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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo jan./jun. 2022

 

HIPERCONECTIVIDADE E EXAUSTÃO

 

Virtualidade e psicanálise: novas sendas para o encontro humano?

 

Virtuality and psychoanalysis: new paths for the human encounter?

 

Virtualidad y psicoanálisis: ¿nuevos caminos para el encuentro humano?

 

Virtualité et psychanalyse : nouvelles voies pour la rencontre humaine ?

 

 

Helena Ardaiz Surreaux

Psicanalista, membro titular em função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPDEPA) e membro titular em função didática da Associação Psicanalítica Argentina (APA). Porto Alegre / helenasurreaux@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo debruça-se sobre a virtualização do mundo a partir do evento da pandemia do novo coronavírus e suas repercussões sobre a psicanálise, principalmente nas dimensões da clínica e da transmissão dessa disciplina. Parte de uma reflexão sobre a essência virtual da psicanálise, fundamentada na dinâmica psíquica de uma área de ilusão/realidade, presença/ausência, que está na gênese dos processos constitutivos do Eu. Aborda o grande impacto da pandemia na vida humana e a busca de transcendência da condição mortífera a partir do incremento da comunicação virtual. Esta sustenta a continuidade da prática analítica com pacientes e permite o seguimento das formações nos institutos de psicanálise, bem como as supervisões. Toda a extensão do tripé formativo da psicanálise pôde manter-se viva por meio da virtualidade. Congressos e uma ampla gama de espaços de intercâmbio através da tela tornam-se possíveis. Por fim, a autora compartilha sua experiência como diretora de Admissão e Formação no ILAP e expõe a grande renovação, integração e aprofundamento que o crescimento da virtualização trouxe à dinâmica da transmissão da psicanálise nesse Instituto.

Palavras-chave: psicanálise, pandemia, virtualidade, formação psicanalítica


ABSTRACT

This article focuses on the virtualization of the world from the event of the new coronavirus pandemic and its repercussions on psychoanalysis, especially in the clinical dimensions and transmission of this discipline. It starts from a reflection on the virtual essence of psychoanalysis, based on the psychic dynamics of an area of illusion/reality, presence/absence, which is at the genesis of the constitutive processes of the Self. It addresses the great impact of the pandemic on human life and the search for transcendence of the deadly from the increase in virtual communication. This supports the continuity of the analytic practice with patients and allows the follow-up of training in psychoanalysis institutes, as well as supervision. The entire extension of the formative tripod of psychoanalysis can be kept alive through virtuality. Congresses and a wide range of median screen exchange spaces become possible. Finally, the author shares her experience as director of Admissions and Training at ILAP and exposes the great renewal, integration and deepening that the growth of virtualization has brought to the dynamics of psychoanalysis transmission in this Institute.

Keywords: psychoanalysis, pandemic, virtuality, psychoanalytic training


RESUMEN

Este artículo se centra en la virtualización del mundo a partir del acontecimiento de la pandemia del nuevo coronavirus y sus repercusiones en el psicoanálisis, especialmente en las dimensiones clínicas y de transmisión de esta disciplina. Se parte de una reflexión sobre la esencia virtual del psicoanálisis, a partir de la dinámica psíquica de un ámbito de ilusión/realidad, presencia/ausencia, que está en la génesis de los procesos constitutivos del Yo. Aborda el gran impacto de la pandemia en la vida humana y la búsqueda de la trascendencia de lo mortífero a partir del incremento de la comunicación virtual. Esto apoya la continuidad de la práctica analítica con los pacientes y permite el seguimiento de la formación en los institutos de psicoanálisis, así como la supervisión. Toda la extensión del trípode formativo del psicoanálisis puede mantenerse viva a través de la virtualidad. Se hacen posibles congresos y una amplia gama de espacios de intercambio a través de las pantallas. Finalmente, la autora comparte su experiencia como directora de Admisión y Capacitación del ILAP y expone la gran renovación, integración y profundización que el crecimiento de la virtualización ha traído a las dinámicas de transmisión del psicoanálisis en este Instituto.

Palabras clave: psicoanálisis, pandemia, virtualidad, formación psicoanalítica


RÉSUMÉ

Cet article porte sur la virtualisation du monde à partir de l'événement de la pandémie du nouveau coronavirus et ses répercussions sur la psychanalyse, notamment dans les dimensions cliniques et de transmission de cette discipline. Elle part d'une réflexion sur l'essence virtuelle de la psychanalyse, basée sur la dynamique psychique d'un domaine illusion/réalité, présence/absence, qui est à la genèse des processus constitutifs du Soi. Il aborde le grand impact de la pandémie sur la vie humaine et la recherche de la transcendance du mortel à partir de l'augmentation de la communication virtuelle. Cela soutient la continuité de la pratique analytique avec les patients et permet le suivi de la formation dans les instituts de psychanalyse, ainsi que la supervision. Toute l'extension du trépied formatif de la psychanalyse peut être maintenue vivante par la virtualité. Des congrès et une multitude d'espaces d'échanges à travers des écrans deviennent possibles. Enfin, l'auteur partage son expérience de directrice des Admissions et de la Formation à l'ilap et expose le grand renouvellement, l'intégration et l'approfondissement que la croissance de la virtualisation a apporté à la dynamique de transmission de la psychanalyse dans cet Institut.

Mots-clés: psychanalyse, pandémie, virtualité, formation psychanalytique


 

 

Não há dúvida de que não podemos pensar o
fenômeno humano fora de uma perspectiva complexa,
no sentido original da palavra
complexus: tecido junto.

(EDGAR MORIN)

Como pensar a virtualidade e a formação virtualizada após dois anos do acontecimento pandêmico que abalou o mundo, obrigando a humanidade a isolar seus corpos e a viver as múltiplas faces do encontro através de uma tela de computador ou de celular?

Fomos convertidos em experts no uso da tecnologia da comunicação, entrando e saindo de plataformas com agilidade e destreza. Organizamos congressos online, cursos, lives, podcasts, seminários em nossos institutos, ou seja, uma ampla gama de espaços de trocas através da tela, além da análise pessoal, evidentemente.

O que podemos dizer dessas experiências hoje, pensando em toda a extensão do tripé em que tradicionalmente se apoia a formação psicanalítica, marca indelével de sua singularidade?

 

A virtualidade e seus contornos na psicanálise

Antes de tudo, examinemos a curiosa relação entre virtualidade e psicanálise.

O termo "virtual",quevem do latim Virtuale ou Virtualis e significa virtude, potência, indica aquilo que não existe como realidade material, mas sim em uma condição potencial. A realidade virtual, sempre associada aos jogos eletrônicos, contém um roteiro ilusório, que imita a realidade material, mas produz impactos concretos no sujeito que os vivencia. A essência da clínica psicanalítica, apoiada no movimento transferencial, é, portanto, pura virtualidade. O paradoxo de ser e de não ser, que dá sentido ao falso enlace (Freud, 1895/1976), primeira denominação do fenômeno transferencial por Freud, é a base do nosso dispositivo clínico.

Claro está ainda que a transferência, como fenômeno de ubiquidade, tecido junto com a estruturação do nosso inconsciente, se lança sobre todas as relações entre pessoas. Por esse caminho, podemos pensar a virtualidade como um sine qua non da condição humana.

O conceito winnicottiano de transicionalidade (Winnicott, 1953/1975), ao propor uma terceira área da experiência como espaço potencial entre bebê e mãe, joga com o paradoxo presença/ausência desta, no caminho que parte da criatividade primária à percepção objetiva da mãe como um objeto externo.

O virtual, portanto, sustenta-se nessa área de ilusão/realidade, presença/ausência que está na gênese dos processos constitutivos do Eu.

 

A análise virtual pré e durante a pandemia

Alguns, como eu, já utilizavam a análise remota havia muitos anos, e a continuidade até o 100% virtual, imposta pela pandemia, foi sem solavancos.

A psicanálise à distância, mesmo antes da crise sanitária, já estava consolidada como uma ampliação natural da invenção freudiana, para dar conta da complexidade das novas demandas culturais. O mundo globalizado promove migrações humanas sistemáticas. As pessoas estão em trânsito, falam vários idiomas, os jovens fazem intercâmbios, os executivos residem em diferentes lugares sucessivamente. Cursos, doutorados fora do país de origem são uma constante na vida contemporânea, e a busca pela análise virtual no idioma natal tem sido uma opção frequente. Parece natural que essa condição da existência, aliada ao vertiginoso refinamento da tecnologia da comunicação, tenha sua incidência nos formatos que vão se impondo às análises de nossos pacientes.

No entanto, a chegada da pandemia, banindo todos os psicanalistas de seus consultórios, levou à modalidade remota como única via para dar continuidade aos processos analíticos dos pacientes.

Essa exclusividade e o impacto da pandemia em si mesma, sim, parecem ter repercutido em nossas vidas, conduzindo a ressignificações importantes. O espaço do consultório perdeu o sentido. Que sacrilégio! Aquele lugar sagrado, em que reina a escuta e o sigilo, no qual todos os objetos e todos os recantos contam sobre a nossa história profissional e sobre aquilo que queremos, consciente e inconscientemente, comunicar aos pacientes, bruscamente abandonou o nosso cotidiano. O divã, a poltrona, os livros, aquelas referências que nos asseguram sobre o nosso lugar de psicanalista, subitamente desapareceram. A limitação à tela nos desobrigou de caprichar na escolha do sapato e fomos nos acostumando ao conforto máximo da cintura para baixo.

Improvisamos consultórios em diferentes lugares, na casa da praia, na casa de campo, aproximamos nossa família e seus barulhos dos pacientes, alunos e colegas, já que os seminários e reuniões também passaram a ser online. Eu me mudei para o campo e passei a viver as sessões orquestradas pelos quero-querose toda a gama de pássaros da região. O cheiro da grama molhada pela manhã, o frescor da mata e investigar sobre as nuances da luz do sol nas folhas das árvores. Sons de grilos, cigarras e pássaros entre latidos, relinchos, mugidos... O galo sobressaindo no início da manhã, e o roxo da buganvília tingindo a claridade e invadindo agressivamente a vista da janela.

Essas percepções passaram a participar da minha atenção flutuante. Não estava mais na quietude do consultório, entre os livros que insistentemente afirmavam o meu ser psicanalista. A força da natureza, entretanto, me inspirava, sensibilizava a minha escuta, convidando a sensações que vinham lá da infância e se misturavam às imagens trazidas pelos pacientes. Agora que escrevo essas linhas me dou conta de que o contato com a natureza me ajudou a ficar viva e a manter viva a minha escuta, sobrepujando o sopro da morte na pandemia do novo coronavírus.

Talvez cada um de nós tenha inventado seu jeito de sobreviver. Foi preciso mais do que não adoecer mortalmente pela covid-19, tivemos que encontrar a forma de permanecer vivos, interessados, desejantes, pulsantes. Vivos para poder escutar e, talvez, escutantes para poder viver.

Quando as notícias das cifras de mortes eram avassaladoras, os hospitais estavam completamente lotados e os atendimentos fechados nas emergências, eu buscava desesperadamente conseguir um tubo de oxigênio para um familiar de 87 anos, com 70% do pulmão comprometido pela ação do vírus. Essa pessoa, sem descendentes, só tinha a mim para lutar pela sua vida, para suplicar por oxigênio aos fornecedores, para tentar conseguir alguma vaga em hospital, e o peso dessa responsabilidade era aterrador. A eficácia da minha ação e das escolhas possíveis naquele momento passou a ser a diferença entre a vida e a morte dela. Enquanto empreendia essa luta também atendia meus pacientes, dava aulas e supervisionava virtualmente. Foram períodos de horror, nos quais seguimos com nossa prática como psicanalistas ao mesmo tempo em que o mundo despencava ao redor.

Diante de uma situação de calamidade compartilhada, na qual estão sendo afetados analistas e analisandos, mais do que nunca, a interlocução analítica é necessária. Isso é tudo o que podemos fazer, e é muito. Manter viva a escuta em situações de crise é importante para ambos os envolvidos, já que a nossa tarefa é buscar apoio no simbólico, resgatar a palavra enterrada na turbulência do trauma. O processo analítico nessas condições é organizador não só para o paciente; também o analista se beneficia com a pacificação proporcionada pela subjetivação da experiência que se produz no diálogo.

Aqui vemos como foi crucial, especificamente no contexto da pandemia, contar com o enquadre virtual, única forma de dar seguimento às análises de nossos pacientes e, com isso, manter vivo um encontro fundamental para a sobrevivência psíquica num momento de isolamento, incertezas e privações múltiplas.

Fez-se carne em nós a noção de "enquadre interno" (Green; Urribarri, 2001/2019) do analista, aquele invariante do método que nos acompanha aonde formos. A experiência concreta da tela na totalidade dos atendimentos é um acontecimento a ser integrado no processo analítico por ambos os partícipes. Como afirma Bleger (1967), o enquadre é o "não processo", entendido como o invariável, dentro da moldura onde se dá o "processo", que, por sua vez, é todo o fenômeno que se põe em jogo na relação analítica, que implica o movimento transferencial-contratransferencial. O enquadre é "mudo" (Bleger, 1967),percebido apenas quando é modificado ou rompido. O grito que se pode produzir, quebrando o mutismo do enquadre espacial onde acontecem as sessões, saindo das paredes do consultório é um fato a ser incluído no processo, mediante a integração dessa nova pauta em um todo maior, que repousa nos fundamentos éticos da psicanálise internalizados pelo analista.

Concordo com Green e Urribarri (2001/2019) quando afirmam que a "escuta analítica é, em si mesma, uma metaforização do enquadre" (p. 92), já que o que ele chama de "estrutura enquadrante", sobre a qual se apoia o enquadre interno, "é o que permite constituir a singularidade (separação do outro, autorreferencialidade), por meio da análise pessoal do analista, uma matriz aberta à singularidade do outro, à sua alteridade radical" (p. 93).

A experiência da análise trabalha sobre o reconhecimento do inconsciente como o estranho, o estrangeiro que nos habita. Esse é precisamente o modelo que abre caminho à outridade, nos habilitando à identificação e empatia com o diferente. É nessa matriz simbólica que se apoia o desejo de analisar do analista e a potencialidade não solipsista de sua escuta.

A prática da escuta analítica em circunstâncias adversas permite constatar a força do nosso dispositivo. É ele (dispositivo analítico) que põe paciente e analista em situação de análise e que dá contornos a essa experiência, que são protetores do processo e, consequentemente, da dupla envolvida. O dispositivo apela a um compromisso apoiado no desejo do analista de analisar e na ética da psicanálise, que promete abstinência em relação à invasão do analisando pelas demandas narcísicas do analista.

No entanto, Joel Birman (1996) lembra-nos sobre a incômoda constatação de que, mesmo não querendo e sabendo que isso não deveria acontecer, "os analistas em geral precisam de seus analisandos para viver" (p. 211). Essa sorte de "canibalismo" (p. 216) do analista vem numa busca de equilíbrio de sua fragilidade narcísica, preenchendo algumas demandas para a existência como sujeitos, através do movimento transferencial.

Por isso tanto insistiu Ferenczi (1910/1991) na análise pessoal do analista e na formação de uma sociedade psicanalítica, como meios de salvaguardar e manter sob rédeas os excessos dos analistas. A renovação das fragilidades ao longo da vida convoca a reanálises sucessivas, como prática mais do que recomendável a todos os que exercem a psicanálise. O papel das sociedades, como afirma Ferenczi, também é fundamental para, além de manter uma fidelidade ao método analítico de Freud, conter os arroubos narcisistas dos membros, "substituindo a fase autoerótica atual pela fase mais evoluída de amor objetal, na qual a satisfação não seria mais buscada pela excitação das zonas erógenas psíquicas (vaidade, ambição), mas nos próprios objetos do nosso estudo" (p. 151).

 

A sobrevivência da análise e das sociedades através da virtualidade

Durante a pandemia, ambas as circunstâncias salvadoras do método, análise e sociedade psicanalítica, puderam seguir vivas através da virtualidade. A intensificação da comunicação via grupos de WhatsApp serviu para estreitar os laços afetivos, divulgar encontros científicos, trocar ideias e experiências de uma forma que talvez tenha até incrementado a integração dos membros nas sociedades. Os seminários online mantiveram os institutos em funcionamento, e as jornadas e congressos virtuais permitiram uma maior circulação de colegas de diversos países, facilitando a disseminação de suas ideias, ampliando e aprofundando a troca científica em geral.

As sociedades seguiram exercendo sua importante função de congregadoras dos membros, além de continente para suas fragilidades, talvez mais eficientemente do que antes da pandemia, já que a intensificação da comunicação virtual através dos grupos de WhatsApp trouxe uma condição de coesão institucional que não tínhamos antes e que deve perdurar a partir desse grande marco.

A pandemia deixou clara a eficácia da análise online, até mesmo para seus grandes detratores. Muitos tiveram a honestidade de confessar a agradável surpresa dessa descoberta. Há hoje uma maior convicção de que o método psicanalítico está preservado na análise online, após essa intensa experiência pandêmica. É constatável que os pacientes continuam trazendo seus sonhos, assim como todas as formações do inconsciente, e a transferência segue se desenvolvendo, em incessante e diabólica repetição, na sua intrínseca virtualidade. Como disse anteriormente, a saída da quietude dos consultórios trouxe mudanças na forma como se opera a associação livre do paciente e a atenção flutuante do analista. São, entretanto, transformações que podem ser absorvidas pelo dispositivo, sem perder o escopo psicanalítico e, em alguns aspectos, até mesmo enriquecendo o diálogo.

Mesmo considerando o evidente saldo positivo da análise virtual a partir da pandemia, o fato está longe de extinguir a experiência presencial. É insofismável que o fenômeno da presença é mais completo. Tudo o que pode ser captado por nossa sensorialidade comunica algo do outro, cheiros, o toque da pele no aperto de mãos, o ritmo da marcha, a forma de acomodar-se no divã ou na poltrona, as sutilezas da expressão, seu aspecto geral e todas as nuances de sua concretude no espaço constituem referenciais que impactam contratransferencialmente e aportam informações que parecem tornar nossa difícil tarefa mais abarcável.

Assim, interpela-nos a seguinte questão acerca da clínica virtual: é apenas um recurso na impossibilidade da presença, ou tem méritos que permitem considerá-la um dispositivo válido em si mesmo, a ser mantido ainda que no retorno do mundo às condições de presença?

No momento parece que a hibridez tomou conta da cena. Ambas as modalidades estão presentes, e os pacientes se sentem mais livres para optar por uma ou outra, conforme as circunstâncias do momento. Se há dificuldade de deslocar-se até o consultório por problemas de tempo, trânsito ou intempéries, o paciente solicita o enquadre online. Eu teria muitos pruridos em ir rapidamente classificando essas opções como resistência. Creio que são contingências do mundo pós-pandêmico que vão introduzindo novas molduras analíticas que vêm para conviver ou somar-se ao já estabelecido.

Além do aspecto heroico de que através da virtualidade, como já mencionado, as grandes salvaguardas dos psicanalistas, análise pessoal e sociedade psicanalítica, puderam sobreviver, também os institutos de formação se mantiveram ativos, dando continuidade aos programas de ensino por meio das aulas pelas plataformas da Internet.

 

Formação virtualizada: cores e matizes de uma experiência singular - A formação no ilap

Sob a luz de toda a reflexão produzida até agora sobre a virtualidade, destaquei sua importância para seguir preservando as sociedades no papel de gerar o sentimento de pertencimento e o acolhimento dos membros, além de manter os institutos em funcionamento com seu tripé: análises, seminários e supervisões.

Mas o que dizer sobre a formação no nosso Instituto Latino-Americano de Psicanálise (ILAP), que já nasceu essencialmente virtual? Como sabem, o Instituto pertence à IPA e trabalha levando a formação psicanalítica, com base em seus parâmetros, aos países em que não existem psicanalistas nem instituições psicanalíticas ligadas à IPA-FEPAL.

Não tem uma sede, nem uma sociedade, funciona gerido por um Conselho Diretivo constituído por membros de diferentes países que buscam encontrar as melhores e mais criativas soluções para conduzir as formações, com os grandes obstáculos inerentes, justamente, à falta dessas referências naqueles países.

Percebi, com meus colegas de diretoria, desde o princípio, que a grande carência dessa formação residia na falta de uma casa/sociedade que pudesse integrar todos os envolvidos no projeto, e que gerasse uma comunidade com sentimento de pertencimento. Como construir uma formação sem essa casa congregadora? Javier García (2022), primeiro diretor do ILAP, reflete acerca do vazio de não contar "com os cimentos da casa de formação, com as suas histórias". Somos gestores de um Instituto virtual que reclama presença, calor, coesão e um corpo institucional. A pergunta que se impõe é como contribuir com os analistas em formação para construir, como diz Javier García, "piso, paredes e o espírito grupal que não os precedeu"?

Entendo que nosso grande desafio está nessa construção simbólica de paredes, mas paredes estas que também devem conter e dar lugar à diversidade cultural dos distintos países.

Assim, uma escuta dessas diferenças, com seus matizes singulares, assomou como o primeiro movimento para um projeto de gestão do ILAP.

Nosso clássico tripé, desde o início, encontrou maiores dificuldades na conformação das análises pessoais dos analistas em formação.

Em seus princípios, o ILAP contava apenas com as análises condensadas, feitas mediante viagens dos analistas didatas ao país dos grupos de analisandos que tinham ao seu encargo. Aos poucos, com o avanço das tecnologias da comunicação e a paulatina incorporação dessas práticas, foram-se integrando à modalidade de análises concentradas as virtuais por Skype, compondo um modelo híbrido, no qual a IPA designou um percentual de 70% de horas presenciais e um de 30%, feito remotamente. Essa inclusão da virtualidade já auxiliou muito para que as ausências entre as visitas do analista ao país do analisando não fossem sentidas como abismais, gerando a solução de continuidade entre os encontros presenciais.

Até o momento pré-pandêmico as análises funcionaram nessas condições. Quais os problemas que a experiência tornou visíveis ao cabo desse tempo?

Em primeiro lugar, o cansaço. É difícil sustentar por anos os deslocamentos do analista com a frequência proposta. A turbulência que essa condição de movimento promove, em suas dimensões emocionais e financeiras, costuma ter um limite não muito longo. A tendência a ir, por um ou outro motivo, espaçando as viagens e substituindo-as pelas sessões remotas, numa silenciosa corrupção do plano original, é muito alta.

A outra situação que chama a atenção é uma incômoda endogamia, com evidentes repercussões nos processos analíticos, ao ser compartilhado o analista por até cinco analisandos de um mesmo grupo.

A impossibilidade de escolha do analista é outra vicissitude bastante limitante da experiência de análise. A designação de um mesmo analista para um grupo com base em critérios pragmáticos, como distância e custo de viagem, pode levar a uma submissão do analisando a uma distopia no processo analítico por desencontros naturais na subjetividade do vínculo analista-paciente,pode não atrever-se a assumir e a manifestar seu mal estar, pelo temor de criar situações que inviabilizem sua permanência na formação.

A países como a Nicarágua, por exemplo, pelas turbulências sociopolíticas que atravessa, não é seguro viajar. A situação de caos, em virtude das ações repressoras e totalitárias do governo daquele país, vem precarizando financeiramente a população, o que tem levado analistas em formação a emigrar. Situações como essa impedem absolutamente a presencialidade.

Com o advento da pandemia e a ampliação ao percentual de 100% de toda a experiência do tripé de transmissão da psicanálise, transformações importantes surgiram na dinâmica da formação do ILAP.

O relato dos analistas em formação salienta o ritmo uniforme da experiência da análise virtual, conduzindo a uma metabolização mais equilibrada da vivência analítica em relação à alternância da grande intensidade nos encontros condensados, com os longos períodos de ausência próprios da modalidade apenas presencial. Da mesma forma, os processos de supervisão e de transmissão por meio dos seminários promovem uma sensação de maior estabilidade no ritmo da aquisição do conhecimento, contemplando melhor a organização para as leituras.

A modalidade remota também permite os seminários semanais e de mais longa duração, o que se acredita produzirá uma elaboração mais profunda da experiência de aprendizagem em nosso Instituto.

Além disso, os seminários passaram a incluir todos os grupos dos distintos países juntos. Esse formato qualificou enormemente a formação sob vários aspectos. A troca científica, com a riqueza que aporta a diversidade cultural dos grupos em diálogo, trouxe um estímulo e um entusiasmo explicitados e celebrados por toda a comunidade ilapiana. Ademais, essa integração dos colegas é exatamente um dos preciosos cimentos que desejamos para a construção das nossas paredes.

Outro ponto fundamental em defesa da virtualidade para a formação no ILAP parece ser a liberdade de escolha para o analista em formação. É desejável que possa escolher seu analista e supervisor com base em critérios transferenciais, essencialmente psicanalíticos, em vez da submissão a uma ordem que restringe as funções didáticas a conveniências como geografia e custos de viagem.

Nesse ponto tropeçamos em condições muito desiguais para a formação dos candidatos, já que aqueles que possuem melhor situação financeira gozam do direito à escolha, ao poder viajar por conta própria, enquanto os menos abastados devem restringir-se ao estabelecido.

Quanto à supervisão, da mesma forma, a virtualidade possibilita a escolha do analista supervisor que melhor responda à busca daquele que está em formação quanto ao esquema referencial, a forma de pensar, o estilo, a experiência etc.

Parece que se produziu uma revitalização do ILAP com a intensificação dos processos virtuais, no reencontro com o verdadeiro sentido de uma formação psicanalítica. Ritmos de absorção das experiências mais compatíveis com as possibilidades humanas, maior integração e entusiasmo com base em uma convivência mais estreita dos analistas em formação entre si, enriquecendo-se com a diversidade cultural do grupo. Ainda uma maior proximidade com a diretoria e com os analistas colaboradores, que também podem estar mais envolvidos a partir do chamado a comparecer virtualmente.

A presença tem insofismáveis qualidades, isso não está em questão, e ela deve ser mantida quando se decretar o fim da crise sanitária pela covid-19.

A pergunta que se impõe, entretanto, é por que, em se tratando de uma formação com grandes obstáculos devido à condição de ser à distância, se privilegiou a presença física num percentual de 70% para apenas 30% de virtualidade? Isso vem em detrimento de outros elementos também muito importantes, como a frequência das sessões, que terminam por ser sacrificados para viabilizar a condição onerosa desse percentual de presencialidade. Acredito que uma maneira de conduzir esse impasse seria revisar e modular os percentuais, apenas reduzindo a presença física, já que a análise online mostrou tão exitosos resultados. Destaco que a proposta é reduzir, não eliminar a presença, com seu fenômeno estético irreproduzível.

Uma formação à distância, como a que realiza o ILAP, exige reflexão permanente, que leve em conta um contexto extremamente complexo, como a situação interna dos países latino-americanos, sempre instável e precária, além dos parâmetros da transmissão da psicanálise exigidos pela IPA e os limites emocionais do grupo humano envolvido, analistas em formação, didatas colaboradores e diretoria do Instituto, para integrar essa experiência coletiva e singular.

Construir um projeto de formação nessas condições requer criatividade, invenção, busca de soluções que levem em conta as especificidades de cada situação, com base em um contínuo pensar sobre os fundamentos da transmissão da psicanálise e a possibilidade de sua realização nas circunstâncias, muitas vezes adversas, que se oferecem.

Nesse caminho, a paixão e o entusiasmo pela invenção freudiana têm que ser incessantemente convocados, sem deixar-se mofar por critérios meramente burocráticos, que teimam em imiscuir-se nos processos formativos, sepultando definitivamente a criatividade. Aquilo que é mais íntimo e caro à psicanálise, a liberdade para experimentar e descobrir, precisa ser preservado e permanentemente resgatado.

Nesse sentido, a virtualidade, incrementada com a pandemia, parece ter vindo em nosso auxílio. Provou sua eficácia, muitas vezes questionada, nos processos analíticos e marcou sua importância para manter viva a chama da psicanálise em toda a extensão de seu tripé.

O uso das tecnologias repercutiu em nossas vidas como os "vagalumes de esperança", de que fala Yolanda Gampel (2022), citando Didi Huberman, que oferecem resistência à escuridão. O breu mortífero da pandemia foi desafiado pelo nosso desejo de "buscar vagalumes" que resgatem a luz por meio do encontro possível com o outro. O desejo de liberdade, transcendência e outridade foi o que animou nosso lançamento pelos caminhos da virtualização. E esse percurso revelou facetas que vêm renovando e diversificando nosso apetite pelo que está além de nós mesmos. Psicanálise e virtualidade, tecidas juntas, descobrem, nesta cultura e neste tempo, novas e significativas aberturas para o encontro humano.

 

Referências

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Recebido em: 11/4/2022
Aceito em: 13/4/2022

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