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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. vol.33 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2021

https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0033n01A04 

ARTIGOS - FAMÍLIA, SOCIEDADE E CULTURA: INTERVENÇÕES TEÓRICO-CLÍNICAS

 

Sobre a importância da cultura e da experiência no cuidado em saúde mental

 

On the importance of culture and experience in mental health care

 

Sobre la importancia de la cultura y la experiencia en el cuidado de la salud mental

 

 

Eduardo Rocha ZaidhaftI; Francisco OrtegaII

IProfessor da Faculdade de Medicina da Universidade Estácio de Sá, Campus Presidente Vargas, RJ, Brasil. eduardozaidhaft@gmail.com
IIProfessor de investigação da Institución Catalana de Investigación y Estudios Avanzados (ICREA) no Centro de Investigación en Antropología Médica (MARC) da Universitat Rovira i Virgili, de Tarragona, España. fjortega@gmail.com

 

 


RESUMO

Esta pesquisa buscou estudar, por meio de uma revisão bibliográfica, de que modo as considerações feitas sobretudo por Lawrence Kirmayer, Arthur Kleinman e Joan Kleinman podem trazer contribuições ao campo da saúde mental no Brasil. Com a finalidade de trazer um referencial da saúde global que enriqueça as estratégias utilizadas pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), foi revisto como o cuidado em saúde mental envolve um problema interpretativo, especialmente à luz da diversidade cultural. Como conclusão, verificou-se como essa exploração permitiu a elucidação de características fundamentais para a noção de território, que a fazem se expandir para uma compreensão mais ampla do que a de mera localidade geográfica.

Palavras-chave: saúde mental; saúde mental global; cultura; território; experiência.


ABSTRACT

This research aimed to study, through a bibliographical review, how the considerations made mainly by Lawrence Kirmayer, Arthur Kleinman and Joan Kleinman can contribute to the field of mental health in Brazil. For the purpose of bringing a global health referential that would enrich the strategies used by the Psychosocial Care Network (RAPS), it was reviewed how mental health care involves an interpretative problem, especially in the light of cultural diversity. As a conclusion, it was seen how this exploration allowed some light to be shed on fundamental characteristics of the notion of territory, that broadens its comprehension to beyond mere geographic locality.

Keywords: mental health; global mental health; culture; territory; experience.


RESUMEN

Esta investigación buscó estudiar, por medio de una revisión bibliográfica, como las consideraciones hechas sobre todo por Lawrence Kirmayer, Arthur Kleinman y Joan Kleinman pueden aportar contribuciones al campo de la salud mental en Brasil. Con el fin de traer un referencial de la salud global que enriquezca las estrategias utilizadas por la Red de Atención Psicosocial (RAPS), se revisó como el cuidado en salud mental involucra un problema interpretativo, especialmente cuando a la luz de la diversidad cultural. Como conclusión, se verificó como esa explotación permitió la elucidación de características fundamentales a la noción de territorio, que la hacen expandirse hacia una comprensión más amplia que la de una mera localidad geográfica.

Palabras clave: salud mental; salud mental global; cultura; territorio; experiencia.


 

 

Introdução

O Movimento de Saúde Mental Global (Global Mental Health Movement - GMHM) é uma rede de indivíduos e organizações que busca dar ênfase à importância dos fatores de saúde mental para a saúde como um todo, apontando como frequentemente esses fatores vêm sendo negligenciados pelas agências globais de saúde (Wenceslau & Ortega, 2015). Por esse aspecto, busca sobretudo a produção de redes de cuidado às mais variadas populações do planeta, visando à produção de diferentes ações conforme diferentes contextos e enfrentando a complexidade de, ao mesmo tempo, considerar a necessidade de padronizações para intervenções a nível global e os aspectos locais da cultura sobre a qual se está intervindo. Se, por um lado, uma padronização é necessária, inclusive por questões ligadas ao financiamento das ações, por outro, o fator cultural tem se mostrado cada vez mais importante para as ações em saúde mental.

É no bojo dessa problemática que este trabalho buscará realizar uma revisão do conceito de cultura a partir do referencial dado pelo psiquiatra transcultural Lawrence Kirmayer (2014a, 2014b), para assim se explorar um texto no qual Arthur e Joan Kleinman (1997) ilustram, principalmente a partir de sua experiência etnopsiquiátrica na China, como esses fatores culturais envolvem um problema interpretativo sobre a experiência. Dentre as críticas levantadas por Kleinman e Kleinman (1997), destaca-se seu ponto de vista a respeito de que tanto a antropologia como o saber psi têm subestimado a importância da experiência de sofrimento como um elemento central na compreensão sobre de que modo cultura e saúde mental entrelaçam-se uma à outra. Além disso, será usado brevemente o texto de Tania Luhrman (2016), com o qual introduz um recente livro sobre estudo de casos de esquizofrenia em diversas culturas, editado pela mesma antropóloga, junto a Jocelyn Marrow. Alicerçado nessas bases bibliográficas, este texto tenciona consolidar o campo conceitual e prático da saúde mental hoje no Brasil, na medida em que busca fomentar, por meio de referenciais globais, uma visão que lance luz sobre as diversidades culturais, e não simplesmente geográficas, dos territórios brasileiros.

 

Heterogeneidade no campo da saúde mental no Brasil

A saúde mental, enquanto conjunto de práticas e equipamentos inserido dentro do setor da Saúde, é um campo múltiplo, composto por uma pluralidade de orientações, que, em suas intercessões, produzem os dispositivos destinados ao tratamento dos transtornos mentais no Brasil. A denominada Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), subsistema do SUS (Sistema Único de Saúde) que busca dar conta das demandas de saúde mental no país, foi composta por um processo histórico, efeito de atores e equipamentos paradigmaticamente heterogêneos, filiados a saberes que transitam desde a psiquiatria clássica até a abordagens psicanalíticas ou sociológicas. Com efeito, nas últimas décadas, sob a forma dessa dinâmica heterogênea, grandes transformações ocorreram nesse campo no país. Tendo-se revisto o paradigma de cuidado antes instituído, sobretudo a partir do flagrante desrespeito aos direitos humanos em grandes manicômios em meados do século XX, tornou-se possível que a reforma psiquiátrica cursada em países como França, Itália e Inglaterra ganhasse ressonâncias no Brasil. Nesse sentido, a atual configuração de tal campo é certamente resultante de uma alteração técnica e política das formas de se operar o cuidado, mas, antes disso, é fruto de uma disputa entre diferentes sensibilidades ou interpretações perante a experiência do sofrimento.

Sob a ótica do cuidado direto aos portadores de transtornos mentais, a reforma psiquiátrica brasileira se desdobrou numa ênfase cada vez maior à interdisciplinaridade em lugar da psiquiatria somente, dando lugar a outras categorias profissionais, como enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, terapeutas ocupacionais, dentre outras. Foi por meio dessas variadas vertentes, e recebendo ensejo do processo mais amplo de reforma sanitária, que o campo da saúde mental brasileiro pôde ampliar suas modalidades de oferta de cuidado durante os últimos anos. Desse modo, a existência desses múltiplos estratos no processo de reforma implicou desenvolvimentos não somente no que tange às áreas da psiquiatria e dos psicofármacos, mas também a todo um espectro multidisciplinar, a articular-se, inclusive, com setores para além da Saúde stricto sensu. Nessa esteira, autores como Mourão Vasconcelos (2009) falam da necessidade não propriamente de uma interdisciplinaridade na atuação do profissional em saúde mental, mas de serem estabelecidas relações "interparadigmáticas".

Portanto, uma vez constatada não somente a ineficácia técnica das longas institucionalizações, mas também a forma muitas vezes desumana sob a qual a psiquiatria delineava sua clínica em grandes manicômios, mostrou-se premente no Brasil um movimento de reformulação prática e teórica nos modos como se pensa o cuidado em saúde mental, especialmente quando se trata da saúde pública. Esse processo teve como inspiração experiências de reforma europeias como a Psiquiatria Democrática italiana e a Psicoterapia Institucional francesa, que respectivamente representavam diferentes enfoques, um mais voltado à crítica às chamadas instituições da loucura e outro que buscava uma clínica a ocorrer dentro mesmo dos modelos institucionais. Embora tenha havido outros movimentos de reforma ao redor do globo, cada um com suas minúcias, que influenciaram o processo ocorrido no Brasil, é possível pensar que esses dois são exemplares em relação à configuração do campo da saúde mental brasileiro nos dias atuais. Contudo, não somente devido à vastidão do território brasileiro, esse campo muito pouco homogêneo apresenta uma grande variedade de forças, no sentido de contar com culturas profissionais muito distintas, que por sua vez complexificam o cotidiano das práticas de cuidado.

Além disso, como indica Amarante (2003), o processo de reforma psiquiátrica, cursada durante as últimas décadas até os dias atuais, incorporou pelo menos quatro dimensões: a teórico-conceitual/epistemológica, a técnico-assistencial, a jurídico-política e a sociocultural. De tal forma, se por um lado transformou o arcabouço técnico-científico da medicina, a reforma no Brasil se enlaçou a diferentes áreas, produzindo não somente novas legislações, mas também novas formas de sociabilidade para com o sofrimento mental. Exemplo dessa posição que pensa o reposicionamento da cultura em relação ao adoecimento psíquico é a fala de Rotelli (2001) a seguir. Não seria impossível afirmar que esse autor, um tanto radical mas igualmente fundamental para a reforma psiquiátrica brasileira, apresenta de forma sintética como seu projeto de negar as chamadas instituições da loucura mantém uma relação imanente com a cultura:

O que era a instituição a ser negada? [] era o conjunto de aparatos científicos, legislativos, administrativos, de código de referência cultural de relações de poder estruturados em torno de um objeto bem preciso: "a doença" (p. 1)

Contudo, essa negação do que era a instituição psiquiátrica, e ainda é em alguns casos, mais do que solucionar os problemas, abre um novo campo de problematizações, introduzindo a necessidade de produção de novas práxis em saúde mental. Uma vez feita essa crítica, que aponta a necessidade de se pensar a saúde mental como um processo atravessado pela cultura, como propor não somente a afirmação de novas instituições, ao mesmo tempo eficazes e condizentes com o horizonte da reforma psiquiátrica brasileira, mas também de uma nova cultura em relação ao sofrimento mental? Em relação a esta questão, talvez um primeiro passo seja se debruçar sobre o pensamento de autores que tiveram de lidar com o problema da cultura não apenas como um elemento modesto, quase subliminar, das relações de cuidado em saúde mental, mas mais provavelmente o primeiro elemento a saltar-lhes aos olhos.

 

Conceito de cultura

Esses impasses envolvendo cultura e o campo da saúde mental brasileiro podem ganhar alguns encaminhamentos caso se observe o problema da cultura já em um referencial da saúde mental global. A esse respeito, um primeiro elemento destacado por Kirmayer (2014a, 2014b) é que as culturas tanto são heterogêneas entre si - e que, por isso, manuais estandardizados de saúde mental global devem ter sua aplicação mediada pela cultura local - como também existem motivos para entendermos que as culturas são heterogêneas em si mesmas. Isto é, devemos considerá-las não somente heterogêneas conforme a dimensão espacial, como uma diferença sincrônica em relação a outras culturas localizadas em outros territórios, mas também heterogêneas do ponto de vista temporal e histórico dentro de uma mesma sociedade. Entretanto, ainda que embaralhadas e heteromórficas, as culturas são "sistemas de conhecimento e prática que dão identidade, significado e propósito às nossas vidas - modulam todo aspecto da experiência, incluindo a saúde e o adoecimento" (p. 1, tradução livre). Isso significa dizer que a cultura não é apenas relativa ao modo como o adoecimento é experienciado, mas também à forma como a saúde é concebida e acionada pelos agentes de cuidado. De maneira mais clara, a cultura não diz respeito somente aos pacientes, atravessando também os profissionais e as organizações de saúde, de forma que estas são elas mesmas instituições culturais, com sua própria história e valores (Kirmayer, 2014b, p. 44).

Nesse contexto, Kirmayer, partindo de Eagleton (2000), descreve algumas dimensões da noção de cultura:

(1) Como a matriz social de todo aspecto da biologia e experiência humana; (2) como o modo pelo qual grupos humanos ou comunidades com uma história ou identidade compartilhadas são distinguidos uns dos outros; (3) como o cultivo de nossas capacidades criativas coletivas, expressadas em grande parte pela língua, mas também pela música, artes, e outros meios. (Kirmayer, 2014a, p. 2, tradução livre)

Pode-se depreender da citação acima de Kirmayer como o termo cultura apresenta três definições, uma ontológica, uma étnico-identitária, e uma técnico-civilizatória, poder-se-ia chamar, que em verdade representam três perspectivas de um mesmo objeto, havendo um alto grau de indissociabilidade entre o que cada uma delas enfatiza e as outras. Em primeiro lugar, (1) a cultura trata da construção de um nicho, transmitido de geração para geração por um certo agrupamento de humanos em sua relação com o ambiente, matizando-se por meio de "convenções sociais", assim como por "padrões de interação e instituições sociais" (p. 2, tradução livre). Em outras palavras, compreende os sistemas de práticas e conhecimentos, rituais e mitos, que dão esteio ontológico às interações humanas, assim como as regulações sociais por elas agenciadas. Numa segunda apreensão, (2) a cultura se destaca pelo caráter de "alteridade" e de "nação" (p. 2, tradução livre), isto é, pela definição identitária de um agrupamento de pessoas se dar justamente por sua separação em relação a outros com os quais não compartilha essa identidade, que pode ser relativa a uma "linhagem, origem geográfica, ou outras características, incluindo religião e modo de vida" (p. 2, tradução livre). A respeito dessa definição de cultura ligada à etnicidade, Kirmayer sublinha o fato de a biologia contemporânea já ter demonstrado que o que usualmente denomina-se uma raça humana pouco tem a ver com diferentes marcadores genéticos, mas que as análises em saúde global ainda assim devem levar em conta a importância desse marcador, uma vez que essas identidades se correlacionam com as iniquidades sociais. A terceira definição dada pelo autor indica (3) o "processo civilizatório associado com a elaboração e refinamento da linguagem, religião, etiquetas rituais, ciência e as artes". (p. 3, tradução livre), no qual a cultura é a noção que condensa todo esse tesouro de produções técnicas e simbólicas de um mesmo nicho.

Como o autor indica, essas perspectivas da noção de cultura trazem como consideração inevitável que a cultura ocidental (em sua dimensão étnico-identitária) teve historicamente uma atitude de se crer hierarquicamente superior às demais (na dimensão técnico-civilizatória da cultura). Esse etnocentrismo ultrapassado não é, contudo, tão ultrapassado assim, o que é exemplificado pela problemática envolvida na formulação de ações de saúde mental que levem em conta tanto os aspectos locais como globais. Isto é, sendo os saberes mais tradicionais da saúde mental aqueles provenientes da sociedade ocidental, como se pensar numa agenda de saúde mental global que não negligencie os aspectos das diversas culturas (em sua dimensão ontológica)? Como produzir uma organização por parte dos serviços de saúde mental que não os deixe presos às alternativas de produzir práticas estandardizadas que ignoram as diferenças culturais, ou tratar a cultura como mero impedimento ou barreira na relação entre profissionais e pacientes? Além de suscitar essas questões, Kirmayer (2014a, p. 4) se refere ao problema de que a produção de manuais, cuja intenção é treinar os profissionais conforme as especificidades culturais, também pode acarretar uma tendência a estereótipos e preconceitos que ignoram as diferenças internas a um mesmo grupo étnico, tratando a localidade geográfica como suficiente para a definição da cultura (Kirmayer, 2014b, p. 43).

Conforme essa proposta pluralista da saúde mental global, a clínica se torna um desafio ainda mais complexo quando marcantes diferenças culturais estão em jogo. Apesar de as correntes da psiquiatria terem tradicionalmente atribuído os transtornos mentais a fatores individuais, sejam psicológicos ou biológicos, poucas são as análises que se debruçam sobre esse aspecto "ecossocial" (Kirmayer, 2014b, p. 44, tradução livre). De acordo com Kirmayer (2014b), ao passo que existem pouquíssimas evidências sobre disfunções cerebrais específicas correspondentes a transtornos mentais específicos, a influência da cultura é tão forte que autores como Summerfield (2012) consideraram ser impossível a formulação de transtornos mentais que se apliquem uniformemente nas diferentes culturas. Nesse sentido, algo também digno de nota é como, muito frequentemente, ao se descobrir uma causa orgânica específica, há uma mudança nos manuais diagnósticos na direção de se reclassificar o problema, transpondo-o da saúde mental para a saúde geral, como é o caso da síndrome de Tourette. Mesmo sobre os casos em que há a verificação de uma alteração fisiológica específica, Kirmayer (2014b) é enfático: "apesar disso, sempre há um componente cultural em como o adoecimento é experienciado, visto e tratado" (p. 46, tradução livre). Do mesmo modo, Kirmayer (2014a, p. 5) aponta como uma concepção de doença mental ancorada apenas em aspectos intrapsíquicos, em detrimento dos culturais, tem como efeito a produção de barreiras ao acesso aos serviços de saúde mental, uma vez que não se dispõe a acomodar suas ações conforme as diferenças culturais que estão em jogo.

Sobre essa problemática entre cultura e saúde mental, Tania Luhrman (2016), professora do departamento de antropologia da Universidade de Stanford, ao buscar estudar casos de esquizofrenia em diferentes culturas, introduz o seu problema de maneira bastante clara: "Esquizofrenia é e não é uma coisa no mundo" (p. 1, tradução livre). Ou seja, conforme a autora, se, por um lado, esquizofrenia se revela como um diagnóstico problemático - insuficientemente preciso por diversos elementos, como a ausência de qualquer fator diacrítico em sua etiologia ou sintomatologia -, por outro, as experiências chamadas esquizofrênicas são um fenômeno incontestável, uma realidade compartilhada poder-se-ia dizer, sendo provavelmente a mais grave e notória das psicopatologias nas mais diversas culturas. Por conta disso, como diz Luhrman (2016), foi muito tempo considerada a prima-dona da psiquiatria, em relação à qual se acreditava haver causas genéticas e alterações cerebrais específicas, assim como uma terapêutica farmacológica eficaz, encaixando-se perfeitamente no modelo "bio-bio-bio" (p. 2, tradução livre). No entanto, mais recentemente, conforme os avanços do campo da genética e das neurociências, o que se percebeu é algo semelhante ao que muitos clínicos já haviam dito com outras palavras, ou seja, que existe uma forte importância da herança epigenética - isto é, características adquiridas por meio da interação com o ambiente - para a emergência desse transtorno (p. 3). Portanto, não é possível que, por envolver componentes genéticos, se considere a esquizofrenia uma doença hereditária, no sentido forte do termo. Tal fato incrementou, assim, a importância de análises antropológicas sobre a experiência de sofrimento denominada esquizofrenia, pois se confere que tanto a emergência como sua possível recuperação estão intimamente ligadas às condições socioculturais no entorno de seu agente.

Desse modo, a relação entre transtornos mentais e cultura se apresenta como uma problemática de fundamental interesse para a saúde mental global. Isso é algo importante de ser enfatizado quando se pensa na carência de autocrítica por parte dos manuais diagnósticos internacionais em psicopatologia, como o DSM-5 e o CID-11, que se autoafirmam livres de variáveis culturais intervenientes, mas cuja base empírica se endereça a pouquíssimas culturas. Nessa mesma direção, Kirmayer (2014b) retoma a estatística também apresentada por Summerfield (2008), de que "90% de toda a pesquisa em saúde mental é feita com 10% da população mundial" (Kirmayer, 2014b, p. 53, tradução livre), e como, além dessa questão pragmática, há um problema epistemológico (p. 54) na medida em que são questionáveis mesmo as categorias que se poderia utilizar para a definição de saúde e doença mentais. Outras questões epistemológicas e pragmáticas apontadas por Kirmayer (2014a, p. 14) são que o suposto refinamento diagnóstico produzido por esses manuais tem o efeito deletério de não somente reduzir a experiência de sofrimento a critérios diagnósticos desligados de qualquer componente interpessoal, distanciando-se das funções sociais das práticas em saúde, mas de também, justamente porque o faz, tornar alguns aspectos mais salientes do que outros, produzindo uma negligência por parte dos clínicos sobre aspectos que poderiam ser necessários para um tratamento integral.

 

O problema interpretativo

De forma um pouco mais nuançada, Kleinman e Kleinman (1997), tencionam compreender questões envolvidas na concepção de sofrimento como uma experiência sociocultural. Nesse sentido, os autores apontam que em geral são duas as estratégias que a antropologia médica utiliza para interpretar o sofrimento. De um lado, há os profissionais oriundos de uma lógica mais medicalizante, produtores de práticas nas quais não raro ocorrem trivializações da experiência dos sujeitos por meio de sua categorização em critérios diagnósticos quase universais, que acabam por apartar o sofrimento da experiência daquele que o sofre, deslegitimando seu aspecto contingencial (p. 96, p. 100). No polo oposto desse campo, existem aqueles ancorados na antropologia, críticos a essa concepção mais padronizada, e que buscam descrever de que modo "as queixas e convicções de um paciente a respeito de sua doença reproduzem um certo domínio moral" (p. 95, tradução livre). Nesta perspectiva, o que se confere, portanto, é que a semiologia - isto é, o estudo dos sinais e sintomas num certo quadro taxonômico -, assim como suas terapêuticas correspondentes, são vistas criticamente como uma distorção do "mundo moral de pacientes e comunidades" (p. 96, tradução livre).

Contudo, o que é surpreendente na abordagem que Kleinman e Kleinman (1997) dão a essa problemática entre saúde mental e cultura, e que torna sua abordagem ainda mais complexa do que aquela que se pode depreender dos supracitados artigos de Kirmayer (2014a, 2014b), é que, de seu ponto de vista, esse problema interpretativo, a respeito do qual a antropologia usualmente critica a biomedicina por reduzir uma experiência intersubjetiva a um rótulo suprapessoal, também é concernente à própria antropologia. Nas palavras dos autores:

Não é moralmente superior antropologizar o sofrimento, em vez de medicalizá-lo. O que é perdido nos recortes biomédicos - a complexidade, a incerteza, e a ordinariedade do mundo de experiência de homens e mulheres - também é faltante quando a doença é reinterpretada como um papel, estratégia ou símbolo social assim como qualquer outra coisa, que não a experiência humana. (Kleinman & Kleinman, 1997, p. 96, tradução livre)

Nesse sentido, a compreensão de Kleinman e Kleinman (1997) é que, independentemente da base teórico-conceitual com a qual se fará a interpretação - seja como o resultado de uma relação coercitiva de produção, seja como conflitos intrapsíquicos, seja como efeito de uma alteração fisiológica específica -, a experiência de sofrimento, ao receber essa tradução, sempre terá seu cerne distorcido em favor de uma mera "caricatura" (p. 97, tradução livre) do que ela realmente é. "Do mesmo modo que não existe um curso puramente 'natural' da doença, também não é possível que exista uma sintomatologia puramente cultural" (p. 101, tradução livre). Portanto, se a categorização biomédica vem sendo amplamente criticada por deixar de lado a experiência de sofrimento na medida em que a categoriza em certos padrões diagnósticos, as análises antropológicas, assim como as psicodinâmicas, também têm como método a articulação de uma situação particular a certos padrões quase universais (p. 99), o que deixa um hiato em questão.

Em outras palavras, a interpretação do sofrimento singular é sempre incompleta, pois a experiência é um sentimento intersubjetivo e em fluxo, que se dá pela interação das estruturas socioculturais com os processos psicofisiológicos, mas tanto estes como aqueles se apresentam com uma contingência radical. Se, por um lado, existe uma construção cultural que interfere no fluxo da experiência, esta, por se ancorar em processos psicofisiológicos, também resiste ao que essa construção social busca produzir. Ou seja, de acordo com a posição dialética de Kleinman e Kleinman (1997), é claro que existem condições humanas "naturais", "pan-humanas" (p. 109, tradução livre) - a exemplo da experiência de sofrimento (p. 101) -, mas sempre existirá uma modelação cultural, conforme os agenciamentos pessoais e históricos, que darão o substrato cultural do qual emerge, mas também do qual se difere, o que realmente está em jogo: a experiência (p. 97, p. 116). Assim, esta não é o efeito de uma natureza ou cultura humana, mas a própria condição de possibilidade para que essas duas dimensões possam se integrar, tal qual realmente se experiencia a vida. Portanto, a tradução do sofrimento, seja ela feita com vocabulário fisiológico, psicológico ou cultural, não deve ser o primeiro passo - como o autor pensa que psiquiatria, psicologia e antropologia usualmente fazem -, mas preferencialmente o último (p. 116).

No entanto, há de se considerar que toda interpretação da experiência, ao mesmo tempo em que decepa parte de sua singularidade, acrescenta-lhe algo, não sendo lícito que, por conta desses pressupostos, se postule uma desaprovação a qualquer conhecimento teórico-técnico, como se esse fosse apenas um empobrecimento, e não uma vantagem adaptativa aos nossos meios de vida. Se é verdade que a técnica muitas vezes tornou o sofrimento humano em doença inumana, seria igualmente inumano desacreditar a técnica por completo (Kleinman & Kleinman, 1997, p. 117). Como dizem Kleinman e Kleinman (1997), "Nós temos que usar as duas lentes" (p. 111, tradução livre) - tanto a teoria, pautada em tipos gerais, quanto a visão que aposta na experiência singular.

 

Considerações sobre a importância da cultura na reforma psiquiátrica brasileira

Feita essa revisão teórica, cabe considerar como as problematizações a respeito da temática cultura e saúde mental global se revelam como fundamentais para a consolidação do campo da saúde mental hoje no Brasil. Sendo este um país altamente heterogêneo, com diversas perspectivas identitárias, produzir um arsenal teórico-técnico capaz de lançar luz sobre como essas diferenças culturais afetam a existência das populações torna-se um grande desafio. A esse respeito, torna-se necessário se considerar também, como dito, que desde o processo de reforma sanitária, iniciada no Brasil nas últimas décadas do século XX, houve uma pluralização das culturas profissionais no campo da saúde mental. À luz das proposições feitas pelos autores supracitados, veremos a seguir como esse projeto buscou abarcar a heterogeneidade de demandas dos territórios brasileiros, com suas distintas culturas.

Como visto, nas profundas transformações pelas quais passou nas últimas cinco décadas, o campo da saúde mental no Brasil deslocou-se de uma lógica patologizante e excludente, focada somente na doença e em sua normatização, para uma ética de produção do cuidado, cujo eixo norteador é a promoção da saúde em seu sentido integral. Com essa reforma intentou-se, e continua-se a pretender, não mais o controle de portadores de transtornos mentais em espaços excludentes, que nada têm a ver com as singularidades, mas sim a construção de um novo modo de essas experiências de sofrimento habitarem as culturas anteriormente incapazes de acolhê-las, assim como a produção de uma rede de serviços clinicamente eficientes. O processo de reforma psiquiátrica, assim, constituiu um movimento de antagonismo frente a toda uma rede de poderes, produtoras de uma visão de doença mental destituída de qualquer lugar de verdade e, com efeito, de qualquer legitimidade civil.

Trazer o portador de transtornos mentais ao seio da sociedade foi, desse modo, a maior expectativa prática do movimento de reforma psiquiátrica ocorrido no Brasil durante as últimas décadas. Essa intenção se organizou, posteriormente, em torno das noções de desinstitucionalização e de clínica ampliada, e teve como desfecho normativo a promulgação da Lei 10.216, do ano de 2001, garantidora dos direitos mínimos, antes inexistentes, aos portadores de transtornos mentais. Devido a essa busca por uma rede de serviços que substituísse o internamento em manicômios como o recurso central de cuidado, desde o ano de 2001 iniciou-se a consolidação da mais tarde denominada Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que privilegiou, portanto, o cuidado aos portadores de transtornos mentais em territórios integrados à cidade. Nesse sentido, os dispositivos foram organizados em articulação com a atenção básica em saúde, de forma a se direcionarem aos territórios, prevenindo a necessidade de internações em hospitais psiquiátricos de grande porte e empreendendo a desinstitucionalização daqueles que neles se encontravam longamente. Em vez de espaços excluídos da sociedade - condensados em termos como "manicômio", "asilo", "hospício" -, buscou-se a desconstrução da lógica manicomial, e a reconstrução de um novo aparato institucional, orientada por uma ética distinta daquela existente até então.

Entretanto, como indicam Dimenstein e Liberato (2009), a desinstitucionalização não diz respeito exatamente a uma desospitalização dos pacientes longamente excluídos por meio do asilamento, mas sobretudo a uma transformação das experiências que compõem esse cenário. Portanto, a desinstitucionalização, muito mais do que somente uma reorientação das direções terapêuticas, deveria ser uma desinstitucionalização das práticas de cuidado, das relações entre os trabalhadores, do modo como a cidade lida com a loucura, do modo como os indivíduos lidam com sua própria loucura. Embora, caso fosse tomado rigidamente, o conceito de desinstitucionalização pudesse representar uma redução dos transtornos mentais como efeito somente de relações opressivas de produção, que é justamente aquilo que Kleinman e Kleinman (1997) criticam como reducionista na antropologia, esse conceito abre margem para que se coloque em jogo a "existência-sofrimento" (Rotelli, 2001) - ou a "experiência de sofrimento", como dizem Kleinman e Kleinman (1997) - à frente dos arsenais técnicos com os quais se conceitua o que é considerado perturbação mental. Desse modo, sintetizando-se o pensamento dos autores, seria possível se dizer que a desinstitucionalização é um anticonceito, que, justamente, enfatiza o aspecto experiencial do sofrimento, de forma que, em termos mais simples, existe uma manicomialidade não somente nas análises biologizantes, mas também naquelas de cunho mais psicossocial.

Ainda que com essa potencial semelhança, é preciso considerar o quanto a reforma psiquiátrica brasileira, sobretudo sob orientação da atenção psicossocial, trouxe grandes impactos à forma de pensar o cuidado em saúde mental. Nesse sentido, uma vez havendo uma certa transformação no campo da saúde mental por conta do enfraquecimento da lógica manicomial nas políticas públicas, e na medida em que a RAPS propõe uma inserção atuante nos territórios, o que se apresentou foi uma nova economia nas interações subjetivas existentes nesse campo. Estas, se antes podiam, de forma cristalizada, operar relações sem a imprevisibilidade das redes informais e espontâneas, tiveram, com o processo de desinstitucionalização das práticas, que se haver com uma "heterogeneidade" (Oury, 2009) de culturas ou modos de relação muito maior do que outrora. Desse modo, na medida em que tem de lidar não somente com o caráter imprevisível dos transtornos mentais, mas também com as circulações existentes nas culturas locais, que constantemente se rearranjam em novas composições, a prática da saúde mental deve seguir as orientações de Kleinman e Kleinman (1997) de se colocar a experiência de sofrimento como primeiro elemento na avaliação e no tratamento em saúde mental.

Cabe à RAPS, desse modo, apresentar instrumentos capazes de lidar com essa variabilidade de experiências, dadas não somente pelos contextos psicofisiológicos, mas também pela forma como a cultura as dispõe em fluxos intersubjetivos. Isto é, a reforma psiquiátrica brasileira tem, nessa perspectiva, uma dimensão profundamente contingencial, na medida em que propõe uma rede de serviços que visam a abarcar, principalmente por uma lógica de atenção primária em saúde, as singularidades em sua articulação à cultura dos territórios. Em suma, a heterogeneidade cultural existente nos territórios brasileiros - tanto em relação à dimensão étnico-identitária, como quanto à dimensão ontológica - deve ter como contrapartida uma heterogeneidade também cultural por parte dos serviços de saúde mental, ao se pensar inclusive no ponto de vista do arsenal técnico-simbólico utilizado. Se a cultura não diz respeito somente aos pacientes, mas também aos técnicos, deve-se ter como horizonte uma acomodação entre essas heterogeneidades, uma competência cultural, poder-se-ia dizer, de modo a não silenciarem umas às outras, mas sim elaborarem-se reciprocamente em experiências interpessoais de cuidado.

 

Considerações finais

Historicamente, o termo operacional no campo da saúde mental brasileiro a contemplar essas questões de diversidade cultural coube provavelmente à noção de "território", cuja conceituação remete a diversos autores, mas que, independentemente das diferenças de enfoque, tem como ênfase original o caráter cultural e em fluxo das experiências de um mesmo espaço. Nesse sentido, outro desdobramento ao campo da saúde mental brasileiro que pode ser depreendido dos textos sobre cultura e saúde mental global supracitados é a crítica de Kirmayer (2014a, 2014b) a uma visão de cultura que a toma de forma sinonímica em relação à localidade geográfica, como por vezes a noção de território é erroneamente tomada. Isto é, se o território é a unidade com a qual se busca abarcar a heterogeneidade cultural nos serviços de saúde mental no Brasil, é preciso se considerar que, para ser fiel à sua dimensão histórico-temporal, e logo cultural, não se identifique o território com um mero espaço geográfico. No entanto, apesar de esta não ter sido a pretensão na época de sua formulação, cabe ressaltar como as divisões meramente geográficas operadas pelas estratégias da RAPS nos últimos tempos têm se apresentado insensíveis à dimensão ontológica da cultura, ou seja, sobre como um mesmo espaço é atravessado por variadas temporalidades e existências. Nesse sentido, é possível se considerar como o termo "território" por vezes opera como um falso cognato, que leva à armadilha apontada por Kirmayer (2014a, 2014b) de homogeneizar de forma equivocada um certo espaço. Portanto, seria lícito argumentar que é um termo heuristicamente pouco eficaz sobre esse aspecto experiencial das diferentes populações e indivíduos, e é importante o incremento dado pela noção de cultura.

Desse modo, cabe se considerar que, uma vez que a noção de território pouco a pouco reduziu-se a uma leitura meramente espacial, as abordagens que visam a articular cultura e saúde mental se apresentam como alternativas capazes de compensar ao menos parcialmente essa lacuna das estratégias em saúde mental. Tal compensação, entretanto, também não é simples de ser executada, pois, como demonstram os artigos que embasam este estudo, as análises culturalistas também correm o risco de perder o foco na singularidade das subjetividades que demandam por cuidado.

Por fim, mesmo se tratando de situações nas quais os agentes de cuidado e os pacientes compartilham um mesmo espaço físico, é necessário reconsiderar a assertiva enfatizada por Kirmayer (2014a, 2014b), assim como por Kleinman e Kleinman (1997, p. 95), de como os próprios clínicos também têm na cultura a fonte de seus diagnósticos e tratamentos, reproduzindo neles essas influências político-econômicas. Desse modo, não basta pensar somente nas influências da cultura em suas dimensões étnico-identitária e técnico-civilizatória sobre o processo de cuidado, mas, sobretudo, na importância da dimensão ontológica da cultura. Significa, portanto, contemplar a dimensão existencial da cultura, isto é, a matriz interpessoal da qual a experiência emerge, e o principal veículo do processo de cuidado. Não há dúvidas que essa concepção de cultura faz com que ela seja pertinente a toda e qualquer relação terapêutica, o que traz uma certa inespecificidade ao conceito, sendo lícito considerar a importância de produções voltadas a situações nas quais há fortes diferenças culturais (no sentido étnico-identitário), tal qual fazem os autores citados. De todo modo, revela-se como uma estratégia eficaz para compensar a apreensão usual e equivocada do território como mero espaço geográfico, sem lhe atribuir qualquer característica experiencial.

 

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Recebido em 05 de junho de 2019
Aceito para publicação em 06 de junho de 2019

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