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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.51 no.94 São Paulo jan./jun. 2018

 

DIÁLOGO COM UM JOVEM COLEGA

 

Formação psicanalítica em um mundo em transformação1

 

Psychoanalytic training in a world in transformation

 

Formación psicoanalítica en un mundo en transformación

 

Formation psychanalytique dans un monde en transformation

 

 

Carmen C. MionI; Ana Maria Stucchi VannucchiII

IMembro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Coordenadora do GEF. São Paulo. carmenmion@uol.com.br
IIMembro efetivo e analista didata da da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Coordenadora do GEF. São Paulo. anavannucchi@gmail.com

 

 


RESUMO

Em um mundo em transformação é indispensável que a formação psicanalítica seja um objeto de estudo constante e de atenção renovada às invariantes que lhe conferem identidade própria. Os Institutos têm a árdua função de se constituírem como centro de transmissão de um campo de conhecimento vivo, em constante evolução, fomentando discussões e estimulando o desejo de pertinência, para que se formem psicanalistas engajados e comprometidos com o método psicanalítico em suas práticas clínicas. Para tanto, consideramos como suas ferramentas fundamentais: a "fé" no processo psicanalítico, o com-prometimento com o desenvolvimento da escuta analítica e com o próprio processo de transmissão da psicanálise, pondo ênfase na análise do analista e sua imersão no processo de vir a ser psicanalista. Este texto foi escrito com base nas reflexões feitas no grupo que se reúne mensalmente para estudar Formação Psicanalítica, o GEF-SBPSP.

Palavras-chave: análise do analista, experiência emocional, formação psicanalítica, convicção na psicanálise, mente multidimensional


ABSTRACT

In a world in transformation it is indispensable that the psychoanalytic training be an object of constant study and renewed attention to the invariants that give it its own identity. Institutes have the arduous function of establishing themselves as a center of transmission of a constantly evolving field of living knowledge, fomenting discussions and stimulating the desire for pertinence, so that psychoanalysts are engaged and committed to the psychoanalytic method in their clinical practices. In order to do so, we consider as its fundamental tools: "faith" in the psychoanalytic process, commitment to the development of analytical listening and the transmission process of psychoanalysis itself, with emphasis on the analysis of the analyst and his immersion in the process of becoming psychoanalyst. This text was written from the reflections made in the group that meets monthly to study Psychoanalytic Training: GEF-SBPSP.

Keywords: analysis of the analyst, emotional experience, psychoanalytical training, conviction in psychoanalysis, multidimensional mind


RESUMEN

En un mundo en transformación es indispensable que la formación psicoanalítica sea elemento de estudio permanente, cuya atención se renueve a las invariantes que le otorgan identidad propia.Los Institutos tienen la trabajosa tarea de que se establezcan como centro de transmisión de un campo que posee conocimiento vivo, el cual se halla en constante evolución, a través del cual fomenta debates y estimula el deseo de pertenencia, logrando que se reciban psicoanalistas comprometidos con el método psicoanalítico al ejercer sus prácticas clínicas. Para ello, consideramos fundamentales: la "fe" en el proceso psicoanalítico; el compromiso con el desarrollo de la escucha analítica, como con el propio proceso de transmisión del psicoanálisis; que se destaque el análisis del analista y, asimismo, su inmersión en el proceso para llegar a ser psicoanalista. Este texto ha sido escrito basado en reflexiones llevadas a cabo mensualmente por el grupo de estudios que analiza la Formación Psicoanalítica: GEF-SBPSP.

Palabras clave: análisis del analista, experiencia emocional, formación psicoanalítica, convicción en el psicoanálisis, mente multidimensional


RÉSUMÉ

Dans notre monde en transformation, la formation psychanalytique doit être constamment objet d'études et d'attention aux invariants qui lui donnent sa propre identité. Les Instituts ont la difficile mission de s'ériger comme centre de transmission d'un champ de connaissances en évolution permanente stimulant les débats et le désir de pleine intégration à ses propos. Le but est de former des psychanalystes engagés et endossant la méthode psychanalytique dans leur activité clinique. L'essentiel pour y parvenir c'est la "foi" dans le processus psychanalytique, la responsabilité envers le développement de l'écoute analytique et la transmission de la psychanalyse, en mettant l'accent sur l'analyse de l'analyste et sa progression dans le processus de devenir psychanalyste. Ce texte est le fruit des réflexions qui ont lieu chaque mois dans le groupe d'études sur la Formation Psychanalytique: GEF de la SBPSP.

Mots-clés: analyse de l'analyste, expérience émotionnel, formation psychanalytique, conviction dans la psychanalyse, esprit multimensionnel


 

 

Essas reflexões são fruto do trabalho conjunto de um grupo de analistas que se reúne mensalmente desde fevereiro de 2014, para pensar e trocar ideias de forma reflexiva sobre a formação psicanalítica nos Institutos.

O tema do pré-congresso do XXVI Congresso Brasileiro de Psicanálise (Fortaleza, 2017) contém uma proposta de reflexão sobre os modelos de que dispomos para formação de psicanalistas. Da mesma forma que em diferentes setores temos assistido a crescentes questionamentos quanto aos destinos da prática psicanalítica na contemporaneidade, nos Institutos e nos cursos de formação em psicoterapia psicanalítica têm sido levantadas questões sobre como formar analistas numa cultura de superficialidades em que se privilegiam métodos de evasão e descarga, na falência da simbolização e no predomínio dos aspectos narcísicos da personalidade? Como zelar pela função psicanalítica e reafirmar mais do que nunca a importância da análise pessoal como desenvolvimento do instrumento de trabalho dos analistas?

Como Freud (1895/1972) logo percebeu, ao afirmar que o seu método de aproximação ao psiquismo humano dependia por completo da natureza do objeto psicanalítico e não das suas preferências pessoais, acreditamos que no campo de conhecimento da psicanálise seu instrumento de investigação e seu objeto de estudo se confundem. Ou seja, sendo o próprio psicanalista objeto de sua investigação, é o seu próprio interior que também se oferece, de tal forma que cada experiência psicanalítica implica o envolvimento de duas subjetividades. Cabe ao psicanalista, no entanto, a responsabilidade pela manutenção do vértice psicanalítico, sustentado pela função psicanalítica de sua personalidade.

A referência clínica será sempre um dos pressupostos epistemológicos do campo de conhecimento desenvolvido por Freud: as referências de base para a elaboração do seu discurso metapsicológico, a sustentação que permitiu a Freud contestar cientificamente os imperativos teóricos do neopositivismo e da lógica do seu tempo, foram as suas experiências clínicas com as neuroses de transferência. Isso significa que a psicanálise jamais ficará restrita à sua metapsicologia, já que a teoria, exclusivamente, não define sua prática. Ou seja, feliz ou infelizmente a psicanálise não está contida nas teorias psicanalíticas, pois não é necessário um psicanalista para transmissão e aplicação das teorias psicanalíticas, porém é necessário um psicanalista para transmissão da prática clínica psicanalítica, possível apenas por meio da experiência pessoal psicanalítica.

Não por acaso, Bion (1963) afirma que os elementos de psicanálise são funções da personalidade e que os objetos derivados deles, as associações e as interpretações, contêm extensões nos campos dos sentidos, dos mitos e das paixões.

A "impossível" função a que se propõem os Institutos de psicanálise é exatamente a de propor e favorecer um vir a ser psicanalista, que envolva não só o conhecimento da teoria e do método psicanalíticos, mas um projeto de autonomia pessoal que envolve criatividade, intuição psicanalítica, uma transformação pessoal que transcende teoria e técnica e se constitui como uma peculiaridade única no âmbito do saber e fazer humano. Para tanto, dispomos dos assim chamados pilares do tripé que caracteriza a formação psicanalítica, seja qual for o modelo utilizado: a análise do analista, a supervisão em queonde é possível a articulação clínico-teórica e realização dos conceitos, e os seminários teóricos e clínicos.

Especificamente na SBPSP, utilizamos o modelo Eitingon, que orienta a formação de novos analistas desde o início do nosso Instituto. Esse modelo se caracteriza pelo peso central da análise do analista na formação, que deverá ocorrer simultaneamente às supervisões e seminários teóricos e clínicos, de tal modo que se favoreça uma imersão do candidato no processo de vir a ser psicanalista, processo esse que não se limita à formação "oficial", mas que se estende por toda a vida do psicanalista.

Acreditamos que esse modelo enseje uma ampliação psíquica capaz de facultar ao candidato a possibilidade de lidar com fenômenos psíquicos de uma mente multidimensional, isto é, de desenvolver a função psicanalítica da sua personalidade. Como Odilon de Mello Franco Filho (2008) afirmava, a formação analítica não forma um analista, mas oferece condições para que determinadas funções da sua personalidade, que compõem a função psicanalítica, possam se expressar e desenvolver no contato emocional com o outro, no campo analítico. Aprender com a experiência emocional refere-se a afetar-se por experiências vivas contrapondo-se a intelectualizações e explicações sobre o vivido. Repetimos isso frequentemente, mas muitas vezes pode passar despercebido o fato de que aprender com a experiência emocional (Bion, 1962/1997) implica intimidade com as nossas emoções e a possibilidade de compartilhar essa vivência com o outro. No caso da psicanálise, isso ocorre em um espaço privilegiado – a sala de análise – em que se dá o encontro da dupla analítica e no qual as experiências podem ser vividas e comunicadas, porque existe o setting, um lugar para o sonho, a intimidade e a continência, favorecendo o aprender com a experiência e, para o analista, a "realização" dos conceitos.

Acreditamos também que participar de funções institucionais, o chamado quarto pé da formação analítica, pode introduzir o jovem analista na Polis Grupal, respirando o clima institucional, outro elemento importante no "berçário" de novos psicanalistas. Rickman (1951), por exemplo, sugere como uma atmosfera amistosa pode favorecer a intimidade da comunicação oral, muito necessária para podermos aprender com a experiência emocional. Nesse texto, ele menciona que a comunicação oral compartilhada é muito mais pregnante e importante para o desenvolvimento da identidade psicanalítica, do que os trabalhos escritos, em que o diálogo entre leitor e escritor é mais limitado do ponto de vista emocional.

Mergulhar na experiência de formação inserido numa instituição que o antecede e é ao mesmo tempo doadora de identidade (Kaës1989/1991), submeter-se à análise com um analista experiente e comprometido com a tarefa de resgatar o ser e a individualidade do analista em formação, ciente das armadilhas dessa situação de iniciante, vivenciar com ele de forma ética e criativa as hordas primitivas internas e externas, tudo isso desperta angústias persecutórias e demanda muito do analista em formação. No entanto, por incrível que pareça, esse é o caminho para uma psicanálise viva, espontânea e criativa, que nos serve para a vida e para a clínica, sem aprisionamentos em sistemas teóricos e/ou idealizações.

Ogden e Gabbard (2011) sugerem que nos tornamos realmente analistas depois da formação "formal", por meio das vivências de amadurecimento que nos permitem "sonhar" nossas experiências vividas, seja em companhia de um colega, supervisor ou analista, seja nos necessários momentos de solidão, encontrando ao fim do processo uma forma singular e pessoal de existirmos e sermos psicanalistas, que nos habilitará, através do desenvolvimento da capacidade de observação da experiência emocional desenvolvida e de uma intuição analiticamente treinada, a elaborar vários aspectos vividos na sessão simultaneamente e a ter acesso às várias dimensões mentais envolvidas no encontro analítico. Apenas dessa forma poderemos ter contato com a fé como elemento de psicanálise (Marinho & Marinho, 2015), experiência possível apenas quando a análise de fato traz benefícios e novas possibilidades de funcionamento mental para o analisando que, no caso, é o próprio analista.

A tentação de "rapidamente pertencer", a filiação precoce durante a formação, assim como na vida, leva a um engessamento de ideias, à perda da individualidade e espontaneidade, submissão a um notório saber e à autoridade. A necessidade de pertencer e o medo da desconstrução empobrecem a criatividade e a vitalidade do analista.

Em nossas experiências pudemos constatar a efetividade do modelo Eitingon para a nossa vida e nossa clínica, resultando em analistas comprometidos com a própria vida psíquica e a de seus pacientes. Como ressalta o colega F. H. L. Pinheiro (2017), "ser Membro Filiado ativo não é apenas participar das instâncias institucionais, mas é engajar-se na constante investigação de si mesmo, considerando o rigor de sua análise pessoal".

Por essa razão nos indagamos, não sem certa perplexidade: por que será que a análise do analista muitas vezes é tratada como os quixotescos moinhos de vento? Por que ela é muitas vezes desqualificada pelos próprios psicanalistas, se é a própria essência de nosso ofício, não se diferenciando em nada de uma boa análise pessoal, a não ser pelo aspecto ético que envolve uma dupla responsabilidade: com a instituição psicanalítica, que forma os candidatos2 e os formadores, e com o respeito aos futuros pacientes do analista em formação?

Pensamos que não só a dupla analítica necessita se responsabilizar pela análise do futuro analista, mas também a própria instituição psicanalítica, os institutos ligados à IPA, na forma da exigência de uma análise intensa e profunda, concomitante à formação, o que seguramente os diferencia de tantas outras instituições psicanalíticas. Precisamos estar atentos a argumentos não originados do corpo clínico-teórico psicanalítico que podem facilmente desconstruir um modelo de formação que vem demonstrando ser não o ideal, pois todos têm suas limitações, mas muito eficiente em promover o desenvolvimento da função psicanalítica de analistas em formação.

Embora vários autores afirmem a importância da análise do analista de uma forma ou de outra, ela vem sendo deixada em segundo plano, sob a alegação de permitir-se o acesso à formação por um número maior de pessoas, por razões financeiras, o que evidentemente pede outras soluções, que não esbarrem em "menos análise" do analista. Nesse sentido, é preciso não confundir flexibilização do setting analítico, algumas vezes útil e necessária, com desregulamentação da análise de formação.

Alguns colegas da AMF têm demonstrado interesse pelo tema. Martins e Leite (2017) apontam para a necessidade de atendermos o desejo de ser analista dos pretendentes. Concordamos e pensamos que este desejo só pode ser atendido com uma análise que permita a intimidade da dupla, a constituição da psicanálise enquanto objeto psicanalítico, em todas as dimensões que constituem a realidade psíquica, tais como a neurótica, a psicótica, a autista, a primitiva, a primordial, todas elas em movimento no funcionamento mental do ser humano. Esse contato profundo consigo mesmo vai possibilitar ao analista avaliar em que dimensão se encontra seu interlocutor, podendo assim trabalhar em sintonia com a situação que se apresenta: psicanálise, psicoterapia, terapia de grupo, grupo de apoio, saúde pública, ou mesmo situações institucionais em que ele queira ou decida trabalhar.

Temos, por exemplo, experiências em grupos de mulheres e de jovens, nos quais percebemos que a dimensão trabalhada depende da sensibilidade e capacidade de escuta do analista, e do respeito pela possibilidade de tocar numa dimensão plausível de ser alcançada pelo grupo. Isso é possível em função do conhecimento teórico, experiência clínica, porém, e sobretudo, do contato de cada um com seu próprio funcionamento mental: para fazer uso de sua capacidade negativa, suportar seus limites e sua ignorância, o analista precisa estar disponível genuinamente para o contato com sua própria mente, e o espaço privilegiado para isso seria sua própria, constante e interminável análise. Neste sentido, acreditamos ser desnecessária a formação em psicoterapia para um analista praticante que tenha passado por um processo de análise como o descrito acima.

Uma outra observação da AMF (Martins & Leite, 2017) diz respeito às dimensões psíquica e social da formação psicanalítica, entendendo por social as condições financeiras do pretendente a psicanalista e da sociedade em que vivemos. Acreditamos que se trata de algo a ser considerado, sem dúvida, mas não no sentido de o pretendente ter menos análise do que aquilo a que teria direito. Pensamos que é responsabilidade do Instituto possibilitar que o candidato tenha a experiência de atender pacientes com quatro sessões por semana, permitindo-lhe acesso a essa condição por meio de serviços de atendimento. Diversos Institutos criaram Serviços de Atendimento à população em geral, o chamado terceiro setor, que constituem uma fonte de pacientes para as supervisões dos candidatos. Em relação à análise didática, é possível desenvolver projetos que viabilizem análises didáticas aos candidatos que não podem arcar financeiramente com as quatro sessões semanais exigidas pelo Instituto, e podemos exemplificar isso com o chamado "projeto piloto" da SBPSP, aprovado recentemente pela comissão de ensino. Afinal, todos os autores psicanalistas que empregamos como referência teórica em nossos Institutos atualmente, incluindo os próprios didatas e docentes formados no modelo Eitingon, utilizaram-se do mesmo modelo de formação.

Em relação ao tema, Kravis (2013) chama atenção para um aspecto interessante a ser considerado. Ele sugere que ocupações que causam privações narcísicas, como a de psicanalista, devido a dificuldades no trabalho com pacientes, ou mesmo dificuldades no sentido financeiro, ou ainda uma imagem social negativa da psicanálise nos meios científicos ou na sociedade, podem gerar consequências compensatórias como, por exemplo, um ódio não percebido da própria psicanálise. Embora saibamos que os afetos de amor e ódio sejam constitutivos de qualquer vínculo, como ficariam eles na relação dos psicanalistas com a psicanálise? Seriam resistências à psicanálise, como as descritas por Kravis, um fator a ser também considerado para pensarmos a desqualificação que assola atualmente as análises didáticas ao redor do mundo?

Pensamos que essas questões, os diferentes fatores em jogo no movimento de desregulamentação da análise do analista, afetam os psicanalistas de forma geral. Acreditamos que os Institutos devem oferecer oportunidades para conversar sobre isso com seus candidatos, para que o tema se amplie chegando às salas e saia dos corredores. Favorecer a discussão sobre a discrepância entre a experiência de uma análise pessoal intensa e intensiva do candidato e sua experiência predominante de atender em seu consultório pacientes que só podem vir uma ou duas vezes por semana pode ser um caminho rico de reflexões e ressonâncias.

Um outro aspecto que gostaríamos de levantar diz respeito à convicção que o analista tem sobre seu fazer psicanalítico. Percebemos que essa convicção sofre alterações durante a vida do analista, especialmente em função de suas dificuldades pessoais e também profissionais. Como realimentar a convicção, a não ser por novas experiências de análise ou reanálises do analista, ou ainda pelos momentos privilegiados vividos pelo analista em sua clínica?

Selecionamos um fragmento clínico, em que surge, de nosso ponto de vista, um momento de renovação e revitalização da função psicanalítica do analista, na esperança de que ele possa ser útil para explicitar a dialética entre a perda de convicção e sua revitalização por parte do analista.

Ana (14 anos) chega para a sessão muito brava e de cara fechada. Liga seu celular em um aplicativo de músicas e fica escutando em silêncio, com fones de ouvido. A analista permanece quieta e aguarda. Ocorre-lhe a lembrança de uma fala frequente de Ana: "Eu odeio os humanos!!" Ana conta repetidas vezes suas brigas com amigas e familiares e algumas vezes dirige-se diretamente à analista: "Análise não serve para nada, eu detesto vir aqui... Só venho porque meus pais obrigam!" "Estaríamos novamente num momento de tsunami mental?", pergunta-se a analista.

Passados uns 10 minutos, a analista diz: "Você está querendo ficar no seu mundo... E eu fico aqui no meu mundo. Você sozinha, e eu também..." Ana não respondeu nada, nem olhou para a analista... A analista continuou aguardando. Depois de mais outros 10 minutos, Ana tira o fone de ouvido e diz: "Daqui a pouco faz um ano que eu venho aqui..." A analista faz um gesto de concordância.

Ana pede para que ambas procurem na agenda a data da primeira sessão. "Faz um ano mesmo!!!" Ana sorri e se entusiasma muito. Em seguida pega o celular e põe de novo músicas de bandas, mas desta vez em volume mais alto, para compartilhar com a analista. E começa a fazer movimentos de dança sentada na cadeira. "Você gosta de dançar?", pergunta a analista. Ana diz que sim, acrescentando que em festa não tem coragem, "na frente de todo o mundo..." Em seguida, levanta-se e começa a dançar, mostrando seus "dotes dançantes" muito feliz. A analista se sente tocada pela experiência e diz: "Você fica contente de sentir a harmonia entre o seu corpo e sua mente nesta dança!! É como uma menina virando mocinha..."

Ana se comove, para um pouco e diz: "Você não conhece essas bandas, né?" A analista admite que não conhece mesmo. Ana diz então que ia procurar "uma música boa para nós duas..." Encontra a música "Mais que nada", do Jorge Benjor, e põe bem alto, começando a dançar samba. A analista espontaneamente faz o gesto do Jorge Benjor com as mãos: "Mais que nada, sai da minha frente, que eu quero passar, o samba está animado, o que eu quero é sambar..."

Ana diz: "Que legal, é a nossa festa de aniversário hoje! Até dança está tendo!" A analista percebe-se comovida e pensa que ambas estão em profundo encontro humano. Esse momento "mágico" permite ampliar e aprofundar a convicção da analista na "psicanálise".

Fica evidente, nesse fragmento clínico, a possibilidade de "realizar" que a "experiência emocional é tão potencialmente alterável" (Purcell, citado em Rezze, 2017), num momento de encontro entre duas mentes, de onde emerge a paixão como elemento de psicanálise (Bion, 1963). Lembramos aqui Nogueira: "Assinalo que o desejo analítico se gratifica naquele momento em que uma interpretação revela algo novo e abre um espaço novo para o conhecimento, mesmo de coisas aparentemente já sabidas" (1993, p. 110).

Gostaríamos de ressaltar ainda que pensamos ser a expressão "analista didata" referida a uma função exercida por um analista experiente dentro da instituição e "análise didática", à análise que ocorre durante a formação com um analista reconhecido para essa função pela instituição.

Freud, quando fazia uma conferência para leigos, apontou nessa direção:

É verdade que a psicanálise não pode ser aprendida facilmente, e que não são muitas as pessoas que a tenham aprendido corretamente. Naturalmente, porém, existe um método que se pode seguir, apesar de tudo. Aprende-se psicanálise em si mesmo, estudando-se a própria personalidade. ... Dessa forma, adquire-se o desejado sentimento de convicção da realidade dos processos descritos pela análise e da correção dos pontos de vista da mesma. Não obstante, há limites definidos ao progresso por meio desse método. A pessoa progride muito mais se ela própria é analisada por um analista experiente e vivencia os efeitos da análise em seu próprio eu (self), fazendo uso da oportunidade de assimilar de seu analista a técnica mais sutil do processo. Esse excelente método é, naturalmente, aplicável apenas a uma única pessoa e jamais a todo um auditório de estudantes reunidos. (Freud, 1916/2014, p. 25)

Freud ressalta "um analista experiente", e foi essa a grande recomendação feita aos Institutos de formação. A questão que ficou para os Institutos foi: como saber se estamos diante de um analista experiente? Seguramente, não podemos nos restringir a questões de faixa etária ou até de suposto conhecimento teórico. São necessários mais elementos que serão avaliados quando o postulante à função didática se apresenta para solicitar sua qualificação. Sua trajetória e seu percurso dentro da instituição como membro filiado, membro associado e membro efetivo, assim como sua avaliação como docente da instituição pelos membros filiados, sua participação e dedicação à instituição fornecem-nos elementos de sua personalidade e função psicanalítica, que serão criteriosamente avaliados pela comissão de qualificação de didatas, para que esse colega possa receber a qualificação de "analista experiente" a que Freud se referiu. O colega que assim desejar se vincular à instituição deve ser avaliado por seus pares e, ao obter a função, terá condições de realizar, autorizado pela Sociedade e pelo Instituto, as análises dos futuros analistas, as supervisões e os seminários clínicos. Essa é a compreensão que temos sobre a análise de formação: um processo vivo, um trabalho intenso de colegas que se interessam pela instituição e que de alguma forma transmitem a psicanálise que apreenderam e que têm um cuidado ético com relação a sua transmissão. Significa também valorização e amor dedicado ao seu objeto de estudo e trabalho, bem como à instituição psicanalítica que tem a responsabilidade de formar novos psicanalistas. O analista em função didática estaria na condição de devolver com gratidão o que recebeu da instituição, podendo, até mesmo, ter mais flexibilidade nos preços praticados para analistas em formação.

Uma observação de Nogueira (1993, p. 115):

Que fatores do analista são essenciais para um "bom desempenho" analítico? Evidentemente cada analista terá sua resposta, primeiro por sua singularidade, e segundo por coerência com sua ideologia teórica. Talvez o único ponto de concordância entre analistas nessa área seria que o analista deveria ser "bem analisado".

Pensamos que é necessário considerar essa questão com cuidado e respeito. Cuidar para que a análise do analista seja feita com a maior qualidade possível é, sim, responsabilidade da instituição a que o analista em formação pretende pertencer. Isso não nos isenta de riscos, não oferece garantias, mas não levar em consideração a responsabilidade que isso significa em um processo de formação, a nosso ver, é mortífero, pois a mente do analista é seu principal instrumento de trabalho, seu maior patrimônio profissional e pessoal. Freud afirmou também que o paciente vai até onde o seu analista foi. Embora saibamos que um analista continua se desenvolvendo através de seu trabalho com seus pacientes, essa afirmação de Freud aponta para a responsabilidade que cada um de nós tem, em relação ao trabalho que exercemos, em manter nossos instrumentos "afinados".

Nossa reflexão aponta para o futuro, para aqueles que desejam se desenvolver como analistas, para que o privilégio da psicanálise se estenda à vida pessoal, à clínica e também às funções grupais e sociais, em ressonâncias que possam se manter vivas e nos manter igualmente vivos. Acreditamos que o trabalho psicanalítico seja de enorme complexidade, que o desenvolvimento da função psicanalítica seja muito difícil e que, portanto, a formação psicanalítica precisa estar de acordo com essas observações e, em respeito pelo candidato, curvar-se não a facilidades que envolvam facilitar a formação, mas àquelas que facilitem o seu acesso a uma análise mais ampla e profunda possível, como é seu direito e sinal de respeito ético pela sua realidade psíquica e de seus pacientes.

 

Referências

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Recebido em: 2/4/2018
Aceito em: 11/4/2018

 

 

1 Trabalho realizado pelo Grupo de Estudos sobre Formação, GEF, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP, e apresentado no XXVI Congresso Brasileiro de Psicanálise, Febrapsi, em novembro de 2017, Fortaleza, CE.
2 Na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), o termo "candidato" foi substituído por "membro filiado" ao Instituto.

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