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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. v.41 n.75 São Paulo dez. 2008

 

REFLEXÕES SOBRE O TEMA

 

A escuta do inaudível

 

The hearing of the inaudible

 

La escucha de lo inaudible

 

 

Raquel Plut Ajzenberg*

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora entende o inaudível como aspectos não discursivos que operam em “surdina” no trabalho analítico. Ressalta os recursos pessoais do analista, seu enquadre e os movimentos de captação do não-verbal – sonhos, construções, regrediência e figurabilidade – como base para a compreensão da prática interpretativa e dos fenômenos transferenciais.

Palavras-chave: Prática interpretativa, Recursos do analista, Não-verbal, Regrediência, Figurabilidade, O sonhar na sessão.


ABSTRACT

The author understands the inaudible as unspoken aspects that operate in a muted way in the analytical work. The author also emphasizes the analyst’s personal resources, his framing and the movements to capture the non-verbal such as: dreams, constructions, regression and imagery as basis to the understanding of the interpretative practice and of the transference phenomena.

Keywords: Interpretative practice, Analyst’s resources, Non-verbal, Regression, Imagery, The dream idea in the session.


RESUMEN

La autora entiende lo inaudible como aspectos que operan en “sordina” en el trabajo analítico. Resalta los recursos personales del analista, su encuadre y los movimientos de captación de lo no verbal como: sueños, construcciones, regrediencia y figurabilidad como base para la comprensión de la práctica interpretativa.

Palabras clave: Práctica interpretativa, Recursos del analista, No verbal, Regrediencia, Figurabilidad o soñar en la sesión.


 

 

Os recursos não discursivos do trabalho clínico pertencem à prática interpretativa do analista. Eles o interrogam, afinal, sobre como a interpretação vem ao analista.

Não raramente, certo mal-estar, apreensão ou recuo se fazem presentes e nos encontramos sob a pressão de compor formulações inspiradas Em um ideal de interpretação, porém, algo nos escapa, nos perpassa, sem nos darmos conta de como isso ocorreu. Então, às vezes, nos surpreendemos com as nossas falhas, quando nos ouvimos dizer uma banalidade, manifestar uma confusão, sentir um torpor, ou, ainda, quando nos percebemos sendo ingênuos, ineficazes e até mesmo brilhantes! O fato de nos surpreendermos já é meio caminho andado. É por essa razão que, como analistas, ao relatarmos casos clínicos, vemos que, em algum momento, surge a necessidade de melhor explicar ou justificar uma impressão, idéia ou sentimento. Embora muitas vezes tenhamos dificuldades em comunicar o tom e a atmosfera da sessão, procuramos organizar melhor e dar um sentido a determinada situação clínica. É no a posteriori de nossas reflexões, ou de nossos relatos, que lidamos com esses fenômenos de caráter inesperado ou inusitado.

O posicionamento teórico que embasa a prática é, de fato, muito caro ao analista, fruto de estudo e de um amplo trabalho pessoal de análise. Consideremos, porém, um analista sólido e bem formado e, claro, sujeito aos efeitos e impactos sobre si da presença e da força transferencial de cada paciente – pois, na transferência, entram em curso pensamentos, sentimentos, atos, angústias, vazios difíceis de serem excluídos do universo pessoal do analista. Pode haver, nesses momentos, uma tentativa de defesa em relação a esses efeitos transferenciais e uma tendência em, sem que haja percepção, “peneirar” desejos, imagens, temores que possam invadir nosso campo de atuação, talvez por uma fidelidade à postura de neutralidade.

Meu objetivo aqui não é questionar a validade do conceito de neutralidade, mas propor uma investigação do lugar do analista nessas circunstâncias. Ocorre também de os pacientes, em suas atuações ou dificuldades, atingirem o narcisismo do analista e a confiança deste, o que pode induzir a uma atitude de maior proteção, em que analista se apressa a aventar interpretações pré-fabricadas, oferecendo-as ao paciente.

A experiência nos ensina que é na encruzilhada do par que se cria o trabalho psíquico, em que se busca uma palavra, cena, gesto ou ato que fora suprimido, não falado, ou que possa até nunca ter existido, e a escuta implica uma construção de sentidos da dupla.

Na escuta, as variáveis – corpo, afeto e linguagem – acabam por operar em conjunto, dando colorido à sessão, criando sua atmosfera. O analista está implicado nesse clima e diria que os recursos não discursivos são suas teorias, seus desejos, sua cultura, seu humor e sua capacidade de sonhar e simbolizar.

A pessoa do analista, nossa personalidade, já é uma forma de não sermos neutros; isto é, estamos, logicamente, munidos de um estilo próprio. Desde a maneira de nos vestirmos, de andar, a forma como dispomos nosso consultório, ou como sorrimos – um olhar sempre diz algo sobre nós. Existem, também, alguns recursos não discursivos dentro do próprio enquadre analítico: a posição deitada, estabilidade das sessões, analista fora do campo visual, ausência de contato tátil, entre outros. Existem relações interpretativas e transferências que considero operantes no movimento do processo analítico: participação silenciosa, intervenções breves, não sintáxicas, eco de uma palavra, tosses, etc. Ou seja, o caráter não discursivo pode adquirir um sentido na medida em que entendemos que há alguns aspectos que não possuem registros no patamar do dizível.

Tanto a pessoa do analista, sua personalidade e a forma em que se apresenta como o enquadre e sua particularidade, do qual o analista é guardião, funcionam como restos diurnos, capazes de convocar o recalcado singular do acervo inconsciente do paciente, contribuindo na construção do sonho, da experiência analítica, da mesma forma que as manifestações verbais e não-verbais do analisando, reverberam, enquanto restos diurnos, para dentro do mundo inconsciente do analista, convocando elementos que afetam e geram a confecção da experiência da dupla analítica. Os restos diurnos de cá e de lá são, portanto, elementos não discursivos que determinarão os discursos de ambas as partes, assim como os destinos da experiência em voga.

À luz da história das diversas correntes psicanalíticas, o lugar do analista e as formas de interpretar estão longe de dar uma resposta imediata, mas sua utilização expressa o modo como pensa e fundamenta o trabalho clínico. No caso, especificamente, nos ateremos aos aspectos não discursivos que estão implicados no advir do significado ou do sentido.

 

Sonhar o outro

O tema aqui em foco envolve a noção de pessoa do analista, da qual tentamos nos aproximar de forma mais direta na clínica, e que se encontra no centro das temáticas contemporâneas.

Há pacientes que não se utilizam da transferência como repetições atualizadas e silenciadas pela repressão. Em alguns deles, os recursos são muito precários ou inexistentes, faltando-lhes inscrições ou experiências que possam favorecer produções criativas, sonhos; sendo assim, a análise pode favorecer a construção desses aspectos, recriando ou reiventando-os.

Os pacientes considerados difíceis, em situações-limite, com pouca introspecção, procuram resultados imediatos, trazem queixas difusas, somatizações e compulsões. A clínica do vazio ou das atuações dos borderlines (casos-limite) está atada ao concreto, na negação do sofrimento mental, com falhas simbólicas importantes.

Então, colocar em primeiro plano a figura do analista vem em decorrência de alguns pacientes da clínica contemporânea que não toleram o setting tradicional, ou se apresentam fluídos, vagos, denotando perturbações nas ligações e nas formas de representações.

A ressonância pode se fazer no corpo do analista, em suas lembranças, vozes internas, sono, sonho. Freud utilizava essa ressonância nas associações de seus casos clínicos. Em “Construções na análise”, escreveu ele:

Todos nós sabemos que a pessoa que está sendo analisada tem de ser induzida a recordar algo que foi por ela experimentado e reprimido, e os determinantes dinâmicos desse processo são tão interessantes que a outra parte do trabalho, a tarefa desempenhada pelo analista, foi empurrada para o segundo plano. O analista não experimentou nem reprimiu nada do material em consideração; sua tarefa não pode ser recordar algo. Qual é, então, sua tarefa ? Sua tarefa é a de completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si, ou, mais corretamente, construí-lo (p. 293).

Neste trecho, está implícita, pois, a atividade imaginativa do analista, no sentido de que exercem sobre ele funções, imagens, cenas do recalcado ou do não vivido.

Como numa experiência do sonho, o analista poderá captar o inefável da dupla, através do trabalho psíquico. Isto é, a interpretação está intimamente ligada a este “sonhar o outro”, em que o analista fica entregue ao movimento regressivo, na captação do material trazido à sessão.

Porém, é no a posteriori da experiência que seremos impelidos ao movimento inverso; isto é, pelo processo secundário, o material bruto, esse informe de sensações vai, aos poucos, tomando forma ou rumo em busca de sentido, para assim atribuir um significado a uma determinada situação clínica.

Em uma sessão, a paciente chega atabalhoada, com uma sacola de papel na mão, que deixa sobre os pés do divã. Mal se deita, já começa a contar os últimos episódios do fim de semana. Como sempre, muito falante, descreveu-me seu “ataque de nervos” ao se deparar em casa com uma barata. Subiu em cima da mesa de tampo de vidro da sala de jantar, gritou e pediu ajuda; os familiares tentaram em vão persuadi-la a descer. Abalada, conta-me o apelos de seus filhos, para que se acalmasse e recuperasse o bom senso, visto que há muito o “perigo” tinha passado.

Em meu canto, a imaginar a cena, fui tomada de certo mal-estar e desânimo. Pensei: Que vexame! O que diriam de sua analista?

Ao tentar depurar esses sentimentos, a sacola de papelão, ali tão destoante, despertou minha atenção. Por mais que tentasse ouvir mais um pouco das lamúrias da minha paciente, a sacola lá estava, despertando a minha atenção e curiosidade.

Depois de um tempo, vejo que ela mudou de assunto, mas que não é, também, tão novo assim... o marido. O quanto se sentia mal com ele, desconsiderada, vista como “louca”.

Numa iniciativa minha, digo-lhe que ela trouxera algo para nossa sessão: aquela sacola. Imediatamente me conta como fora criticada e praticamente ridicularizada pelo marido ao recortar roteiros para a futura viagem da família. “O que me pegou” – diz ela “, “foi ele ter dito: ‘Para que você quer essas tranqueiras’?”.

“Quer mostrar para mim?” – erguntei. Alegre como uma criança que exibe seus desenhos, ela se sentou na cabeceira do divã e mostrou seu trabalho.

Fiquei realmente surpreendida pela sua capacidade, criatividade e organização, que certamente levara muito de seu tempo. No setting, entre nossos corpos e olhares (“entre mãe e filha?”), estava em jogo a legitimação de sua produção, de suas referências próprias.

Como fui levada a uma ação irrefletida, que me parece, a posteriori, bastante significativa para o trabalho dessa paciente? A cena de legitimação entre mãe e filha, tão corriqueira, parece-me hoje conexa aos seus ataques de nervos com a barata, pois a barata é, possivelmente, uma representação da perda da noção do próprio corpo e do seu desamparo. A cena imaginada me convoca na ação, à maneira não discursiva, a fornecer para a paciente um outro olhar. Resgato através da ação, invadida por estes elementos, dando expressão por meio de um outro olhar que ela não obtém de seu meio.

Freud descreveu, ou nos deu o caminho, para a interpretação dos sonhos, ressaltando que, de certa forma, a interpretação estaria na contramão do trabalho do sonho, na medida em que partiria dos pensamentos manifestos para o conteúdo latente. Mas o que está em foco aqui é o caminho inverso, é o sonhar do analista na sessão, ou melhor, o movimento de regressão necessário para chegar àquilo que a palavra não comporta, mas lá está, na linguagem.

O trabalho da linguagem, aqui entendido como ligação de pensamento, percepções. Imagem acústica, sinestésica e visual. O analista pode ter reações em seu corpo, como enjôos, ruídos, vertigens, que serão tratados como estados brutos ou informes, porque eles serão material para elaboração por parte do analista. Para tanto, é necessário o deixar-se atingir por aquilo que Botella denomina “estado de regrediência”.

A via regrediente é entendida como um processo a partir de elementos conscientes ou pré-conscientes, que irão sofrer uma regressão “retrocedente” (atraídos pelo inconsciente), apresenta-se em forma de figurabilidade (Botella).

A atribuição das significações inclui várias manifestações não-verbais, que exigirão uma capacidade de regrediência do analista, em que haverá uma desconstrução da palavra para imagens, como possibilidades de ressignificações de vivências. A figurabilidade toma partido de fenômenos que se apresentam ao analista como flashes de pensamento, sensações, mal-estares, palavras fora de contexto, etc.

Ainda para o autor, o trabalho da interpretação percorre a via regrediente, fazendo as ligações dos estados afetivos com imagens sinestésicas; depois, então, pode se esboçar um movimento progrediente, que reencontrará os elementos de palavras que foram detectados.

A disponibilidade para o processo analítico é singular para cada paciente. O trabalho da interpretação opera em surdina, na sua lógica inconsciente. A fala do analisando, sua presença, seu silêncio estão impregnados de sons, cheiros, cores, olhares embaralhados – presentes ou nos fragmentos das palavras ou nos gestos, suspiros; enfim, em tudo que não é pronunciável. Como bem assinala René Major (1995): “Nada se cala ao não ser dito”. A captação desses movimentos dependerá dos recursos disponíveis do analista. Muitas vezes, o analista se encontra numa posição em que terá de se haver com a possibilidade de se fazer ouvir e falar o que, antes, se encontrava condenado ao silêncio ou ao sintoma.

Daniel Delouya (2005) faz um consistente detalhamento sobre a construção da representação a partir da inscrição mnêmica do desejo. Destaco, para o nosso tema, o segundo aspecto levantado pelo autor, que diz respeito ao desencadeamento da via regressiva no adulto que, com sua voz e corpo, conduz ao processo de ligação. Utilizo aqui sua interessante metáfora, retirada da química, “...onde é preciso baixar a temperatura, diminuindo a agitação aleatória das moléculas, para que suas pontas de ligação sejam vistas, formando as pontes para gerar os novos compostos” (p. 89). Fiel a Freud, Delouya aponta para o objeto como nebenmench (o outro semelhante): “Estar sensível ao estado da criança implica estar separado dela”. O que se associa com as idéias de Winnicott sobre a mãe suficientemente boa, no sentido de uma disposição inconsciente da identificação, fornecendo os meios amorosos de sedução, de comemoração e outros afetos edípicos.

Outro recurso não discursivo na apreensão do significado é a complexa retirada da fala do analista (Fédida). Ao deixar que se instale o hiato, é possível ao analista detectar os elementos transferenciais de endereçamento das queixas do paciente, abrindo espaço para o disruptivo, o fugaz, o inesperado, o tedioso e o vazio.

Há também outras conceitualizações que se referem a formas não discursivas na construção de significados, como o não dito dentro do sem memória e sem desejo (Bion), um deixar surgir para tomar em consideração (Herrmann).

O analista está envolto, às vezes, num campo de teorias, modelos e conceitualizações que invadem e irrompem na sessão. Ele deve facilitar e salvaguardar a criação de um espaço privado para o paciente, um espaço no qual possa emergir sua individualidade, sua privacidade “...protegendo-o constantemente das intrusões, da invasão da sua própria subjetividade, que todavia é a única posição a partir da qual ele pode conhecê-lo” (Bonaminio, 2006).

 

A prática interpretativa

Quaisquer que sejam as modalidades técnicas que a análise adote, a condição essencial de sua força e de sua eficácia se apoiará na condição de o analista se utilizar de seus próprios recursos como forma de captar a comunicação de seus pacientes. Muitas vezes, a comunicação dos aspectos cindidos, recalcados ou traumatizados é transmitida ao analista por meios não-verbais, concernentes ao território do não representável e das experiências corporais.

Nessa medida, os recursos não discursivos devem ser entendidos como uma das possibilidades de comunicação, para que não sejamos tendenciosos na interpretação excessiva e explicativa, ou para não cairmos num asséptico distanciamento, que deixa o paciente à mercê de suas repetições.

Em alguns casos, o silêncio do analista reflete a disponibilidade receptiva à fala do analisando; em outros, a presença do analista, sua fala, seu envolvimento tornam-se condições necessárias, devido a um momento mais regressivo de perda das defesas do paciente.

O analista está investido pela transferência: quanto mais recursos disponíveis, pela sua plasticidade, o analista puder lançar mão, mais estará livre para fazer uso, conforme a geografia psíquica da sessão que se destaca. Será o silêncio, sua retirada, ou no barulho das palavras que o analista poderá encontrar seu lugar tão móvel e plástico, de acordo com o esparramar-se do paciente no setting analítico.

Não se trata, aqui, de uma filiação teórica nem de apologia da utilização de uma técnica ou uma meta a ser aplicada, e, sim, de estudar esses fenômenos que podem ocorrer na sessão. É a geografia psíquica do paciente que irá determinar quando e como o uso dos recursos não discursivos, que o analista acaba lançando mão como um patrimônio a ser utilizado.

Uma formação sólida, não dogmática, nos permite desenvolver a liberdade interior, para que possamos sair das estereotipias, de forma que a neutralidade fria e antipática não seja confundida com intelectualidade e seriedade, e, por outro lado, o afetivo não seja confundido com ingenuidade.

As transformações obtidas em uma análise, sem negar a força propulsora da palavra, advêm da capacidade de acolhimento e do prazer do analista no investimento que faz, tanto no paciente quanto na busca do desconhecido.

Agradeço a Daniel Delouya e Raya Zonana, pelas preciosas sugestões.

 

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Endereço para correspondência
Raquel Plut Ajzenberg
R. João Mendes França, 45
05690-030 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3758-0238
E-mail: raquel.a@uol.com.br

Recebido em: 10/11/2008
Aceito em: 08/12/2008

 

 

* Membro efetivo da SBPSP.

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