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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.54 no.101 São Paulo jul./dez. 2021
A POTÊNCIA DA DIFERENÇA
Ideias para pensar o século XXI
Ideas for thinking about the 21st century
Ideas para pensar en el siglo XXI
Des idées pour penser le 21e siècle
Silvana Rea
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), da qual foi diretora científica de 2017 a 2020. Foi editora da Revista Brasileira de Psicanálise e atualmente é editora do Dossiê da Calibán - Revista Latino-Americana de Psicanálise. Graduada em Cinema e Psicologia, mestre e doutora em Psicologia da Arte pelo IP-USP. Autora dos livros Transformatividade: aproximações entre psicanálise e artes plásticas e Pelos poros do mundo. São Paulo / silvanamrea@gmail.com
RESUMO
Com base na convicção da permeabilidade das fronteiras entre o sujeito e o mundo e entre as soluções individuais e o contexto histórico-cultural, este trabalho aborda as relações de alteridade, que se confirmam pelo reconhecimento da diferença, na clínica psicanalítica e nos fenômenos culturais.
Palavras-chave: arte, alteridade, clínica psicanalítica, cultura, psicanálise
ABSTRACT
Based on the conviction of the permeability of the borders between the subject and the world, and between individual solutions and the historical-cultural context, this work deals with alterity relations, which are confirmed by the recognition of difference, in the psychoanalytic clinic and cultural phenomena.
Keywords: art, otherness, culture, psychoanalysis, psychoanalytic clinic
RESUMEN
Partiendo del convencimiento de la permeabilidad de los límites entre el sujeto y el mundo y entre las soluciones individuales y el contexto histórico-cultural, este trabajo aborda las relaciones de alteridad, que se confirman con el reconocimiento de diferencia, en la clínica psicoanalítica y en los fenónemos culturales.
Palabras clave: arte, alteridad, clínica psicoanalítica, cultura, psicoanálisis
RESUMÉ
Fondé sur la conviction de la perméabilité des frontières entre le sujet et le monde et entre les solutions individuelles et le contexte historique-culturel, ce travail aborde les relations d'altérité, que sont confirmés par la reconaissance de différence, dans la clinique psychanalytique et dans les phénomènes culturels.
Mots-clés: art, altérité, clinique psychanalytique, culture, psychanalyse
É possível pensar a psicanálise sem considerar a potência do diferente? Ou seja, sem considerar a relação do sujeito com a alteridade, noção que se confirma pelo reconhecimento da diferença? As questões de alteridade e suas fronteiras foram os temas que escolhemos como eixos de trabalho para a nossa gestão da diretoria científica na SBPSP de 2017 a 2020. É assunto urgente do ponto de vista social e fundamental para a formação do psiquismo, uma vez que a psicanálise supõe que as bases da vida humana e seu processo de subjetivação se dão pelos movimentos identificatórios, com base na presença fundante do outro. Uma presença que está formulada na "Introdução ao narcisismo" (Freud, 1914/2010a), e que indica a importância da dimensão cultural na vida psíquica desde seu início, visto que o outro é a cultura na forma de mãe, de família, do social.
A alteridade também constitui a psicanálise como campo do saber. É fato que Freud, um sujeito da diáspora, sempre buscou interlocutores em território alheio, alguns com diferenças bastante radicais. Da correspondência inicial com Fliess ao diálogo com o pastor Pfister e à contribuição do escritor Romain Rolland em "Mal-estar na civilização" (Freud, 1930/2010b). Sem esquecer Einstein em "Por que a guerra?" (Freud, 1932/1969a). Um trabalho de abertura a outros campos do conhecimento, na construção de uma disciplina que mantém sua autonomia pela convicção de um saber multiterritorial - e que tem como pilar epistemológico a noção de inconsciente, que propõe a alteridade de nós a nós mesmos, propõe a diferença em nós.
É uma impossibilidade epistemológica considerar o homem e o pensamento sobre ele fora de sua cultura, uma vez que a dimensão cultural está intrinsecamente ligada à construção de subjetividade. Do mesmo modo, são também indissolúveis suas relações com a psicanálise. Freud já sabia disso desde "Estudos sobre a histeria" (1895/2016), quando introduz a ideia da sociedade como neurogênica. Mas é em "Psicologia das massas e análise do eu" (1921/2011) que ele traz a presença do outro na vida psíquica como ponto de apoio para afirmar com clareza que a clínica do sujeito situa-se em porosidade com os vínculos sociais. Portanto, para pensarmos as soluções do sujeito à experiência de alteridade ou de relação com o diferente no terceiro milênio, faz-se necessário abordarmos a inter-relação do contexto histórico-cultural na produção de subjetividade.
Pensando o século XXI
Freud é tributário de seu tempo, ainda que adotando uma posição crítica. É com base no conceito de sujeito, uma atribuição da modernidade, que ele pensa o homem moderno centrando-se na noção de inconsciente e mantendo o sentido identitário como questão. Afinal, a passagem para a nova sociedade implica a construção de uma subjetividade fendida. No entanto, na pós-modernidade quem se problematiza é a relação com a alteridade; para o homem contemporâneo o que está em xeque é o estatuto do outro, pois o espírito da nossa época é marcado por problemáticas narcísicas.
Sabemos da importância da construção narcisista para a constituição do eu. Ela é fruto e motor para estabelecermos o mundo das representações simbólicas. Trata-se, entretanto, de um edifício cheio de fendas por onde a qualquer momento pode vazar a violência da pulsão de morte, cooptando aspectos do narcisismo, travestindo-os em ódio e desencadeando a violência (Kristeva, 1988).
Se temos uma organização social em que a cultura está a serviço das ligações de Eros, ela pode funcionar como suporte para certas mediações, criando formas de transformação do narcisismo e estimulando elaborações construtivas. Mas ela pode não contemplar essa possibilidade, aumentando as rachaduras dos contornos do eu e criando um sentimento de vulnerabilidade narcísica. O que pode desencadear a passagem ao ato, provocando a impulsividade da massa ou a violência da horda, como nos diz Freud (1921/2011). Aqui, a exigência é que o outro funcione como confirmação do mesmo. Caso contrário, por sua diferença, ele se torna o inimigo a ser eliminado, depósito de nossos temores em que descarregamos a hostilidade. Ideia do narcisismo das pequenas diferenças (Freud, 1918/1969b), que ganha novos contornos a partir da segunda tópica, quando a psicanálise aponta com mais firmeza os limites de representação da cultura e, consequentemente, daqueles que aportam em nossas clínicas.
A humanidade sempre precisou de inimigos, basta olharmos para a história. O que é novo é a simultânea fabricação e destruição de inimigos nas redes sociais por trolls, usando contas falsas que rapidamente mobilizam partes da população em torno de narrativas mentirosas, desqualificadoras e ofensivas. Uma novidade que também abala a confiança de haver um terreno social bem assentado.
Atualmente somos sustentados pelo medo do outro de tal forma, que formamos uma multidão de paranoicos (Žižek, 2008). E sabemos que a paranoia tem uma moldura mental restrita, pois opera uma simplificação maniqueísta de situações complexas, contribuindo para um funcionamento mental empobrecido e dogmático.
Outra consequência desse sistema é o surgimento de uma "nostalgia de comunidade", denominada por Bauman (2017) "retrotopia". No lugar de uma utopia que nos dirige esperançosos ao futuro, temos a nostalgia de um passado perdido, higienizado e valorizado por sua suposta estabilidade e confiabilidade, que surge como um modelo ideal de harmonia familiar e de identidade étnica ou religiosa. Essa versão restauradora alimenta revivificações nacionalistas, que no século XX acabaram por desembocar em movimentos autoritários, como o fascismo de Mussolini. É esse desejo de resgate de um passado que leva eleitores contemporâneos, movidos pela desilusão com as promessas neoliberais de sucesso individual, a votar em partidos radicais nacionalistas (Berardi, 2019).
Atento ao apelo fascista atual, Han (2017b), por sua vez, o vê como submissão ao sistema neoliberal. Ainda que mantenha seu ódio ao diferente e a pretensão ao autoritarismo, ele se apoia numa falsa ideia de liberdade, que esconde uma autoalienação destrutiva, uma vez que o sujeito deixa-se explorar voluntariamente acreditando que está se realizando. Além disso, o neoliberalismo gera insegurança, pois, ao individualizar o homem tornando-o um empresário isolado de si mesmo, cria o acirramento da competição e a perda da solidariedade - o que causa medo.
O medo alimenta o ódio, e o ódio alimenta o medo. Mas o medo interessa, pois está no registro da falta de proteção, e assim ele se torna mercadoria política, uma moeda valiosa. É essa a ideia de Donskis (Bauman & Donskis, 2014), que completa: o sentimento de vulnerabilidade narcísica e de desamparo é o alicerce de todo poder político. Implantando um clima de incertezas e de suspeitas, produz-se uma obsessão pela segurança - o outro é uma ameaça e está sempre sob suspeita. Produz-se assim um estado social em que o mal não está restrito às guerras ou a situações extremas; ele se revela na insensibilidade diária diante do sofrimento do outro, na incapacidade de reagir, na recusa de compreendê-lo. No registro da pulsão de morte, o ódio se manifesta pela indiferença; a diferença suscita indiferença.
O diferente tende a desaparecer com a crescente globalização, que incentiva a perda das singularidades em troca de uma uniformidade generalizada, para que tudo se torne facilmente palatável, rapidamente comercializável e hiperconsumível (Berardi, 2019). A cultura de massas propõe o entretenimento fácil, portanto, sem reflexão. Criamos sujeitos intolerantes à frustração, que buscam a imediatez e excitação do gozo, para quem importa o prazer individual, sustentado por uma ética permissiva e narcísica; mortífera.
Assim, estamos em tempos de agonia do Eros, erodido pela desmentida e pela alucinação negativa, que transforma a violência, com variadas manifestações e intensidades, em sintoma social A hipervisibilidade leva à destruição dos umbrais e das zonas enigmáticas, que é onde começa o território do outro; a culminância do fim do Eros é a negação da alteridade (Han, 2017a).
Ou seja, mesmo na qualidade de inimigo, o diferente mantém o estatuto de alteridade. Ainda que temida e denegrida, ainda que funcionando como uma prótese para unir as pessoas pela valorização do que é entendido como "nosso"; um ódio à diferença que encontra expressão no racismo, na homofobia, na xenofobia, entre outros. Mas, paralelamente, encontramos situações extremas em que o outro já está destruído; sem direito à subjetividade, perdeu seu estatuto de humanidade. Está tão desqualificado, que se torna ninguém, só serve para o uso alheio.
O trabalho nos consultórios testemunha as questões narcisistas que marcam os sofrimentos psíquicos contemporâneos, nas formas de dificuldades em relação à alteridade como o esvaziamento e a vulnerabilidade do sentimento do eu, a ameaça de intrusão e de dispersão, o medo do abandono, a dependência em relação ao objeto ou sua negação.
O sofrimento narcísico que certos pacientes apresentam reitera a importância das relações intersubjetivas na constituição do psiquismo, ou seja, enfatiza a presença do outro em sua qualidade. E mais, ele aponta para falhas no processo de construção de si pela falta de um objeto cuja função simbolizante garanta a contenção para a intensidade pulsional. Em outras palavras, indica que a cultura, na forma de cuidador primeiro, não oferece a sustentação de uma moldura. Sem contorno firme e sob o risco de transbordamento, a defesa é efetuar a desconexão tanto entre o psíquico (eu) e o não psíquico (outro), quanto dentro da própria esfera psíquica. Estratégia eficiente, mas que prejudica os processos de simbolização primários e lacera a subjetividade entre parte representada e parte não representada, como nos mostram as contribuições de Roussillon (2008; 2013) e de Green (1988). Como um estrangeiro ou o diferente em si, as experiências arcaicas clivadas e não integradas ficam impedidas de se transformar em um sistema representacional e podem buscar expressão pelo sensório-motor (Roussillon, 2011). É o que impede a instauração de um espaço simbólico, dificultando a experiência de terceiridade, que permite o caminho da dimensão especular no acesso à alteridade.
Assim, a clínica contemporânea do singular traz para perto o desafio narcísico dos laços sociais. E põe em pauta a problemática da alteridade, dentro e fora dos limites do setting analítico. Porque o outro me revela na incompletude, na falta que Narciso recusa. Por isso para alguns é tão difícil reconhecer a alteridade em sua diferença.
Talvez sejam tempos do que Zienert-Eilts (2020) chama de "populismo destrutivo", cujo objetivo é gerar medo e estabelecer uma polarização por meio de afetos muito primitivos, que são alimentados pela onipotência narcísica. Ela sinaliza um tipo de organização social sustentada pela "perversão do continente", em que, no lugar da função de conter, acolher e metabolizar os impulsos destrutivos, há uma máquina de destruir.
Um dos meios para se criar uma máquina de destruição dos laços sociais é o ataque à realidade pela não diferenciação entre fato e o que é fake, e isso faz com que a sustentação da realidade histórico-social seja substituída por uma pseudorrealidade. Aqui temos, segundo Bollas (2020), os elementos para um processo social psicótico e sociopático, que simultaneamente estimula e é resultado de um novo tipo de mente psicótica e sociopata.
Bollas (2011) descreve processos de tal pobreza simbólica, em que as palavras perdem a mobilidade para a livre ligação e perdem sua função de significante. Isto pode nos ajudar a entender certas adesões a modelos dogmáticos e unilaterais. Determinadas por pseudoligações vazias e não simbólicas, as palavras viram puros signos que propiciam um funcionamento mental de compreensão extremamente simplificada e muito violento. Ou seja, com as possibilidades de representação prejudicadas, resta a passagem ao ato. O que interessa aos movimentos radicais ou neofascistas, que cultivam o culto da ação pela ação, sem nenhuma reflexão (Eco, 2018).
A ameaça do fascismo muitas vezes é precedida por ataques ao patrimônio cultural, como as manifestações artísticas, na medida em que elas são identificadas por rupturas aos valores tradicionais, pela liberdade, por atitudes críticas ou pelo pensamento reflexivo.
Há alguns anos tivemos a censura à exposição "Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira", que foi inaugurada em 2017 no Santander Cultural de Porto Alegre, e cancelada por pressão de movimentos políticos conservadores. Em seguida, a artista plástica Adriana Varejão, premiada e reconhecida internacionalmente, sofreu ataques on-line do músico Roger Moreira, do Ultraje a Rigor, por ter se posicionado contrariamente ao cancelamento do evento. Ele postou nas redes uma fotomontagem de Adriana com um pênis na boca e a inscrição "puta".
No mesmo ano, o artista brasileiro Wagner Schwartz abriu o 35.º Panorama de Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, com a performance La Bête, concebida com base em Bicho, obra consagrada de Lygia Clark. Apresentando-se desde 2005 por diversas vezes no Brasil, e na Europa ainda hoje, o artista nu se disponibiliza para que o público possa modificar a posição de seu corpo, como se fosse um brinquedo - ou um Bicho de Clark. No entanto, uma criança acompanhada de sua mãe participou do evento, o que levou facções religiosas a provocarem o linchamento virtual de Wagner, sob a acusação de incitação à pedofilia.
Os grandes escândalos na recepção da arte são relativamente recentes e se tornam mais intensos a partir da experimentação estética proposta pelo modernismo ou por seus precursores. Em 1865, a Olympia de Manet provocou forte impacto. Considerada indecente por apresentar com crueza a nudez de uma mulher do povo, a obra só não foi destruída pelo público graças à intervenção da administração do Salão de Paris. Hoje ela recebe intensa visitação no Museu d'Orsay. O trabalho de Egon Schiele, um dos grandes nomes do expressionismo, foi considerado pornográfico e o levou à prisão em 1912. No Brasil de 1931, o painel de Cícero Dias Eu vi o mundo... ele começava no Recife, referência na história da arte brasileira, teve cortados fora os 3 metros que representavam nus. Em carta à amiga Tarsila do Amaral, Mário de Andrade se disse boquiaberto com a dimensão da obra e sua mutilação. O mesmo Mário de Andrade que já se chocara em 1917 com o Homem amarelo, de Anita Malfatti, impacto que alega ter sido fundamental para o início de sua formação como crítico de arte e que o fez adquirir a obra pouco antes que a maior parte dos quadros da "Exposição de pintura moderna" fosse atacada a bengaladas por visitantes. Aliás, Anita teve sua carreira artística seriamente prejudicada após a publicação do artigo de Monteiro Lobato "Paranoia ou mistificação?", que a acusa de degeneração, ou de produzir arte degenerada.
Por que uma exposição de obras de arte teria que ser desqualificada, ou cancelada? Vamos tomar como exemplo A origem do mundo (1866), de Gustave Courbet, realizado sob encomenda para a coleção de arte erótica de um diplomata, e que também se encontra exposto no D'Orsay.
Em setembro de 2012, Jorge Coli, professor titular de História da Arte e da História da Cultura no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, discutindo sobre o avanço do moralismo, teve a transmissão de sua aula interrompida quando apresentava essa mesma obra.
A imagem em questão é a pintura de um nu feminino com as pernas abertas. Ao olharmos para essa tela sem preconceitos, podemos ver algo que seu título já sugere: o questionamento da origem, um enigma que evoca as questões mais profundas da existência humana, de onde vim e para onde vou. Poderíamos também ver que ela sugere a curiosidade sexual infantil sobre o que se passa no interior desse corpo misterioso, ou mesmo a força do sexual, da vida e da morte.
Importante lembrar que Courbet é o pioneiro do estilo realista francês, movimento contrário à pintura de imaginação. Seu programa poético não busca a beleza, busca a verdade no real. Em suas telas ele apresenta cenas do cotidiano, gente do povo em seus afazeres. E, particularmente, ele retrata o corpo feminino com extremo realismo, em um franco manifesto contra os nus femininos idealizados do academicismo.
Portanto, não se trata de pornografia ou de pedofilia. Trata-se de pensamento estético, trata-se de desenvolver uma poética, de propor um programa de arte (Pareyson, 2002). Há um sentido e um contexto que precisa ser conhecido.
O ponto a ser levantado aqui é que, mantendo-se próximas, arte e psicanálise propõem a abertura para o outro, como diferente. A experiência com uma obra provoca no espectador um impacto perceptivo que gera perguntas, estimula um olhar que não sabe de antemão, mas que vai em busca de conhecer. É a atitude do analista diante de seu analisando: abrir-se à experiência do outro para conhecê-lo. Essa é a ética que nos conduz, conforme definição de Lévinas (2008), cuja ideia de alteridade compreende a relação com o outro entendendo-o como outro, e não como "outro eu" - o que indicaria um ato de domínio e de violência.
É com base no acesso ao outro que se pode atribuir-lhe o caráter de acontecimento, como algo que ocorre subitamente e interrompe o fluxo natural das coisas, engendrando uma nova relação com a realidade e uma nova compreensão do mundo (Žižek, 2017). Afinal, o encontro com o não-eu é sempre em certa medida traumático. E, por fim, se todos os pacientes são diferentes e únicos, cabe a eles abalar as nossas preconcepções e até nosso sentido identitário.
Essa também é a experiência que a arte propõe: o encontro com a alteridade tendo o caráter de acontecimento, que se abre ao nosso olhar quando testemunhamos algo da ordem da experiência perceptiva, mas que vai além do visível. E que nos interroga com base em nossa própria subjetividade. Por isso há muitos que condenam ou evitam tal contato, muitas vezes se defendendo com o recurso da tautologia.
Para entendermos segundo uma categoria narcísica, vale lembrar que, por ser redundância ou repetição, a tautologia faz com que uma proposição permaneça sempre verdadeira, pois se trata de um circuito fechado em si mesmo. Por sua vez, o culto ao que é verdadeiro para sempre é uma das características do fascismo, que, ao se apoiar no elogio à tradição, impede o avanço do conhecimento e do novo; a verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar com ela (Eco, 2018).
Então, aquele que padece de sofrimento narcísico, com empobrecimento mental e carência representacional, pode lançar mão do recurso tautológico. Ele não vê outra coisa além do que vê, é incapaz de entrar em contato com a dimensão enigmática do visto. Condenado à concretude, ele perde a experiência de distância, cola na imagem (Didi-Huberman, 1998). Nas palavras de Benjamin (2013), elimina-se a distância aurática, uma vez que a aura, característica da arte, apresenta a negatividade do diferente, do estranho, do outro. Elimina-se o espaço - aurático, enigmático ou transicional - no qual simultaneamente se cria o sujeito da experiência e a experiência de alteridade. Preso na tautologia por suas parcas capacidades simbólicas, para ele na obra de Courbet o genital feminino é apenas o genital feminino. Ele não suporta o impacto, porque é incapaz de absorvê-lo e de ampliá-lo; ele rejeita a dor e acusa a obra. Ou condena o artista.
Enfim, são ideias para pensar o século XXI, em que não configura novidade que sujeito, subjetividade, história, sociedade e cultura têm laços indissociáveis. Ao adotarmos o inconsciente como pilar epistemológico da psicanálise, concordamos com a impossibilidade de total transparência do humano para si mesmo e para o outro. A alteridade que nos habita lança-nos em direção ao que ultrapassa o instituído; e seguir seu caminho de mediação em direção ao simbólico é fundamental para os vínculos sociais sustentados por Eros. É instrumental do analista, e também é uma das funções do trabalho artístico, romper com o estabelecido para construir um universo representacional, que passa a ser repertório cultural da humanidade. Tudo isso só pode se dar com base no contato com a diferença.
Se o uso de nossos dados pelas grandes corporações e governos busca a previsão do que seremos para que, assim, tornados previsíveis, não haja o risco do novo, cabe refletirmos sobre as nossas áreas de resistência (Zuboff, 2019). Como na arte, a psicanálise também tem por vocação manter-se em permanente postura de interrogação daquilo que é dado. Impossível conservá-las em terreno seguro e certeiro, impossível reduzi-las à previsibilidade e à normatização, sob o risco de destruir a sua potência criativa. Ambas são propostas de experiências de encontro com o diferente, que me interroga em sua dessemelhança. Aventurar-se à alteridade é correr o risco de testemunhar a estranheza da terra alheia que se visita, mas também enfrentar os desarranjos territoriais de quem se dispõe a conhecer, tornando-se estranho para si mesmo (Cardoso, 1993). Provoca inquietude, mas é o que permite a retomada criadora de nós mesmos. Sem isso, seremos prisioneiros de um sistema social violento que exacerba as fragilidades narcísicas, seremos cativos da reflexividade do igual e condenados à visão míope da tautologia.
Referências
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Recebido em em: 23/8/2021
Aceito em: 30/8/2021