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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. v.41 n.75 São Paulo dez. 2008
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
Transferências: transpondo novas fronteiras? Inquietações a partir da clínica psicanalítica dos estados primitivos da mente
Transferences: crossing new boundaries? Instigations from psychoanalytic work with primitive states of mind
¿Transferencias: transponiendo nuevas fronteras? Inquietudes a partir de la clínica psicoanalítica de los estados primitivos de la mente
Mariângela Mendes de Almeida*
Membro filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Supervisora e docente no Setor de Saúde Mental do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo
Membro do Departamento de Psicanálise da Criança no Instituto Sedes Sapientiae
RESUMO
Este trabalho discute a questão da elasticidade do conceito de transferência, a partir de Freud, ao longo dos desenvolvimentos produzidos pela investigação psicanalítica de aspectos psicóticos da personalidade (Bion, Rosenfeld), dos estados primitivos da mente (Klein, Meltzer, Tustin, Mitrani, Korbivcher) e da clínica psicanalítica de crianças com transtornos autísticos (Alvarez, Reid). Importantes desenvolvimentos da clínica e, conseqüentemente, da teoria psicanalítica nos permitiram adentrar o campo dos estados primitivos da mente, tido outrora, pelo próprio pioneiro, como inacessível. Entretanto, também localizamos, já em Freud, alguns esboços seminais que levam a pensar, mais do que em uma postulação de inacessibilidade, em uma abertura de campo em que os instrumentos clínicos estariam sempre em expansão, como vem ocorrendo com o próprio conceito de transferência. Vinhetas clínicas do trabalho psicanalítico com uma criança com transtorno autístico são utilizadas para lustrar a discussão, sugerindo-se que um novo desafio para o desenvolvimento do conceito de transferência poderia consistir em incorporar (ou discriminar, suscitando formulações paralelas) aspectos primitivos do funcionamento mental que se presentificam no contato analítico.
Palavras-chave: Transferência, Estados primitivos da mente, Transtornos autísticos.
ABSTRACT
This paper discusses the scope of the concept of transference, since Freud, along the developments produced by psychoanalytic investigation of psychotic aspects of personality (Bion, Rosenfeld), of primitive states of mind (Klein, Meltzer, Tustin, Mitrani, Korbivcher), and of the psychoanalytic work with children with autistic disorders (Alvarez, Reid). Important clinical developments leading to changes in psychoanalytic theory allowed us access to the field of the primitive states of mind, previously considered unreachable by the pioneer himself. However, we can find, in Freud already, some elements which suggest, rather than a postulation of inaccessibility, an opening of field in which the clinical instruments would be always in expansion, as it has been happening with the very concept of transference itself. Clinical vignettes of psychoanalytic work with an autistic child are used to illustrate the discussion, suggesting that a new challenge to the development of the concept of transference could consist in incorporating (or discriminating, creating parallel formulations) primitive aspects of mental functioning which make themselves present within analytic contact.
Keywords: Transference, Primitive states of mind, Autistic disorders.
RESUMEN
Este trabajo discute el tema de la elasticidad de la noción de transferencia, a partir de Freud, a lo largo de desarrollos producidos por la investigación psicoanalítica de los aspectos psicóticos de la personalidad (Bion, Rosenfeld), de los estados primitivos de la mente (Klein, Meltzer, Tustin, Mitrani, Korbivcher), y de la clínica psicoanalítica de niños con transtornos autísticos (Alvarez, Reid). Significativos desarrollos de la clínica, como consecuencia de los avances en la teoría psicoanalítica nos permitieron explorar el campo dos estados primitivos de la mente, considerado anteriormente, por el propio pionero, como inaccesible. Sin embargo, también localizamos, ya en Freud, algunos esbozos iniciales que llevan a pensar, más que en una postulación de imposibilidad, en una abertura del campo en que los instrumentos clínicos estarían siempre en expansión, como se pasa con el propio concepto de transferencia. Ilustraciones clínicas del trabajo psicoanalítico con un niño con transtornos autísticos son utilizadas para fundamentar la discusión, sugeriéndo-se que un nuevo desafío para el desarrollo del concepto de transferencia podría consistir en incorporar (o discriminar, suscitando formulaciones paralelas) aspectos primitivos del funcionamiento mental que se presentifican en el contacto analítico.
Palabras clave: Transferencia, Estados primitivos de la mente, Transtornos autísticos.
... embora de um ponto de vista comportamental ou externo o comportamento de Robbie fosse o mais não-objeto-relacionado que eu já vira fora das alas dos hospitais psiquiátricos, a pergunta que fiz a mim mesma foi: com que tipo de objeto, ou quase-objeto, ou não-objeto ele está se relacionando ou deixando de relacionar-se?.
A. Alvarez
Transferência, transferências, ou novas formulações?
Este artigo situa-se entre a elasticidade possível, presente no conceito de transferência, e/ou a necessidade de formulação de novos parâmetros conceituais para abarcar os movimentos que caracterizam o que emana de rudimentos mentais primitivos para um campo de captação e amplificação em uma outra mente. Para isso, a partir das concepções iniciais de Freud (1976c/1917; 1924/1976b, 1976c), consideram-se como base para este trânsito também os desenvolvimentos produzidos pela investigação psicanalítica de aspectos psicóticos da personalidade (Bion, Rosenfeld), dos estados primitivos da mente (Klein, Meltzer, Tustin, Mitrani, Korbivcher), das expansões e presentificações na clínica dos conceitos de Bion (Korbivcher, Ferro), e da clínica psicanalítica de crianças com transtornos autísticos (Alvarez, Reid).
Declarações de Freud quanto à inviabilidade da transferência nas originalmente chamadas neuroses narcísicas são constantemente lembradas. Um aspecto do discurso freudiano original freqüentemente difundido é o de que com psicóticos o mecanismo de cura que efetuamos com outras pessoas não poderia ser executado. Em relação ao psicótico, nada poderia ser feito a seu favor (Freud, 1917/1976a). Ao considerar como não analisáveis as condições psicóticas, Freud justificava-se com o fato de tais pacientes ocuparem-se narcisicamente com seus próprios pensamentos e construções psíquicas, negligenciando completamente o mundo externo, inclusive o analista (Hinshelwood, 1991).
Nessa linha, desenvolvimentos significativos da clínica e, conseqüentemente, da teoria psicanalítica nos permitiram adentrar esta seara primitiva, tida outrora, pelo próprio pioneiro, como inacessível. A partir do trabalho com estados psicóticos, núcleos psicóticos da personalidade, funcionamentos borderlines, e, em paralelo às decorrentes inquietações da clínica com tais estados fronteiriços, desenvolve-se também a investigação e tratamento, com as devidas diferenciações conceituais e técnicas, dos estados autísticos.
Entretanto, podemos pensar que, já em Freud, alguns esboços seminais sugerem, mais do que uma postulação de inacessibilidade, uma abertura de campo em que os instrumentos clínicos podem estar sempre em expansão, impulsionando mudanças conceituais e técnicas. O próprio conceito de transferência pode aqui ser um exemplo.
Sabemos que o conceito de transferência em si se mostra bastante incorporador de tais desenvolvimentos na teoria e na técnica psicanalíticas por exemplo, em relação a mudanças quanto à sua própria função no tratamento analítico: de núcleo da resistência e evento inconveniente, a instrumento e ferramenta nuclear do processo terapêutico “; em relação à questão da analisibilidade de pacientes psicóticos, ou em relação à possibilidade de instauração da transferência imediata no tratamento de crianças, a partir do brincar e da utilização do conceito de fantasia (núcleos da polêmica entre Anna Freud e Melanie Klein). Mais recentemente, novas discussões reacendem a polêmica, agora no cenário da possibilidade de o bebê “transferir” para o cenário de novas relações (inclusive terapêuticas, em contextos marcados pelo olhar psicanalítico) aspectos característicos de suas inscrições relacionais anteriores.
Freud (1917/1976a) observou a transferência para a pessoa do analista das relações do paciente com suas figuras significativas originais. Com o desenvolvimento de suas idéias, tais objetos externos foram adquirindo cada vez mais configurações internas e psíquicas, como tais, podendo ser vivenciadas de maneira parcial, cindida, ambivalente (Klein, Strachey, Meltzer, Joseph). Tomando como referência as noções de Betty Joseph (1988/1990), elaboradas a partir da evolução do conceito de transferência em Freud e Klein, encontramos incluídos nesta chamada “situação total” tudo o que é importante na organização psíquica do paciente, e que se presentifica no contato com o analista, suas maneiras iniciais e habituais de funcionar, suas fantasias, impulsos, defesas e conflitos. Klein (1952) referia-se a situações transferidas do passado para o presente, a emoções, defesas e relações objetais. Analistas neokleinianos prosseguiram no desenvolvimento destas idéias, no sentido de que, ao trabalharmos com a transferência, estamos integrando passado e presente ao mesmo tempo, vivenciando, com o paciente, configurações que apenas podem ser compreendidas quando vividas em toda sua extensão no presente com o analista (Malcolm, 1988/1990). A ênfase nas relações objetais e nas representações internas a serem transferidas é usualmente evidente, e talvez nos mobilize, compreensivamente, a excluir deste campo aspectos menos discriminados de funcionamento mental. A contribuição de Anne Alvarez, entretanto, sinalizada no início deste artigo, nos amplia o cenário, incluindo a possibilidade de sermos fisgados por aspectos de funcionamento mental não-relacionais propriamente, mas que se apresentam ao contato e se manifestam ali, na interface conosco. Tais aspectos, não configuradas como objetais no sentido da discriminação eu-outro, podem ser mais compreendidas no cenário das contribuições de Daniel Stern (sobre os incipientes sensos de self e outro; sobre rudimentos em formação, que tanto dependem dos fertilizantes intersubjetivos nos inícios da vida do indivíduo, e nas possibilidades de desenvolvimento de vida psíquica, quando existem transtornos relacionais significativos). Antonino Ferro também nos instrumenta clinicamente para acompanhar o que ele conota como os “transfers”, o vai-e-vem de fragmentos emaranhados de sensorialidade, de proto-emoções, trânsito que permite a tessitura transformadora de obstruções, a formação de habitantes de um mundo interno, e a construção da capacidade de gerar instrumentos para o pensar.1
Ao explorar este tema, recordo-me sempre de um emblemático flash de sessão da colega psicanalista Marly Terra Verdi, relatada em grupo de estudo sobre “Transtornos autísticos”, coordenado por Vera Regina Fonseca, em que um pequeno paciente com transtorno autístico a tranca para fora da sala. Sem poder aqui fazer jus à complexidade e riqueza de todas as discussões envolvidas na situação, desenvolvidas em publicação anterior (Verdi, 1998), gostaria de utilizá-la apenas como uma espécie de pictograma (como diria Marta Petriciani, “à la Ferro”), um condensado psíquico-visual do que pretendo transmitir. Se não houvessem aspectos dirigidos ao objeto/rudimento de outro, se não houvesse um mínimo reconhecimento e necessidade de dirigir-lhe ações ou rudimentos de alguma articulação mental, a analista poderia estar transitando livremente, enquanto o paciente estaria funcionando em uma via indiferentemente paralela, sem contato, ocupado totalmente pelo seu não reconhecimento do outro e pela não emissão de nenhuma “emanação” (na falta de uma outra palavra menos mística). Entretanto, não é isto que se observa. Há uma manifestação por parte do paciente no sentido de criar o não contato com algo/ou o contato com um não algo ausente-objeto trancado fora, do qual então o paciente se alheia. No caso desse paciente, esta configuração é exacerbada pelo fechar da porta, mas sugiro, em outros casos mais sutis, em que se evoca a vivência de que algo está fechado, apartado, mesmo que isto se traduza, como diz Izelinda Barros em nossas discussões nesse grupo, pelo surgimento no analista de um sentimento de não-existência, que não necessariamente é transferido pelo paciente através das vias projetivas e representacionais clássicas da própria experiência, de um self para a instância-outro. Poderíamos pensar numa necessidade de presentificar ali, no contato com a analista, de forma maciça, a experiência vivencial de alheamento com a qual ele vem convivendo (sendo tomado por) há um bom tempo? Tal vivência, corpórea e concreta, parece ali se reproduzir/repetir/transferir para aquele contexto, mesmo que não estruturada ainda como um brincar simbólico e representacional. Como chamar este tipo de transposição? Comunicação primitiva? Tropismo? Colocação em cena enactment? Transferência? Transferência de aspectos primitivos? Projeção? Identificação projetiva? Alguma sugestão do leitor?
Algumas das conceituações envolvem, por um lado, processos mais elaborados; por outro, podemos considerar que Bion nos fala das identificações projetivas do bebê como as primeiras comunicações a serem acolhidas pela mente pensante e continente da mãe em estado de rêverie. Seriam estes processos evocados/transferidos pelo paciente ou captados/encorpados/construídos (?) pelas redes de nossos cada vez mais refinados sensores contratransferenciais? Mas, ora, não é assim, pela antecipação, pela suposição de intencionalidades que a comunicação e a subjetivação do indivíduo humano inicialmente se estabelecem? Mesmo que não classicamente “transferidos” pelo paciente, algo em estado bruto emerge no analista em contato com estados mentais primitivos, disparando a necessidade de representação ou o reconhecimento do impacto sensorial clamando por reconhecimento psíquico.
Korbivcher (2008), em seu empenho para situar os fenômenos autísticos em relação ao funcionamento mental descrito por Bion, retoma a noção de tropismos psíquicos como a área em que se constitui a matriz da mente, a partir de movimentos de aproximação e de afastamento do organismo com relação à fonte de estímulos, e que dependem de encontrar no objeto a possibilidade de transformação (modulação, regulação, substituição do registro sensorial pelo psíquico relacional). Poderíamos supor que, em situações de não desenvolvimento psíquico, os tropismos em sua variedade de evocações de resposta e níveis variáveis de transformação, também se constituem num repertório a ser transferido para novos contextos? Neste caso, da mesma maneira como ocorre a partir da noção corrente de transferência, haveria, então, no contato analítico, novas chances de resposta e rearticulações, que dependeriam, entretanto, do grau de cristalização das redes já formadas, permeabilidade do aparato psíquico a novas ligações e sensibilidade nossa para captar mínimas áreas de interesse vincular e brechas para o desenvolvimento relacional. Neste campo, a interface entre a psicanálise e as neurociências parece oferecer possibilidades fascinantes de investigação conjunta. Em imagem onírica anteriormente compartilhada (Mendes de Almeida, 2008), sugeri a cena de antenas parabólicas, de natural e esgarçada trama, em posição de contradança, para me referir à importância do radar contratransferencial ante as sutilezas e aos aspectos rudimentares da intersubjetividade em construção, que acredito serem fundamentais no trabalho analítico contemporâneo. A continuidade de um possível refinamento de nossas percepções a respeito do que nos é comunicado ou do que emerge em nós no contato com estados primitivos, nossos ou de outros, provavelmente permita no futuro criar novas discriminações e formulações ou expandir o conceito de transferência de maneira mais fundamentada, tanto clínica quanto teoricamente.
Ilustração clínica: uma tentativa de aproximação alegórica
Como parte deste percurso de discriminação e tentativa de aprofundamento, apresentarei algumas vinhetas clínicas comentadas do trabalho com um paciente, que denomino Flávio Palmeira, que acompanho em análise desde os 8 anos e que está aqui presente, aos 12. Trago-as como um estímulo para refletir principalmente sobre a expressão de elementos transferenciais nos quadros caracterizados como fazendo parte do espectro autista. Trata-se de uma aproximação talvez mais alegórica e poética, quem sabe fruto de nosso processo de rêverie como analistas, anterior a um momento de conceituação formal, mas que representa para mim uma expressão viva da clínica com essas crianças.
Flávio chega para uma sessão, trazido por sua mãe. Na sala de espera, sua mãe pede água, enquanto Flávio vai ao banheiro. Pergunto se ele também quer água e ele responde que sim. Trago, então, para os dois. Flávio, agora fora do banheiro, pega o copo avidamente, enquanto pergunto a ele se está tudo bem. Flávio dá um “golão” e faz um som de gargarejo, emendando uma resposta: “Tudo”. Com o som do gargarejo, tenho a impressão inicial de uma auto-estimulação sensorial, mas depois me impacta de forma muito mais intensa o contrafluxo de sua intenção de resposta, com o qual me surpreendo e me percebo alegre, dizendo: “Ah, você está querendo responder!”.
Alegoricamente, penso numa transferência visceral, percorrendo o caminho gutural para se articular enquanto linguagem no reconhecimento do contato. Nossa presença como outro/analista por vezes não notada no início do processo analítico com esses quadros autísticos, como algo que permanece fora do organismo do paciente “, com o tempo passa a fazer parte dos ingredientes de assimilação do mundo, aos poucos vai, paradoxalmente, se misturando e se discriminando do fluxo de deglutição dos elementos da atmosfera sensorial que são incorporados pela criança. A resposta vem no contrafluxo, entremeada com o gargarejo que inicialmente parece sensorializar o líquido que entraria se esparramando. Ao mesmo tempo, a tonicidade do gargarejo (referência ao lúdico das experiências primitivas de balbucio?) parece indicar o movimento visceral, de formulação de linguagem, via palavra, de resposta ao meu cumprimento e reconhecimento de minha presença.
O rudimento vincular, berço incipiente de possíveis movimentos/transferências de algo de si para aquele contexto, nestes casos, parece se dar num contexto de entrada, ao mesmo tempo precária e maciça de algo de fora, como marca da presença do outro, gerando a percepção da necessidade e possibilidade de comunicação, discriminada do fluxo automático da continuidade eu-outro.
Nos momentos de ameaça de ruptura e fragmentação, quando, por exemplo, a quebra da ponta de um lápis enquanto desenha, Flávio se desconcerta, se agita corporalmente e ansiosamente toca sua boca e sua saliva, como que para iludir a experiência de quebra e separação. As idéias de Francês Tustin nos são particularmente profícuas para uma possível compreensão da dinâmica emocional destes momentos: a experiência é de dissolução, a ameaça é vital. O lápis é sentido possivelmente como ele próprio se quebrando, e ele se toca, toca seus fluídos internos, como que para se sentir inteiro, colado novamente, enquanto sutilmente e certeiramente, recoloca a ponta quebrada novamente no lugar e continua a desenhar, como se nada tivesse acontecido, até a próxima inevitável “quebra”. Tal movimento parece recobrar um estado reativo de fusão, em frente ao pânico evocado pela ameaça de extinção vivenciada nas experiências de ruptura e separação. Como em tantas situações clínicas descritas por Tustin e colegas que trabalham na área, nos deparamos aqui com a utilização dos próprios fluídos corporais e de manobras autísticas de encapsulamento como “cola” psíquica ante as experiências de descontinuidade e ameaça de extrema ruptura de um senso básico de integridade.
Num outro flash de sessão, Flávio se aproxima de um armário de brinquedo, abre o compartimento de panelinhas e exclama, com olhos arregaladamente brilhantes: “Vamos fazer uma comida!”.
Digo: “Você está me chamando para a gente fazer algo junto! Como é essa comida?”.
F.: “É uma comida gostosa!”.
M.: “Oba, vai ter uma comida gostosa! É gostoso ficar junto, fazer um faz-de-conta juntos”.
F. (brincando com as panelinhas na mesa): “Mari, por que aquele dia te falei da escola?”.
M: “É, você contou que está gostando muito da escola. É gostoso contar, gostoso lembrar do que a gente fez aqui também, das coisas que a gente conversou”.
Flávio pega dois bules e os coloca lado a lado.
M.: “Você está juntando as coisas. Nossa conversa agora, nossa conversa de antes, a escola, nossa brincadeira aqui. Flávio e Mari, nós dois conversando e brincando juntos”. (Toco e levanto cada bule que ele aproximou.)
F.: “São duas palavras vamos juntar!”. (Junta mais os bules.)
Flávio olha fixamente para frente, olhar parado. Fica assim por uns segundos. Sinto-me intrigada.
M.: “Que será que o Flávio está sentindo?”.
F.: “Vai ter uma reunião!”. (Levanta-se rapidamente da mesa.) “Já acabou!”. (Fica inquieto, se movimentando ao redor da mesa em que estávamos). “Riuní!”.
M.: “Vai ter uma reunião? Aqui também tem uma reunião. Você está juntando a gente, a gente está junto, fazendo uma comidinha gostosa, juntos”.
Transferência é “reunião”, e parece se dar quando Flávio anuncia: “Riuní!”. Reunião rápida, transferência fugaz que começa e “já acabou!” (“Agora anoiteceu!” ele comenta em outros freqüentes momentos.) Entretanto, tais registros parecem ir aos poucos tecendo laços através da memória e percorrendo redes de lembranças, de momentos juntos, da possibilidade de juntar, de forma discriminada, o eu e o outro.
“Mari, o que é um grande passo?” pergunta Flávio, após a conversa sobre a “reunião”.
M.: “Estamos falando dos seus grandes passos. Como muita coisa está diferente. Você está conversando mais, está gostando mais de estar junto”. (Faço também um “grande passo” com o bonequinho de sua caixa.) “O Flávio está dando grandes passos, está se aproximando mais das pessoas, talvez você esteja ouvindo das pessoas que você está dando um grande passo”.
Flávio pega o bonequinho e o faz “voar”, dizendo: “Ih! Ele está na ilha!”.
M.: “É o Flávio na ilha?”. (Ele mexe o boneco como um faz-de-conta.) “Acho que é o Flávio brincando que o boneco está na ilha.” (Enfatizo a palavra “brincando”.)
Flávio começa a fazer um barulho alto, estridente e contínuo com sua voz, que dificulta nossa conversa.
M.: “O barulho faz o Flávio ficar na ilha, ficar sozinho, isolado, longe!”.
Flávio começa a bater com os lápis na mesa, ritmicamente, repetidamente e quase que ensurdecedoramente. Seus lábios sustentam um meio sorriso. Seus olhos brilham, numa expressão de êxtase, parados, quase não me olham.
M.: (Falo, mas sem certeza de ser ouvida): “O Flávio fica na ilha com seu barulho alto, sozinho”.
Flávio volta seus olhos para mim quase que num movimento de “enganei você” e diz, rindo: “É samba, Mari!”.
M.: “É, pode ser samba, de ficar junto, ou pode ser barulho alto, que deixa o Flávio na ilha...”.
A transferência denuncia a não-solidão, faz passar da solidão da ilha e dos barulhos altos ensurdecedores, que “incluem” afastando, isolando, ao contato representacional e proto-simbólico, expresso na possibilidade (potencial) de compartilhar a música-samba e as representações simbólicas da cultura dos humanos.
Aparece a preocupação de Flávio com o interdito do outro. Ele pergunta, na seqüência:
“Pode barulho?”. (Aparentemente, se associando mimeticamente ao peso da palavra “pode” quando eu digo “pode ser barulho...” mais como autorização, do que como nuances alternativas.)
Num outro momento:
F.: “Júnior” (como ele também é chamado), “guarda a colher! Colher não é brinquedo!”. (Flávio repete assertivamente, mecanicamente, num recorte ecolálico tardio, denotando sua percepção ainda não integrada do interdito social, que, de certa forma, parece presente.)
Nessa sessão, um desenho antigo, de dois anos atrás (leves traços cinzentos inclinados, esparsos, espalhados pela folha; um quase invisível círculo aparecendo no canto superior direito) é resgatado de sua caixa lúdica. Flávio o denominara “Assombração” e comentara: “Sombra árvore cheia de sombra. Não é assustador. É bom. É muito ótimo ter bastante sombra”. (Registros meus escritos na época.)
Esse desenho e um apontador em forma de estrela, que coloco na caixa naquele dia, são pontos de partida para desenhos de “palmeira” e “estrelas da noite”, com as quais estão integradas as suas sempre presentes mecânicas e solitárias “luzes”.
O apontador-estrela pode apontar o lápis até fazer surgir nova ponta, sem que Flávio precise descompensar ou negar a quebra, recolocando a ponta no lugar, como se não tivesse caído.
Estereotipadas luzes e nascentes estrelas da noite (alternativas a um “buraco negro”?) convivem. Manifestam-se atmosferas de possível contato ou isolamento, de temor, de curiosidade expressa a um objeto que retém a história de um vínculo em construção (por exemplo, quando Flávio diz: “Mari, porque aquele dia te falei da escola?”). A transferência, ora maciça, ora sutil, incipiente e amplificada por nossos sensores contratransferenciais, parece se fazer presente e, sim, se fazer possível.
Considerações finais: um novo desafio?
Como tentei reproduzir no material clínico, imagens se criam e criam vida no contato e na emergência de rudimentos de uma construção proto-simbólica conjunta que realizamos a cada momento com nossos pacientes, a partir de demandas que surgem a partir de nosso encontro, considerando os vários gradientes possíveis de funcionamento mental, muitas vezes em alternância e oscilação.
Prosseguindo no percurso das transformações incorporadas ao conceito de transferência, que marcaram importantes desenvolvimentos da teoria e da técnica psicanalítica, quem sabe agora estejamos diante de um novo desafio: como nos relacionar com a demanda clínica do contato com estados primitivos da mente, como configurá-la em termos do que é ou não “transferido”, recolocado na cena analítica, neste momento em que nossas ferramentas contratransferenciais vêm alcançando um grau de refinamento crescente? Lembremos que o campo e a cena em que encontramos nossos pacientes e seus movimentos na sessão analítica podem incluir agora não só personagens subjetivados em estados mentais elaborados, mas partes de personagens, construções narrativas em vários níveis de organização, temas, climas, tons, coloridos emocionais ou proto-emocionais que se configuram como holografias afetivas de funcionamentos internos ou de funcionamentos do par (Ferro, 1995), nuances, texturas, aspectos sensoriais pré-verbais, que se apresentam a nossa exploração intersubjetiva e tentativa de acesso.
Retorno agora à instigante questão de Anne Alvarez, reproduzida no início deste artigo (com que tipo de objeto ou quase objeto ou não-objeto um paciente autista está se relacionando ou deixando de se relacionar?). A resposta que seu paciente foi capaz de verbalizar, após longos anos de tratamento, foi igualmente interessante: uma rede esburacada. É justamente nesse contexto de contato rudimentar, relação também esburacada com um objeto interno do tipo rede esburacada, que podemos pensar sobre a transferência/ou algo novo conceitualmente para esses estados, que possa abrigar mais “esburacamentos” do que aqueles a que um conceito hermético e saturado se prestaria. Creio, aliás, que a maturidade do conceito de transferência tem evoluído no sentido da inclusão de aspectos cada vez mais abrangentes e estruturais do funcionamento psíquico, sem, entretanto perder sua peculiaridade, legitimidade e consistência clínicas, cautela também importante em nosso meio. Como, então, não incluir os aspectos mais primitivos do funcionamento mental em suas formas peculiares de “transporte” e “evocações” no contexto do contato entre mentes e aspectos mentais de variadas configurações?
Referências
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Endereço para correspondência
Mariângela Mendes de Almeida
R. Escobar Ortiz, 628 Vila Nova Conceição
04512-051 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3842-8839
E-mail: mamendesa@hotmail.com
Recebido em: 15/11/2008
Aceito em: 09/12/2008
* Membro filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Psicóloga Clínica com mestrado em Observação Psicanalítica pela Tavistock Clinic e University of East London. Associada clínica do Departamento de Criança e Família da Tavistock Clinic, de 1988 a 1993 (curso Child Psychotherapy). Supervisora e docente no Setor de Saúde Mental do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Docente do Curso de Intervenção Precoce e membro do Departamento de Psicanálise da Criança no Instituto Sedes Sapientiae.
1 Ferro, A. (2008). Variações sobre transferência e contratransferência. Texto traduzido por Marta Petriciani (não publicado).