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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.40 n.73 São Paulo dez. 2007

 

JORNADA DA TEORIA DOS CAMPOS E SBPSP - RELAÇÃO ENTRE TEORIA E CLÍNICA: A QUESTÃO DA INTERPRETAÇÃO

 

Da arte de interpretar o paciente como obra de arte1

 

On the art of interpreting the patient as a piece of art

 

Del arte de interpretar al paciente como obra de arte

 

 

João A. Frayze-Pereira*

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Professor Livre-docente do Instituto de Psicologia — Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo analisa a noção de “arte da interpretação” proposta por Fabio Herrmann. Entre as implicações desta concepção, destacam-se a possibilidade de tratar o paciente com atitude análoga à que mantemos diante de uma obra de arte; a situação da psicanálise no campo da construção ficcional, entre a literatura e as artes; e a interrogação da idéia moderna de método.

Palavras-chave: Psicanálise, Estética, Teoria dos Campos, Arte da interpretação.


ABSTRACT

This article intends to analyze the notion of “art of interpretation” proposed by Fabio Herrmann. Among the implications of this conception, it must be highlighted the idea of treating the patient with analogous attitude to the one demanded by an art piece, the situation of psychoanalysis into the fictional field, between literature and art, and the inquiring of the modern idea of method.

Keywords: Psychoanalysis, Aesthetics, Multiple Fields Theory, Art of interpretation.


RESUMEN

Este artículo analiza la noción del “arte de la interpretación” propuesta por Fabio Herrmann. Entre las implicaciones de esta concepción se destaca la posibilidad de tratar al paciente con una actitud análoga a la que mantenemos frente a una obra de arte; la situación del psicoanálisis en el campo de la construcción ficcional, entre la literatura y las artes; y el cuestionamiento de la idea moderna del método.

Palabras clave: Psicoanálisis, Estética, Teoría de los Campos, Arte de la interpretación.


 

 

Em vários momentos de sua obra, Fabio Herrmann faculta a articulação entre conceitos da Teoria dos Campos e noções elaboradas no campo da estética. No livro A psique e o eu (1999b, p.105), por exemplo, é notável o uso que o autor faz do termo forma, sobretudo para desenvolver a noção de eu como forma do sujeito psíquico. Em outros trabalhos, são freqüentes as referências às várias artes para pensar certas questões teórico-clínicas (1991b) e situar a própria psicanálise entre a medicina e a literatura (2001), pois, como esta, opera no campo da construção ficcional em que são privilegiados lapsos e figuras, metáforas e metonímias. E nosso autor não está sozinho ao adotar tal posição. Entre outros, Pontalis (2002), Fédida (1999, p. 49) e Meltzer (1989, p.107) aliam-se, cada um ao seu modo, a essa vertente teórica ao incluir a psicanálise no “campo das artes”. Ou seja, ao destacarem a perspectiva estética da psicanálise, perspectiva segundo a qual, grosso modo, a história do paciente seria modificada pelo próprio fato de ser narrada no curso de um tratamento, esses autores abrem mão da ideologia implicada nos mitos da neutralidade científica e da universalidade do conhecimento positivo, governados pelo ideal de objetividade. Com essa tomada de posição, assumem criticamente o caráter perspectivo do conhecimento proposto por uma psicanálise, uma vez que é comprometido com a subjetividade dos narradores e com a situação em que estes se encontram. No entanto, se a literatura existe para ser lida, ler não é o mesmo que interpretar. Como observa Alfredo Bosi (1988), num ensaio dedicado à questão da interpretação,

ler é colher tudo quanto vem escrito. Mas interpretar é eleger (ex-legere: escolher), na massa das possibilidades semânticas, apenas aquelas que se movem no encalço da questão crucial: o que o texto quer dizer (p. 275).

Nesse sentido cabe ao intérprete de um texto literário decifrar a relação que a palavra escrita mantém com o não escrito, pois o intérprete é um mediador que trabalha rente ao texto, mas com os olhos postos em um processo formativo que transcende a letra.

Interpres chamavam os romanos àquele que servia de agente intermediário entre as partes em litígio. Com o tempo, interpres assumiu também a função de tradutor: o que transporta o significado de sua forma original para outra, de um código primeiro para um código segundo; o que pretende dizer a mesma mensagem, mas de modo diferente. A interpretação opera nessa consciência intervalar, e ambiciona traduzir fielmente o mesmo, servindo-se dialeticamente do outro (Bosi, 1988, p. 277).

Assim, se a linguagem do intérprete lembra a do tradutor de uma língua para outra, lembra também a de um músico que domina a arte de transpor melodias de um instrumento para outro (p. 286). Porém, diante dessa elaboração teórico-conceitual do crítico literário, temos que lembrar que psicanálise não é literatura, embora esta, assim como a arte, possa iluminar o trabalho da primeira. E, como disse, há outros psicanalistas que tomam esse partido estético.

Cristopher Bollas, por exemplo, é um analista que atua clinicamente não apenas com base na escuta do que lhe disseram os seus pacientes, mas na leitura do que foi escrito pelos escritores e poetas de seu gosto pessoal. Professor de literatura inglesa, Bollas (1998) sabe que o paciente é uma pessoa viva com a qual é preciso relacionar-se, mas também sabe que é um ser singular, no meu entendimento, análogo a uma obra de arte, que exige do seu interlocutor paciência sensível e abertura interrogativa. E, a propósito, escreve Winnicott (1993, pp. 476-477):

A idéia da psicanálise como uma arte deve gradualmente ceder lugar a um estudo da adaptação ambiental relativa às regressões dos pacientes. Porém, enquanto o estudo científico da adaptação ambiental ainda não se desenvolveu, creio que os analistas devem continuar a ser artistas em seu trabalho. Um analista pode ser um bom artista, mas (como tenho freqüentemente perguntado): que paciente deseja ser o poema ou o quadro de outra pessoa?

Quanto a isso, é bom esclarecer que, evidentemente, não penso ser o paciente uma obra no sentido de um artefato exposto ao olhar que o consagrará como forma cultural. E também é evidente que nenhum analisando é criado por seu analista como obra sua, pois o que ele suscita, como se fosse uma obra de arte diante de seu outro complementar — o psicanalista enquanto espectador —, é uma interpretação. Nesse contexto, emprego o conceito que diz ser a obra de arte um ser que possui uma coesão, uma unidade orgânica poderosa que remete mais a si mesma e a sua história do que a qualquer outro ente no mundo. Nessa medida, a obra não é a potencialidade que todos lhe reconhecem de imediato, de remeter a outra coisa além de si mesma, a um outro mundo real ou imaginário. Antes de qualquer coisa, ela é um corpo auto-referenciado, uma articulação singular de uma forma e de uma significação, composto segundo a vocação de cada arte, de pedra ou de cores, de sonoridades musicais ou verbais, isto é, uma Gestalt que possui sua própria afetividade, seu próprio sentido do que é verdadeiro ou falso, e que se integra, expressamente ou não, em uma determinada época histórica (Haar, 1994). Então, considerando que uma obra de arte “existe para ser percebida” (Argan, 1982, p. 109), caso contrário não será legitimada como obra, analogamente, para ser nomeado “caso clínico”, o tratamento de um paciente deve receber o status de apresentação pública, caso contrário, segundo Fédida (1992, p. 228), “não é um caso”. Controvérsia à parte, o fato é que ao psicanalista cabe ter para com o paciente uma atitude análoga à que é exigida por uma obra de arte, isto é, uma combinação de reverência e interrogação para que ela seja percebida na sua alteridade, isto é, não falar primeiro, mas esperar que ela nos interpele, evitando ouvir apenas a nós mesmos (Pedrosa, 1979, p. 82). Ou ainda, segundo propõe Fabio Herrmann (2001), a propósito da escuta psicanalítica, o analista deve “deixar que surja” a fala do outro para depois “tomar em consideração” aquilo que nela vier a se manifestar. Porém, “tomar em consideração” não significa uma atenção mais concentrada. Significa que o analista

deve entrar no círculo das representações emocionais do seu cliente, como quem entra em cena numa peça teatral que não é de sua autoria e cujos diálogos ainda desconhece. Na busca de decifrar o enredo, ele dá voz às personagens, experimenta contracenar de variadas formas com o paciente, sempre testando os limites do campo (...) desde que mantenha isenção factual e viva interiormente com a máxima honestidade a posição que (lhe) cabe (Herrmann, 2001, pp. 201-202).

Só assim é que será possível elaborar uma teoria sob medida para aquele paciente. Posicionar-se diferentemente, antecipando à escuta uma doutrina, seria converter o paciente em sintoma de uma representação, seja ela qual for, operação que acaba sendo reducionista. Mas a posição contrária também é problemática, pois privilegiar o sensível sem contar com a formação psicanalítica leva o psicanalista a não saber exatamente o que ver ou escutar. Daí ser importante o movimento que vai da experiência à teoria e desta à experiência, um movimento pendular sem esperança de fim, cujo resultado é uma forma: a forma do tratamento, a forma da interpretação, a forma narrativa do caso. Assim, ao nos preocuparmos com os fundamentos teóricos que norteiam um tratamento, bem como o seu relato, é bom lembrar, novamente com Pontalis, que

a condição necessária para a formação de um conceito é o esquecimento: esquecimento do próprio, do singular, do diferente. Digo uma mesa e esqueço esta mesa; digo: é um obsessivo e esqueço quem me fala; digo identificação com o pai e não disse absolutamente nada; digo transferência e creio estar entregue a esse amor desmesurado ou a este ódio impiedoso; digo transferência materna e esqueço a que mãe está dirigida. Conceito, em alemão, Begriff. A garra (griffe em francês) do conceito. É um predador, um tirano (Pontalis, 2005, p.15).

Assim é que, considerando o risco dos a priori conceituais, propõe-se o conceito de interpretação, segundo Fabio Herrmann:

A interpretação, ato psicanalítico essencial, sendo considerada pela Teoria dos Campos como indutora de rupturas, não se confunde com as falas do analista, por mais acertadas que sejam; às falas chamamos sentenças interpretativas, enquanto reservamos o termo interpretação para o entrejogo de pequenas interferências, toques emocionais, digressões, silêncios que induzem o surgimento de representações disruptivas do campo a que se limita a vida psíquica de nosso paciente; em geral tais representações surgem dele mesmo, não são sugeridas. Em conformidade a tal procedimento, as falas do analista não procuram ser explicativas nem mesmo completas; basta normalmente uma repetição, uma modulação especial da voz, uns pedaços de sentença para ressaltar o ponto eficaz do discurso do analisando e precipitar uma ruptura de campo. A explicação, a sentença interpretativa, vem depois, para dar ciência ao analisando do que se passou; não é o motor do processo (Herrmann, 1999b, pp. 23-24).

Em suma, a interpretação é um processo. E também uma arte. Quando Fabio designa tal processo “arte da interpretação”, entendida como um processo encarnado na relação paciente-analista, como uma operação do campo transferencial que visa produzir rupturas de campo, deixa aberta a via que nos leva a compará-lo ao “processo artístico”. Trata-se da “arte de produzir variações a três ou quatro vozes sobre um tema em pauta” (1991b, p. 89). Não por acaso, Fabio sugere a comparação entre a Arte da interpretação e a Arte da fuga, obra terminal de Johann Sebastian Bach.

Na história da música, a arte da fuga define-se como “uma composição de estilo contrapontístico que se baseia no uso da imitação e da preponderância de um tema gerador curto, mas característico...” (Hodeir, 2002, p. 45). Ligada à tradição polifônica dos séculos XV e XVI, a fuga surge no século XVII. E em nenhuma outra forma musical “a equivalência das diferentes vozes é tão evidente, em nenhuma outra abriga uma unidade tão perfeita” (p. 46). A arte da fuga pode ser caracterizada em termos de “economia de motivos” no sentido de que a obra seria a arte da perfeita dissecação de um tema nos seus mínimos componentes (Rueb, 2001, p. 343). E, semelhante à fuga, a arte da interpretação na psicanálise possui um ritmo que leva o intérprete à quase completa imersão no campo a partir da qual podem se produzir rupturas. Manter metade da alma no campo da repetição que o paciente nos propõe é custoso, mas necessário. Diz Fabio:

se respondo ao paciente, repito, se não respondo, o paciente repete. Tomo uma decisão: repito. Porém, não repito como quem repete, repito muito literalmente o conteúdo da sessão anterior, marcando com cuidado cada ponto obscuro. (...) O importante é que nada disso seja arbitrário. São variações tonais, contrapontos, harmonias, sempre determinadas pela forma e pelo contexto da sessão... Isto é a arte da interpretação: mais um dedilhar a alma alheia do que uma formulação pseudocientífica sobre o discurso do paciente... (1991b, p. 90).

Assim como, para a interpretação da fuga, Bach não indica nenhum instrumento particular, Fabio Herrmann, para a arte da ruptura de campo, também não privilegia nenhuma técnica de execução, podendo ela ser kleiniana, lacaniana, winnicottiana... considerando a maneira de ser do próprio intérprete, seu estilo clínico, sua personalidade. Em 1935, o grande compositor e regente Anton Webern escreveu sobre a sua execução da fuga:

A partitura não diz se a obra deve ser cantada ou tocada, se o andamento é rápido ou lento. Quer dizer, não há indicação de andamento, nem indicação de dinâmica — se forte ou piano (...); em poucas palavras, nada há do que se costuma acrescentar para indicar como o pensamento deve ser entendido ou como a peça deve ser apresentada. Então, concretizei esse abstratum numa melodia de cores sonoras (Rueb, 2001, p. 344).

Assim, Wanda Landowska e João Carlos Martins também interpretam a obra de Bach rigorosamente, mas de modos distintos: a primeira nela introduz o seu temperamento na forma de algum fraseado; o segundo, com extrema racionalidade, persegue cada nota da composição. Todos interpretam Bach, com talentos e técnicas de execução diferentes. Nessa medida, considerando a psicanálise, como fazer para interpretar?

Segundo Fabio Herrmann (1999b, pp.15-16),

interpretar é como partejar — espera-se que nasça um bebê e não que nasça um fórceps, que do paciente surja um sentido, não que resulte o instrumento teórico do analista. Esta é a idéia básica da noção de ruptura de campo. O analista que interpreta, ao tomar em consideração o valor metafórico do discurso do paciente — ou, a propósito, de qualquer recorte do real —, espera induzir (outra palavra obstétrica) uma ruptura dos pressupostos que limitavam seu sentido, encarnados numa área psíquica transferencial ou campo, provocando o estado de momentânea confusão chamado vórtice, em que ressurgem representações que haviam sido proscritas da consciência por estarem em desacordo ou serem incoerentes com as regras daquele campo em particular.

Essa concepção de interpretação harmoniza-se com idéias propostas por outros autores acerca do fazer psicanalítico. Bollas (1992, pp. 37-39), por exemplo, considerando a dialética do processo, constituída pelos movimentos de destruição e de construção, esclarece que o psicanalista, por um lado, deve dar tempo ao paciente para estabelecer e articular seu mundo interno, o que não necessariamente obriga, por outro lado, ao abandono do procedimento desconstrutivo na análise. Podemos interrogar as associações do analisando e destruir seus textos manifestos sem perturbar a evolução da transferência. E, diz Bollas (1992, p. 39),

estendendo-nos sobre essas duas valências do procedimento analítico — a desconstrução e a elaboração — podemos dizer que a desconstrução do material como um objeto faz parte da busca do significado e a elaboração do self, através da transferência, faz parte do estabelecimento do significado. A necessidade de saber e a força para vir a ser não se excluem, mas o último elemento do processo analítico recebeu menos atenção do que merece...

Tendo essas idéias em vista e também considerando que o psicanalista, segundo Pontalis (1991, p.188), “não trabalha com temas, mas com ligações e desligamentos”, observo que, na minha experiência clínica, as análises acontecem, num primeiro momento, segundo o movimento elaborativo que facilita o surgimento de certa confiança do paciente no analista, favorável para a instauração de algum ato desconstrutivo. Assim, permitindo-me mergulhar no campo proposto pelo paciente, deixo surgir um campo de confiabilidade para que, num segundo momento, a operação por desligamentos possa ter lugar, isto é, para que a ruptura de campo possa ocorrer. E talvez esteja nessa fórmula o aspecto singular e paradoxal da concepção de interpretação, segundo Fabio Herrmann (1991b, p. 92), isto é, rompem-se os campos numa conversa absurda, porém, marcada por ternura e quase sempre pelo silêncio no sentido de que “boa parte do processo interpretativo é perfeitamente mudo, passando-se quase que só na escuta do analista”. Ou seja, deixando de ouvir o sentido literal para concentrar-se numa das linhas de baixo da comunicação, é como se o analista conversasse com outro sujeito, desconhecido do paciente. E, de sessão para sessão, o ritmo varia: o analista pode proferir um “ah!” ou pedir uma explicação, comentar ou rir de algo, fazer uma provocação ou sublinhar uma fala do paciente, “fazendo subir à tona o diálogo submerso que já vinha entretendo, com tal naturalidade que não é preciso nem se aconselha interpolar uma explicação”. É comum que os diálogos sejam muitos e simultâneos, que a linha melódica de sentido principal de uma sessão esteja inscrita numa longa série de equívocos, ou segundos sentidos das palavras, “que reverberam valores emocionais de sessões anteriores, sem que qualquer dos dois parceiros se dê conta”. Ora,

se dialogamos com um interlocutor oculto, podemos, como em qualquer conversa, usar sentenças interjetivas, interrogativas, suspensivas, irônicas ou reflexivas, sentenças partidas; sentenças talvez absolutamente precisas, porém, a respeito de um assunto ainda desconhecido, que alguém no paciente responderá de tal maneira que passem a ter o sentido justo. Seqüências inteiras desse diálogo absurdo e disperso às vezes por longo tempo, entremeado de outros diálogos semelhantes, constituirão por fim uma interpretação. (Herrmann, 1991b, p. 92).

Assim, deve estar claro que essa “arte sutil” (Herrmann, 1991b, p. 93), que opera por rupturas de campo, é um fazer que gera um conhecimento sui generis. Pode-se entendê-lo como um fazer negativo, o que significa um trabalho, entendido como negação interna da imediatez da experiência, que abre o caminho para a busca do sentido desconhecido, da gênese, da origem daquilo que apenas está dado. Nesse sentido, tal método pode ser entendido como um trabalho de reflexão (Chauí, 2002), exatamente porque interroga as experiências imediatas, deixando surgir e tomando em consideração as mediações desconhecidas que as tornam possíveis. Mais ainda, se o ser da experiência é dado por seu caráter abstrato ou imediato, considerar as mediações não é recusar a experiência, mas é, em sentido dialético, negá-la. Isto é, interrogá-la enquanto imediata para tomar em consideração o mediato que se esconde nela. E, desse ponto de vista, ao interrogar a experiência, o modo de pensar psicanalítico promove a recriação das idéias, sendo os campos que exigem a elaboração de teorias ajustadas às novas experiências. E, nesse sentido, Fabio Herrmann observa que “... o analista deve teorizar radical e pessoalmente sua clínica, valendo-se dos recursos oferecidos pelas várias correntes” (2001, p. 17). E “... que sempre a análise seja conduzida pelas teorias feitas sob medida, pois quem, sofrendo, nos procura não merece um mero prêt-à-porter, um interpretante de livro” (1999b, pp. 13-14). Quer dizer, o analista, entendido como “antropólogo da psicologia” (2001, p. 9), é necessariamente um sujeito singular que pratica a “arte de interpretar com o paciente” (1999a, p. 13), um sujeito cujo ser é, ao mesmo tempo, limitado pelo caráter particular dessa prática concreta e livre o bastante para nutrir seu pensamento com as múltiplas referências existentes na psicanálise e na cultura em sentido amplo. Em suma, pode-se dizer que, na Teoria dos Campos, o ato clínico precede a teoria e é precedido pelo método. No entanto, se admitirmos que o modo de pensar psicanalítico é trabalho de reflexão, então, também temos que admitir que o método em questão não é um instrumento ao qual o sujeito pode recorrer para garantir a adequação das suas representações. Aliás, essa possibilidade de garantir previamente a verdade das interpretações não existe na psicanálise, como o próprio Fabio admite com a idéia da interpretação como arte (Herrmann, 1991b, p. 83 e seguintes). Trata-se de um trabalho que promove a desconstrução da lógica que preside certa situação transferencial ou campo, promovendo com ela alguma transformação, isto é, “o analista vale-se da relação transferencial para romper o campo banalizado das comunicações de seu paciente” (Herrmann, 1991a, p.107). Filosoficamente, pode-se entender tal processo como “negatividade formadora” (Giannotti, 1973, p. 34) ou, nos termos da estética contemporânea, como “formatividade” (Pareyson, 1988, p. 59), isto é, como um processo tal que enquanto faz nega o feito, o instituído, e inventa o por fazer e o modo de fazer, o instituinte. Nessa medida, a “ruptura de campo” é um método interpretativo “especial”, pois “cria a situação onde os fenômenos que estuda se podem dar e cria, até certo ponto, os próprios fenômenos estudados” (Herrmann, 2001, p. 61). Quer dizer, a relação entre método e realidade é intrínseca. E a noção que articula essa interioridade é a própria noção de campo que, como sabemos, exige a espessura ontológica do método psicanalítico. Tal espessura ontológica, facultada na psicanálise pelo fenômeno transferencial, é própria do processo criativo nas artes e não na ciência, como também demonstrou Merleau-Ponty (1964), pois o cientista “manipula as coisas e renuncia a habitá-las” (p. 9), ao contrário do poeta, cuja ação “consiste em escrever sob a inspiração do que se pensa, do que se articula nele”, ou do pintor, cuja função é “cercar e projetar o que nele se vê” (p. 30). Assim, a arte da interpretação só é possível em psicanálise porque é suscitada pela realidade à qual se aplica, porque tal realidade (o paciente) não é uma identidade fechada, mas uma forma com múltiplas possibilidades de contínua criação de si mesma2. Nessa medida, durante o processo de interpretação, podemos imaginar uma porta que se abre ao paciente, conduzindo a dois caminhos diferentes: é possível que ele fique aderido a uma nova identidade ou que comece a criar-se continuamente como obra de arte (Herrmann, 1999b, pp. 219-220). Ou seja, é o princípio da identidade ou da não-contradição que é interrogado no campo da psicanálise, assim como acontece explicitamente no campo da arte desde as chamadas vanguardas. Não por acaso o surrealismo e outras poéticas buscaram aproximação com a psicanálise, considerando-a uma “espécie de contradiscurso”, como ocorreu na literatura, desde o século XIX até hoje, que remonta da função representativa da linguagem à linguagem como experiência em seu ser bruto, sob uma forma que lembra a “escrita das coisas”, um modo de ser esquecido desde o século XVI. No ensaio “A prosa do mundo”, Michel Foucault (1966) esclarece que, em pleno Renascimento, a linguagem era “coisa opaca, misteriosa, fechada sobre si mesma...” (p. 50). E o saber que consistia “em fazer tudo falar (...) não era ver, nem demonstrar, mas interpretar” (p. 55). No século XVII, com o advento da noção de representaç&ati lde;o e sua correlata, a idéia de método, o universo compacto de correspondências enigmáticas tende a desaparecer. Será somente a partir do século XIX que a literatura irá restaurar o ser enigmático da linguagem como um percurso sem começo e sem termo definidos (p. 59). E é nesse espaço aberto que a literatura contemporânea e a psicanálise se desenvolverão, não como representação do mundo, mas como experiência e interpretação da experiência. Ora, propondo a noção de método interpretativo como ruptura de campo, a Teoria dos Campos interroga a idéia clássica de método que afirma as representações, idéia aceita pela ciência e problematizada pela arte. E se com isso não se define uma atitude científica, aceitável pelo menos no reino psíquico, então, concluímos com Fabio, “a Psicanálise deve resignar-se a ser arte ou ofício, mas dificilmente ciência” (Herrmann, 1999b, p.16). Mas não só isso, pois a interpretação psicanalítica não se reduz a um nem a outro dos extremos: não é só poesia nem apenas dado empírico, mas um fazer ambíguo e, por isso mesmo, complexo. E este é um dos muitos eixos conceituais que sustentaram a formação da obra desse autor, uma obra que se põe na encruzilhada da ciência e da arte.

 

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Endereço para correspondência
João A. Frayze-Pereira
R. Joaquim Antunes, 727/72
05415-012 São Paulo, SP

Recebido em: 20/09/2007
Aceito em: 23/10/2007

 

 

* Membro Associado da SBPSP e Professor Livre-docente do Instituto de Psicologia — USP.
1 Mesa Redonda II: Interpretação: perspectivas teórico-clínicas. Jornada Teoria dos Campos — SBPSP e CETEC, 11/08/2007.
2 Cabe notar que a noção de “forma ”, brevemente apresentada neste trabalho, distingue-se da noção de “código” (Orsini, 2002, p.134). Tal como entendemos essas noções, a primeira remete à ontologia ao passo que a segunda à epistemologia. Como diz Merleau-Ponty (1966, p.150) “a forma é um ingrediente irredutível do ser”, concepção compatível com a idéia de Herrmann (2001, p.61) sobre “a espessura ontológica do método psicanalítico”.

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