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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. vol.55 no.102 São Paulo jan./jun. 2022
HIPERCONECTIVIDADE E EXAUSTÃO
Exaustão: como os algoritmos estão tecendo o sofrimento psíquico da hiperconectividade
Exhaustion: how algorithms are weaving the psychic suffering of hyperconnectivity
Agotamiento: cómo los algoritmos están tejiendo el sufrimiento psíquico de la hiperconectividad
Épuisement : comment les algorithmes tissent la souffrance psychique de l'hyperconnectivité
Marielle Kellermann Barbosa
Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Campinas / mariellekbarbosa@gmail.com
RESUMO
O presente artigo busca descrever um cenário pós-pandemia no qual pacientes e psicanalistas estão juntos, presentes no mesmo tecido da hiperconectividade. Termo este que designa tanto a presença online como a lógica que constitui a extração e o compartilhamento de dados na internet, lançando o sujeito humano a uma condição nova no que se refere à relação com a tecnologia. Convida-se para o diálogo o psicanalista Fabio Herrmann, que, com sua postulação acerca do método, nos permite discordar de Byung-Chul Han quando este afirma que a psicanálise não nos oferece acesso algum ao sofrimento próprio da pós-modernidade. Apesar de discordar neste ponto, tomam-se as postulações do filósofo coreano como próximas à compreensão dos pacientes no consultório da atualidade, em especial as condições de sintomas como depressão, burnout e a nova economia da atenção.
Palavras-chave: hiperconectividade, psicanálise, sociedade do cansaço, burnout, sofrimento psíquico
ABSTRACT
This article seeks to describe a post-pandemic scenario in which patients and psychoanalysts are together, present in the same fabric of hyperconnectivity. This term designates both the permanent online presence and the logic that constitutes the extraction and sharing of data on the internet, launching the human subject to a new condition regarding the relationship with technology. The psychoanalyst Fabio Herrmann is invited to the dialogue, who, with his postulation about the method, allows us to disagree with Byung-Chul Han when he claims that psychoanalysis does not offer us any access to the suffering typical of post-modernity. Despite disagreeing on this point, the postulations of the Korean philosopher are considered to be close to the understanding of patients in today's office, especially to the conditions of symptoms such as depression, burnout and the new economy of attention.
Keywords: hyperconnectivity, psychoanalysis, fatigue society, burnout, psychic suffering
RESUMEN
Este artículo busca describir un escenario pospandemia en el que pacientes y psicoanalistas están juntos, presentes en un mismo tejido de hiperconectividad. Este término designa tanto la presencia permanente en línea como la lógica que constituye la extracción y el intercambio de datos en internet, lanzando al sujeto humano a una nueva condición en cuanto a la relación con la tecnología. Se invita al diálogo al psicoanalista Fabio Herrmann, quien, con su postulación sobre el método, nos permite disentir de Byung-Chul Han cuando afirma que el psicoanálisis no nos ofrece ningún acceso al sufrimiento propio de la posmodernidad. A pesar de discrepar en este punto, los postulados del filósofo coreano se consideran cercanos a la comprensión de los pacientes en el consultorio actual, especialmente a las condiciones de síntomas como la depresión, el burnout y la nueva economía de la atención.
Palabras clave: hiperconectividad, psicoanálisis, sociedad de la fatiga, burnout, sufrimiento psíquico
RÉSUMÉ
Cet article cherche à décrire un scénario post-pandémique dans lequel patients et psychanalystes sont ensemble, présents dans le même tissu d'hyperconnectivité. Ce terme désigne à la fois la présence permanente en ligne et la logique qui constitue l'extraction et le partage de données sur internet, lançant le sujet humain à une condition nouvelle concernant le rapport à la technologie. Le psychanalyste Fabio Herrmann est invité au dialogue, qui, avec sa postulation sur la méthode, nous permet d'être en désaccord avec Byung-Chul Han lorsqu'il prétend que la psychanalyse ne nous offre aucun accès à la souffrance typique de la post-modernité. Bien qu'ils soient en désaccord sur ce point, les postulats du philosophe coréen sont considérés comme proches de la compréhension des patients en cabinet d'aujourd'hui, en particulier sur les conditions de symptômes tels que la dépression, l'épuisement professionnel et la nouvelle économie de l'attention.
Mots-clés: hyperconnectivité, psychanalyse, société de la fatigue, burnout, souffrance psychique
Vinhetas
Do analista
Ano de 2022, dois anos de pandemia. Todos os psicanalistas foram levados, sem consulta prévia, a trabalharem online com seus pacientes. Além das sessões com os pacientes e das próprias sessões com seus analistas, supervisões, seminários, cursos, a formação - tudo passou a acontecer através de uma tela, sem deslocamento no espaço.
Do paciente profundamente deprimido
Ele não tem repertório simbólico para se pensar. As reflexões são extraídas a fórceps do analista dedicado a encontrar algum sentido nos sintomas físicos lancinantes de dor. Melhorados os sintomas, o paciente encerra o contato.
Da nova economia da atenção
Paciente de 14 anos, vem pouco presencialmente, diz que a mãe está ocupada para trazê-lo. Sua analista sabe, também, que é cômodo para ele atender a chamada de sua cama, desligar no fim da sessão e seguir com o dia, sem se deslocar até o consultório. Esse paciente diz ter um aplicativo no celular que mostra o tempo em que fica em redes sociais. No dia anterior, tal medidor apontou que tinha estado 12 horas no TikTok.1 Ele diz: "Não é possível, ontem eu fui na escola." "O que você vê no TikTok?" - pergunta a analista. "Não sei. "
De sintomas de burnout
Paciente com 20 e poucos anos, faz faculdade, estágio e um curso extra para se tornar programador. Todas as atividades são remotas. Senta-se ao computador às 7h30, levanta-se às 23 horas. Faz trabalhos e projetos para entregar aos finais de semana. Queixa-se de diversos sintomas mais físicos que mentais. Doem-lhe as costas. Tem bebido muito. Dorme mal, está irritado. Não sabe se vai encontrar horário para a sessão. Analista: "Você parece querer que eu te conserte, como a um computador. Parece achar estranho não funcionar bem trabalhando 16 horas por dia, como se você não fosse um ser humano."
Dos empreendedores de si mesmo
Paciente com 19 anos. Enfim, as tão aguardadas aulas na faculdade retornaram ao regime presencial e, com as aulas, festas, bares, encontros. Ela não bebe para não engordar, incomodada com o próprio corpo - mesmo após perder mais de dez quilos -, preocupada em "competir consigo mesma", em busca de sua "melhor versão" (falas da própria paciente).
Prelúdio
Esses fragmentos de situações descritas acima, embora particulares em suas narrativas, têm como linha de costura entre si um cenário do momento atual que articula pandemia, hiperconectividade e novas configurações de sofrimento psíquico.
Talvez apenas em momentos de guerra os analistas e pacientes se viram, de repente, imersos em condições semelhantes de incertezas, em decorrência de uma realidade externa comum. De uma semana para a outra, os profissionais tiveram que se adaptar (mesmo os que não tinham experiência prévia com atendimento remoto) a atender seus pacientes online, a novas configurações de rotina profissional e familiar, e, dessa maneira, psicanalistas que individualmente poderiam resistir à presença no mundo virtual não tiveram mais essa escolha.
As plataformas de reunião online já existiam, assim como atendimentos remotos e compras pela internet, mas a pandemia acelerou a ocupação desses espaços de maneira que talvez não acontecesse em muitos anos, não fosse a necessidade de isolamento.
Para qualquer lado para onde olharmos, a pandemia acelerou o caminho em direção às soluções digitais. O Conselho Federal de Medicina (cfm), por exemplo, acatou a prática da telemedicina, a educação passou a ser a distância, instituições bancárias digitalizaram (mais) seus serviços, iniciativas públicas reformularam seus procedimentos (Instituto Nacional do Seguro Social [inss], concursos públicos, Exame Nacional do Ensino Médio [Enem] etc.).
Tomo as vinhetas dos casos apresentados acima como exemplos de sujeitos do desempenho, tal como descritos por Byung-Chul Han, sujeitos exauridos em um narcisismo que implode, de dentro para fora, seja em apresentação deprimida, seja em sintomas físicos do corpo-mente levados à exaustão, seja por uma atenção cooptada pelas redes sociais que funcionam como doping mental (por exemplo, o paciente que ficou 12 horas no TikTok, mas sem ter plena noção do que estava vendo).
E nós, psicanalistas? Também sujeitos da pós-modernidade, alguns (como eu) millennials,2 também usuários de redes sociais e conduzidos (por vontade própria ou não) para a hiperconectividade. Qual a externalidade necessária que nos cabe para que o método psicanalítico siga operando, sem, ao mesmo tempo, nos colocarmos de fora a ponto de não podermos nos conectar com o que nossos pacientes vivem e nos contam?
Não foi sem intencionalidade que apresentei a primeira vinheta do próprio psicanalista e, em seguida, as de alguns pacientes, considerando que nós analistas não fugimos às imposições histórico-culturais de nosso tempo, por mais que, tradicionalmente, psicanalistas tenham se esforçado por apresentar-se numa externalidade artificial, com o objetivo de uma suposta neutralidade analítica. Se, antes de existirem redes sociais, alguma privacidade em relação a dados biográficos era possível, isso se apresenta muito diferente atualmente, com o acesso que temos a informações disponíveis na internet. Não faz muito tempo que psicanalistas não davam recibos do dinheiro recebido pelo seu trabalho (como se supostamente estivessem de fora do mercado de trabalho e das leis fiscais nacionais) ou seguiam um calendário compartilhado. Lembro-me de que certa vez meu analista disse que trabalharia em determinado feriado, e me vi pensando - será que ele acha que não mora no mesmo país que eu?
Alguma parede, ilusória ou real, foi demolida com a pandemia e, como numa diáspora invisível, duplas analíticas se mudaram de uma sala concreta para o espaço virtual. Vimos quartos diferentes, através da câmera, de onde nossos analistas nos atenderam. Ouvimos outros ruídos. Vimos a resistência ou a naturalidade com o novo formato de trabalho. Experienciamos - junto com nossos pacientes - a vida acontecer num único espaço. Algumas pessoas dormiam, trabalhavam e voltavam a dormir no mesmo cômodo, ao mesmo tempo que estavam conectadas a tudo e a qualquer conteúdo que desejassem acessar - cursos dos mais variados, lives de todos os temas, músicas, infindáveis séries. Pessoas se sentindo muito sozinhas; outras, sem um minuto de tempo ou um cômodo de espaço para a solidão. Do lado de fora, o medo da morte. Ruas vazias, cidades mais silenciosas.
Suponho que uma situação de ruptura - de tal magnitude - da normalidade das coisas seja um trauma social lento para se assimilar. Sem cair num maniqueísmo tolo, a mudança de setting do presencial para o remoto trouxe ganhos e perdas, a serem largamente discutidos pelos anos afora. Foi importante seguirmos com nossos pacientes em momento tão sensível. Tivemos a oportunidade de, passado o primeiro "susto", localizar-nos na nova situação, recuperarmos nossa capacidade de escuta e atualizar no aqui e agora a percepção de que cada paciente vive e lê uma mesma situação externa comum com as lentes da própria subjetividade - uns satisfeitos em poder ficar mais com os filhos em casa, outros com relacionamentos acentuadamente difíceis num ambiente de confinamento. Famílias se distanciando por longos períodos, outras estreitando relações com o mundo de fora em pausa. Pacientes que retornaram à análise, por entenderem que não precisavam interrompê-la por estarem em outra cidade. O cansaço das horas em frente à tela. Interpretações mais ousadas por não ter o corpo na cena. Experiência de esmorecimento do vínculo, sem os corpos presentes. Pessoalmente, considerei proveitoso voltar aos atendimentos presenciais, como se os corpos em cena e o espaço físico voltassem a ser instrumentos que, anteriormente, não calculávamos bem qual era a medida de sua participação no campo.
A pandemia de covid-19 no Brasil começou em 2020 e conduziu a todos para o universo do trabalho remoto e, assim, para o mundo virtual - desde profissionais de 80 anos até os millennials. E, em breve, chegará para a formação a geração nascida na segunda metade da década de 1990, chamada de geração z, a dos nativos digitais. Nativos esses que já são nossos pacientes, a trazerem notícias de um admirável mundo novo, por vezes difícil de acessar por uma questão própria da diferença geracional.
Depois da pandemia, passamos todos a estar hiperconectados - os nativos e os imigrantes digitais (Prensky, 2001).
Hiperconectividade
O termo hiperconectividade carrega um sentido mais imediato e outro não tão evidente. O primeiro refere-se à presença do usuário na rede, podendo ser acessado a qualquer momento e disponível para se engajar em alguma atividade online, seja responder a uma mensagem no WhatsApp, seja fazer uma compra, seja rolar o feed3 de uma rede social. Esse primeiro sentido é mais acessível pelas nossas próprias atitudes, já que inclui uma escolha "voluntária" (aqui cabem discussões a respeito da livre escolha em estar conectado) de acessar qualquer coisa na internet.
O segundo sentido do termo hiperconectividade pode ser menos evidente à apreensão consciente, pois refere-se à comunicação entre dispositivos, ou entre indivíduos e máquinas. Sigamos com as palavras de Magrani:
O termo hiperconectividade foi cunhado inicialmente para descrever o estado de disponibilidade dos indivíduos para se comunicar a qualquer momento. Esse termo possui alguns desdobramentos importantes. Podemos citar alguns deles: o conceito de always-on, estado em que as pessoas estão conectadas a todo o momento; a possibilidade de estar prontamente acessível (readily accessible); a riqueza de informações; a interatividade; e o armazenamento ininterrupto de dados (always recording). O termo hiperconectividade encontra-se hoje atrelado às comunicações entre indivíduos (person-to-person, p2p), indivíduos e máquina (human-to-machine, h2m) e entre máquinas (machine-to-machine, m2m) valendo-se, para tanto, de diferentes meios de comunicação..Há, neste contexto, um fluxo contínuo de informações e uma massiva produção de dados. (Magrani, 2019, pp. 20-21)
Quando, por exemplo, escolhemos olhar o celular para ver se há alguma mensagem no WhatsApp, podemos considerar estarmos em um âmbito de experiência em que um sujeito humano usa da sua escolha tão consciente quanto possível, para usar das facilidades oferecidas por uma máquina. Nessa cena, o sujeito obtém vantagem no uso da tecnologia. Era assim com a luz elétrica, com o automóvel e com o telefone.
Outro cenário, bem diferente, inclui situações que se assemelham a filmes de ficção científica, mas que já são realidade, tal qual brinquedos com microfones transmitindo informações do usuário (criança) para empresas terceiras. Mais do que vender informações que não escolhemos voluntariamente oferecer, os assistentes pessoais, como Alexa (Amazon), e dispositivos vestíveis (internet das coisas), tais como tênis e relógios, usam as informações colhidas para fins alheios ao interesse do usuário, legalmente protegidos por aqueles termos de uso (que ninguém lê...) nos quais clicamos: "eu aceito", "estou de acordo".
Por exemplo, os batimentos cardíacos captados por relógios com sensores e a quantidade de passos dados no dia serão utilizados para vender mais produtos, e talvez também para entregar soluções digitais em saúde (em breve, possivelmente seu médico receberá informações dos seus dispositivos vestíveis...). Quanto mais informação disponível na web, mais apurados serão esses cálculos algorítmicos. Simplificando muito: a estratégia é obter a maior quantidade de dados possível. E como se faz isso? Com mais tempo de tela e engajamento do usuário.
Exemplificando: quanto maior o número de pesquisas uma pessoa faz no Google, mais o Google aprende sobre seus interesses e, assim, é capaz de entregar propagandas mais direcionadas e específicas (com maior chance de compra). Quanto mais tempo no TikTok, mais o TikTok aprende a seu respeito - quais vídeos assiste até o fim, quais compartilha, quais nem vê, quais perfis segue - e oferece conteúdo relevante de volta, além de vender essas informações para quaisquer usos pelos quais o mercado tenha interesse, eleger presidentes, vender pasta de dente ou interligar os dados disponíveis na criação de um metaverso (um tipo de mundo virtual que tenta replicar a realidade através de dispositivos digitais). Nesse cenário, já não temos mais clareza de quem está usando quem.
No popular documentário O dilema das redes (2020), há um chiste que diz "os únicos dois mercados cujos clientes são chamados de usuários são o das drogas e o da internet".
Pois bem, e como a psicanálise se relaciona com TikTok, metaverso e algoritmos?
A hiperconectividade como quotidiano (teoria dos campos)
Fabio Herrmann, em seu livro Andaimes do real: psicanálise do quotidiano (2001), diz, no prefácio, que muito mais se escreve sobre o tratamento analítico que sobre o humanístico dia-dia, e que seu livro pretendia analisar as regras de constituição do quotidiano, pois a psique, o objeto da psicanálise, ocorre essencialmente na vida quotidiana dos homens e voltar ao quotidiano é voltar à casa paterna (Herrmann, 2001, p. 9).
Tomemos, então, o fato de estarmos todos, pacientes e analistas, hiperconectados, como o humanístico dia-dia, e investiguemos as regras que constituem esse quotidiano. Minerbo nos auxilia a entender Herrmann. Ela diz:
Ao postular a ideia de campo de uma relação (inconsciente relativo), o referencial metateórico que utilizamos permite instrumentar o método psicanalítico de modo que seja possível não apenas a psicanálise de pacientes, mas também psicanálises dos mais variados "tecidos" psíquicos que podem então ser estudados. (Minerbo, 1993, p. 247)
Seguimos pelas ideias de Herrmann, nas palavras de Minerbo, e tomemos a experiência da hiperconectividade enquanto um tecido que justifica o olhar psicanalítico para "o processo incessante de produção de sentido psíquico no mundo" (Herrmann, 2001, p. 34).
A teoria dos campos, de Fabio Herrmann, planteia exorcizar a dicotomia entre fantasia interna e realidade externa. Na definição do autor, a psique do real seria um conjunto de pressupostos inconscientes que determina formas possíveis de ser em uma determinada época. Segundo essa compreensão, o inconsciente individual não foge ao inconsciente geral da época em que está inserido. Realidade e identidade são ideias gêmeas, sendo a primeira designada como a representação do mundo que toca o sujeito e a segunda a representação do sujeito para si mesmo.
O real, como produtor de sentidos, é inacessível de maneira direta, e apenas apreensível "na atividade de seus campos particulares, isso é, na medida em que funda formas de relação determinadas, provê-las de sentido, fá-las funcionar ... o quotidiano é o lugar onde o real se transforma em realidade" (Herrmann, 2001, p. 34).
Dessa maneira, não há nenhuma representação da realidade que exclua sua matriz. Por exemplo, não é possível a existência de uma peça de plástico que exclua a extração do petróleo, a máquina que a fabrica e o sistema mercadológico que a faz chegar até nossa casa. Nesse sentido, o autor diz que qualquer conjunto de relações capazes de estabelecer uma realidade abarcativa configura-se como um quotidiano, sendo o quotidiano constituído de tal maneira que qualquer parte sua seja também o todo. "Podemos cavar nossos poços de prospecção onde quer que nos apeteça, certos de encontrar uma jazida de realidade e um campo do real" (Herrmann, 2001, p. 36).
Esse quotidiano supõe um campo do real a produzi-lo e sustentá-lo. No entanto, essas relações e sentidos não são transparentes ou evidentes, sendo apenas reveladas pelas suas representações.
Herrmann ressalta o perigo de criarmos quotidianos psicanalisáveis, isto é, que tomemos porções de mundo condizentes com nossas teorias. A respeito dessa ressalva, observo como se faz necessária a proposta de Herrmann no que tange ao método psicanalítico, em contraposição às teorias: estas podem mudar e até tornarem-se obsoletas; aquele segue operando apesar das diferenças de tempo e de espaço.
Da mesma forma que Herrmann exemplifica que nenhum pedaço de plástico (representação da realidade) exclui sua matriz-extração, produção e distribuição, é possível considerar que de nenhum sujeito contemporâneo com acesso à internet, em especial os nativos digitais, seja possível excluir essa matriz da hiperconexão. Difícil seria entender um paciente de 14 anos que passa 12 horas no TikTok sem considerar que esse sujeito está agindo de acordo com uma determinada lógica que o abarca. Uma lógica econômica que se abastece de tempo de tela e que emprega significativos recursos financeiros para alcançar esse objetivo, e que, sendo configurada dessa maneira, vai criar sofrimentos psíquicos próprios de seu tecido, modificando a economia da atenção.
Byung-Chul Han, filósofo de origem coreana, professor da Universidade de Artes de Berlim, parece despontar como uma voz interessante para se pensar essas novas configurações de sofrimento psíquico próprias da era da hiperconectividade.
O cansaço como novo mal-estar
Byung-Chul Han postula que os sofrimentos psíquicos atuais se referem menos às consequências de uma psique e uma cultura repressoras e mais ao inverso disso, uma sociedade da transparência, para usar outro conceito do mesmo autor (Han, 2012/2017a).
A sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade. É determinada pela negatividade da proibição... No lugar da proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação. A sociedade disciplinar ainda está dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados. (Han, 2010/2017b, pp. 24-25)
Byung-Chul Han diz que "a psicanálise não oferece nenhum acesso a elas" (2010/2017b, p. 88), referindo-se ao que chama de "doenças psíquicas de hoje", tais como depressão, burnout, déficit de atenção. Ouso discordar do filósofo coreano. Apesar de compreender bem o seu ponto, parece-me que Han faz afirmação tão contundente apoiando sua análise exclusivamente nas teorias metapsicológicas da psicanálise, e não no método, como proposto por Herrmann.
É verdade que alguns pacientes que nos chegam deprimidos agora, mais de cem anos depois da publicação de "Luto e melancolia" (1917[1915]/2010), não nos parecem caber nas teorizações de Freud. Seguimos com o argumento de Han, que, apesar de pouco distendido no seu texto, parece calar profundamente com a experiência clínica que encontramos no consultório hoje. Ele diz:
Freud concebe a melancolia como uma relação destrutiva com aquele outro, que foi internalizada como parte do si-mesmo... Mas não há nenhuma relação conflitiva, ambivalente com o outro, que tenha se perdido, que preceda a enfermidade depressiva do sujeito de desempenho atual. Ali não há qualquer participação da dimensão do outro. O responsável pela depressão, na qual acaba desembocando o burnout, é antes de mais nada a autorrelação sobre-exaltada, sobremodulada, narcisista, que acaba adotando traços depressivos. O sujeito do desempenho esgotado, depressivo está, de certo modo, desgastado consigo mesmo... Totalmente incapaz de sair de si, estar lá fora, de confiar no outro, no mundo, fica se remoendo, o que paradoxalmente acaba levando a autoerosão e ao esvaziamento. (Han, 2010/2017b, pp. 90-91)
Talvez o paciente deprimido de hoje refira-se menos a estar submetido à sombra do objeto perdido, e mais a essa implosão narcísica com pouca entrada do outro. Byung-Chul Han lança luz sobre um tipo de sintomatologia própria de sua época, o que não exclui a potência do método psicanalítico (mesmo que algumas teorizações sejam datadas).
O burnout, com seu conjunto de sintomas mais físicos que mentais, apresentados em sujeitos deprimidos, com dores dispersas pelo corpo, insônia, abuso de álcool e atenção difusa, parece ser atividade do real agindo no campo particular das relações de trabalho, com as características do tempo próprio da hiperconectividade, no qual o sujeito do cansaço se exaure em entrega supostamente voluntária, cooptado pelos tecidos de uma sociedade que promete fortuna e felicidade àqueles que se oferecem em sacrifício aos ideais da meritocracia e dos empreendedores de si mesmo.
Seguindo com as ideias de Han, o homem depressivo se livrou das amarras da coerção externa e se tornou explorador de si mesmo. A pandemia parece ter acelerado esse processo a uma velocidade não prevista quando o autor coreano escreveu seu livro. Não acredito que haja um psicanalista que não tenha presenciado com seus pacientes, e em si próprio, o aumento das horas laborais com a transposição para o modelo de trabalho remoto. Se antes da pandemia os deslocamentos espaçotemporais marcavam separações e atribuíam barreiras a essa lógica, o novo modelo parece ter funcionado com a potência de um tsunâmi, no qual mensagens de WhatsApp passaram a invadir noites, madrugadas, fins de semana e férias. "O homem depressivo é aquele animal laborans que explora a si mesmo e, quiçá, deliberadamente, sem qualquer coação externa." (Han, 2010/2017b, p. 28).
Finalizando
Byung-Chul Han não usa o termo hiperconectividade, mas fala em transparência, em excesso de positividade, em vivermos num mundo pobre de entremeios. Usa de significantes poéticos para contar sobre a atividade do real em nosso quotidiano. Larry Page, um dos fundadores do Google, em 2001, frente à pergunta "O que é o Google?", disse: "Se tivéssemos que nos encaixar numa categoria, seria informação pessoal ... Pessoas irão gerar enormes quantidades de dados... Tudo o que você algum dia ouviu ou viu ou vivenciou se tornará pesquisável. A sua vida inteira será pesquisável." (citado por Zuboff, 2019, pp. 119-120).
É certo que este texto é inicial e não tem pretensão de encerrar as questões levantadas, mas antes apontar para um fio de conexão entre esse novo tecido quotidiano da hiperconectividade e as apresentações de sofrimento psíquico que encontramos nos consultórios. Se há cem anos era necessário desvelar sentidos, hospedar desejos, atualmente a psicanálise pode ser arma vigorosa ao apontar para a falta de sombra que a sociedade da transparência traz, para o sujeito que se extingue em oferenda a algum ideal de sucesso e perfeição. O mundo pode estar diferente, mas o método segue operando.
Referências
Freud, S. (2010). Luto e melancolia. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 12, pp. 170-194). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917[1915] [ Links ])
Han, B.-C. (2017a). Sociedade da transparência (E. P. Giachini, Trad.). Vozes. (Trabalho original publicado em 2012) [ Links ]
Han, B.-C. (2017b). Sociedade do cansaço (E. P. Giachini, Trad., 2.ª ed.). Vozes. (Trabalho original publicado em 2010) [ Links ]
Herrmann, F. (2001). Andaimes do real: psicanálise do quotidiano. Casa do Psicólogo. [ Links ]
Magrani, E. (2019). Entre dados e robôs: ética e privacidade na era da hiperconectividade (2.ª ed.). Arquipélago. [ Links ]
Minerbo, M. (1993). Intimidade e formas de intimidade: da escuta à teorização. Revista Brasileira de Psicanálise, 27(2),223-248. [ Links ]
Orlowski, J. (Diretor). (2020). O dilema das redes [Documentário]. Netflix. [ Links ]
Prensky, M. (2001). Digital natives, digital immigrants. On the Horizon, 9(5), 1-6. https://bit.ly/3Iz8VBY [ Links ]
Zuboff, S. (2019). A era do capitalismo de vigilância. Intrínseca. [ Links ]
Recebido em: 14/3/2022
Aceito em: 16/3/2022
1 TikTok é uma plataforma virtual com conteúdo gerado por usuários que oferece ferramentas de edição de vídeo e de áudio. Os vídeos são curtos, com duração de 15 segundos a 3 minutos.
2 A geração y, também chamada geração do milênio, geração da internet (do inglês: millennials), é um conceito em sociologia que se refere ao corte dos nascidos após o início da década de 1980 até, aproximadamente, o final do século XX.
3 O termo feed vem de web feed, traduzível para fluxo web, um fluxo de conteúdo que permite rolagem. Referido termo é usado para designar páginas de conteúdo nas redes sociais.