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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.30 no.1 Rio de Janeiro  2018

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n01A01 

ARTIGOS : TEMAS SOBRE PSICOLOGIA CLÍNICA

 

Escrita de si e interioridade: deslocamentos na relação com o sofrimento na contemporaneidade

 

Writing itself and interiority: changes in relationship to suffering in contemporary

 

La escritura de sí y la interioridad: los cambios en relación al sufrimiento en la contemporaneidad

 

 

Mariama Augusto FurtadoI; Ana Maria SzapiroII

IDoutora em Psicologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIProfessora Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

Diante das transformações em curso no contexto contemporâneo, assistimos à emergência de modos de ser que se distanciam do caráter interiorizado que definia o Homo psychologicus característico da Modernidade. Em meio a um conjunto de deslocamentos, vemos surgir outros modos de ser, de relação consigo mesmo e com o sofrimento. Propomos aqui uma reflexão sobre os efeitos do declínio dessa dimensão de interioridade como questão fundamental para a compreensão das mudanças quanto ao lugar do sofrimento tal como se colocava na modernidade e tal como, a nosso ver, se apresenta na contemporaneidade. Para isso elegemos tomar como dispositivo de análise alguns romances literários, produzidos em diferentes épocas, para buscar examinar as diferentes narrativas sobre a dimensão de interioridade ali presentes. Nessa perspectiva, a pesquisa no campo da literatura pode nos oferecer interessante universo de compreensão sobre os modos de viver hoje em sociedade. Em suma, cabe interrogar: o que resta desse Homo psychologicus e de seus contornos voltados para sua interioridade? De que maneira se dá a relação consigo mesmo nos dias atuais e que lugar confere ao sofrimento?

Palavras-chave: contemporaneidade; interioridade; sofrimento; subjetividade.


ABSTRACT

In the face of ongoing changes in the contemporary context, we are witnessing the emergence of ways of being that move away from the internalized character defining Homo psychologicus characteristic of Modernity. They emerge, in the context of changes that we intend to analyze here, other modes of relationship with yourself and other ways to relate to the suffering. So, we aim to reflect on the emergence of the inner dimension as a key issue in understanding the place of suffering in modernity and their movements in contemporary. For this we take some literary novels, produced each season, as an analytical device for understanding the ways to relate to this dimension of interiority. In our view, research in the field of literature offers us an interesting analysis of the universe of transformations in subjectivity and ways of living in society. From these considerations seek to question: what remains of this Homo psychologicus and its contours directed towards interiority? How man relates with himself these days and that gives place to suffering?

Keywords: contemporary; interior; suffering; subjectivity.


RESUMEN

A la vista de los cambios en curso en el contexto contemporáneo, estamos asistiendo a la aparición de formas de ser que se alejan del carácter interiorizado que define el Homo psicologicus que caracterizaba la Modernidad. Emerge, junto con otros cambios que nos proponemos analizar aquí, otros modos de relación con sí mismo y con el sufrimiento. Siendo así, nuestro objetivo es reflejar sobre la aparición de la dimensión de la interioridad como un tema clave en la comprensión de lugar de sufrimiento en la modernidad e sus cambios en la contemporaneidad. Así, utilizamos novelas literarias, producidas en cada período, como dispositivo de análisis para la comprensión de las formas de relación con esta dimensión de la interioridad. Para nosotros, la investigación en el campo de la literatura nos ofrece un interesante universo de análisis de los cambios en la subjetividad y en las formas de vivir en sociedad. A partir de estas consideraciones buscamos a preguntar: lo que queda de este Homo psychologicus e sus contornos dirigidos para la interioridad? Cómo el hombre se relaciona con el propio en la actualidad y qué lugar se reserva el sufrimiento?

Palabras clave: contemporaneidad; interioridad; subjetividad; sufrimiento.


 

 

Introdução

Norbert Elias (1993) considerava o processo civilizatório como uma lenta e prolongada construção do próprio homem. Elias tomava assim a condição humana não como uma natureza dada e imutável, tampouco como uma essência última ininteligível. Não há, e assim Elias a compreendia, uma instância inviolável onde mora o "mínimo homem", o último suspiro da condição humana que seja independente das transformações elaboradas e construídas pela própria ação do homem no mundo. Pensar a constituição do homem e sua ação no mundo numa perspectiva histórica significa, nesse sentido, considerar os mais variados componentes, discursos, práticas e arranjos sociais característicos de determinada época e cultura que, juntos, constituem as condições de possibilidade das transformações que se pretende analisar.

Partindo dessa perspectiva, pensamos estar hoje diante de importantes mudanças nas subjetividades, que fazem emergir modos de ser diversos daquele que definia o Homo psychologicus característico da Modernidade. Inauguram-se, assim, em meio a um conjunto de deslocamentos que vamos aqui analisar, novos modos de relação consigo mesmo, novos regimes de constituição do eu e, consequentemente, novas formas de relação com o sofrimento. Consideramos que diferentes modos de subjetivação resultam em diferentes modos de ser e de estar no mundo, cuja configuração igualmente depende de momentos históricos e de tradições culturais. A referência a uma interioridade psicológica remete a um modo de subjetivação historicamente datado. Como observa Sibilia (2008), a interioridade psicológica nomeia uma forma de produção e tematização do eu que surgiu em um determinado período da cultura ocidental, e de forma nenhuma é uma noção universal. Sendo assim, a constituição e a valorização da interioridade psicológica marcam um novo espaço de experiência onde se dá um modo singular de relação com o sofrimento.

Este artigo propõe uma reflexão sobre a emergência da dimensão de interioridade, tomando-a como questão fundamental para a compreensão do lugar do sofrimento na modernidade e seus deslocamentos na contemporaneidade. Para isso tomamos alguns romances literários, produzidos em diferentes épocas, como dispositivo de análise que possa assim nos ajudar na compreensão dessa dimensão de interioridade e dos diferentes modos de relação com o sofrimento. A pesquisa no campo da literatura nos oferece um interessante universo de análise sobre os modos de viver de cada sociedade. O material para o estudo aqui apresentado se refere à leitura de romances escritos a partir do século XIX, que tiveram papel de destaque por terem penetrado fundo naquilo que referiam como próprio à interioridade do homem. Ao investigar tais narrativas buscamos examinar as mutações nas dobras da intimidade e na interação público-privado, com o objetivo de analisar os efeitos dessas transformações com relação ao lugar do sofrimento.

Procuramos acompanhar de que maneira, a partir do século XIX, foi se intensificando certa concepção do ser humano como ser dotado de uma profundeza abissal, na qual se esconderia um enigmático e rico conteúdo: o eu. Assim, a cultura ocidental construiu a ideia de que ter acesso aos sonhos, fantasias, experiências, vontades, desejo, dúvidas, anseios e afetos revelaria a verdade de cada um. E esta verdade de "cada um" morava nas profundezas da sua intimidade, da sua personalidade. Encontramos nos romances literários a equação do indivíduo introdirigido moderno, em estreito contato consigo mesmo, com as espessuras e densidades complexas que caracterizam o Homo psychologicus.

A partir dessas considerações sustentamos as seguintes perguntas: o que resta ainda hoje desse Homo psychologicus e de seus contornos enquanto constituintes de uma dimensão de interioridade? Em que lugar se circunscreve, pois, a experiência de sofrimento?

 

O surgimento das noções de interioridade e subjetividade

Uma das questões que Foucault (1985, 2010) buscou interrogar ao longo de seu trabalho foi sobre o modo como se constituiu a subjetividade ocidental moderna, a partir de que práticas discursivas e não-discursivas. Sua pesquisa genealógica sobre as "tecnologias de si" refere-se, sobretudo, ao exame da constituição de um plano de interioridade reflexiva que se ancora em uma experiência vivenciada por um "eu".

O retorno ao universo da Grécia antiga serviria, então, como base para desnaturalização da ideia de uma experiência subjetiva universal no homem, buscando mostrar que o nosso modo de subjetivação atual em nada se assemelha ao daquela época. Portanto, esse denso objeto de estudo possui uma história, que o autor buscou mapear partindo do retorno ao mundo grego, passando pela era cristã medieval e a análise das práticas confessionais, até chegar às transformações que marcaram a modernidade.

Foucault (1985, 2010) sustentou que na Antiguidade não havia um conhecimento de si mesmo ancorado numa "hermenêutica de si", ou seja na busca por uma revelação de um "eu" onde moraria a verdade sobre si, mas uma "estética da existência", ou seja uma construção de si a partir da verdade e dos ensinamentos dos mestres aos discípulos. Havia sim uma interioridade entre os gregos, mas esta não era individualizada, reflexiva, ancorada em um "eu".

Assim, o olhar sobre si mesmo suscitado nas práticas desenvolvidas na cultura grega, a epimeléia heautoû, era uma noção complexa, significando o "cuidado consigo mesmo", o fato de ocupar-se de si. Era uma atitude consigo mesmo e com os outros. As regras da erótica e da dietética gregas envolviam a proposta de ser livre por meio do domínio de si, inclusive da própria carne: governar a si mesmo era um exercício de liberdade que permitia o melhor governo dos outros e habilitava o cidadão a presidir a Polis.

Tratava-se, pois, de um conjunto de reflexões e práticas, um certo modo de olhar que se voltava para "si mesmo". No entanto, ainda não se constituía como uma dimensão interior subjetiva tal como o concebeu a filosofia agostiniana e posteriormente o pensamento moderno. A interioridade individualizada e a hermenêutica como dispositivo de produção de uma verdade sobre si mesmo emergem no contexto da ética cristã, mais precisamente a partir do pensamento agostiniano.

Diversos autores localizam na obra de Santo Agostinho um marco que inaugura, na história ocidental, a exigência de autoexame e a emergência do sujeito de uma narrativa sobre um "eu" - instância que passa a definir aquilo que se é. Para conhecer a verdadeira natureza do próprio ser era necessário olhar profundamente para dentro de si. E só assim seria possível percorrer o caminho que levaria a se aproximar de Deus.

Como observa Szapiro (1998), a hermenêutica de si cristã supõe que há em cada um de nós algo escondido a ser confessado. Assim, na ética cristã o "cuidado de si" se desloca para uma relação de "conhecer a si mesmo" como um exercício de confissão da verdade sobre si. A moral cristã, por sua vez, preconizando o pecado original como a marca constitutiva do homem, fará da confissão dos pecados o caminho para a salvação. A prática da confissão se configura, assim, como um exercício de verbalização de uma verdade interior escondida que precisa ser revelada. Como técnica, supõe que alguém carregado de culpa fala para outro alguém sobre seus pensamentos mais íntimos e profundos. Assim, através da palavra confessada seria possível a salvação, a correção dos erros. A salvação, por sua vez, requeria um conjunto de práticas que implicavam a experiência do sofrimento.

A natureza pecaminosa que precisava ser confessada estaria intimamente ligada ao prazer oriundo do exercício da sexualidade. Desenvolve-se, assim, uma atitude de vigilância não somente das ações, mas de todos os pensamentos e desejos que pudessem ser considerados libertinos ou perigosos. De modo que a sexualidade passou a ser uma questão fundamental na concepção de controle de si e domínio da vontade. No discurso de Agostinho, para alcançar a verdade interior o homem deveria desenvolver e manter uma atitude de vigilância de si mesmo e de controle de sua libido (Brown, 2001). Assim emergiu, nos escritos pioneiros dos remotos séculos IV e V da era cristã, essa semente que vários séculos depois resultou na problemática da sexualidade e no sentido da interioridade moderna.

Na ética cristã o eu abriga a verdade e o caminho da salvação, embora o eu não devesse ser cultuado nem valorizado, uma vez que a relação consigo mesmo e com a interioridade eram acessadas com a finalidade de encontrar Deus. Enquanto que na modernidade o culto à interioridade individual tornou-se uma finalidade em si, uma das riquezas mais preciosas do homem.

Como observou Foucault (2010), na modernidade o que passa a dar acesso à verdade é o conhecimento, isso que o autor chamou de "momento cartesiano". Nessa perspectiva, o acesso à verdade se dará unicamente através de si mesmo, do ato de conhecimento, e não mais através de um exaustivo trabalho sobre si e sobre a espiritualidade. Característica da modernidade, a interioridade não se encontra mais regulada pelo sagrado e as condições de acesso à verdade passam a ser objetivas, isto é, determinadas por regras formais de método e pela natureza do objeto a ser conhecido pela razão.

Descartes introduziu no campo da filosofia a possibilidade de objetivar o sujeito, de tomá-lo como objeto de discurso. Ao introduzir a distinção entre res cogitans e res extensa, conferindo a ambas o estatuto substancial dado pelo conceito res, Descartes atribui pela primeira vez ao pensar (ao cogito) o estatuto ontológico que até então era privilégio das coisas extensas: o cogito é uma res tanto quanto as coisas materiais, extensas. Com isso torna, por assim dizer, pensável o pensar. Penso logo sou um ser pensante sobre o qual se pode pensar. Há em Descartes, portanto, um importante deslocamento histórico do eixo da subjetividade, voltada a partir de então para esse eu pensante, que passa a abrigar a sede da verdade do sujeito e fundamento do conhecimento racional.

No raiar dos tempos modernos nasce o sujeito racional, que observava a realidade como algo exterior a si mesmo, utilizando-se da razão como instrumento de apreensão dessa realidade. Para Descartes, esse sujeito seria capaz de captar a verdade do mundo e livrar-se dos enganos e ilusões das aparências através da clareza do pensamento. Da mesma forma, seria através da luz da razão que o homem, voltando-se para dentro, empreenderia o exame de si mesmo.

Desse modo, a atitude de observação do mundo exterior começou a ganhar uma complexidade que, para ser compreendida, demanda autorreflexão, introspecção e exploração de si mesmo. Essa auto-observação, por um lado, voltava-se para o corpo cuja espessura material passaria a integrar o processo de percepção e observação. Por outro lado, o autoexame dirigia-se também para a própria interioridade da vida singular e pessoal de cada um, eixo fundamental em torno do qual se fundou a subjetividade moderna.

A noção de interioridade foi ganhando novos contornos, atingindo cada vez mais autonomia, condensando cada vez mais as capacidades da razão humana na medida em que se desenvolvem os processos civilizatórios da sociedade industrial (Elias, 1993). Evidentemente, essas transformações não se deram de maneira linear e contínua. Aos poucos, ao longo do período moderno, a interioridade foi se configurando como um rico e secreto lugar localizado nas profundezas de cada sujeito. Esse espaço íntimo e profundo guardava os pensamentos, sentimentos e emoções. A interioridade passou a ser considerada como um lugar precioso do ser.

Contudo, se Descartes iluminou a interioridade a partir da inflexão nos estudos da consciência, foi Freud quem posteriormente subverteu a noção de sujeito cartesiano ao deslocar o eixo centrado na razão e na consciência para o inconsciente. O pensamento freudiano significou uma virada importante na construção da subjetividade moderna, uma vez que traz uma concepção de sujeito inacabado, indeterminado, concepção que subverte e rompe com o ideal científico que identificava o "eu" à consciência. No sujeito freudiano acentua-se a condição de desamparo do homem e sua determinação pela dinâmica do desejo. Dessa forma, a psicanálise freudiana inaugurou uma interioridade distinta da proposição cartesiana, conformada como um espaço obscuro e contraditório: o inconsciente.

Como argumenta Szapiro (1998), a noção de "sujeito do inconsciente" pôs abaixo a ideia de unicidade do sujeito. A postulação do conceito de inconsciente divide o que até então era considerado indivisível. Ou seja, divide o in-divíduo, de modo que, como afirma Elia (1995, p. 41), "o inconsciente é precisamente a enunciação de uma impossibilidade radical, dada ao sujeito por estrutura, de ser uno: é um outro lugar psíquico, uma outra cena".

A narrativa sobre o universo interior do homem pouco a pouco foi ganhando novos contornos e especificidades. Em todo caso, a dimensão da interioridade do sujeito adquire progressivamente um valor crucial. A riqueza da interioridade passa a ser destacada, valorizada e cultivada, inaugurando um novo espaço e um novo modo de relação com o sofrimento.

Atentamos para o fato de que na passagem para o cuidado de si moderno há um deslocamento de finalidade: não se trata mais de cuidar da alma para melhor governar a si e aos outros como na cultura grega, nem de purificar a alma para atingir Deus como vimos no pensamento de Agostinho. O que ocorre a partir da modernidade é uma crescente afirmação de si e dos valores voltados à realização de si.

Em meio a tantas transformações na relação do homem consigo mesmo e com o mundo, os diários íntimos surgiram como riquíssimos instrumentos de autoconstrução, revelando a importância que a interioridade passou a adquirir. O homem moderno utilizou a escrita íntima como ferramenta para assimilar e representar as diversas mudanças que reviravam seu mundo interno (Sibilia, 2008).

Assim é que, já no século XVI, no auge das transformações apontadas, Montaigne inaugurou um novo estilo de escrita que nos séculos posteriores se popularizou: a escrita de si. Em seus Ensaios, Montaigne buscou, através da escrita, a autoexploração e o conhecimento de si, descrevendo as complexas indagações de uma personalidade singular: o seu próprio eu (Sibilia, 2008).

Assim, emergem novas formas de relação consigo mesmo, novas tecnologias para o exame da vida interior. Essa dimensão de si que se hospeda nas profundezas do eu será cara ao romantismo, à psicanálise e ainda a uma riquíssima produção literária, artística e filosófica que constitui nossa cultura. Desse modo, parece interessante examinar as origens estéticas do processo de interiorização e a consequente valorização da experiência individual subjetiva, da intimidade, da fantasia e autenticidade.

 

Homo psychologicus: escrita de si e a relação com o sofrimento na modernidade

Os modos de ser do homem atual tiveram como condição de possibilidade as lentas transformações ocorridas a partir do final do século XVIII, no contexto das mudanças econômicas, políticas e culturais implementadas pela emergência da sociedade industrial. O processo de interiorização da cultura se materializa em diversas práticas e expressões sociais, inclusive a literatura. O romance também ganhou "interioridade", se afastando cada vez mais das grandes narrativas e epopeias, passando a tematizar os aspectos emocionais e psicológicos dos personagens.

Nos séculos posteriores a Montaigne, a forma de escrita de si solitária e autorreferente ganhou cada vez mais força. A leitura e a escrita da era burguesa passaram a ser protagonizadas por um indivíduo solitário, voltado para sua intimidade. Sua leitura e escrita eram experimentadas entre quatro paredes, no ambiente de sua vida privada. Aqui era a própria relação entre o espaço público e o privado que se transformava, produzindo seus efeitos na subjetividade moderna.

Sennett (1999) observou que o contexto até o início do século XVIII representou uma época de apogeu do homem público e das artes da conversação, da narrativa, hábitos que teriam declinado com a emergência da tendência intimista a partir do século XIX. No período industrial, no auge da sociedade burguesa, tanto a relação com a leitura quanto com a escrita e a conversação passaram por transformações.

A separação entre o âmbito público e privado não se faz da mesma forma em todas as culturas, nem se apresenta da mesma forma nas diferentes épocas. Na cultura ocidental sua história é relativamente recente, de modo que a esfera da privacidade só ganhou contornos definidos inicialmente na Europa dos séculos XVIII e XIX. Ainda nos séculos anteriores, a esfera pública possuía ampla importância nas cidades europeias em expansão. O desenvolvimento das sociedades industriais modernas e as conformações do modo de vida urbano impulsionaram novos modos de se experimentar a dinâmica do espaço público-privado.

Quando Benjamin, no ensaio "O narrador" (1994), denunciou a morte do narrador e o declínio das antigas formas de contar histórias, ele estava se referindo, sobretudo, às mudanças ocorridas com o advento da modernidade e a consequente emergência de novos modos de vida não mais essencialmente ligados à experiência coletiva, como era a arte de narrar. O homem moderno dos séculos XIX e XX passou a se refugiar no silêncio e na solidão do seu lar e na privacidade de seu quarto, desde então separado dos demais cômodos da casa. A intimidade é, por assim dizer, uma invenção burguesa, assim como as ideias de privacidade e conforto. Esses conceitos estavam, sem dúvida, ausentes nas moradias medievais nas quais todos os habitantes compartilhavam quase tudo.

Essas mudanças produziram novas sociabilidades, assim como novas subjetividades e modalidades de construção do eu, resultando naquilo que Sennett (1999) nomeou de "regime da autenticidade", no qual a personalidade passa a ser considerada como um valor a ser cultivado pelo indivíduo. Consolidava-se, assim, esse espaço do eu interiorizado como uma esfera preciosa, que demandava ser protegida nos cuidados da privacidade do lar.

Dessa forma nasce o autor solitário dos romances modernos. Para Benjamin (1994), o surgimento do romance moderno foi, então, um dos sintomas do declínio do narrador. Ele constatou que o autor dos romances psicológicos modernos "segrega-se", isto é, se distancia para expressar nos romances não mais as preocupações coletivas e os conselhos dos mais velhos, mas as agonias e perplexidades do sujeito que vive e protagoniza a história. Esse autor solitário escreve em busca de um sentido dentro de si para sua vida, para a morte, para a história. E nesse sentido estabelece um modo particular de relação consigo mesmo e com a experiência do sofrimento.

A obra de Goethe (1749-1832) é, disso, uma boa ilustração. Como escritor, Goethe foi uma das mais importantes figuras da literatura alemã e do romance burguês do final do século XVIII e início do século XIX. Com o romance Os sofrimentos do jovem Werther, em 1774 (2011), Goethe tornou-se famoso em toda a Europa. Werther não é simplesmente um romance em cartas, é um romance de uma vida interior, que se confunde em muitos momentos com a própria vida do autor.

Nesse romance toda a narrativa é construída para afirmar o sujeito. O sujeito se evidencia tão vigoroso no romance, o "eu" se mostra tão presente que não abre espaço para a interlocução com os correspondentes das cartas de Werther, assegurando assim somente o seu ponto de vista, os seus sentimentos e suas inquietações. No romance, Werther busca um sentido para suas experiências, para suas vivências íntimas e para o avassalador amor que sentia por Carlota.

Nesse tipo de texto não se trata apenas de narrar fatos e atos. Em vez disso, uma complexa teia de pensamentos, emoções e sentimentos envolve as peripécias do herói do romance. Trata-se de um tipo de relato que, além de contar uma história, pretende também exprimir aquilo que se é e o que se sente. Werther sofre irremediavelmente. E ao escrever para Guilherme busca, de alguma maneira, lidar com essa dor:

É tanta desdita, Guilherme! Minhas forças ativas degringolaram em inquieta indolência, não posso estar ocioso, mas também não consigo fazer nada. Não tenho nenhuma ideia, nenhuma sensibilidade pelas coisas e os livros me causam tédio. Quando faltamos a nós mesmos, tudo nos falta (Goethe,1774/2011, p. 77).

A obra de Dostoiévski também nos fornece uma riqueza de pistas para identificar o modo de experimentar a relação com o sofrimento a partir de uma escrita interiorizada. Autor de personagens complexos, indecifráveis, caracterizados por incógnitas pessoais e dramas internos, foi considerado um dos maiores escritores do século XIX. Tinha como temas recorrentes em sua obra a questão do orgulho ferido, a interrogação sobre os valores familiares, o suicídio e o renascimento espiritual através do sofrimento. É extraordinária a profundidade do mergulho de Dostoiévski na alma humana.

Na novela Notas de subsolo (Dostoiévski, 1864/2010), por exemplo, o autor nos brinda com uma narrativa pulsante que do início ao fim se mantém na primeira pessoa do singular. O personagem protagonista é o próprio narrador, ele quem dá vida ao texto. No entanto, pouco sabemos a seu respeito, a não ser as coisas que ele próprio conta sobre si. O personagem da novela, um decrépito funcionário público da Rússia Czarista, destila seu rancor contra tudo o que existe, a começar por si próprio. Ele se insulta e, antes mesmo de começar a falar de suas memórias, revela que sofre do fígado. Sua primeira fala no livro é: "Sou um homem doente... Sou mau. Não tenho atrativos" (Dostoiévki, 1864/2010, p. 7).

O homem do subsolo resolve, portanto, relatar os infortúnios de sua vida medíocre. Seu desabafo é uma espécie de confissão, além de uma denúncia dos valores da época que o atropelavam. Descreve sua dor, seu sofrimento. É caótico, contraditório. Suporta a vida. Vive na sujeira, se esconde na lama. Experimenta o peso de uma voz subterrânea que, do fundo, nos conta os pesares de sua vida e as mazelas de seu tempo.

Trata-se, aqui, de um modo de se relacionar com o sofrimento no qual o autor destila nas páginas do romance os mais diversos aspectos da alma humana, incorporando ao relato as contradições experimentadas pelos personagens. O sentido para a própria confusão interior talvez fosse buscada na criação e escrita dos dramas vividos pelos heróis. O mal-estar, a culpa, o sofrimento, a dúvida abissal, os medos, todos esses sentimentos têm a densidade de onde nascem as obras de arte. E aqui o sofrimento parece, então, assumir um lugar na própria constituição da condição humana: "O homem gosta de criar e de abrir caminhos, isto é indiscutível. Mas por que ele também ama com paixão a destruição e caos? Digam-me, por favor!" (Dostoiévski, 1864/2010, p. 44).

Assim, os indivíduos modernos devoravam no silêncio de seus próprios quartos uma literatura que, por sua vez, era carregada de profundidade, de interiorização, e narravam o sofrimento dos personagens de uma época. Procuravam incessantemente o sentido da vida numa perspectiva que aceitava o sofrimento como parte dela. E essa relação de digestão do mal-estar aparece nos romances da época que buscamos ilustrar.

Desse modo, o sofrimento dava sentido à vida e à arte. Numa relação de apreciação do tempo, na internalização e estreita relação consigo mesmo, o homem moderno sentia e questionava os efeitos de sua época, transformando o mal-estar em obra de arte:

Porém quanto amor eu experimentava nesses meus devaneios [...]. Tudo, aliás, terminava sempre da maneira mais satisfatória, com a passagem preguiçosa e inebriante para a arte, ou seja, para as belas formas da existência, inteiramente acabadas, fortemente roubada dos poetas e romancistas [...]. Confesso diante do povo as minhas infâmias, não são simplesmente infâmias, mas que encerram em si uma quantidade extraordinária de belo e sublime. Todos choram e me beijam, e eu parto, descalço e faminto, para pregar novas ideias (Dostoiévski, 1864/2010, p. 70).

Assim, partindo de uma matéria conturbada e contraditória - que constitui a vida psíquica -, os relatos de si abriam a possibilidade de construção de uma narrativa coesa e profunda que pudesse dar sentido ao eu. Mergulhando em si mesmo, o homem moderno poderia criar-se e construir-se. É nesse espaço íntimo e profundo que o sujeito moderno conversa consigo mesmo, buscando dar sentido ao seu sofrimento.

O sofrimento era, de certo modo, experimentado com toda sua face cinzenta e dolorosa, sendo transformado em suspiros literários e criatividade, tendo então o seu lugar de potencialidade, de positividade, de invenção de si e do sentido do mundo. O lugar do sofrimento era o lugar da conversa interior e sua escuta permitia a construção de si mesmo. Nesse sentido, é importante ressaltar, nessa subjetividade tratava-se da densa construção de uma narrativa na qual o sofrimento tomava lugar destacado na composição dos atributos da condição humana.

Apenas nesse solo moderno, recheado de práticas hermenêuticas e de escritas de si através dos romances, cartas e diários íntimos, cujo exercício talvez esteja se esvaziando hoje em dia, poderia ser fecundado esse tipo de subjetividade. Nesse enriquecido universo de palavras se constituiu uma forma particular de subjetividade para o homem moderno, dotada de um atributo inaugural: a interioridade psicológica. Nesse espaço íntimo, localizado imaterialmente dentro de cada um, moravam os sentimentos e pensamentos privados. Esse universo interior passou a ser cultivado, enriquecido e aquecido. Era uma preciosidade iluminada pelo pensamento e agasalhada pela relação de conhecimento sobre si mesmo, que se expressava, no caso da literatura, através dos romances psicológicos modernos. Não por acaso, nasce nesse solo o inconsciente freudiano.

É nesse contexto que podemos falar na emergência do Homo psychologicus, um tipo de sujeito que, como observa Bezerra (2002), passou a organizar sua experiência em torno de um eixo localizado no centro de sua vida interior. Uma forma sujeito, portanto, que se volta para dentro de si, constituindo seu eu no coração de sua interiorização psicológica. E que, desse modo, encontra no sofrimento um diálogo consigo mesmo, com sua dor, e ainda, um conhecimento sobre si mesmo. Nesse sentido o sofrimento ocupava, para o sujeito, um lugar que revelava um saber sobre si, e era experimentado nessa relação interiorizada e localizada nas profundezas do eu psicológico.

Naqueles romances, os personagens destilam suas dores espalhadas em centenas de páginas, dão sentido ao sofrimento oriundo de sua intimidade e experimentam outra temporalidade. Sofrer, sentir demais, afetar-se, criar a si mesmo e inventar formas de lidar com a própria dor.

Estamos cada vez mais longe dessa configuração. Todos esses desatinos, todo o sentido do mal-estar parece ter perdido uma parte considerável de sua importância no processo de referência identitária na contemporaneidade. De modo que aquela infinidade de mundos fictícios criados nos romances, as vidas interiores tecidas no papel que enriqueciam a autoconstrução de si e que alimentavam a produção subjetiva moderna parecem estar desaparecendo. No lugar desta, outras modalidades subjetivas começaram a se constituir, cuja emergência e efeitos merecem ser analisados. De que maneira o homem se relaciona consigo mesmo nos dias atuais e que lugar confere ao sofrimento? E o que se entende hoje por sofrimento?

 

A cultura do bem-estar e os deslocamentos no lugar do sofrimento

Lá em cima, em seu quarto, o Selvagem lia Romeu e Julieta. Esse era o tipo de ideia que poderia facilmente descondicionar os espíritos menos estáveis das castas superiores, que poderia fazê perder a fé na felicidade como soberano bem e levá-los a crer, ao invés disso, que o objetivo estava em alguma parte além e fora da esfera humana presente; que a finalidade da vida não era a manutenção do bem-estar, e sim uma certa intensificação, um certo refinamento da consciência, uma ampliação do saber.

(Huxley, 1932/2009)

Esse trecho foi retirado do livro Admirável mundo novo escrito por Aldous Huxley em 1932, uma fábula futurista na qual o autor descreve uma sociedade completamente organizada, sob um sistema científico de castas. Nessa "sociedade perfeita" não havia vontade livre (esta fora abolida através da implementação de dispositivos de condicionamento), e a servidão era aceitável devido a doses regulares de felicidade química e à submissão hipnótica de lições sobre higiene e sociabilidade ministradas frequentemente durante o sono. O soma proporcionava um esquecimento perfeito e afastava todo sentimento desagradável: era um medicamento que proporcionava uma sensação de estar "fora do tempo". Huxley vislumbrou nesse romance uma civilização de excessiva ordem onde não havia espaço para questionamentos ou dúvidas, nem para os conflitos, pois até os desejos e ansiedades eram controlados quimicamente.

Passados mais 50 anos de sua primeira publicação, podemos dizer que o visionário romance de Huxley tem muito a nos dizer sobre os dias atuais, e a sociedade descrita por ele em muitos aspectos ilustra a cultura na qual vivemos. E isso não somente porque ler Shakespeare já não parece tão atraente, mas também pelo fato de que parece que caminhamos para um tipo de sociedade que, como no romance, acredita na "felicidade como soberano bem", já não suportando mais a ideia do sofrimento como parte inexorável da condição humana. Ou, melhor dizendo, não suportando aquilo que o sofrimento pode nos revelar como limite ao prazer, à liberdade, ao bem-estar pleno.

Como nos relacionamos com o sofrimento hoje? Como se construiu esse ideal?

Essas perguntas nos colocam diante da tarefa de investigar essa especificidade histórica - do ponto de vista da subjetividade - que possibilitou a construção de um imperativo de ser feliz por meio da idealização de um estado pleno de bem-estar, na qual acredita-se ser possível uma vida da qual a dimensão do sofrimento deve ser excluída, ou eliminada, uma vez que passa a ser considerada patológica.

De modo geral, o sofrimento humano resulta de uma divergência entre nossos desejos, vontades e pulsões de um lado, e o curso dos acontecimentos que nos afetam, ou seja, a realidade da existência de um outro. Isso foi o que argumentou Freud (1930/1997). Haveria, basicamente, dois modos de lidar com essa divergência. Um seria conciliar os nossos desejos com o princípio da realidade e de alguma maneira aceitar as coisas como elas são; e o outro seria transformar as circunstâncias, intervir sobre a realidade de modo a que esta atenda aos nossos desejos.

Os filósofos estoicos decidiram-se primordialmente pela primeira opção. Como a realidade está para além de nós, como não podemos ter controle total sobre os acontecimentos e como o mundo é regido por leis que independem da nossa vontade, então só nos restaria submetermo-nos e nos adaptarmos ao curso dos acontecimentos. O que exigiria, por sua vez, um controle rigoroso sobre as paixões e vontades. A aceitação dos limites, a auto-disciplina interior, o controle sobre os desejos, a reflexão filosófica e a vida contemplativa seriam, nessa perspectiva, o segredo de uma existência harmoniosa e feliz.

A segunda opção foi justamente a escolha feita pela razão iluminista: ao invés de buscar conter os desejos adaptando-os à realidade, tratava-se de construir uma realidade que permitisse ao homem exercer controle sobre ela. O ideal iluminista reflete um anseio faustiano, nesse caso uma aposta na conquista da felicidade pela exaustiva intervenção sobre o mundo e, sobretudo, sobre a dimensão de finitude do homem (Szapiro, 2009), o que não é, em si, um problema, mas que não passa sem seu conjunto de efeitos.

O domínio da natureza pelo homem foi peça central de um projeto que comportava ainda outras duas conquistas almejadas. Uma, o aperfeiçoamento da natureza humana por meio da educação, da razão e da produção de um ambiente propício ao seu desenvolvimento. Outra, as formas de governo sobre os homens, através dos quais se garantiria a ordem e o bem-estar de todos. A expectativa dos iluministas era, portanto, que essas três condições (domínio da natureza, perfectibilidade humana e governo racional) caminhassem juntas e à medida que avançassem nos permitissem chegar mais próximos da felicidade.

Na modernidade a busca pela felicidade se constituiu num projeto individual ligado à ideia de realização pessoal, isto é, à possibilidade de que cada indivíduo pudesse desenvolver seu plano pessoal de conquistas e realizações. A aceitação de um destino a ser cumprido pertencia cada vez mais a uma época definitivamente superada diante das promessas anunciadas pela narrativa moderna. Nesta, cada indivíduo poderia traçar seu projeto de vida. Esse movimento produz uma mudança significativa do ponto de vista subjetivo, ou seja, no modo como cada indivíduo vai perceber suas necessidades e orientar suas escolhas em função não exclusivamente do interesse da coletividade, nem da reverência e louvação a um Deus, mas da concretização das suas aspirações pessoais (Velho, 2010).

Eis que a versão contemporânea, ao dar ênfase à individualização desse projeto, o radicaliza e a busca pela felicidade vai se consolidar como um projeto individual que dependerá da performance e eficácia de cada um em administrar suas vidas. O ideal do bem-estar se eleva ao patamar de meta primordial das sociedades atuais, e a felicidade é colocada como uma das condições indispensáveis para sua concretização. De um direito democrático a felicidade passa então a ser um imperativo (Furtado, 2014).

Não é consenso que hoje nos tornamos mais felizes e realizados. Mas, ao que tudo indica, essa busca se tornou uma meta imperativa, para a qual o "rebanho de consumidores" marcha obstinadamente, mesmo sem ter muita certeza sobre em que direção caminha (Dufour, 2008). Nesse sentido, temos visto crescer também exponencialmente o mercado do conforto psíquico, do equilíbrio e da autoestima. Observamos isso na expansão das técnicas de desenvolvimento pessoal e gestão de si, nos guias de autoajuda e sabedoria, e sobretudo nas "farmácias da felicidade". Tal expansão, entretanto, vale sublinhar, se sustenta na crença de que é direito de todos - e o discurso deste mercado assim o diz - viver sem sofrimento.

Lipovetsky (2007) argumenta, a esse respeito, que passamos de uma era na qual o consumo centrava-se primordialmente na aquisição de bens materiais para um hiperconsumo inclusive de produtos que oferecem experiências emocionais, bem-estar, qualidade de vida, saúde e comunicação. Construímos uma nova cultura dominada por uma "mitologia da felicidade privada" e pelos ideais hedonistas que prometem se realizar, sobretudo, através do consumo. Tudo, ou quase tudo, se vende hoje com promessa de felicidade individual.

Nesse contexto, cada indivíduo passa a gerir a sua vida com o objetivo de se adaptar aos valores vigentes, que incluem a expansão da lógica empresarial para quase todos os domínios da vida, na qual o indivíduo busca o máximo de retorno em seus investimentos pessoais, se torna alguém com espírito empreendedor e assume a responsabilidade por se tornar um gestor eficaz de si mesmo. Como consequência, sinaliza Szapiro (2012), vivemos hoje sob a fórmula da autogestão da vida. E "gerir" significa eliminar o conflito e apagar-lhe os efeitos em nome de um bom funcionamento e de uma melhor eficácia.

A figura do "empreendedor" aparece, então, como o grande herói contemporâneo. E o exercício de "teatralização de si mesmo" (Ehrenberg, 2010) se consolida como uma prática na qual se torna muito importante estar visível a todos. O "empreendedor de si mesmo" é, então, esse homem que deve gerir sua vida num contexto que requer uma performance exigente, um semblante de jovialidade, uma exaltação de felicidade. Não deve haver espaço na vida desse "gestor de si" para o sofrimento, a não ser a exortação de sua superação rápida e imediata. O que se espera de todos nós é a avidez da ação e a capacidade de superação.

 

Performance e narrativa de si na cultura contemporânea

A norma da felicidade e do bem-estar não apenas ergue um indivíduo que cuida de si, de sua boa forma e estilo de vida numa sociedade que supervaloriza a juventude e a saúde, ela enaltece o indivíduo que se supera e realiza suas conquistas sozinho, sem depender de redes de apoio comunitário, familiar, nem institucional. Para Ehrenberg (2010), essa norma produziria uma cultura onde cada um se torna uma espécie de herói de si mesmo, numa súbita promoção da ação de empreender como valor e princípio, no domínio da vida privada e profissional. De tal maneira que a figura dos "vencedores", aqueles que exibem suas vitórias de forma espetacular, parecem se tornar um modo de ser.

Surge, desse modo, uma nova estética literária que acaba por acompanhar e traduzir esse movimento, dando visibilidade a uma proliferação de relatos autobiográficos que contam as vitórias e conquistas dos empreendedores, daqueles que subiram na vida, superaram seus limites e se tornaram vencedores, numa narrativa que nos incita a sermos cada vez mais eficazes, felizes e realizados profissionalmente. Muito diferente - vale notar - dos romances examinados anteriormente, nos quais a experiência de produção de um sentido para a própria vida advinha de uma estreita relação consigo e com o sofrimento. Hoje, ao contrário, a felicidade, o prazer e a conquista constituem uma exaltação inebriada da capacidade de superação e de não experimentação de episódios de sofrimento - este considerado uma fraqueza, uma patologia, para nosso "herói contemporâneo".

Como ilustração dessa estética contemporânea tomemos o livro Uma vida sem limites - inspiração para uma vida absolutamente boa, do autor Nicholas James Vujicic (2011). Trata-se de um exemplo das tão propagadas modalidades de best-sellers autobiográficos, nos quais o autor faz do relato de sua vida uma inspiração para outras pessoas.

Nicholas é um homem que nasceu sem braços e pernas e conta no livro que, "apesar de minhas limitações físicas, vivo como se não tivesse limites" (Vujicic, 2011, p. 57). Relata então suas vitórias e superações e o modo como venceu na vida apesar das dificuldades. Em uma das passagens do livro ele diz: "acredito do fundo do coração que a minha vida não tem limites. Quero que sinta a mesma coisa com relação à sua vida, quaisquer que sejam os seus problemas" (Vujicic, 2011, p. 84; grifos nossos). E enaltece que essa ação é uma atitude de escolha por acreditar em si mesmo e fazer por si mesmo:

Se você não está onde queria estar ou se não realizou tudo que esperava atingir, o mais provável é que a razão resida não à sua volta, mas dentro de você. Assuma a responsabilidade e, depois, aja. Primeiro você deve acreditar em si mesmo e no seu valor. [...] Você deve pensar em si mesmo como uma colher de pau, e o mundo é seu caldeirão. Mexa a colher. Coragem! (Vujicic, 2011, p. 109).

Observamos hoje a proliferação de relatos contemporâneos autorreferentes fazendo do autor o herói de uma história que narra a própria vida. A obra de Nicholas é a narrativa que ele próprio faz da sua superação, é uma narrativa de si mesmo que traduz o herói como um vencedor ávido. Trata-se, por assim dizer, da espetacularização de si numa sociedade que cultua a superação, a felicidade e uma vida sem limites.

Esse foi o horizonte que Guy Debord vislumbrava já em 1967 (1997). Ávido representante da enérgica geração contracultural, esse autor denunciara a primazia do espetáculo como "o sol que jamais se põe no império da passividade moderna". Para além de um aglomerado de imagens, o espetáculo se tornou nosso modo de vida e nossa visão do mundo. É hoje a forma como nos relacionamos uns com os outros e a maneira como o mundo ocidental capitalista se organiza. Tudo é permeado pelo espetáculo, sem deixar praticamente nada de fora.

Nessa cultura das aparências, do espetáculo e da visibilidade, já não parece haver motivos para mergulhar naquelas sondagens em busca dos sentidos profundos escondidos dentro de si mesmo. Em lugar disso, tendências exibicionistas e performáticas alimentam as narrativas que são valorizadas. Cada vez mais é preciso aparecer para ser. Pois, como sugere Sibilia (2008), tudo aquilo que permanecer oculto, fora do campo da visibilidade, corre o risco de não ser visto por ninguém, portanto de não existir. As redes sociais são disso um bom exemplo.

Em meio ao crescente processo de globalização dos mercados, em uma sociedade altamente midiatizada, fascinada pela incitação à visibilidade e pelo império das celebridades, percebe-se um deslocamento daquela subjetividade interiorizada em direção a novas formas de autoconstrução. Construção de si orientadas para o olhar alheio ou exteriorizadas, e não mais introspectivas ou intimistas (Sibilia, 2008).

Numa cultura que valoriza a exibição da felicidade, já não contamos nossas narrativas existenciais seguindo o modelo da épica, nem tampouco o de uma tragédia romântica, com longos parágrafos de rica gramática para descrever um minucioso drama existencial, como fez Kafka por exemplo no célebre Metamorfose. Nossos atuais relatos autobiográficos trazem narrativas que ganham novos contornos.

As narrativas que hoje nos constituem parecem cada vez mais distantes dos estilos literários que marcaram o cenário do raiar da modernidade e que persistiram pela era industrial, distanciando-se do discurso dos romances clássicos, tais como os inspiradores personagens de Dostoiévski ou o lendário jovem Werther de Goethe. Se tomarmos ainda como exemplo a obra Em busca do tempo perdido de Proust, percebemos que há uma enorme diferença no relato e construção das memórias que o autor descreve extensamente em seu romance, e os relatos autobiográficos contemporâneos.

A grandeza das lembranças proustianas não estão em seu conteúdo, nem nos seus feitos, nem na exaltação de sua vida íntima. A genialidade de Proust está em não ter escrito "memórias", mas justamente uma "busca", uma busca das analogias e das semelhanças entre o passado e o presente que inclusive extrapolam a particularidade da sua vida. Proust não parece buscar reencontrar o seu passado em si, autorreferente. E nem pretende colocar-se como grande protagonista, mas busca a presença do passado no presente e o presente que já se encontra perdido no passado, ou seja, fala da experiência com o tempo, com o passado e com as lembranças que acabam sendo comum a todos nós. A tarefa do escritor não seria, portanto, relembrar acontecimentos pessoais, mas "subtraí-los às contingências do tempo em uma metáfora", como disse Proust (1921/2007, p. 254).

 

Considerações finais: que tempo nos resta?

Após percorrermos esse caminho de análise, que procurou acompanhar de que modo a dimensão da interioridade era tratada nas obras aqui citadas, compreendemos que estamos diante de um momento pleno de transformações significativas do ponto de vista das subjetividades, uma vez que germinam modos de ser cada vez mais distantes daquele caráter interiorizado que definia o Homo psychologicus. E com isso aquela infinidade de mundos fictícios criados nos romances, as vidas interiores tecidas no papel que enriqueciam a autoconstrução de si e que alimentavam a produção subjetiva moderna estão pouco a pouco desaparecendo. No lugar desta, outras modalidades subjetivas começam a se constituir: são as escritas que falam da felicidade, da superação, da vida plena e saudável. Inauguram-se, assim, outras formas de consolidar a própria experiência, outros modos de relação consigo mesmo, outros regimes de constituição do eu e outras formas de se relacionar com o sofrimento.

Se desvalorizamos o hábito da leitura, da apreciação cultural dos romances que narram a vida comum a todos nós, então podemos dizer que é a própria relação consigo mesmo que, com efeito, é afetada. Como observaram Adorno e Horkhrimer (1985), o hábito da leitura é próprio de um certo tipo de interiorização, pois o ato de ler um romance está bastante próximo de um "monólogo interior". Além do diálogo silencioso com o autor, no momento da leitura sempre se está consigo mesmo.

Saber ler em silêncio, nesse sentido, foi uma das condições necessárias para a constituição de um conjunto de práticas que levaram ao surgimento dessa dimensão interior reflexiva de que falamos. Assim, as transformações na relação consigo mesmo e na importância conferida à interioridade parecem anunciar e participar também das transformações no modo como o homem contemporâneo se relaciona com a experiência do sofrimento, e o lugar que este passa a ocupar no espaço subjetivo de nossa época.

É bem possível que as complexas transformações econômicas, políticas, sociais, culturais e tecnológicas que atravessamos hoje estejam deslocando o eixo a partir do qual as subjetividades se consolidam. De modo que cabe perguntarmo-nos sobre essa primazia da vida interior como fundamento da subjetividade, que - como vimos - desempenhava um papel fundamental na modernidade. Atualmente a aparência e a visibilidade parecem reivindicar o estatuto de definir o que cada um é. E os efeitos da primazia da busca da melhor performance técnica sobre o mal-estar humano parecem fazer um convite a não mais dar lugar a um trabalho sublimatório necessário sobre o sofrimento enquanto dimensão do humano, o que supõe admiti-lo e integrá-lo a essa dimensão, como argumentava Freud (1930/1997) em "O mal-estar na cultura", mas ao contrário, buscar subtraí-lo através da manipulação de suas causas.

A vida e o bem-estar assumem, nessa perspectiva um lugar central, a saúde tornando-se objeto de uma verdadeira atenção política como assinalam Gori, e Del Volgo (2005). Trata-se de uma "medicalização da existência", sublinham estes autores, pela qual o discurso médico convoca a todos para novos modos de viver e de evitar a dor. Nesse contexto, o mal-estar, o sofrimento, a angústia existencial em geral perdem o sentido que tinham nas obras que analisamos até aqui e ocupam agora um novo lugar. Problemáticas que antes eram consideradas em seus aspectos sociais, culturais e psíquicos, que falavam dos conflitos do homem consigo mesmo e da angústia de viver, desaparecem e tornam-se hoje disfunções ou distúrbios que podem, e devem, ser corrigidos medicamente.

Sendo assim, as transformações aqui analisadas denotam um sutil deslocamento dos eixos em torno dos quais as subjetividades modernas se construíram. Pois se na moderna cultura do psicológico e da intimidade o sofrimento era experimentado como conflito interior, ou como tensão entre aspirações e desejos reprimidos e as regras rígidas da cultura, hoje o quadro parece modificar-se. Na cultura contemporânea, o mal-estar tende a ser tomado como um defeito diante do imperativo de otimização da performance física e mental, e não mais como contradições de uma interioridade complexa. E as soluções para resolver essas eventuais falhas no desempenho tampouco recomendam o antigo recurso à hermenêutica de si e à introspecção.

Os efeitos das transformações anunciadas não concernem apenas a um deslocamento espacial (de dentro para fora), mas também a um deslocamento temporal (do passado para o presente). O cultivo da interioridade psicológica, como a reconstrução do passado individual perdem a importância na busca da definição do que cada um é. Logo, mudam as regras de constituição do eu. E não se trata somente de um abatimento na contemplação introspectiva. Também o olhar retrospectivo tende a se perder, reduzindo seu valor outrora primordial na construção da própria vida como um relato.

E, ao não valorizamos mais a história e a memória, é então o próprio lugar da narrativa que se perde, empobrecendo nossas experiências, como disse Benjamin (1994). Trata-se, consequentemente, da fragilização do laço social, uma vez que desaparecem as narrativas que teciam esse conjunto de experiências que, de alguma maneira, nos une uns aos outros. Saímos, assim, do lugar da narrativa e da troca de experiências para a bruma fragmentada do esquecimento, de modo que somos agora feitos de "uma existência que se basta a si mesma" (Benjamin, 1994).

 

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Recebido em 30 de maio de 2016
Aceito para publicação em 17 de outubro de 2017

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