negativo, a negatividade que ela expressa impulsiona a subjetivação, pois sua atividade e seus efeitos são absolutamente necessários, entre outros, para a construção do duplo limite psíquico (Green) e para a realização do primeiro trabalho psíquico verdadeiro (Rosenberg). Eis o paradoxo que pretendemos investigar: somente através dos desligamentos, dos vazios, das divisões e das separações gerados pela pulsão de morte os processos de simbolização podem proliferar, se enriquecer e o psiquismo pode se complexificar. Iniciamos analisando a pulsão de morte como força disruptiva para, em seguida, nos determos nas noções de ligação e de desligamento. Finalmente, demonstramos a necessidade de pensar a negatividade como necessária e fundamental para os processos de subjetivação.
Palavras-chave: pulsão de morte; trabalho do negativo; negatividade; trauma.
ABSTRACT
Traditionally defined as traumatic, as what frays apart representational network and feeds the compulsion to repeat, taking the psychism to exhaustion and dissolution, the death drive presents another face which must be stressed and that is the central object this article. If it performs the work of the negative, the negativity it expresses boosts subjectivation because its activity and its effects are absolutely necessary, among others, for the construction of the double psychic limit (Green) and the achievement of the first real psychic work (Rosenberg). This is the paradox that we intend to investigate: only through the shutdowns, the emptinesses, the divisions and separations generated by the death drive, the symbolization processes can proliferate, enrich itselfes and the psyche can complexify. We start analyzing the death drive as a disruptive force. Then we describe the notions of linking and unlinking. Finally, we demonstrate the need to think negativity as necessary and fundamental to the subjective processes.
Keywords: death drive, work of the negative; negativity; trauma.
RESUMEN
Tradicionalmente definida como traumática, como lo que deshilacha la red de representaciones y alimenta la compulsión a la repetición, teniendo el agotamiento y disolución psíquicos, la pulsión de muerte presenta, más profundamente, otra cara que debe ser estresada y que es el objeto central de este texto. Si ella realiza un trabajo de lo negativo, la negatividad que ella expresa estimula la subjetivación porque su actividad y sus efectos son absolutamente necesarios, entre otros, para la construcción del doble límite psíquico (Green) y para llevar a cabo el primer trabajo psíquico real (Rosenberg). Esta es la paradoja de que tenemos la intención de investigar: sólo a través de las paradas, los vacíos, las divisiones y las separaciones generadas por la pulsión de muerte, los procesos de simbolización pueden proliferar, enriquecer y la psique puede complejizar-se. Comenzamos con el análisis de la pulsión de muerte como una fuerza disruptiva para, a continuación, nos detenernos en las nociones de conexión y desconexión. Por último, demostramos la necesidad de pensar la negatividad como una condición necesaria y fundamental para los procesos subjetivos.
Palabras-clave: pulsión de muerte; trabajo de lo negativo; negatividad; trauma.
Tradicionalmente definida como traumática, como o que esgarça a rede representacional e alimenta a compulsão à repetição, levando o psiquismo ao esgotamento e à dissolução, a pulsão de morte apresenta, mais profundamente, uma outra face que é preciso sublinhar e que constitui o objeto central deste artigo. Se ela realiza um trabalho do negativo, a negatividade que ela expressa impulsiona a subjetivação, pois sua atividade e seus efeitos são absolutamente necessários, entre outros, para a construção do que Green (1982) chamou de duplo limite psíquico e para o que Rosenberg (1995) entendeu como o primeiro trabalho psíquico verdadeiro. Eis o paradoxo que pretendemos investigar aqui: somente através dos desligamentos, dos vazios, das divisões e das separações gerados pela pulsão de morte os processos de simbolização podem proliferar, se enriquecer e o psiquismo pode se complexificar. Positividade nascida da negatividade, condição de sua existência.
Retomemos um pouco da história do conceito. Ao lermos o Freud de 1920, percebemos que a ideia da autonomia da pulsão de morte relativamente a libido o afligia profundamente, pois sustentar uma destrutividade não derivada das pulsões sexuais seria de difícil aceitação à época (Garcia-Roza, 1990). Não por acaso, ele precisou esperar dez anos, para propor que a destrutividade fosse pensada como uma disposição pulsional independente, autônoma, originária e não mais necessariamente referida a um componente erótico (Freud, 1930/1996). Parece-nos que a aflição de Freud estava justamente em relativizar a ideia de uma disruptividade libidinal, tornada moeda corrente na teoria psicanalítica, apesar do escândalo inicial provocado pela sexualidade perversa e polimorfa. Agora, uma nova ruptura se fazia necessária: ao lado da potência disruptiva da sexualidade, era preciso considerar a operação demoníaca das pulsões de morte cuja energética era sem nome e cuja processualidade acontecia além e aquém do princípio de prazer.
Sabemos que essa passagem da primeira para a segunda teoria pulsional estava intimamente relacionada à centralidade impressa ao conceito de narcisismo em 1914. Nas palavras de Safatle (2007, p. 160), enquanto "unidade sintética que fornece o princípio de ligação do diverso da experiência sensível", o narcisismo primário foi proposto como um catalisador de Eros, chamado a investir constantemente o Eu para manter sua unidade. A introdução desse conceito teve duas consequências: além de fragilizar o primeiro dualismo pulsional, o conceito de narcisismo domesticou, em boa parte, a disruptividade da pulsão sexual, agora profundamente envolvida nos processos de constituição e de conservação do Eu. De tal modo que a reconstrução do dualismo pulsional em termos de pulsões de vida e pulsões de morte parecia responder à necessidade de um novo destino para a potência disruptiva de uma energia livre, inicialmente característica da libido. Era preciso encontrar um novo lugar teórico para essa força capaz de, ao mesmo tempo, inaugurar e curto-circuitar profundamente a dinâmica psíquica ao dizer respeito à disjunção entre o nível das excitações somáticas e o nível de suas representações psíquicas, resultando sempre em um resto não recoberto psiquicamente e sem registro. Mas será que o destino disso que não se inscreveu e que é capaz de desfazer as ligações estabelecidas apontaria exclusivamente para uma mortificação produtora, entre outros, de esclerose e asfixia psíquicas?
Pulsão de morte: força disruptiva e motor do novo
Em sua leitura da pulsão de morte, Safatle (2006) entendeu que o programa freudiano era, em última instância, o de ligar a compulsão à repetição para que ela se tornasse a mola da rememoração, melhor dizendo, da inscrição e/ou articulação psíquicas de um excesso intensivo traumático – projeto que seria válido até o fim da obra, mesmo que Freud tenha encontrado limites para a sua eficácia. Como se esse resto não simbolizado devesse ou pudesse deixar de restar, pelo menos, enquanto ideal de projeto terapêutico. Na mesma direção, Lippi (2013) nos lembra que o inventor da psicanálise, desde os "Estudos sobre a histeria" (Freud, 1893-1895/1996), já identificava no excesso de excitação – naquele momento, entendida principalmente como resultando da penetração no psiquismo por uma intensidade associada a qualquer evento exterior que trouxesse uma ameaça disruptiva – seria o fator patogênico principal, o perigo extremo para o indivíduo. Esse tema da exterioridade ameaçadora teria conduzido Freud a centrar teoricamente a estratégia de defesa e de sobrevivência do psiquismo não em suas possibilidades de acolhimento dos corpos estranhos que se apresentam e das intensidades dispersas que o atingem, mas na necessidade de baluartes que servissem de barragem contra as excitações excessivas. Para Lippi (2013), esse seria o sentido profundo da imagem da vesícula viva e de seu escudo protetor do "Além do princípio de prazer" (Freud, 1920/2006): a função de para-excitação seria mais importante que a de recepção de estímulos. Como se a imagem de homem de Freud se organizasse em torno de defesas em favor de um psiquismo muito frágil, pronto para se precipitar em um abismo frente a qualquer intensidade maior que a habitual. Defender-se do que se apresentasse seria, portanto, a palavra de ordem freudiana, posto que deixar-se penetrar pelo estranho ou abrir-se para o novo seria um perigo a ser evitado a todo custo. E quando a defesa não fosse possível, a compulsão à repetição teria a função de tornar-se inscrição e memória, domesticando o invasor (endógeno ou exógeno) e esvaziando sua força. De modo similar, Schneider (1977) também apontou como o princípio do prazer apresentar-se-ia como um dispositivo que levaria o psiquismo a se proteger contra o excesso das excitações que porventura pudessem inundar o aparelho. A formulação desse princípio revelaria o quanto as excitações se apresentariam, para Freud, como uma espécie de ameaça contra a qual seria necessário um princípio que as regulasse.
Se, de um lado, essa leitura faz sentido, de outro, porém, Freud (1915/1996) repetiu, por diversas vezes, que as pulsões são forças fundamentais justamente porque exigem que o psiquismo trabalhe, ou seja, constituem "[…] as verdadeiras forças motrizes por detrás dos progressos" (Freud, 1915/1996, p. 126). Em outras palavras, só haveria trabalho psíquico a partir de uma tensão (Freud, 1915/1996), contra a qual, contraditoriamente, seria preciso fazer barragem. Mas a contradição seria apenas aparente: para que o psiquismo trabalhe, seria preciso que a circulação energética se desse de modo constante e que sua intensidade estivesse abaixo de certos limites absolutamente singulares. Assim, a tensão capaz de impulsionar o trabalho psíquico sem causar grandes transtornos deveria se dar em doses suportáveis, pois, diante de intensidades muito grandes, o psiquismo curto-circuitaria até essa quantidade ser processada minimamente. Contudo, devemos perguntar: se nada pudesse romper essa estabilidade energética e ultrapassar os limites conhecidos, haveria trabalho psíquico para além da manutenção de uma mesma forma estabelecida, haveria processos de criação e de diferenciação?
Foi particularmente em dois textos: "Construções em análise" e "Análise terminável e interminável", ambos de 1937, que Freud (1937a/1996 e 1937b/1996) aprofundou a discussão sobre a questão dos limites: limites da clínica e limites da própria psicanálise enquanto teoria. Neles, Freud se mostrou bastante cético quanto à eficácia da análise, apresentando posicionamento oposto ao que assumira nos artigos técnicos de 1912 e 1914 (Freud, 1912/1996 e 1914/1996). Dentre os obstáculos à análise e ao seu sucesso, apontou a força constitucional das pulsões, a relativa fraqueza do Eu devido, entre outros, à fadiga ou a causas fisiológicas como a puberdade, a menopausa e as doenças físicas e, por fim, o mais importante e incontrolável deles, a pulsão de morte (Freud, 1937b/1996). Suas reflexões culminaram na pergunta inevitável: seria possível domesticar as forças pulsionais, seria possível sobrepujar a compulsão à repetição própria da pulsão de morte? Lida como pessimista, a resposta de Freud foi ser o objetivo da análise capacitar o Eu a revisar antigos recalques para construir novos a partir de material mais sólido. Se o recalque é como uma represa que controla a pressão da água (a força da pulsão), quanto melhor construída, mais controle a represa teria sobre a intensidade da água. Portanto, para ele, o trabalho de uma análise consistiria na correção a posteriori do processo de recalque originário, "[…] correção que põe fim à dominância do fator quantitativo" (Freud, 1937b/1996, p. 243), ou seja, à força efetiva da pulsão. Mas, eis toda a problemática: isso não se aplicaria à pulsão de morte, pois, sendo sem representação, não teria sofrido os efeitos do recalcamento e, portanto, não haveria correção a posteriori possível.
De modo que devemos reconhecer que se, por um lado, Freud (1937b/1996) supôs a necessidade do amansamento das pulsões, por outro, por diversas vezes, sublinhou a infinitude da força pulsional, apontando para a ideia de que a simbolização não pode dissolver a repetição inerente à pulsão de morte. Não haveria como domar a fera selvagem que a ideia de pulsão de morte representa. Mas, em vez de tomarmos o ceticismo de Freud em "Análise terminável e interminável" (1937b/1996) como expressão de pessimismo e de desilusão relativamente à eficácia da clínica, preferirmos ler suas palavras como a manifestação do entendimento de que haveria uma força disruptiva em operação nos corpos e nos psiquismos que não só impediria a concepção da psicanálise como uma espécie de ortopedia psíquica, como seria o que alimenta a produção de diferenças e a criação do novo. Justamente aí estaria a complexidade do pensamento freudiano: ao mesmo tempo que produziu a ideia de elaboração psíquica como meta, através do modelo representacional (Safatle, 2006), construiu o conceito de pulsão de morte como expressão da insistência do irrepresentável e de uma força disruptiva impossível de ser amansada ou domesticada. De tal modo que, diversamente do que entendeu Safatle (2006), talvez o projeto de tudo elaborar para que não haja mais resto ou de ligar a compulsão à repetição, não fosse o paradigma freudiano verdadeiro1.
Depois de Freud, Lacan (1966) ajudou a compreender esse elemento disruptivo como motor da cura, pois, para ele, o problema clínico não consistiria em limitar a destrutividade da pulsão de morte para permitir que a vida operasse processos cada vez mais amplos de unificação. Ao contrário, o objetivo seria produzir justamente uma ruptura dessa unidade imaginária almejada por Eros, pois, para ele, o caráter unificador de Eros seria expressão da potência do Um, ou seja, da tentativa de submissão do outro ao poder colonizador do Imaginário com seus mecanismos narcísicos de introjeção e projeção. Assim, se Lacan teria conservado a ideia da pulsão como retorno em direção à morte, o próprio conceito de morte teria sido transformado, uma vez que não se trataria mais do retorno ao inanimado, mas da morte simbólica. Nesse caso, o negativo teria a função ontológica de destacar o que haveria de Real no sujeito, sem necessariamente apontar exclusivamente para o desejo bruto de morte (Safatle, 2006). Dito de outro modo, não se trataria da morte concreta do indivíduo, mas de desestabilização da coerência imaginária do Eu que, em seu esforço em se manter idêntico, recusaria a diferença necessária para tornar-se outro. Como propôs Deleuze (1968/2006), a morte procurada pela pulsão "[...] designa o estado das diferenças livres quando elas já não estão submetidas à forma que lhe dava um Eu, [...]. Há sempre um ‘morre-se’ mais profundo do que o ‘eu morro’" (Deleuze, 1968/2006, p. 167). Foi bem nesse sentido que Lacan propôs a positivação da ideia de pulsão de morte, entendendo-a não como vontade de destruição direta em forma de agressividade – o que seria algo da ordem de seu efeito –, mas como vontade de novos começos, vontade de diferença, "vontade de criação a partir de nada, vontade de recomeçar" (Lacan, 1959-1960/2008, p. 255). Zaltzman (1994) seguiu direção similar ao propor o conceito de pulsão anarquista para destacar o que seria o aspecto principal da pulsão de morte, a saber, a abertura de saídas vitais quando uma situação demasiadamente aglutinante tivesse se fechado sobre o sujeito, asfixiando-o pelo excesso de Eros. Nas palavras da autora: "o que marca Thanatos é a carga afetiva que induz ou acompanha o gosto pela mudança, pela errância, pela marginalidade; é o valor de luta que estas mudanças têm contra organizações de vida aprisionantes" (Zaltzman, 1994, p. 33). Contra o mesmo que serializa e provoca uma submissão insuportável, a pulsão de morte comportaria uma dimensão de protesto vital, de luta.
É claro, porém, que, se é possível caracterizar a pulsão de morte e seus efeitos como força disruptiva, protesto vital e abertura para a diferença, não se pode perder de vista o solo de desestruturação sobre o qual isso está assentado. Ao entendermos, como propôs Green (1984/1986), a pulsão de morte como força de desinvestimento e como destrutividade, mais que como ataque ou agressividade (manifestações secundárias), é preciso considerar os níveis de desinvestimento em jogo em cada caso (Urribarri, 2010). Em sua forma primordial, o desinvestimento incide sobre os processos de ligação e seus movimentos para, em seguida, atingir seus componentes (as representações e os objetos) – o que não só não é necessariamente danoso ao psiquismo, como se mostra absolutamente necessário para a sua constituição e para a construção dos limites intra e intersubjetivos. Contudo, os movimentos pulsionais de morte e as desobjetalizações que eles promovem podem chegar, não raro, a afetar os próprios alicerces organizadores do psiquismo, engendrando o desinvestimento do próprio investimento, com efeitos importantes na construção da unidade narcísica primária, e redundando no que Green (1966-1967/1988) chamou de narcisismo de morte ou negativo (Urribarri, 2010). Aqui, estaríamos no terreno do traumatismo psíquico (precoce, mas não só) e de seus diversos efeitos mortíferos.
Dito de outro modo, se a pulsão de morte é fundamental para a construção dos limites internos e externos e, portanto, para a estruturação do psiquismo, bem como para as produções de diferença, ela também pode gerar empobrecimentos e paralisias psíquicos importantes, caso não haja ou não tenha havido a retaguarda oferecida por um objeto primário suficientemente bom (Green, 1988/2010). Como umas das funções do objeto primário é contribuir para a intrincação pulsional, suas falhas, se excessivas seja na presença seja na ausência, podem provocar uma desfusão que favorece a intensificação da pulsão de morte e amplificação de seus efeitos (Urribarri, 2010).
Aquém do princípio do prazer
O caráter disruptivo da pulsão de morte pode ser entendido através da tese de Freud (1920/2006) segundo a qual a pulsão de morte consistiria em uma energética livre produtora de desligamentos, por oposição à pulsão de vida que operaria através da ligação. Contudo, em uma leitura original e singular, Green (1966-1967/1988) entendeu que, ainda que as ideias de ligação e desligamento sejam fundamentais, elas seriam insuficientes, pois a pulsão de vida poderia admitir a coexistência desses dois movimentos, assim como a pulsão de morte não comportaria apenas o desligamento (Green, 2002). Daí ele ter proposto que a meta essencial das pulsões de vida fosse operar a função objetalizante, enquanto a pulsão de morte realizaria a função desobjetalizante (Green, 1966-1967/1988). Ou seja, as pulsões de vida não só seriam o combustível dos vetores de investimento nos objetos como transformariam as estruturas em objetos de investimento. Mais profundamente, além de operar as ligações, as pulsões de vida seriam o próprio princípio de investimento, o próprio movimento de investir. Já a pulsão de morte realizaria a função desobjetalizante, atacando as relações com o objeto e com todos os substitutos deste, desfazendo as ligações existentes e, com isso, atacando a própria atividade potencial de investir. Ela representaria, desse modo, o princípio de desinvestimento (Green, 1966-1967/1988).
Nesse ponto, parece importante analisar as ideias de ligação e de desligamento, uma vez que sua relação com as duas pulsões fundamentais apareceu mais explicitamente nos últimos anos da obra de Freud. De modo geral, a ligação pode ser referida à operação psíquica que tende a limitar o livre escoamento das excitações, através da articulação entre os traços mnêmicos, para compor as representações, e entre as próprias representações, para produzir significações. Ou seja, trata-se da constituição e da manutenção de formas relativamente estáveis. Laplanche e Pontalis (2001) apontaram pelo menos dois momentos da metapsicologia freudiana nos quais a ideia de ligação/desligamento desempenhou um papel importante, apresentando-se de formas diversas: em 1895 e em 1920.
No "Projeto para uma psicologia científica" (Freud, 1895/1996), a ligação (bindung) designava o movimento da energia no aparelho psíquico ao passar do estado livre para o ligado ou, ainda, o fato de a energia no aparelho psíquico se encontrar em estado ligado. Essa atividade de ligação era pensada como estando estreitamente relacionada à atividade do Eu, entendido como uma massa de neurônios constantemente investidos ou ligados entre si (Freud, 1895/1996). Mas, além de ser o resultado das ligações entre certos neurônios, o Eu exerceria um efeito de inibição ou de ligação em outros processos. Ou seja, quando o pensamento encontrasse uma "imagem mnêmica ainda indomada" (Freud, 1895/1996, p. 436), produzir-se-ia uma sensação de desprazer e uma tendência à descarga que interromperia o curso do pensamento, atrapalhando o bom funcionamento do sistema. Seria função do Eu "domar" essa recordação e adquirir poder sobre ela através de uma "ligação especialmente considerável e reiterada para contrabalançar essa facilitação para o desprazer" (Freud, 1895/1996, p. 437). Freud falava, aqui, da produção de uma rede de representações capaz de processar o desprazer produzido pelo excesso carregado pela representação indomada. Quanto ao desligamento (entbindung), este foi pensado como um processo de liberação brusca de energia, ou seja, o aparecimento repentino de uma energia livre que tenderia de forma incoercível para a descarga.
Em 1895, portanto, eram propostas duas formas de escoamento energético ou duas lógicas de operação psíquica: (1) através do princípio de inércia, modo de funcionamento primário do aparelho psíquico, segundo o qual a energia tenderia para uma descarga imediata e o mais completa possível – bastante próximo da operação da pulsão de morte para além do princípio de prazer – e (2) pela tendência à constância, processo secundário em que a energia seria ligada e represada em sistemas neurônicos – como, por exemplo, o Eu – e que corresponderia à lógica da representação e do princípio de prazer, mais próxima das pulsões de vida. Ocorre que, no contexto do "Projeto" (1895/1996), o desligamento se referia a qualquer aumento brusco de energia, tanto pela liberação de prazer como de desprazer, contradizendo a ideia de que o prazer consistiria na diminuição da tensão, enquanto o desprazer constituir-se-ia como o aumento da mesma (Laplanche & Pontalis, 2001). Nessa época, Freud já havia proposto que qualquer liberação energética, quer se fizesse como aumento ou como diminuição da tensão em circulação, prejudicaria o nível relativamente constante do Eu e ameaçaria a ordem do princípio de prazer: tanto um prazer quanto um desprazer intenso comprometeriam o balanço energético do aparato psíquico. Não por acaso, a dimensão da sexualidade foi considerada traumática (Freud, 1896a/1996 e 1896b/1996), pois a liberação de uma excitação de ordem sexual seria disruptiva e exigiria processos de ligação. Em resumo, qualquer intensidade acima de certo nível era tomada como problemática do ponto de vista do Eu, responsável pela preservação da via reativa através da busca da homeostase própria ao trabalho do princípio de prazer e da evitação da abertura para intensidades capazes de transformar a experiência e complexificar a vida.
Em 1920 (Freud, 1920/2006), entretanto, outro modo de conceber o funcionamento psíquico foi formulado, para além da estabilidade do princípio de prazer, e a problemática da ligação foi sofisticada, pois não era mais possível sustentar a concepção do "Projeto" (Freud, 1895/1996) segundo a qual um sistema forte e constantemente investido seria sempre capaz de ligar psiquicamente o excesso energético. Lembremos que, nessa época, Freud estava às voltas com a questão da repetição, particularmente nos casos em que uma efração extensa do escudo protetor do psiquismo afetasse os limites e a consistência do Eu. A hipótese freudiana era a de que, frente a uma inundação energética, seria preciso dominar a excitação e tentar ligá-la psiquicamente. Essa seria a função da compulsão à repetição.
Mas, se, como revelavam as neuroses traumáticas e as neuroses de destino, a compulsão à repetição expressaria a reunião de forças necessária (e nem sempre exitosa) para a ligação de um excesso de excitação que rompeu a tessitura egoica e curto-circuitou o funcionamento psíquico, isso significaria que, antes mesmo da consolidação do aparato psíquico e do Eu, esse mecanismo já estaria presente, sendo mesmo sua condição de possibilidade. Em outras palavras, se, até aqui, a ligação era concebida majoritariamente como a influência do Eu sobre os processos primários, a partir de agora a ligação das excitações foi concebida também como mais originária, constitutiva do psiquismo, do próprio Eu e preparatória para a entrada em cena do princípio de prazer. Em outras palavras, a lógica das formulações iniciais do texto de 1920 foram se invertendo ao longo do próprio texto: era a própria necessidade de ligação primária que detonaria à compulsão à repetição e circunscreveria a marca do pulsional enquanto excesso sem representação, não o inverso. De tal modo que seriam dois os momentos dessa ligação primária que responderiam ao excesso de energia livre: enquanto manobra para reencontrar certa homeostase psíquica diante de um trauma que incidiu sobre um aparato já constituído e como processo originário de constituição psíquica, anterior e necessário à instauração do princípio de prazer (Green, 2002).
Relativamente a essa anterioridade ao princípio de prazer, Figueiredo (1999) propôs a ocorrência de um trabalho fora dos moldes representacionais, um processo primário que, contudo, pressuporia já estruturas de contenção e de limite. Pois, se, por um lado, não haveria escudo protetor contra as estimulações internas, por outro lado, sem alguma contenção não seria possível pensar o desprazer como acúmulo de energia livre e o prazer como redução gradual desta energia. Sem barreiras de nenhuma ordem, portanto, não haveria acúmulo nem escoamento, desprazer nem prazer. Ou seja, seria necessária uma estrutura de contenção que pudesse acumular energia até certo ponto e descarregá-la em certas circunstâncias. Portanto, além do escudo protetor que defende o psiquismo contra as intensidades exteriores, o psiquismo deve conservar uma reserva de energia ligada, amortecida e disponível para contrapor-se às invasões de energia livre endógenas, ligando-as. Por isso, Figueiredo (1999) supôs que processo primário e secundário não fossem entendidos segundo uma cronologia desenvolvimentista: "nem o processo primário pode ser primeiro em relação ao secundário, nem, em contrapartida, a ‘primeira tarefa’ pode ser primeira em relação à experiência de perturbação promovida pela energia livre" (Figueiredo, 1999, p. 79).
Mas o que seriam essas reservas de energia ligada e estrutura de contenção, supostas por Figueiredo (1999) e que operariam no processo primário? Green (1966-1967/1988) não considerava o narcisismo primário apenas como estado ou fase do desenvolvimento libidinal, mas como estrutura fundamental do aparelho psíquico. Com efeito, o psicanalista egípcio propôs que estas ligações primárias seriam a condição de possibilidade da produção do que ele chamou de estrutura enquadrante, espécie de matriz organizadora resultante do narcisismo primário e efeito de um trabalho do negativo que permitiria a separação necessária da unidade fusional composta pelo bebê e pela mãe. Dito de outro modo, se Freud (1920/2006) desenhou a ideia de uma ligação primeira como fundamento para a instauração do princípio de prazer, a hipótese de Green (1966-1967/1988) foi ser o narcisismo primário o agente necessário desse processo. Assim, o Eu seria o agente e o resultado da ligação primária (tal como foi formulada em 1920) para a qual, paradoxalmente, a pulsão de morte e a compulsão à repetição exerceriam papel fundamental, sendo mesmo sua condição de possibilidade.
A negatividade necessária
No texto "A negativa", de 1925, Freud apresentou uma das funções do juízo de negação na estruturação de algumas frases de seus analisandos: permitir que um conteúdo recalcado penetrasse na consciência, mas que o contato com ele se desse somente na esfera intelectual (Freud, 1925/1996). Nesses casos, ocorreria uma suspensão do recalque, sem que isso implicasse em uma aceitação do recalcado. Essa relação entre o recalque e a negativa conduziu o metapsicólogo a se perguntar sobre a origem psicológica dos juízos de negação ou afirmação do conteúdo dos pensamentos. O passo seguinte foi articular a origem do pensamento à ação das pulsões de vida e de morte: "A afirmação – como um substituto da união – pertence a Eros; a negativa – o sucessor da expulsão – pertence ao instinto de destruição" (Freud, 1925/1996, p. 268). Ou seja, as duas pulsões se expressariam também sob a forma da expulsão e da atração através (1) do juízo de atribuição, em que aquilo vivido como bom é incorporado ao Eu e o que é vivido como mau é expulso e (2) do juízo de existência que permite decidir se alguma coisa existe ou não na realidade, ou seja, se a representação feita do objeto é ou não uma percepção.
Inspirado no texto de Freud de 1925, Green (1984/1986) desenvolveu o conceito de trabalho do negativo para designar as diferentes maneiras de construir limites nas quais a negativa tem função primordial. Aqui, a pulsão de morte, força de desinvestimento, teria lugar central na medida em que poria em movimento um conjunto de operações psíquicas que exerceriam a função de negativização do excesso e de proteção do psiquismo, tais como a negação, a excorporação, o desmentido, a forclusão, a clivagem, entre outras, e cujo protótipo é o recalque (Green, 1988/2010). Dito de outro modo, esses mecanismos de defesa seriam acionados e alimentados pela pulsão de morte, visando negativizar a positividade excessiva das pulsões para que o psiquismo pudesse se constituir, perseverar e funcionar plenamente. Vejamos como.
Em um momento mítico inaugural, anterior ao "não" da linguagem, a negativa se expressaria no nível das moções pulsionais orais, através de um julgamento de atribuição feito por um Eu-prazer originário que responderia sim ao que fosse bom e prazeroso e não ao que fosse mau e desprazeroso: eu gostaria de comer ou de cuspir isso? (Freud, 1925/1996). Em verdade, não seria legítimo falar ainda em um Eu, uma vez que só haveria o movimento de expulsão para o mais longe possível, ainda sem limites que estabeleceriam um dentro e um fora. Segundo Green (1988/2010), seriam justamente as consequências dessa expulsão que permitiriam, em um momento seguinte, uma delimitação inicial do Eu: "A expulsão do mau permite a criação de um espaço interno no qual o Eu como organização pode nascer para a instauração de uma ordem fundada no estabelecimento de ligações relacionadas a experiências de satisfação" (Green, 1988/2010, p. 292). Do mesmo modo, o julgamento de atribuição determinante do movimento de cuspir/excorporar não produziria ainda o reconhecimento pleno do objeto enquanto unidade separada do sujeito, havendo apenas a inauguração de um espaço externo para onde se destinariam os produtos ejetados (Green, 1988/2010).
Mas, se é assim, como o psiquismo poderia se livrar daquilo que o perturbasse apenas pondo-o no exterior? Para esse autor, a excorporação só poderia ser sustentada se houvesse a assistência de um objeto primário (mesmo que ainda não reconhecido como tal, mas que fosse capaz se reconhecer a si próprio) que se ocupasse continuamente do Eu da criança, não somente descarregando-o do excessivamente desagradável, mas também substituindo o espaço indiferenciado para recolher o que fosse lançado para fora e restituí-lo à criança. De modo que o objeto já estaria lá, mesmo que, nesse momento inicial, não fosse percebido como tal (Green, 1988/2010). Seja como for, vê-se o quanto a pulsão de morte tem um papel importante ao engendrar a negativa que se manifesta através do juízo de atribuição, limite originário da constituição da externalidade que se faz simultaneamente ao início da individuação do sujeito.
Entretanto, segundo Freud (1925/1996), é necessário ainda outra operação, complementar ao juízo de atribuição, que distinga o bom do mau: é preciso que advenha o trabalho de distinção entre o real e o alucinado através do juízo de existência. Mais uma vez, trata-se da diferenciação entre o interno e o externo, mas agora em referência ao que existe ou não existe, ao que é uma representação subjetiva ou uma percepção objetiva. Dito de outro modo, o eu-realidade definitivo deve decidir se a distinção interno/externo corresponde à diferença subjetivo/objetivo (Green, 1988). Portanto, não se trata mais de saber se o que foi percebido será ou não integrado ao eu, mas se uma representação pode ser redescoberta também na percepção (Freud, 1925/1996, p. 267). Para Green (1990) esse julgamento de existência já indicaria um trabalho ativo do pensamento, pressupondo a representação como elemento psíquico e a renúncia à satisfação pela via alucinatória. Diria respeito, portanto, a um passo a mais: além da necessidade de um objeto de satisfação considerado bom, que pudesse ser integrado ao eu, seria preciso que esse objeto estivesse no mundo externo, de modo que fosse possível apossar-se dele sempre que preciso (Freud, 1925/1996).
Mas, até que o juízo de existência vigore, outros processos precisam ocorrer, ao menos no que diz respeito à constituição dos limites e das representações, as quais dependem de dois modos específicos do trabalho do negativo: o recalcamento e a alucinação negativa. O recalcamento é imprescindível na medida em que, como escreveu Green (1982/1990, p. 257), "o ato de exorcismo que expulsou o mau para fora do corpo não está absolutamente resolvido". É preciso ainda dominar o retorno dessas primeiras impressões psíquicas sob a forma de lembranças de experiências dolorosas – eis a função do recalque em seu movimento de construção dos limites intrapsíquicos que determinam aquilo que pode ser admitido pré-conscientemente e aquilo que é preciso evitar.
Entre esse jogo das representações e o nascimento do que Green (1982/1990) chamou de pensamento propriamente dito deve se instituir uma alucinação negativa da representação do objeto primário para que possa advir a representação das relações internas a uma representação e entre as mesmas. A alucinação negativa caracteriza-se pela "não-percepção de um objeto ou de um fenômeno psíquico perceptível" (Green, 2002, p. 267), ou seja, o apagamento daquilo que deveria ser ou foi percebido. Assim, a alucinação negativa "não é ausência de representação, como sugere a ausência de imagem no espelho, mas representação da ausência de representação" (Green, 1988/2010, p. 297), ou seja, um conceito teórico que é pré-condição de toda teoria da representação, do sonho à alucinação. Esse mecanismo deriva do trabalho do negativo estruturante – promotor do espaço necessário para o surgimento dos pensamentos – através da instauração de um vazio impulsionador das ligações que constituem as representações e abstrações do pensar, ou seja, promovendo a constituição da estrutura enquadrante (Green, 2002, 1988/2010, entre outros).
Ora, esse processo revela que, assim como é necessário o movimento da pulsão de morte que alimenta o trabalho do negativo, para que esse trabalho persista e produza seus efeitos estruturantes, é fundamental que o objeto absolutamente necessário possa se fazer esquecer; portanto, que a pulsão de morte não apenas promova o estabelecimento dos limites interno/externo e entre as instâncias, mas que ela circule entre o sujeito e o objeto. Ou seja, trata-se de um duplo trabalho: para que a pulsão de morte cumpra sua função estruturante através das operações negativizantes que aciona é preciso que o objeto seja suficientemente mau, isto é que a pulsão de morte também opere nele não mais nem menos que suficientemente. Assim, quando o objeto se ausenta nos momentos em que deveria estar presente ou quando se impõe em vez de deixar-se esquecer, algo funciona mal e o trabalho do negativo fracassa pela impossibilidade do objeto de falhar, enganar-se, negativizar-se. O objeto absolutamente necessário falha paradoxalmente em sua função de ser falível (Green, 1988/2010).
Essa falibilidade desejável do objeto diz respeito à qualidade da sua presença do objeto, a um modo de estar presente que permita, como apontaram Figueiredo e Cintra (2004), um duplo movimento de negação. De um lado, o objeto deve ser negado internamente, sendo esquecido e podendo assim converter-se em estrutura enquadrante, vazio interno que é a base do processo de pensamento e da vida desejante. De outro lado, ele também deve ser negado fora, deixando-se perder e distanciar para que outros objetos possam ser encontrados. Nas palavras de Green, (1988/2010, p. 301) "a função intrínseca do objeto é paradoxal: o objeto está lá para estimular, para despertar a pulsão e, ao mesmo tempo, para contê-la", mas ele também está lá para permitir a concepção de uma noção capital, a saber, que "há mais de um objeto" (Green, 1988/2010, p. 301).
A partir disso, Figueiredo e Cintra (2004) propuseram a distinção de dois tempos do objeto. O primeiro tempo diria respeito a sua dupla função de estimular e conter a pulsão, portanto, seria um tempo pulsionalizante sem o qual os movimentos pulsionais não seriam despertados e nem contidos. O segundo tempo se referiria à possibilidade de o objeto se permitir ser negado e posto à distância para que possa ser desdobrado em uma multiplicidade de objetos substitutivos e contingentes. Para tanto, como vimos, deve ocorrer sua alucinação negativa, condição de sua transformação em estrutura enquadrante – base de tolerância para todas as ausências, distâncias e inadequações dos objetos substitutivos (Figueiredo & Cintra, 2004). Para que esse segundo tempo possa acontecer, entretanto, é preciso que o primeiro tempo tenha sido cumprido. Este último depende da qualidade da presença do objeto, que diz respeito principalmente à possibilidade de este se colocar como uma presença ausente.
Toda a problemática se desenvolveria entre esses dois tempos, pois se o objeto não se deixar esquecer – se não for negativado pela ação da pulsão de morte – não poderá ser introjetado como função enquadrante. Vê-se como a alucinação negativa do objeto primário é fundamental para a constituição narcísica da estrutura enquadrante do Eu, considerada por Green (1990) como etapa intermediária e necessária da evolução do Eu-prazer purificado para o Eu-realidade definitivo. Dito de outro modo, entre o juízo de atribuição e o juízo de existência, Green (1966-1967/1988) introduziu um momento intermediário: a constituição de uma organização narcísica primária a partir da relação com o objeto marcada pelo trabalho do negativo. Se o objeto falha em ser falível, a estrutura enquadrante igualmente se fragiliza e as pulsões não conseguem ser suficientemente contidas. Como resultado, o objeto se torna tanto excessivo e intrusivo em suas funções estimulantes e de continência, quanto impossível de ser negativizado e alucinado negativamente. Não por acaso Green propôs a noção de um objeto-trauma, cujo poder de romper a frágil organização do Eu é enorme (Green, 1988/2010). Vemos assim a inegável e estreita relação entre fracasso do objeto primário, fragilidade narcísica e excesso pulsional contra os quais a única defesa possível é o esforço em executar o trabalho do negativo inacabado. Evidentemente, as consequências são enormes, pois, chamada a operar intensamente, a pulsão de morte desvincula-se e se sobrepõe à pulsão de vida, produzindo desintegrações ao invés de diferenciações e singularizações.
Por isso, entendemos que a ação desestruturante de Thanatos seja pensada como uma espécie de efeito colateral do esforço em sobreviver, em absorver e integrar o traumático e não como um princípio autodestrutivo inerente ao organismo ou como uma inclinação ao aniquilamento. Como propôs Ferenczi (1934/1990), seria inaceitável que não houvesse resistência ou protesto vital diante da comoção psíquica: "numa relação de forças sem saída, só uma resistência nascida das próprias fontes pulsionais de morte pode afrontar a ameaça de perigo mortal" (Zaltzman, 1994, p. 64).
Considerações finais: a pulsão de morte contra a pulsão de morte ou a morte a favor da vida
Se pensarmos o trauma como excesso sem representação que surpreende e invade um psiquismo despreparado, parece evidente que tanto maior será seu efeito desestruturante e desorganizador quanto mais cedo no processo de constituição psíquica for sua incidência. Frente a tal desorganização, os efeitos são bem conhecidos e articulados entre si: clivagem do Eu, compulsão à repetição e desfusão pulsional. Esta última responderia à necessidade de intensificação da pulsão de morte que, por sua vez, atacaria a função objetalizante (Eros) na medida em que a dimensão de investimento comportaria um perigo potencial. Complementarmente, ocorreria um movimento de retração narcísica na tentativa de garantir minimamente a unidade psíquica ameaçada pelos sentimentos de intrusão relativos tanto aos objetos quanto às pulsões – narcisização tão mais intensa quanto mais o objeto investido tiver decepcionado (Green, 1988/2010).
Talvez o maior problema desse movimento seja que, paradoxalmente, essa retração narcísica por efeito do desinvestimento operado pela pulsão de morte acabaria por incidir sobre a própria estrutura narcísica primária, desfazendo as ligações necessárias para a manutenção da integridade do Eu. De tal modo que a redução radical da função objetalizante caminharia junto do empobrecimento egoico em particular e da vida em geral, caracterizando o que Green (1984/1986) chamou de narcisismo negativo ou de morte e o que Roussillon (1999) nomeou como neutralização energética. Como se fosse necessária uma forte redução da unidade psíquica, uma organização mínima em termos de ligação e de circulação energética, para viabilizar a sobrevivência, uma vez que qualquer investimento apresentaria o risco de um novo traumatismo. Essa unidade psíquica mínima funcionaria, ao mesmo tempo, como resultante e como operadora dos dois outros processos cujo objetivo apontaria para uma tentativa de redução do dano traumático: a compulsão à repetição e a clivagem. Se a primeira fracassaria enquanto tentativa de captura e domínio do excesso, ela seria bem-sucedida enquanto operação de evacuação, descarga e esvaziamento do psiquismo. Embora impeça a elaboração, esse movimento de descarga e de exorcismo, alimentado pela pulsão de morte, livraria momentaneamente o psiquismo do excesso, podendo ser pensado também como tentativa (fracassada, é bem verdade) de instalação a posteriori do vazio que não pode ser instaurado, obstaculizando a constituição de uma estrutura enquadrante mais robusta (Green, 2002; Scarfone, 2013). Por isso, Figueiredo (2008) pode afirmar que a descarga comporta uma dimensão de conservação do próprio, na medida em que aniquila o excesso acachapante, destruindo as diferenças experimentadas como ameaças de desintegração. Diante de um psiquismo lutando para sobreviver, a novidade ainda não teria lugar. Esse apego ao mesmo seria justamente o que apontaria para a insistência da vida através da busca incessante de um objeto primordial suficientemente bom (Figueiredo, 2008). É a pulsão de morte operando contra a pulsão de morte.
Por sua vez, a clivagem narcísica – também alimentada pela pulsão de morte – sacrificaria pedaços do Eu em nome de um todo cada vez mais reduzido (Ferenczi, 1933/1990; Winnicott, 1960/2008; Roussillon, 1999). Assim como na descarga, a clivagem também apresentaria essa dimensão de preservação de algo de si mesmo, ainda que às custas da destruição de partes do Eu. Pois, se o Eu não pode capturar e dominar a excitação excessiva, ele deve modificar-se para suportá-la sem sucumbir. Para Ferenczi (1933/1990), uma das formas dessa modificação necessária seria justamente a fragmentação como garantia de uma economia de energia. Assim, se, por um lado, a operação de fragmentação testemunharia o fracasso do trabalho do negativo como estruturante do psiquismo, por outro lado demonstraria o sucesso da operacionalidade desse trabalho ao ser acionada como dispositivo negativizante. Basta lembrar que a clivagem é um mecanismo de defesa, ainda que primário e radical, contra o colapso e a aniquilação totais. Assim, se pode perceber como a (auto)destruição envolvida nas reações psíquicas ao trauma, alimentada pela pulsão de morte, é mais complexa que uma simples ação mortífera, pois revela o objetivo maior de sobrevivência global do psiquismo, como uma morte em favor da vida. Foi isso que Zaltzman (1994) entendeu ser o protesto vital da pulsão de morte cujo objetivo seria abrir saídas quando situações críticas desabam sobre o sujeito, destinando-o à morte. Às vezes é preciso se proteger da vida, reduzindo-a ao máximo para garantir sua persistência.
Vimos como, fora da conjuntura traumática, o protesto vital da pulsão de morte vigoraria de modo diferente. Sua ação seria fundamental para garantir o apagamento do objeto primário, redundando na constituição da estrutura enquadrante, matriz do narcisismo primário. Nesse sentido, operaria em favor da constituição narcísica, aliada do processo de individuação, se o trabalho do negativo constitutivo do psiquismo fosse levado a cabo com sucesso, o que dependeria em grande parte das vicissitudes do objeto. Afora isso, a pulsão de morte introduziria a diferença no psiquismo, enquanto representante de energia livre sem representação: para um Eu robusto e fora de perigo, ela seria uma espécie de incômodo necessário à mudança e à desestabilização da cultura do mesmo. Sem rupturas thanáticas, também haveria ameaça à vida, pois Eros em excesso causaria alienação, imobilidade e indiferenciação. Por isso não devemos reduzir as pulsões de morte a um negativo das pulsões de vida. Elas expressam a negatividade necessária tanto para a constituição e a transformação do psiquismo e do pensamento, quanto para a luta contra o aniquilamento.
Referências
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Nota
1 Evidentemente que um excesso de irrepresentável é traumático, intensificando a pulsão de morte através da desintrincação pulsional e engendrando a compulsão à repetição com a possibilidade de sérios danos ao aparelho psíquico e a seu funcionamento. Entretanto, nos parece haver diferenças entre considerar o irrepresentável como desafio ou como obstáculo. O próprio Freud (por exemplo, em 1925) não parece ter entendido a negatividade como momento intransponível de um processo, embora não tenha se esquivado de observar e teorizar essa dimensão demoníaca.
Recebido em 25 de junho de 2016
Aceito para publicação em 18 de julho de 2016