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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo dez. 2017
SONHOS
O campo analítico como campo do sonhar: o lá, o aí, o aqui e o acolá como vértices de observação participante
The analytic field as a field of dreaming: the over there, the there, the here, and the farther place as vertexes of participant observation
El campo analítico como campo del sueño: el allá, el ahí el aqui, el más allá, como vértices de observación participante
Le champ analytique en tant que champ de rêver; le là-bas, le là, l'ici et le plus loin vus comme les sommets d'observation participante
Roosevelt Cassorla
Membro efetivo e didata da SBPSP e do GEPCampinas, professor titular da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Campinas. roocassorla@gmail.com
RESUMO
O autor propõe que o campo analítico seja considerado um campo dos sonhos. São estudados fatores desse campo que transformam as experiências emocionais em sonhos, ampliando a rede simbólica do pensamento. Ou que impedem que isso ocorra. O analista, como observador participante do campo, pode abordá-lo sob diferentes vértices. Os sonhos relatados que correspondem a situações da realidade externa, isto é, no lá, podem também ser abordados como algo que ocorre no aí, isto é, no mundo interno. A abordagem dos mesmos sonhos ocorrendo no campo analítico, isto é, no aqui, revela os sonhos-a-dois. Construções hipotéticas sobre como sonhos e não-sonhos ocorreram no desenvolvimento inicial do paciente indicam o trabalho no acolá. O analista oscila entre os vários vértices, e essa oscilação é intuída com base na capacidade de simbolização do paciente. O texto é concluído com uma abordagem detalhada de fatores envolvidos no desenvolvimento da capacidade de reverie do analista.
Palavras-chave: sonhos, campo analítico, técnica analítica, simbolização, reverie
ABSTRACT
The author suggests that the analytical field be considered a field of dreams. He studies its factors that transform emotional experiences into dreams. This transformation either expands the symbolic net of thinking or it prevents this from happening. The analyst, as the participant observer of the field, can approach it from different angles. The reported dreams which correspond to situations of external reality - that is, situations that happen over there - may also be regarded as happening in the inner world - that is, there. When they happen in the psychoanalytic field - that is, here, the approach of the same dreams reveals dreams-for-two. Hypothetical constructions on how dreams and non-dreams happened in the patient's initial development indicate the work in the further place. The analyst oscillates between these several vertexes. This oscillation is intuited based on the symbolizing capacity of the patient. The author concludes his paper with a detailed examination of the contributing factors in the development of the analyst's capacity for reverie.
Keywords: dreams, analytic field, analytic technique, symbolization, reverie
RESUMEN
El autor propone que el campo analítico sea considerado como un campo de los sueños. Se estudian factores de ese campo que transforman las experiencias emocionales en sueños, ampliando la red simbólica del pensamiento o impidiendo que esto ocurra. El analista, como observador participante del campo, puede abordarlo bajo diferentes vértices. Los sueños relatados que corresponden a situaciones de la realidad externa, es decir, del allá, pueden también ser abordados como ocurriendo en el ahí, es decir, en el mundo interno. El enfoque de los mismos sueños ocurriendo en el campo analítico, es decir, en el aquí, revelan los sueños soñados entre los dos. Las construcciones hipotéticas sobre cómo sueños y no-sueños ocurrieron en el desarrollo inicial del paciente, indican el trabajo en el más allá. El analista oscila entre los varios vértices, y esa oscilación depende de la capacidad de simbolización del paciente. El texto se completa con un enfoque detallado de los factores envueltos en el desarrollo de la capacidad de reverie del analista.
Palabras clave: sueños, campo analítico, técnica analítica, simbolización, reverie
RÉSUMÉ
L'auteur propose que le champ analytique soit considéré un champ de rêves. On étudie les facteurs de ce champ capables de transformer les expériences émotionnelles dans des rêves, en élargissant le réseau symbolique de la pensée, ou dans des facteurs qui empêchent que cela ait lieu. L'analyste, en tant qu'observateur participante du champ, peut l'aborder sous de différentes sommets. Les rêves rapportés qui correspondent à des situations de la réalité extérieure, c'est-à-dire, au là-bas, peuvent aussi être abordés comme ayant lieu dans le là, c'est-à-dire, dans le monde intérieur. L'approche des mêmes rêves qui ont lieu dans le champ analytique, c'est-à-dire, dans l'ici, révèlent les rêves-à-deux. Des constructions hypothétiques, concernant le comment les rêves et les non-rêves ont-ils eu lieu dans le développement initial du patient, indiquent le travail dans le plus loin. L'analyste oscille entre ces divers sommets, et cette oscillation est pressentie à partir de la capacité de symbolisation du patient. Le texte fini par un abordage détaillé de facteurs compris dans le développement de la capacité de rêverie de l'analyste.
Mots-clés: rêves, champ analytique, technique analytique, symbolisation, rêverie
Marcus conta em detalhes fatos sobre uma viagem de seis meses de duração que fará graças a uma disputada bolsa de estudos. Está contente e entusiasmado. Em seguida me surpreende queixando-se agressivamente do custo de determinado curso que está fazendo, ainda que saibamos que não lhe causa qualquer problema financeiro.
A viagem de estudos ocorre no lá, na realidade externa. Marcus conta a seu analista fatos de sua vida evidentemente transformados por fatores relacionados a sua forma de observá-los, vivenciá-los e relatá-los. O analista, cujo modelo de observação participante é o do campo dos sonhos (ver adiante), imagina que Marcus está contando um sonho acordado que vivenciou "lá fora", isto é, transformações das experiências emocionais que viveu no lá. Evidentemente estas transformações estão ocorrendo no aqui, no campo analítico. Estudaremos o aqui adiante.
No mesmo modelo do campo do sonhar, o analista modifica seu vértice de observação e considera que Marcus está nos relatando um sonho que ocorreu no aí, isto é, dentro de sua mente. É evidente que o sonho do lá ocorreu também dentro de sua mente, mas o analista toma o lá como resto diurno, estímulo para que ocorra o sonho no aí. O aí indica, para o analista, o "local" em que conglomerados emocionais, relações objetais internas, estão sendo sonhados. Essas relações são fatores e, ao mesmo tempo, maneiras de manifestação dos sonhos.
No modelo do sonho que ocorre no aí, dentro da mente de Marcus, o autor imagina que o conglomerado de relações objetais internas é representado, emocionalmente, por personagens (como ocorre numa peça teatral): a viagem, a satisfação, a conquista, o curso, o custo financeiro, a situação financeira confortável de Marcus. O último personagem não faz parte do sonho manifesto de Marcus, mas do sonho do analista. Em outras palavras, o analista já está ressonhando o sonho de seu paciente. Isso faz parte de sua função analítica. O leitor já deve ter-se dado conta de que o sonho do aí (dentro da mente) já está ocorrendo também no aqui (campo analítico).
Continuemos imaginando o sonho do analista. Ele se defronta com o contraste entre a alegria de Marcus e as queixas quanto ao custo financeiro. Há indícios de que esta experiência emocional não é percebida por Marcus. O analista faz a hipótese de que está diante de fatos em relação aos quais a capacidade de sonhar de Marcus está restringida. O analista sabe que ele, analista, deverá auxiliar Marcus em dar significado a essa experiência, ajudando-o a sonhar ou/e sonhando junto com ele ou/e sonhando por ele. No primeiro caso a experiência emocional refletiria bloqueio principalmente neurótico (em que a capacidade de simbolizar existe), no segundo e terceiro, também bloqueio psicótico ou/e traumático (em que a capacidade de simbolizar foi destruída em maior ou menor grau).
Vejamos o terceiro vértice: o aqui, que se refere ao campo analítico. Este é o vértice privilegiado de observação do analista, ainda que ele inclua os outros como também necessários. No aqui o analista observa os mesmos personagens: viagem, satisfação, curso, custos. São personagens que representam experiências emocionais ocorrendo no campo analítico. Agora o analista se debruça sobre o que está ocorrendo entre os membros da dupla analítica.
Tanto o sonho do lá quanto o do aí ainda não têm significado suficiente para o analista, mesmo que seu sonho (do analista) tenha trazido novos personagens (a boa condição financeira de Marcus, o contraste entre a satisfação e as queixas). O analista continuará observando o campo analítico (do qual ele faz parte) esperando que algo tome forma, como fatos selecionados (Bion, 1962). As considerações acima, sobre os sonhos do lá (realidade material) e no aí (dentro do paciente), portanto, foram feitas pelo autor deste texto ao pensar o que ocorreu, e não durante a sessão. O analista perceberá, também posteriormente (après coup), que ficara incomodado com as queixas de Marcus, devido a sua agressividade. Esse incômodo pessoal ativará sua capacidade inconsciente de sonho.
Continuemos o relato. O analista escreve: As emoções relacionadas a dinheiro me impactam, como fato selecionado do campo. Percebo, dentro de mim, um esboço de preocupação com a interrupção da análise. E se Marcus tiver uma crise durante a viagem?
Nesse momento o analista nos conta mais sobre seus sonhos. As emoções trazidas pelo personagem "dinheiro" passam a fazer parte do campo, no aqui. Poderíamos dizer que elas estão no aí, na mente do analista, mas deixaremos de lado essa complicação porque partimos do pressuposto de que o analista está revelando sua percepção dos sonhos-a-dois.1
O mesmo ocorre em relação aos personagens "preocupação do analista", "interrupção da análise", "crise durante a viagem". A entrada de novas emoções e personagens indica trabalho de sonho da dupla, isto é, sonhos ocorrendo no aqui.
O analista escreve: Ao final da sessão, quando Marcus me paga, mostra-se irritado e inconformado por ter que pagar uma sessão à qual faltara. Reclama que quando eu viajo não lhe pago a sessão perdida o que indica "dois pesos e duas medidas".
A sessão perdida e as emoções envolvidas entram como novos personagens no campo analítico, que está ficando cada vez mais complexo (e interessante). O analista perceberá posteriormente que não se dera conta de que "suas viagens" (do analista) também haviam entrado no campo. Os vínculos emocionais se manifestam através de irritação, inconformidade, reclamações, sentimentos de injustiça, ressentimento e outros sentimentos difíceis de pôr em palavras.
O analista continua seu relato: à noite sonho que meu filho se havia acidentado e, quando acordo do pesadelo, Marcus vem à minha mente. Tenho a sensação de que o sonho tem relação com meu receio de que Marcus se "acidentasse" durante a viagem por ficar sem análise.
Nesse momento o analista nos mostra como, em seu sonho da noite, tentava simbolizar as experiências emocionais que vivera durante a sessão (e outras experiências próprias às quais não temos acesso). O sonho do analista foi interrompido (Ogden, 2005) quando se tornou traumático. No entanto, continuou ao acordar e se vinculou à viagem de Marcus.2 A interrupção da análise está se manifestando como "acidente" e já está sendo simbolizada, isto é, fazendo sentido e sendo posta em palavras. Isto é, está sendo sonhada. A rede simbólica está se ampliando, e há indícios de que surgirão outros fatos simbolizados e em processo de simbolização. O processo poderá ser interrompido caso se atinjam áreas muito perigosas.
No dia seguinte Marcus volta a queixar-se, emocionado, de minha falta de sensibilidade e da injustiça a que está sendo submetido. É absurdo pagar por uma sessão à qual faltara porque seu filho sofrera um acidente (Marcus não havia contado esse fato).Nesse momento o analista se lembra de seu sonho noturno (que havia esquecido). Na mesma sessão e nas subsequentes a dupla analítica se dará conta de que "viagem" e "curso" eram metáforas da "viagem" analítica, e as emoções em relação ao dinheiro indicavam os injustos "custos" emocionais da interrupção da análise, custos para ambos os membros da dupla. A "falta de sensibilidade" indicava a necessidade de menosprezar o analista para poder deixá-lo, ao mesmo tempo que mostrava a dificuldade momentânea da dupla de enfrentar as emoções relacionadas à separação. Os "acidentes", tanto do filho do analisando como do sonho noturno do analista, representam os acidentes que estão ocorrendo no campo.3
Com a ampliação dos sonhos-a-dois a dupla entra em contato com sabotagens invejosas que haviam dificultado que Marcus "viajasse" melhor pela vida, repetição traumática de experiências não suficientemente significadas. O analista, por sua vez, entra em contato com a culpa por ter cobrado a sessão (ainda que soubesse que a cobraria, de qualquer forma), se pergunta se não está viajando muito... e pensa que devia ter mais tempo para seus filhos... e para si mesmo...
Agora podemos deter-nos no acolá. Proponho que é o "local/tempo" em que o paciente vivenciou os traumas e conflitos mais ou menos elaborados, que constituíram o aí, isto é, seu mundo interno. A vinheta discutida nos permite formular hipóteses sobre o acolá: "acidentes" vivenciados em tempos idos que foram mais ou menos sonhados, permanecendo áreas não suficientemente sonhadas que se revelarão no campo analítico, manifestando-se pelos sonhos e não-sonhos do lá e no aí, que emergirão no aqui, no campo analítico. O acolá se torna presente em todos os níveis. O aqui nos mostra, "ao vivo", como isso ocorre, tanto em relação aos sonhos como aos não-sonhos que buscam sonhadores.
Lembremos que, durante o trabalho analítico, o analista chama os demônios (diabos) inconscientes primitivos, tanto os reprimidos como os não reprimidos, que fazem parte do espectro sonho <-> não-sonho.4 Para tanto pede auxílio a seus antigos dia-bolos internos (agora sím-bolos), que, de alguma forma, conhecem as línguas estranhas e a mudez demoníacas, podendo dar-lhes significado. Amplia-se a rede simbólica, de ambos os membros da dupla, ainda que o paciente seja o mais beneficiado. Isso ocorre principalmente no aqui do campo do sonhar.5
A oscilação do analista entre o lá, o aí, o aqui e o acolá, facilita sua decisão no momento da interpretação. Quando a capacidade de simbolização do paciente é restrita, vivendo predominantemente na concretude, as intervenções no lá (lá fora) são aquelas possíveis. O analista testa a capacidade de metaforizar arriscando interpretações no aí (mundo interno) e eventualmente no aqui (campo analítico). À medida que o vínculo transferencial se aprofunda (e pode ser sonhado) interpretações no aqui se tornam possíveis. O ideal é que o analista oscile entre os variados vértices, experimentando e intuindo aqueles mais indicados para que ocorra a interpretação ou intervenção. O acolá envolve interpretações complementares às dos outros vértices. Em situações em que a dupla se encontra em contato com áreas com débil capacidade de simbolização, com buracos na trama simbólica, as interpretações no acolá, na verdade construções (Freud, 1937) que buscam dar sentido às falhas, são indicadas. Essas interpretações complementam as anteriores (de áreas mais simbolizadas) que estão, aos poucos, costurando a rede simbólica rota. O acolá surge naturalmente, no sonho do analista, como um auxiliar importante na costura dos buracos que estavam sendo simbolizados.
O campo analítico
As ideias de campo analítico em suas várias vertentes (Katz, Cassorla & Civitarese, 2017) nos mostram um espaço/tempo em que nada acontece com qualquer membro da dupla analítica que não repercuta no outro. O analista, como observador, modifica o campo, e este modifica o observador e sua capacidade de observar e assim por diante.
Tenho proposto como um dos vértices de observação das funções do campo a capacidade de transformar e ampliar a rede simbólica do pensamento. A transformação dessa rede manifesta-se no aumento da capacidade do analisando de atribuir significado a suas experiências, isto é, de pensar os fatos conscientes e inconscientes de sua vida. Dessa forma se desenvolvem recursos mentais que permitem ao analisando lidar com a realidade. Se usarmos o modelo da função trabalho-de-sonho-alfa (Bion, 1992), podemos dizer que as transformações descritas no parágrafo anterior são produto da capacidade de sonhar as experiências emocionais sem significado. Ou da capacidade de ampliar o significado dessas experiências. A significação envolve simbolização e maior possibilidade de conexões, ampliando-se a rede simbólica do pensamento.
Detalhemos a compreensão do campo do sonhar (Cassorla, 2017a). Como fatores desse campo identificam-se fenômenos que se articulam em forma complexa, tais como a qualidade dos vínculos entre analisando e analista; a qualidade das experiências emocionais resultantes desses vínculos; a capacidade de continência e reverie do analista, que transforma essas experiências; a capacidade da dupla analítica de ampliar os significados dos sonhos sonhados pela dupla; a capacidade do analista de identificar e lidar com elementos que não podem ser sonhados (não-sonhos); a perícia da dupla em lidar com ataques aos processos descritos etc.
No modelo proposto o campo está tomado por turbulência e catástrofes emocionais (Bion, 1976). Analista e analisando se vinculam através de emoções, e o campo, em constante transformação, indica qualidades dos vínculos e formas de ataques aos vínculos.
A aventura da análise é estimulada, em ambos os membros da dupla analítica, pela conexão entre amor, desejo de conhecer e ódio ao sofrimento. Estas emoções iniciais originam conjuntos complexos de vínculos emocionais nomeados por suas letras iniciais L (love), H (hate), K (knowledge), que sofrem influência mútua e se combinam em formas variadas. Sua negatividade (-L, -H, -K) ataca os vínculos positivos (Bion, 1962). O vínculo K já fora intuído por Freud (1905) (Instinto para conhecer) e por Klein (1932) (Instinto epistemofílico), mas coube a Bion o mérito de incluí-lo entre as emoções. Essa inclusão ampliou a percepção dos campos.
À medida que a observação do campo se desenvolve identificam-se combinações complexas, sutis e sofisticadas dessas emoções, tais como curiosidade arrogante, amor possessivo, ódio à verdade, sedução invejosa, hipocrisia medrosa e outras formas de generosidade, maldade, desespero, terror, solidariedade, fanatismo, sacrifício etc.
Um dos fatores do campo analítico é sua capacidade de conectar os vínculos L e H com K, ou transformá-los em K, para que Conhecimento se desenvolva. O conhecer-se através da análise é um processo emocional. Cada K atingido é um passo efêmero na busca da realidade última (O). Como esta nunca será atingida, o campo analítico revela-se infinito, no vértice considerado.
Um importante fator do campo do sonhar é a capacidade de imaginar experiências sem significado. A transformação dessas experiências em imagens, predominantemente visuais, é correlata à capacidade de a mãe sonhar seu bebê. Esse sonhar inicia-se antes de o bebê nascer e possivelmente atinge seu maior desenvolvimento no início de sua vida. A continência materna faz com que sua capacidade de reverie atribua significado aos elementos brutos projetados pelo bebê.
Sobre a reverie6
Existe uma tendência para substituir a ideia de contratransferência por reverie, que englobaria aquela ideia, mas a amplia (Ogden, 2013; Civitarese, 2013; Barros & Barros, 2015). Como ocorre com a mãe do bebê, o analista também utiliza sua capacidade de reverie durante a sessão. É necessário que o analista se permita "perder-se" ou "ficar à deriva" enquanto espera que, naturalmente, as reveries façam sentido. O analista não treinado costuma ignorar suas reveries ou imaginar que elas são produto de perturbações próprias (até mesmo no corpo), sem dar-se ao trabalho de investigá-las. Bion (1962) nos diz que reverie é aquele estado de mente aberto à recepção de qualquer estado emocional do objeto amado, isto é, das identificações projetivas sentidas tanto como boas quanto como más. A capacidade de reverie envolve um estado de mente ativo que busca contato com área de fantasia, reserva natural (Freud, 1911) em que predomina o processo primário. O analista se deixa levar pelas reveries, mas, ao mesmo tempo, as observa e busca compreendê-las. O estado de reverie permite que experiências emocionais brutas sejam captadas e transformadas em pensamento onírico inconsciente. Estamos diante da função alfa. Essas experiências são vinculadas a outras experiências emocionais, conscientes e inconscientes, que já haviam sido significadas e/ou estão sendo significadas. As imagens que vêm à mente do analista, também chamadas reveries, constituem fantasias ou sonhos diurnos manifestos que revelam os pensamentos oníricos que estão sendo gerados e trabalhados inconscientemente pelo analista e pela dupla analítica (sonhos-a-dois). Além da figurabilidade, as reveries também se formam com base nos demais mecanismos do trabalho de sonho: condensação, deslocamento e revisão secundária. Esses mecanismos se valem também do que ocorre no campo analítico, manifestando-se como fatos intersubjetivos que estão sendo sonhados no aqui-e-agora. É provável que as revisões secundárias sejam mais sofisticadas, já que o paciente, acordado, tem acesso aos processos secundários. Dessa forma o relato pode parecer lógico e organizado com o uso de fatos e lembranças que encobrem a verdade/realidade. Não-sonhos que se manifestam pelas descargas, somatizações, transformações em alucinose, vazios são "imaginados" pelo analista, e essas reveries, interpretadas consciente e inconscientemente pelo analista, promovem significação. Em áreas primitivas da mente o analista pode ser solicitado a utilizar construções (via di levare) (Freud, 1937).
Para que a capacidade de reverie se torne presente, as funções do aparelho mental (consciência, atenção, memória, juízo, ações pensadas) descritas por Freud (1911) devem ser alteradas, e o analista faz isso ativamente. A atenção que periodicamente se volta para o mundo externo deve evitar essa busca, mantendo-se flutuante e sem dar importância maior ou menor àquilo que observa. Memória, desejos, expectativas são também ativamente bloqueados. Resulta disso um estado alterado de consciência, entre o sono e a vigília (Cassorla, 2016a). Esse estado mental pode ser obtido com base nas recomendações de Bion (1959/1967a; 1992): o analista deve trabalhar sem memória, sem desejo, sem intenção de compreender. Constitui-se um processo circular: o estado de reverie é fruto dessas recomendações, e essas recomendações são possíveis quando se atinge esse estado. Ele se aproxima daquele que ocorre de modo espontâneo no paciente gravemente regredido, e, por isso, é importante que o analista tenha vivenciado aspectos primitivos em sua análise pessoal. Bion (1970) nos lembra que o analista que se dispõe a usar essas regras se sentirá perturbado a despeito de sua própria análise. O analista sabe que perdeu sua capacidade de reverie quando se percebe dominado por desejos e memórias.
Os fatores relacionados à capacidade de reverie e sua utilização clínica não são claros. Um fator importante é a busca ativa da atemporalidade. Ao ignorarem-se passado e presente (memória e desejo), tudo o que acontece no campo analítico parece ocorrer num tempo presente. No entanto, o termo "tempo presente" se opõe a tempo passado e futuro. Como estes "deixam de existir", estamos no terreno do atemporal, em que não existem presente, passado e futuro, o não-tempo do inconsciente. O adendo "sem intenção de compreender" seria dispensável, já que intenção é um fato que remete ao futuro. Penso que esse reforço mostra que Bion intuía como seria difícil vivenciar o "não-saber". Graças a esse "não-saber", o analista pode vivenciar outro saber que se manifesta de outras formas - englobando pensamento onírico - para além e aquém do processo secundário.
No decorrer de sua obra Bion utiliza outros modelos para explicitar suas propostas técnicas. Elas vinculam-se à capacidade de o continente suportar frustração e ataques e manter-se vivo e pensante. Bion propõe que o analista desenvolva sua capacidade negativa, expressão encontrada em uma carta de Keats: "quando o homem é capaz de viver incertezas, mistérios, dúvidas, sem qualquer esforço irritável que vise alcançar como resultado, fato ou razão". O suportar a capacidade de não-saber é, também, reforçada por esta ideia de Maurice Blanchot (que ele ouviu de André Green): La réponse est le malheur de la question (Bion 1959/1967a; 1970).
Bion (1970) utiliza também o termo intuição para o instrumento capaz de captar fenômenos emocionais. Ela deve sobrepor-se à observação pelos órgãos dos sentidos. Em outro momento, Bion (1959/1967a) nos lembra a carta de Freud a Lou-Andreas Salomé, em que ele propõe que o analista deve cegar-se artificialmente para melhor ver a luz.
Por derivação da teoria do pensar, Bion propõe que o analista suporte o caos até que surja o fato selecionado. Esse fato dará sentido ao caos. O caos relaciona-se a fatos da posição esquizoparanoide (PS) e a organização, a fatos da posição depressiva (D). O analista deve transitar entre as duas posições - suportar o caos e, ao mesmo tempo, não se prender rigidamente a D -, e desse trânsito PS<->D adequado depende o vigor de sua capacidade analítica (e também da capacidade de pensar). Bion recomenda paciência durante PS enquanto o trabalho inconsciente de sonho ocorre, até que advenha segurança, quando o caos se organiza (PD). Essa segurança deverá, em seguida, desfazer-se para permitir a nova experiência. Bion propõe que o analista tenha fé de que seu sonho inconsciente, em algum momento, dará significado aos não-sonhos.
Também por derivação dessas ideias, Meltzer (2005) propõe que o analista se mantenha num estado de repouso, que é, ao mesmo tempo, altamente vigilante, esperando pacientemente que surjam significados incipientes que são frutos de sua imaginação receptiva, aberta para o possível, sem levar em conta o provável. O analista é um "gerador de poesia", que abandona o pensar (ciência) pela intuição (arte, poesia).
Retomemos o estudo da capacidade de reverie quando o analista se defronta com áreas em que a simbolização encontra-se prejudicada. O analista ouve o paciente, mas principalmente sofre em si mesmo a ação das identificações projetivas. O analista vivencia o produto dessas identificações como incômodos, dor mental, sintomas, dificuldades ou bloqueios no pensar, acompanhados ou não de esboços de cenas. Esses esboços são pobres, sem ressonância emocional e indicam o contato com esboços fracassados de símbolos, eventualmente equações simbólicas, que pressionam a mente do analista em busca de significação.
O analista sente-se pressionado a livrar-se dos não-sonhos que o paciente lhe introduz. Concomitantemente, graças a sua função analítica, sente-se estimulado a buscar formas de simbolizá-los. Inicialmente, como vimos, por meio de imagens que, por sua vez, pressionam por novas formas de representação, principalmente por meio de palavras. Num primeiro momento, ou mesmo depois, é possível que o analista não as encontre. A situação continuará, numa busca de significação, enquanto o analista mantém sua capacidade negativa até que surja o fato selecionado. As imagens atraem novos símbolos, sensoriais, imagéticos e principalmente verbais, ampliando os significados. Abre-se a experiência para novas conexões simbólicas, novos significados, maior desenvolvimento emocional e riqueza do trabalho da dupla. Isso nunca se completa, gerando-se significado numa ampliação contínua da mente.
O analista pode não suportar o não-saber que faz parte do não-sonho enquanto tenta sonhá-lo. Isso ocorre por falhas em sua capacidade de manter o estado de reverie ou porque o não-sonho mobilizou áreas próprias do analista não suficientemente sonhadas em sua vida, ou que - ainda que sonhadas - não suportam ser ressonhadas naquele momento. A "indigestão" do analista diante dos elementos brutos do paciente costuma envolver fatores de ambos os membros da dupla. Nessas situações o não-saber será vivido como objeto interno persecutório. Por isso, o analista pode apelar para o já-sabido, memórias, desejos, teorias, crenças, utilizados não por serem verdadeiras, mas como formas de aplacar o objeto persecutório. Essa substituição do não-sabido pelo já-sabido é estimulada pela presença não neutralizada do superego destrutivo da parte psicótica da personalidade (Bion, 1959/1967a), moralístico e onisciente, que ataca qualquer não-saber, transformando-o num suposto já-sabido.
Quando o analista também se vê impedido de sonhar o não-sonho do paciente, ambos os membros da dupla podem envolver-se em não-sonhos-a-dois.7 A mente do analista fica possuída pelo não-sonho do paciente, que, como na melancolia, cai sobre o ego do analista (Freud, 1917; Cassorla, 2007), bloqueando sua capacidade de sonhar e pensar. Sua substituição pelo já-sabido, isto é, por defesas que envolvem onisciência, apresenta-se como cenas repetidas estanques com características maníacas e obsessivas, que encobrem enredos melancólicos persecutórios.
No entanto, o analista não se dá conta desses fatos. Sua mente se encontra entorpecida, como se ele estivesse estupidificado (Bion, 1958/1967b; 1961/2001; Cassorla, 2013b; 2017b). O "sem memória e sem desejo" será substituído por saturação de memórias, desejos, teorias e suposto conhecimento. Interpretações, com base nesses dados, implicam sugestionamento adaptativo, e não psicanálise. Interpretações racionais ou teóricas servem para rotular o paciente e impedir seu desenvolvimento.
O analista poderá intuir alguns sinais que mostram sua obnubilação. Deve ficar alerta para sentimentos exagerados de orgulho em relação à potência de sua própria capacidade analítica (quando o processo analítico parece estar caminhando muito bem) ou em relação à paciência e capacidade de conter (quando o analista supõe que está lidando bem com a frustração e violência). Esses exageros costumam ser arrogantes e demonstrativos de estupidez. Admiração constante e irritação crônicas em relação ao paciente são outros indicativos. O analista deve deixar de lado certa preguiça quando se sente impelido a escrever o material clínico, mesmo que não tenha clareza em relação aos motivos disso. Esse fato indica a necessidade de um "segundo olhar" (Baranger, Baranger & Mom, 1982/2002), de uma "escuta da escuta" (Faimberg, 1996). Sonhos contratransferenciais noturnos e intuições de sonhos diurnos podem dar-nos outras pistas.
Penso que o analista trabalha, ao mesmo tempo, em todas as áreas mentais. Interpretações em área simbólica supõem um analista presente que, ao mesmo tempo, ajuda a simbolizar e a criar estruturas mentais. Seu trabalho, portanto, também beneficia áreas psicóticas e traumáticas. E, quando o analista trabalha em área de simbolização deficitária, também está estimulando a rede simbólica existente em área não psicótica. Este é mais um fator que nos ajuda a desfazer a visão moralística sobre o que é "certo ou errado" no trabalho analítico. Esse superego moralístico deverá ser substituído pela validação do trabalho do analista (Cassorla, 2012), isto é, observar como esse trabalho cria, desenvolve, bloqueia ou reverte a capacidade de sonhar e a rede simbólica do pensamento.
O trabalho analítico, e mais ainda com pacientes graves, estimula o autoconhecimento do analista. Ele é levado a entrar em contato com áreas traumatizadas próprias. Um processo analítico promove desenvolvimento em ambos os membros da dupla. Espera-se que o paciente aproveite mais que o analista, mas a falta de desenvolvimento do analista obriga a supor que algo errado está ocorrendo.
Referências
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Recebido em: 17/9/2017
Aceito em: 3/10/2017
1 Se fosse um sonho "próprio" do analista, sem relação com o sonho do paciente, estaríamos diante de aspectos do analista que limitariam sua função analítica, o que se costuma chamar contratransferência patológica. No entanto, seu estudo detalhado revelaria que essa contratransferência fora, de alguma forma, eliciada pelo que estava ocorrendo no campo. A condenação moralista do analista impediria esse estudo, que costuma revelar os fatores do campo, ampliando a capacidade de pensar da dupla.
2 Neste momento demonstro que o campo analítico se amplia para além do enquadre (Cassorla, 2017).
3 A coincidência entre o acidente do filho de Marcus e o acidente com o filho do analista ficará sem explicação. A teoria de comunicação inconsciente entre paciente e analista não pode ser descartada, mas não tem como ser confirmada. O analista prefere acreditar que se tratou de coincidência, em que ambos usaram o personagem "filho" para representar as emoções do campo.
4 O espectro sonho <-> não-sonho é discutido em Cassorla, 2013a e 2016b.
5 Os prefixos dia (em diabolo) e sim (em símbolo) significam, respectivamente, separação e junção.
6 Esta parte do artigo é desenvolvida em Cassorla, 2016b.
7 Os sonhos-a-dois, quando não percebidos, constituem a matéria prima dos chamados enactments crônicos (Cassorla, 2016b).