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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.94 São Paulo jan./jun. 2018

 

NOTAS INTERNACIONAIS

 

Entrevista1 com Mark Solms2

 

 

Jornal de Psicanálise (JP) – Para começar, gostaríamos de agradecer-lhe que esteja aqui. Alguns de nós fazemos parte da equipe editorial do JP, e alguns são convidados que já estiveram com o senhor mais cedo.

A ideia desta entrevista decorre de que, no JP, cada equipe editorial trabalha por dois anos, publicando quatro números temáticos nesse período. A atual equipe publicou, até o momento, dois números – um sobre "escrita psicanalítica" e outro sobre "sonhos", e o terceiro e próximo número será sobre "pesquisa psicanalítica". Por isso, quando soubemos de sua vinda a São Paulo, imaginamos que o senhor seria o entrevistado perfeito, já que é editor do Journal of Neuropsychoanalysis, tem um trabalho consistente sobre sonhos e neuropsicanálise e é presidente do Comitê de Pesquisa da IPA .

Estamos, portanto, especialmente interessados em ouvi-lo falar sobre pesquisa em psicanálise. Gostaríamos que o senhor nos desse uma visão geral do trabalho que tem desenvolvido no Comitê de Pesquisa da IPA.

MS – Certo. É importante começar mencionando que quando eu assumi a direção de Pesquisa, havia uma crise. O Peter Fonagy havia sido chair por um longo tempo, não sei bem quanto, talvez cerca de 20 anos, e ele havia acabado de renunciar ao cargo. E isso ocorreu em circunstâncias bastante complicadas – havia uma diferença entre o Board da IPA e o Comitê de Pesquisa, de maneira que havia um risco de que, por um lado, todo o Comitê renunciasse e também havia um risco igualmente grande de que, por outro lado, a IPA deixasse de subsidiar o Comitê de Pesquisa. Lembrando que 20% do orçamento da IPA são destinados ao Comitê de Pesquisa.

JP – O senhor poderia nos falar um pouco mais sobre as razões para essa crise?

MS – Claro. Havia vários aspectos envolvidos e, como sempre, toda história tem dois lados. Essencialmente, do ponto de vista do Peter [Fonagy], o Board era hostil à pesquisa e havia muita pressão política e ressentimento pelo fato de que tanto dinheiro estava sendo destinado para subsidiá-la. As pessoas, talvez especialmente os franceses, mas não somente eles, sentiam que aquilo não era psicanálise e não queriam manter o apoio. Ele também sentia que estavam tentando determinar que tipo de pesquisa deveria ser feita e, se fosse este o caso, pensava que não haveria necessidade de um Comitê de Pesquisa, já que não se estaria baseando em qualquer raciocínio científico, mas em determinação política.

Do ponto de vista do Board, eles sentiam que o Peter [Fonagy] havia criado uma espécie de feudo e que estava distribuindo dinheiro para os seus amigos, e que não havia informes e relatórios que dessem ao Board satisfações sobre o que estava sendo feito. Por exemplo, eles não recebiam relatórios sobre quanto dinheiro estava saindo, quando as pesquisas estavam sendo feitas, nada retornava a eles. Portanto, eles diziam que não estavam se recusando a subsidiar pesquisa, mas não queriam fazê-lo daquela maneira.

Agora, é importante dizer que justamente como o Comitê estava em risco quando eu o assumi, eu imaginei que minha tarefa, por um lado, era manter intacto o Comitê de Pesquisa do Peter, até porque não temos tantos pesquisadores na IPA; por outro lado, precisava reassegurar ao Board que suas preocupações eram legítimas. Portanto, tarefas muito difíceis.

O que eu fiz foi, antes de tudo, entrar em contato com o Peter [Fonagy], para ter certeza de que ele compreendia que eu não fazia parte de nenhum complô contra ele e, acima de tudo, para ter certeza de que ele havia mesmo renunciado e não estava fazendo aquilo para conseguir o que queria. E ele me garantiu que sim, e disse que tudo havia se tornado tão pessoal, que a sua presença ameaçava o futuro da pesquisa na IPA. Então, eu entrei em contato com as pessoas dos comitês anteriores e as convidei a ficar, explicando que eu pensava que havia um perigo de que toda a questão da pesquisa pudesse colapsar na IPA.

Simultaneamente, por outro lado, eu instituí reformas, sendo as principais delas a instituição de relatórios adequados, o esforço para garantir que o nosso dinheiro fosse para pesquisas psicanalíticas por natureza, mais do que para pesquisas psicológicas gerais, e, por último, instituí várias medidas para tentar democratizar um pouco mais. Em resposta à preocupação [do Board] sobre a existência de um suposto feudo, nós distribuímos as atividades do Comitê de Pesquisa entre as três regiões, de várias maneiras.

Eu sou o atual chair de Pesquisa, desde o Congresso de Praga, não tenho certeza por quanto tempo, creio que por cinco anos, porque eu assumi no início daquele ano. A crise foi superada, então nós pudemos mudar a marcha, minhas políticas não estão mais voltadas para a manutenção do Comitê e para garantir que o Board não nos abandone; isso é passado, e agora temos a perspectiva de oportunidades mais criativas.

No momento, minha principal proposta, ainda que ela seja um trabalho em desenvolvimento sobre o qual vamos conversar em Los Angeles, quando eu estiver lá para o Research Committee Meeting e para o Congresso Anual de Pesquisa da IPA, é, juntamente com a Associação Americana de Psicanálise (apa), destinar uma grande parte de nossa verba para um grande projeto de pesquisa – mais do que distribuir muitas pequenas verbas. E esse esforço conjunto é possível porque eu assumi uma posição equivalente na APA, eu sou hoje o diretor de seu Departamento Científico, e os recursos são equivalentes aos da IPA, o que, então, dobra a verba disponível.

O projeto que estamos focando – mas lembrem-se de que ainda não se trata de algo finalizado, estamos discutindo bastante – tem a ver com duas coisas: primeiro, com a questão de resultados em psicanálise, a eficácia terapêutica da psicanálise; e, em segundo lugar, com a questão da frequência das sessões. Nossas razões para estudar isso são, primeiramente, ser este o tipo de pesquisa que interessa aos membros; em outras palavras, para os clínicos que trabalham em consultórios particulares, a questão de se provar se a psicanálise funciona ou não importa, o que também reduz a distância entre os membros em geral e os pesquisadores. Em segundo lugar, nós finalmente temos hoje, depois de muitos anos, evidência robusta sobre a eficácia da psicoterapia psicanalítica, mas não sobre a eficácia da psicanálise. E, em terceiro e último lugar, isso nos possibilita falar sobre um assunto que se tornou politicamente "quente" na psicanálise internacional, que é a questão do número de sessões, a partir de um olhar científico, e não ideológico.

Enfim, esta é a resposta para a pergunta feita.

JP – O senhor pensa que isso deverá ajudar na discussão, ou justificar a alta frequência das sessões?

MS – Nós queremos medir os efeitos do número de sessões, em que medida os resultados são impactados se você fizer uma ou duas ou três ou quatro ou cinco sessões semanais – essa é uma das questões. Outra seria checar a mesma coisa em relação a diferentes psicopatologias, porque não acreditamos que a mesma frequência de sessões tenha os mesmos efeitos em diferentes tipos de transtornos. Uma terceira questão seria olhar não apenas para os resultados, mas também para quais processos ocorrem quando se faz uma ou duas sessões ou quando se fazem quatro ou cinco; queremos checar se se trata de processos diferentes.

Mas, isto tudo posto, eu tenho que enfatizar que não queremos justificar que a alta frequência é melhor, mas fazer uma pergunta empírica, e nós pensamos que a resposta a essa pergunta trará um conhecimento importante que deveríamos querer acessar.

JP – Como se medem os resultados em psicanálise?

MS – Antes de mais nada, eu devo dizer que o padrão ouro para medidas de resultados foi determinado pela Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) e pela Psiquiatria Biológica, e que isso é culpa nossa, pois ocorreu porque, quando eles começaram a medir os resultados dos tratamentos psiquiátricos e psicológicos, nós nos recusamos a participar. Sua maneira de medir resultados é puramente em termos de alívio de sintomas. E, se nós dissermos que não queremos medi-los dessa maneira, então ninguém vai querer olhar para os nossos resultados. Então, o que fazemos é medir esses resultados de acordo com a maneira deles e também com a nossa maneira, em termos de mudança estrutural, que pensamos ser mais importante do que alívio de sintomas. Com isso, nós esperamos poder, aos poucos, convencer nossos colegas não psicanalistas, o público em geral e as companhias de seguro-saúde (convênios) que mudança estrutural é uma medida importante.

A título de ilustração, o estudo que vem sendo desenvolvido por Marianne Leuzinger-Boehleber, na Alemanha, propõe comparar TCC e psicanálise no tratamento de depressão; é um estudo prospectivo longo (15 anos), que, por enquanto, avaliou os três primeiros anos. Após três anos de tratamento com psicanálise versus TCC, encontra-se a mesma taxa de alívio de sintomas, mas em termos de mudança estrutural, da estrutura da personalidade, há uma enorme dife- rença entre TCC e psicanálise, e o que esperamos poder demonstrar é que esta diferença prediz o que ocorrerá nos anos seguintes. Este é apenas um exemplo. E, quando eu digo isso, quero dizer que precisamos realizar essas outras medidas antes que as pessoas sequer se interessem por mudança estrutural.

JP – E quanto à mudança estrutural, como ela pode ser medida?

MS – Há duas maneiras principais de se medir mudança estrutural: uma foi desenvolvida por Shedler and Westen, nos Estados Unidos, e a outra é o Teste Psicológico Objetivo (opt) desenvolvido na Alemanha. Trata-se de dois métodos diferentes, que se baseiam nas estruturas de defesa e nas relações objetais, entre outros, e fazem uma avaliação psicodinâmica complexa. Consideram toda uma série de questões psicodinâmicas – qual tipo de objetos internos o paciente tem, a qualidade da representação de self, o nível de defesas... quão paranoica é a representação de objeto, tudo isso. Ninguém fora da psicanálise imagina que isso exista, isso não interessa a eles. Mas, se nós pudermos demonstrar – por exemplo, quanto ao nível das defesas – que o fato de serem defesas mais maduras ou primitivas prediz se o alívio terapêutico dos sintomas será mantido por mais tempo ou não, esse seria um jeito muito importante de demonstrar que essas coisas são reais.

Eu preciso dizer algo, caso não esteja subentendido: a pesquisa é muito importante para o futuro da psicanálise, considerando os subsídios para cuidados de saúde, especialmente em lugares como a Europa, onde os governos ainda pagam por psicanálise e há forte pressão contra isso. A indústria farmacêutica tem enorme poder e propaganda a seu favor, e os terapeutas cognitivo-comportamentais têm grande vantagem sobre nós, uma vez que estão cerca de vinte anos a nossa frente, no que diz respeito à pesquisa.

A expressão "medicina baseada em evidências" está associada hoje à TCC, de maneira que temos de mostrar que a nossa modalidade de terapia se baseia igualmente em evidências, ou vamos perder todo o subsídio da parte dos governos e dos convênios, e isso terá efeitos concretos na viabilidade futura da psicanálise; os jovens não farão formação se não receberem pacientes e se estes não tiverem seus tratamentos pagos, e a população em geral também perderá sua confiança na psicanálise, devido à toda essa propaganda do outro lado. Temos que lutar contra isso com evidências, com ciência, e não com crenças.

JP – A pesquisa em psicanálise e a produção de evidências científicas também são importantes para a permanência e para a relevância da psicaná lise na universidade, uma vez que nas escolas médicas a psicanálise está de saparecendo, se é que já não desapareceu, e nas escolas de Psicologia há uma enorme pressão no sentido da produção de artigos científicos que apresentem evidências. Assim, esse tipo de pesquisa é importante para a manutenção da psicanálise na universidade.

Na última vez em que esteve em São Paulo, em 2004, o senhor disse que a psicanálise parecia estar "estagnada", sem embasamento científico, e que a neuropsicanálise poderia trazer novos desenvolvimentos para a psicanálise. Catorze anos depois, o que o senhor pensa sobre a relação entre psicanálise e neuropsicanálise?

MS – Para começar, deixe-me dizer, então, que tudo o que eu disse até agora, nessa conversa sobre pesquisa de resultados, refere-se ao fato de que, na psicanálise, nos prejudicamos ao não participar do enorme desenvolvimento científico associado à "medicina baseada em evidência", fato que nos deixou muito para trás. E tudo o mais que eu disse sobre as consequências disso para a psicanálise faz com que agora estejamos tentando correr atrás do prejuízo. O mesmo se aplica quando eu falo sobre a neuropsicanálise, que não traz pesquisa de resultados, mas sobre o funcionamento da mente. Todos esses métodos que tomaram conta dos campos gerais da Psiquiatria e da Psicologia, os métodos neurocientíficos, fizeram avançar esses mesmos campos enormemente, enquanto mais uma vez há um risco de que a psicanálise seja descartada por não querermos usar esses métodos.

Então, minha abordagem há catorze anos – na verdade eu comecei há cerca de 30 anos, em 1985 – foi no sentido de tentar trazer esses métodos para a psicanálise para adicionar àquilo que já vem sendo feito, da mesma forma que, quando falei sobre pesquisa de resultados, a ideia não é que agora vamos passar a usar apenas as medidas da TCC, mas usar as medidas deles e desenvolver nossas próprias medidas, e eu penso que estou tentando, aqui, somar algo à psicanálise, e não tirar algo dela.

JP – É possível dizer o que foi somado à psicanálise nesses últimos anos?

MS – Até aproximadamente 2013, a maior parte do progresso que fizemos foi no campo das ciências básicas, e não em psicanálise clínica. As principais conquistas foram: 1) forte sustentação para a teoria psicanalítica dos sonhos, que havia sido completamente abandonada nas neurociências e voltou a ser levada a sério, de maneira que as ideias básicas da psicanálise sobre o sonhar são consideradas dominantes nas neurociências hoje em dia; 2) em relação aos transtornos neuropsicológicos, previamente compreendidos somente em termos de déficits cognitivos – particularmente a confabulação e a anosognosia –, nós demonstramos a importância das emoções e das defesas, de maneira que agora são, de novo, ideias dominantes, ou seja, que mecanismos motivacionais, emocionais e de defesa têm um papel, mesmo nesses transtornos neuropsicológicos e neuropsiquiátricos. Essas eram coisas que anteriormente nenhum neurocientista considerava, e hoje se tornaram realmente bem aceitas em Neurologia Comportamental, Neurologia Cognitiva, Neuropsicologia, Neuropsiquiatria. Esses fatores psicodinâmicos são parte importante na demonstração de como esses transtornos funcionam e, portanto, de como a mente funciona.

JP – Isso quer dizer que a pesquisa em ciências básicas trouxe evidências e assim deu sustentação a certas teorias psicanalíticas.

MS – E, justamente lembrando que não estou falando das contribuições das ciências básicas para a psicanálise clínica, mas da psicanálise para as neurociências – sonhos, a importância das emoções, das motivações, da dinâmica, das defesas em transtornos neuropsiquiátricos; e 3) nós fizemos contribuições – de maneira por ora menos consistente do que nos itens anteriores – para a compreensão de algumas condições psiquiátricas básicas, como, por exemplo, a importância da separação e da perda na depressão. Estamos demonstrando que, mesmo na depressão, que era vista tão mecanicamente por aquelas pessoas, não se pode separá-la de eventos de vida, de significado, de relações de objeto, e assim por diante.

E, por exemplo, também na psicose, a importância dos elementos motivacionais daquilo que o paciente está tentando alcançar por meio de um sintoma psicótico, ainda que não tenha se tornado uma ideia dominante, está se tornando, pois não se pode tratar esses transtornos como se fossem desequilíbrios bioquímicos, sem levar em conta, também, a questão psicodinâmica, considerando que estamos demonstrando o que é a psicodinâmica em termos de química e anatomia.

Então, essas são as maneiras pelas quais a psicanálise tem contribuído para as neurociências, através da neuropsicanálise, nas últimas décadas, e isso aumentou enormemente o status da psicanálise nas neurociências. Mas, agora, eu gostaria de dizer algo a respeito do caminho de volta, porque os psicanalistas sempre disseram "mas nós ainda fazemos a mesma coisa, não importa o quanto vocês estão aprendendo no laboratório, isso não muda o que nós fazemos como psicanalistas nos nossos consultórios", e então eu gostaria de falar sobre isso.

Nos últimos cinco anos, nós fizemos grande progresso com isso. As duas coisas principais são: primeiro, compreendemos, com base nas neurociências afetivas, coisas novas fundalmentalmente importantes sobre a classificação dos drives e dos instintos, muito diferentes da velha teoria, que têm grandes implicações no que fazemos – tivemos uma breve ilustração disso hoje, no seminário clínico.3 E a segunda grande contribuição que tem implicações no que fazemos é uma nova compreensão do que é o inconsciente e do que é o reprimido em relação ao que aprendemos na neurociência cognitiva; é realmente uma mudança fundamental na conceituação do inconsciente e da repressão.

No momento, eu estou viajando como um marinheiro de porto em porto, para diferentes países (quinze até o momento), fazendo workshops que duram todo um final de semana com psicanalistas clínicos, para transmitir a eles quais são as implicações dessas duas coisas para a nossa técnica. Fui gratamente surpreendido por terem sido majoritariamente bem recebidas.

JP – Nós também gostaríamos de conhecer o seu ponto de vista e o do Comitê de Pesquisa da IPA sobre os Working Parties, que parecem representar outra possibilidade de pesquisa em psicanálise, que cresceu em diferentes países e sociedades psicanalíticas ligadas à IPA , e que parecem estar mais próximos e diretamente associados à prática clínica em psicanálise, ou seja, a como o ana lista trabalha.

MS – Sim, eu concordo, os Working Parties, que são atualmente desenvolvidos por Marina Altmann e seus colegas, estão mais próximos de como nossos membros, de como os psicanalistas pensam e trabalham, do que a pesquisa empírica fora da clínica, até mesmo ao ponto de clínicos quererem participar desses grupos; acho que é um passo adiante muito importante. E, por essa razão, eu fico muito contente de poder dizer a vocês que agora o trabalho da Marina Altmann foi trazido para o Comitê de Pesquisa e faz parte do nosso orçamento.

Eu não acredito que haja apenas uma maneira de se fazer pesquisa, eu acho que qualquer coisa que possamos fazer para aumentar o pensar empírico e o pensar sistemático entre os psicanalistas é boa, e por isso é algo que eu apoio.

Mas, por favor, lembrem-se de que tudo isso deve ser somado à psicanálise clássica, e não nos impede de fazer tudo o que sempre costumamos fazer. Eu acho que muitos colegas sentem se tratar de um golpe imperialista reducionista contra a psicanálise, e nada poderia estar mais longe da verdade; nós queremos somar, enriquecer a psicanálise. É claro que cada psicanalista clínico ainda faz o que faz, baseado no seu conhecimento clínico e experiência, e nós ainda fazemos comunicações uns aos outros sobre casos nos nossos encontros e sociedades, mantemos os nossos seminários clínicos e supervisões individuais, e assim por diante, tudo isso se mantém. Estou falando de coisas a serem somadas a tudo isso. Devemos nos lembrar de que as defesas esquizoparanoides são estruturas narcísicas!

JP – Nós tivemos recentemente duas conferências regionais do Sub- Comitê de Pesquisa Clínica da IPA , uma aqui em São Paulo, em que tivemos cinco Working Parties trabalhando sobre o mesmo material clínico, e depois tivemos outra conferência no Uruguai. Anteriormente, uma primeira conferên cia ocorreu em Los Angeles, em 2013, e lá três Working Parties trabalharam com metáforas: o mesmo material clínico e como cada metodologia abordava as metáforas. Foi muito interessante.

MS – A Marina Altmann é agora chair do Sub-Comitê de Pesquisa Clínica, ela sucedeu ao David Taylor.

JP – Em relação à pesquisa clínica, normalmente ela implica a necessida de de consentimento informado por parte do paciente e uma apreciação ética por parte de um comitê de ética em pesquisa, e, no Brasil, bem como em outros países, os Institutos de Psicanálise e as Sociedades não têm esses comitês, o que significa que esse tipo de pesquisa tem que ser realizado na universidade ou em associação com uma universidade. O senhor e o Comitê de Pesquisa da IPA veem isso como uma preocupação, um problema?

MS – Em primeiro lugar, devo dizer que a questão da obtenção de consentimento informado junto aos pacientes varia. Há um debate sobre isso, não existe um único ponto de vista segundo o qual, independentemente da maneira como você utiliza o material do paciente em pesquisa, você tem que ter o seu consentimento. Há uma visão alternativa de que impor algo ao paciente é antiético, de que se estaria mudando a natureza da relação entre analista e paciente e trazendo prejuízos ao tratamento ao fazer isso, mais prejuízos do que se se utilizassem dados "disfarçados" que nunca poderiam vir a ser identificados. Então, não se trata de uma simples questão de ser eticamente correto fazer isso. Eu não estou dizendo que a visão de que se deve obter o consentimento do paciente seja errada, estou dizendo que há um debate sobre isso e que a resposta a essa pergunta varia, dependendo também de que tipo de pesquisa se está realizando, de quais informações se estão utilizando e como.

Então, lembrando que há considerações de caráter ético que se aplicam de uma maneira única aos tratamentos psicanalíticos, em que a qualidade da transferência, por exemplo, é central para a técnica, é muito inconveniente ter de submeter nossas propostas de pesquisa à aprovação ética por comitês que não entendem nada de psicanálise. E eu acredito que esse é outro exemplo daquilo que eu estava dizendo antes, quando mencionei que, por não termos participado do desenvolvimento de pesquisas de resultados, agora todas as medidas são cognitivo-comportamentais; da mesma maneira, porque não temos comitês de ética em pesquisa, porque não pensamos que pesquisa é parte do que as nossas Sociedades fazem, por causa disso temos de submeter nossos protocolos a comitês de ética em pesquisa que não são necessariamente apropriados para considerar a ética psicanalítica.

Se você faz pesquisa na universidade, ela tem que passar pelo comitê de ética em pesquisa da universidade. Mas pesquisadores independentes – e nós esperamos que haja mais analistas pesquisando fora das universidades, além daqueles que estão nas universidades; não em vez de, mas além de –, se nós pudéssemos ter mais dessa cultura de pesquisa nas instituições psicanalíticas, isso seria bom e, portanto, seria bom se as Sociedades incluíssem em suas estruturas comitês de ética em pesquisa. Na verdade, algumas Sociedades nos Estados Unidos começaram a fazer isso, e, quando nós subsidiamos pesquisas de membros da IPA e da APA, eles podem ir a essas Sociedades e podem submeter seus protocolos de pesquisa lá. São poucos, ainda, mas esses comitês têm sido muito valiosos para alguns colegas.

A última coisa que eu gostaria de dizer a esse respeito é que, à medida que essa tradição de pesquisa se tornar mais parte da cultura popular, as pessoas vão entender mais que isso é feito o tempo todo, e assim o fato de fornecerem seu consentimento passará a ter menos impacto nos nossos pacientes, passará a ser mais natural, menos intrusivo.

JP – A experiência dessas Sociedades que têm comitês de ética em pes quisa é que atualmente os consentimentos interferem na relação entre paciente e analista?

MS – Como eu disse no começo, faz muita diferença o tipo de coisa sobre a qual estamos falando aqui. Por um lado, imagine que no final de um tratamento que não teve sucesso, de uma análise interrompida depois de, digamos, sete anos, você quer escrever sobre o caso e então entra em contato com o paciente e diz "eu estou escrevendo sobre o seu caso, tudo bem pra você?", e o paciente, então, poderá ler todo o relato sobre si depois do término da análise, quando ele não terá mais você para conversar, e assim por diante. Eu acredito que esse seria um problema ético bem maior e bem menos necessário, se você está escrevendo um relato para um periódico "disfarçando" certas informações, ou se vai dar uma aula em outro país cuja língua o paciente não poderia entender ou mesmo saber que aquilo está sendo apresentado. Nesse caso, a questão é se não seria muito pesado para o paciente, um peso desnecessário, solicitar o seu consentimento versus o outro extremo, se você diz a ele "estou participando de um projeto grande em que tudo o que eu tenho a fazer é medir os sintomas dos pacientes antes e depois do tratamento, caso eles tenham fobia; como você sofre de fobia, eu vou medir os seus sintomas antes e depois, tudo bem?". O nome do paciente nunca vai aparecer, sua dinâmica pessoal, sua história não vai ser contada, ele será apenas um número num grande estudo internacional. Neste caso, eu realmente acho que há um mínimo impacto quando comparado com aquele outro. Então eu acho que não há uma resposta, depende.

Eu acredito que o que é importante é que comitês de ética em pesquisa psicanaliticamente qualificadas ao menos saibam quais são as questões; se você não tem psicanalistas pensando sobre essas coisas, não há pensamento... Essa é a maneira como se deve fazer, do contrário, é algo como "antiético e ponto final" – e isso não é verdade.

JP – Agradecemos seu tempo e a colaboração com o Jornal de Psicanálise.

MS – Sou eu quem agradece.

 

 

1 Entrevista em 26/04/2018 gentilmente cedida ao Jornal de Psicanálise, em atividade aberta aos membros da SBPSP e do Instituto Durval Marcondes. Participantes: Ana Clara Duarte Gavião, Celso Antônio Vieira de Camargo, Paula Ramalho da Silva, Liana Pinto Chaves, Marcus Souto Abrantes, Rogério Lerner, Victoria Regina Bejar e Eliana Riberti Nazareth.
2 Mark Solms é psicanalista, membro e atual diretor de formação psicanalítica da South African Psychoanalytical Association, co-chair da International Neuropsychoanalysis Society (ins), cofundador do periódico Neuropsychoanalysis, da ins, chair do Comitê de Pesquisa da International Psychoanalytical Association (IPA), diretor do Departamento Científico da American Psychological Association (apa), chefe da cadeira de Neuropsicologia da Univesidade de Cape Town e diretor do Centro de Neuropsicanálise Arnold Pfeffer do New York Psychoanalytic Institute.
3 Atividade realizada na SBPSP em 26/04/2018, com base em material clínico apresentado por Rogério Lerner. No seminário clínico, Mark Solms apresentou brevemente e utilizou a "teoria dos sete instintos" (seeking, rage, fear, lust, care, panic/grief e play), que seria um desenvolvimento da teoria dos instintos de Freud.

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