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Journal of Human Growth and Development
versão impressa ISSN 0104-1282
Rev. bras. crescimento desenvolv. hum. vol.21 no.2 São Paulo 2011
PESQUISA ORIGINAL ORIGINAL RESEARCH
Influência do exame médico-legal na responsabilização do autor da violência sexual contra adolescentes
Influence of forensic examination on the accountability of sexual violence authors in teenagers
Jefferson DrezettI, VIII; Lia JunqueiraII; Roberto TardelliIII; Irene Pires AntonioIV; Hugo Macedo Jr. V, VIII; Maria Auxiliadora F. VertamattiVI, VIII; Renata Martins PimentelVII, VIII; Luiz Carlos de AbreuVIII
IMédico ginecologista. Membro do Centro de Referência da Criança e do Adolescente. Coordenador do Núcleo de Violência Sexual e Aborto Previsto em Lei do Centro de Referência da Saúde da Mulher. São Paulo,SP
IIAdvogada. Coordenadora do Centro de Referência da Criança e do Adolescente. São Paulo,SP
IIIPromotor Público de Justiça. Membro do Centro de Referência da Criança e do Adolescente. São Paulo,SP
IVPsicóloga do Centro de Referência da Criança e do Adolescente. São Paulo,SP
VMédico de Família e Comunidade. Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Publica da Universidade de São Paulo, FSP/USP. São Paulo,SP
VIMédica ginecologista. Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina do ABC. Santo André, SP
VIIFisioterapeuta. Departamento de Medicina Preventiva. Curso de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo, UNIFESP/EPM. São Paulo,SP
VIIILaboratório de Escrita Científica. Faculdade de Medicina do ABC. Santo André, SP
RESUMO
OBJETIVO: avaliar a influência do exame médico-legal na responsabilização criminal de acusados de violência sexual contra adolescentes do sexo feminino.
MÉTODO: foram analisados retrospectivamente 137 processos judiciais de estupro contra adolescentes matriculadas no Centro de Referência da Criança e do Adolescente entre janeiro de 1995 e dezembro de 2004. Os laudos do Instituto Médico Legal foram classificados como negativos ou positivos para a materialidade do crime sexual e confrontados com a sentença judicial, condenatória ou não para o acusado. Os dados foram informatizados em Programa EpiInfo e submetidos ao teste de Qui-quadrado para Tabelas de contingência, fixando-se em p < 0,05 o nível de rejeição da hipótese de nulidade.
RESULTADOS: em 30 casos (21,9%) o laudo foi concordante com a queixa de estupro. Em 107 casos (78,1%) o exame médico-legal não encontrou evidência material do crime sexual. Entre os exames positivos, 25 acusados (83,3%) foram condenados, enquanto nas perícias negativas ocorreram 68 condenações (63,5%).
CONCLUSÕES: o exame médico-legal positivo se associou com maior probabilidade de condenação do acusado da violência sexual. A ausência de elementos comprobatórios materiais não impediu a responsabilização de parte expressiva dos acusados, indicando que outros meios de convencimento são admitidos pela justiça.
Palavras-chave: violência sexual; adolescência;direitos humanos.
ABSTRACT
OBJECTIVE: to evaluate the influence of forensic examination on the accountability of sexual violence criminal charges in adolescent girls.
METHOD: retrospective study, it was analyzed 137 lawsuits rape in teenagers enrolled in the Reference Center for Children and Adolescents between January 1995 and December 2004. The awards of the Forensic Institute were classified as negative or positive for the materiality of sexual crimes and confronted with the judicial sentence, condemnatory or not. Data was computerized in EpiInfo Program and subjected to chi-square test for contingency tables, considering p < 0.05 the level of rejection of the hypothesis of nullity.
RESULTS: in 30 cases (21.9%) the award was consistent with the complaint of rape. In 107 cases (78.1%) the forensic examination found no physical evidence of sexual crime. Among the positive cases, 25 accused (83.3 %) were condemned, while in the negative skills it was observed 68 condemnations (63.5 %).
CONCLUSIONS: the positive forensic examination was associated with the most part of probability of condemnation of the accused of the sexual violence. The absence of corroborative material elements did not obstruct the accountability of expressive part of the accused subjects, indicating that other means of persuasion are accepted by the courts.
Key words: sexual violence; adolescence; human rights.
INTRODUÇÃO
Apesar das definições legais sobre a violência sexual variarem de acordo com a legislação de cada país, a maioria delas considera a imposição da força física, da intimidação e a não concordância da vítima para a incriminação do autor da violência 1. As constatações médico-legais são de grande importância nos casos de abuso sexual, tanto para a comprovação do crime como para a identificação e a responsabilização do autor da violência. Nesse sentido, o registro das lesões físicas, dos sinais de resistência, das evidências de contato sexual recente e da condição himenal da vítima são elementos fundamentais 2. No entanto, grande parte dos perpetradores não é condenada por falta de evidências materiais, muitas vezes esperadas pela justiça3.
A taxa de exames periciais com resultado concordante com a queixa apresentada pela vítima é variável e depende de diferentes fatores. As evidências indicam que a maioria dos crimes sexuais não envolve uso de força física, prevalecendo a intimidação psicológica. Nesses casos, a ameaça exclusiva e sem uso de violência justifica a baixa frequência de traumatismos físicos, verificada entre mulheres adolescentes e adultas 4. O tipo de ato sexual praticado também se mostra relevante. Na ausência de violência física, adolescentes e mulheres adultas que sofrem crimes com penetração vaginal poucas vezes apresentam danos genitais clinicamente evidentes. Exceção cabe aos casos de violência sexual contra crianças, onde a desproporcionalidade anatômica resulta em elevada frequência de danos genitais5.
Outros fatores limitam os resultados do exame pericial, como o acesso das vítimas ao exame médico legal. Mesmo quando disponibilizado, apenas pequena parcela das mulheres realiza o exame dentro de prazo adequado para a coleta de evidências ou para a identificação de sinais físicos da violência. Impacto emocional, temor do exame pericial ou vulnerabilidade social podem justificar a dificuldade para realizar o exame em momento oportuno6, 7.
O diagnóstico da rotura himenal recente, considerado elemento relevante, encontra limitação na precocidade sexual de muitas adolescentes, ou na vida sexual cotidiana da maioria das mulheres adultas8. Quando em condição de virgindade, resta a possibilidade da complacência himenal, que restringe a análise da membrana como parâmetro para identificar a penetração vaginal recente6,9. Outra dificuldade é a heterogeneidade dos recursos disponíveis para o exame, muitas vezes incompletos ou de acurácia limitada, comprometendo diretamente a qualidade das conclusões6.
Os casos de violência sexual tipificados na legislação penal brasileira são classificados como Crimes Contra a Dignidade Sexual. Entre eles, destaca-se o crime de estupro, caracterizado no artigo 213 como "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso" 10. Entende-se por violência o uso de força física suficiente para superar a resistência da vítima. Por grave ameaça se define a ameaça do autor de praticar dano para a vítima, capaz de neutralizar psicologicamente sua reação. A conjunção carnal corresponde exclusivamente à penetração vaginal e o ato libidinoso compreende toda prática sexual diferente da penetração vaginal11.
O estupro de vulnerável, artigo 217-A, define como crime ter conjunção carnal ou praticar ato libidinoso com menor de 14 anos. Acrescenta o § 1º que incorre no mesmo crime quem pratica as mesmas ações contra alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem discernimento para a prática sexual ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência10.
No Brasil, o Instituto Médico Legal (IML), subordinado às Secretarias de Segurança Pública, é o órgão oficialmente autorizado a emitir para a justiça laudo técnico sobre o crime sexual, denominado Exame de Corpo de Delito e Conjunção Carnal 12. Em nosso meio, menos de 15% dos crimes com penetração vaginal apresentam exame médico-legal concordante, com valores em torno de 30% quando há penetração anal em mulheres adultas e adolescentes6,13,14.
Mesmo assim, há evidências de que as provas médico-legais são fortemente valoradas pela justiça e, na sua ausência, muitas vítimas terminam desacreditadas ou tem sua queixa desqualificada15. O direito à justiça termina prejudicado ou obstruído pela incapacidade de compreender as limitações da medicina forense. Com isso, muitos autores não são responsabilizados, apesar da violência sexual ser severamente condenada pelos textos clássicos do direito16.
Considerando-se a hipótese de que o exame médico legal tem particular relevância para as decisões da justiça, o objetivo é avaliar a influência do exame médico-legal na responsabilização criminal de acusados de violência sexual contra adolescentes do sexo feminino.
MÉTODO
Estudo retrospectivo com dados de 137 prontuários de adolescentes do sexo feminino vítimas de estupro, matriculadas no Centro de Referência da Criança e do Adolescente (CERCA) entre janeiro de 1995 e dezembro de 2004, com processo concluído e sentenciado em primeira instância pelo Poder Judiciário do Estado de São Paulo. A casuística considerou a análise da idade das vítimas; tipo de crime sexual; forma de constrangimento; tipificação do autor da violência; e o local de abordagem da vítima.
Foram considerados critérios de inclusão: 1) alegação de crime sexual de estupro, conforme artigo 213 do Código Penal brasileiro, ou de estupro de vulnerável, artigo 217-A; 2) resultado do laudo de Exame de Corpo de Delito e Conjunção Carnal, realizado pelo IML; 3) processo criminal concluído com sentença em primeira instância de Vara Criminal do Poder Judiciário do Estado de São Paulo. Foram excluídos da amostra: 1) outros crimes sexuais tipificados na legislação penal brasileira; 2) casos de violência sexual contra adolescentes do sexo masculino; 3) casos de caracterização duvidosa nos artigos 213 e 217-A; e 4) situações de falsa alegação de crime sexual.
As variáveis de estudo foram analisadas considerando-se as categorias de inclusão: 1) resultado do exame médico-legal: positivo ou negativo, 2) responsabilização do autor da violência: condenação ou não condenação. Para a classificação do exame médico legal considerou-se a conclusão do IML em laudo de Exame de Corpo de Delito e Conjunção Carnal. Para a responsabilização do autor foi considerada a decisão judicial de primeira instância, conforme sentença da Vara Criminal do Poder Judiciário.
Para a coleta de dados foram utilizadas cópias dos laudos de Exame de Corpo de Delito e Conjunção Carnal e das sentenças do Poder Judiciário, presentes no prontuário do CERCA de cada adolescente incluída no estudo. Os objetos das variáveis de estudo foram transferidos para ficha simplificada pré-codificada, introduzida em programa Epi Info6, versão 6.04b. A verificação da consistência dos dados foi realizada por dupla digitação, comparação dos arquivos pelo Epi Info6, identificação de divergências e correção de inconsistências de digitação. Para a análise estatística foi aplicado o teste de Qui-quadrado (x2) para Tabelas de contingência e associação, fixando-se em 0,05 (p < 0,05) o nível de rejeição da hipótese de nulidade, assinalando-se com um asterisco (*) os valores significantes.
RESULTADOS
A idade das adolescentes variou de 12 a 17 anos (13,7 ± 2,1).cx A queixa de crime de estupro com penetração vaginal foi verificada em 55 casos (40,1%), estupro com penetração anal em 51 casos (37,2%), e estupro com penetração vaginal e anal em 31 casos (22,6%). O crime sexual foi praticado com violência física em 11 casos (8,0%); grave ameaça em 52 casos (37,9%); e pela associação de ambas as formas em 20 casos (14,6%). Em 54 crimes sexuais (39,4%) não ocorreu uso de força física ou grave ameaça, caracterizando estupro de vulnerável.
O autor do abuso sexual foi apontado como o pai biológico em 48 casos (35,0%); padrasto em 48 casos (35,0%); tio em dois casos (1,4%); avô em dois casos (1,4%); e outro parente da adolescente em cinco casos (3,6%). A somatória dos acusados próximos ou membros do núcleo familiar foi de 76,4%. Em 13 casos (9,5%), o perpetrador da violência foi um membro da comunidade. Em outros 19 casos (13,8%) foram identificados diferentes autores não aparentados com a adolescente.
O crime sexual ocorreu na residência da adolescente em 92 casos (67,1%) e na residência do acusado em 29 casos (21,5%), totalizando 88,6% dos crimes ocorridos dentro de espaços privados. Em três casos (2,1%), a abordagem se deu no percurso da escola. Situações com menor frequência foram registradas em 12 casos (8,6%).
O resultado do exame de Corpo de Delito e Conjunção Carnal foi negativo para evidências materiais do crime sexual em 107 casos (78,1%). Em 30 casos (21,9%) o IML emitiu laudo concordante com a queixa do crime sexual. A relação entre o resultado do exame médico-legal e a responsabilização do autor da violência, mediante condenação da justiça, encontra-se resumida na Tabela 1.
O percentual de condenação do autor da violência sexual foi maior nos casos em que o exame médico-legal apresentou resultado comprobatório, resultando em diferença estatisticamente significante.
DISCUSSÃO
O exame himenal é considerado fundamental para o diagnóstico da rotura recente nos casos de penetração vaginal em adolescentes que ainda não iniciaram vida sexual. No entanto, a avaliação pode ser prejudicada pela frequente complacência da membrana que pode não apresentar lesões, mesmo consumada a violência sexual 6,9. Além disso, parte considerável das adolescentes inicia atividade sexual consentida antes da violência, limitando o percentual de casos em que o exame é aplicável5.
A condição himenal nos crimes sexuais também se relaciona com riscos para a saúde sexual e reprodutiva. A frequência de trauma genital entre mulheres virgens é duas vezes maior do que a verificada nas mulheres sexualmente ativas 4. Estima-se que a rotura himenal, mesmo que incompleta, possa aumentar o risco para DST, hepatites virais e HIV rompendo a integridade dos tecidos, mesmo que não ocorram traumas genitais 17. Além disso, a perda da virgindade em condições violentas pode resultar em sequelas emocionais graves em longo prazo, principalmente para mulheres jovens18.
Nos crimes sexuais os espermatozóides podem ser detectados no conteúdo vaginal, no canal cervical, na região anal ou na cavidade oral. Manchas de esperma podem ser identificadas nas roupas da vítima por meio da lâmpada de Wood ou, quando muito pequenas, por microscopia ótica 19. Técnicas moleculares permitem a identificação do cromossomo Y em até 40% das amostras negativas por técnicas convencionais20.
O fracasso na identificação de espermatozóides pode se relacionar com várias condições, destacando-se o tempo decorrido entre a violência e o exame médico-legal 6,7,21. Nesses casos, a imunoeletroforese da proteína prostática P-30 persiste positiva por até 30 dias do ato sexual 19. Métodos complementares incluem a utilização de Polymerase Chain Reaction (PCR) ou a dosagem de fosfatase ácida 22. Em casos de azoospermia, pode-se detectar o antígeno específico do fluido seminal23.
A detecção de fluido seminal pode ser importante para as vítimas que, em função da baixa idade, da condição emocional ou deficiência mental não possam precisar se ocorreu penetração ou ejaculação 24. Nas situações em que o autor utiliza intencionalmente o preservativo para evitar a prova material, pode-se identificar o lubrificante ou espermaticida nele contido 25. A identificação do DNA do autor da violência constitui prova inquestionável da autoria do contato sexual sendo suficiente, muitas vezes, para determinar a condenação 12. No entanto, esses e outros testes complementares nem sempre estão disponíveis ou são rotineiramente aplicados durante o exame médico legal, particularmente nos países em desenvolvimento14.
A alegação de estupro por penetração vaginal, associada ou não a outros atos sexuais, é registrada em cerca de 60% dos crimes sexuais atendidos pelo IML de São Paulo 6,14. Indicador semelhante é encontrado nas comunicações para a polícia de crimes sexuais praticados contra mulheres adolescentes, em 54% de casos 15. Na casuística deste estudo, a alegação de estupro com penetração vaginal, isolada ou em associação, envolveu 86 casos (62,7%), concordante com os achados dessas investigações. A frequência de crimes com alegação de penetração anal também não se mostrou divergente daquelas encontradas nas mesmas pesquisas.
A importância do tipo de contato sexual não apresenta apenas interesse pericial, mas aponta para o risco de doenças sexualmente transmissíveis (DST), hepatites virais e infecção pelo HIV. Estima-se que a taxa de infectividade do HIV em relação heterossexual vaginal receptiva, consentida e única, varie entre 0,08 a 0,2%. Se ocorrer penetração anal, o risco atinge 0,1 a 0,3% 17. Situação relevante foi observada neste estudo, onde os dois tipos de contato sexual foram impostos para 22,6% dos casos. Além disso, a penetração vaginal desprotegida submete a adolescente ao risco da gravidez forçada e indesejada, dado que a maioria encontra-se após a menarca e não utiliza método anticonceptivo14.
A grave ameaça (37,9%) e o estupro de vulnerável (39,4%) foram formas predominantes de intimidação das adolescentes estudadas, semelhante ao encontrado por outros autores4,5,8,15,26. A baixa frequência de uso da violência física colabora para explicar o pequeno percentual de crimes sexuais com danos físicos genitais ou extragenitais7,14. Nesses casos, a colposcopia é recurso eficiente no diagnóstico de lesões genitais difíceis de serem identificadas clinicamente. O colposcópio permite o registro de lesões subclínicas em 50% dos exames médico-legais que, pelos métodos de rotina, não ultrapassam 5%27. Da mesma forma, o teste de Collins utiliza solução de azul de toluidina que, sobre áreas de solução de continuidade da pele ou da mucosa, se fixa após a aplicação do ácido acético. Nas adolescentes, o teste pode duplicar o percentual de achados relacionados com a violência sexual28. Essas metodologias, no entanto, não são aplicadas de forma rotineira nos exames médico-legais. A ausência de lesões físicas ou de outras evidências médico-legais não permite excluir a ocorrência do crime sexual7,16. No entanto, em nosso meio se constata que muitos crimes sexuais contra adolescentes não são submetidos a julgamento por falta de provas materiais 8,14.
Muitas características do crime sexual apresentam estreita relação com o autor da violência. A maior parte dos estudos sustenta que o autor é conhecido da vítima entre 50 e 70% dos casos, percentuais que podem ser maiores tratando-se de crianças ou adolescentes8,21. As evidências apontam que os acusados mais freqüentes de abuso sexual contra adolescentes são, paradoxalmente, os principais responsáveis legais por sua proteção5,8,21,26. Neste estudo, a maioria dos acusados se encontrava nessa condição, o que explica a elevada frequência de abordagem da adolescente em sua residência ou na do autor, em 88,6% dos casos. Os resultados são concordantes com a literatura, que descreve o abuso sexual na infância e adolescência como fenômeno notadamente intrafamiliar 29. O estupro de vulnerável se soma a essas condições, colaborando para que violência sexual se torne crônica e repetida por longo período, aumentado o risco das DST, HIV e gravidez14.
O conceito e a dinâmica da violência sexual intrafamiliar ainda não estão devidamente incorporados pelos operadores do direito, o que pode influenciar negativamente sua convicção sobre a veracidade dos fatos relatados pela vítima. Ao contrário, casos envolvendo crianças e adolescentes com o abuso sexual intrafamiliar deveriam ser cuidadosamente considerados e investigados. A avaliação psicológica e o estudo social da família, incluindo-se do acusado, deveriam ser incorporados ao processo como elementos probatórios tão importantes quanto o exame pericial8. No entanto, poucos processos judiciais incluem a avaliação psiquiátrica ou psicológica da vítima 30.
A violência sexual é uma das mais antigas expressões da violência de gênero e uma brutal violação de direitos humanos, de direitos sexuais e de direitos reprodutivos 15. Embora comprometa pessoas de ambos os sexos e em qualquer idade, as evidências apontam que o fenômeno declina contundentemente sobre as mulheres, particularmente as mais jovens e vulneráveis2,5,15,30.
No Brasil, os profissionais de saúde têm dever legal de comunicar para a autoridade competente todo caso, suspeito ou confirmado, de abuso sexual contra crianças e adolescentes 31. A medida é considerada fundamental para romper o ciclo da violência intrafamiliar e oferecer proteção social e legal para a vítima, sem exigência de apresentação de prova material. Contudo, a responsabilização do autor da violência obedece a procedimento judicial diferente, onde as evidências médico-legais são consideradas importantes na construção da sentença15. Compete ao poder público mover o processo criminal, que não se condiciona ao desejo ou autorização da adolescente ou de sua família. A penalidade é de seis a dez anos de reclusão, aumentada caso o autor da violência seja responsável pela criança ou adolescente, ou quando o crime sexual resulta em gravidez 10. Neste estudo, apenas 21,9% dos laudos do IML foram positivos e concordantes com a alegação de crime sexual feita pela adolescente, dado semelhante ao verificado em outras investigações em nosso meio 6,13,14. No entanto, a limitação do exame médico-legal não impediu que 93 acusados (67,9%) fossem responsabilizados, resultado acima do esperado pela literatura15.
A violência sexual é um crime fácil de imputar e, ao mesmo tempo, o mais difícil de provar. A medicina limita-se a certezas relativas, nem sempre tão exatas quanto exige a legislação penal15. De fato, os processos com exame médico-legal positivo e concordante com a queixa de crime sexual terminaram na condenação de 83,3% dos acusados, resultado significativamente maior se comparado com processos que apresentavam exames negativos (63,5%). Os resultados sugerem que a responsabilização do autor da violência sofre a influencia do resultado do exame pericial, embora a ausência de elementos comprobatórios não impeça a condenação de parte expressiva dos acusados de crimes sexuais, com base em outros meios de convencimento admitidos pela justiça.
Embora as taxas de responsabilização verificadas sejam animadoras, os resultados deste estudo merecem ponderação. O CERCA é organização não governamental associada à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), especializada na atenção psicológica e jurídica de crianças e adolescentes em situação de violação de direitos humanos. Sua condição de referência para casos de abuso sexual permite supor que a casuística tenha agregado crimes de maior complexidade que, embora não apresentem maior ocorrência de exames médico-legais positivos, possuem outros elementos relevantes para a justiça.
De fato, na falta de testemunho presencial e de exame médico-legal comprobatório, a palavra da adolescente adquire importância fundamental8,15. As declarações devem ser coerentes, seguras e compatíveis com as demais provas e evidências do processo 32. A qualidade da atenção prestada na defesa legal da adolescente também pode ter influído no resultado. O psicodiagnóstico e o estudo social, regularmente incluídos no processo de cada adolescente, foram citados como elementos de convencimento em diversas sentenças condenatórias com exame médico legal negativo.
Não foi possível analisar a penalidade aplicada pela justiça, dado que a maioria dos acusados recorreu da sentença a tribunais superiores. Contudo, os resultados deste estudo certamente apontam avanços importantes para a redução da impunidade nos crimes sexuais contra a adolescente. Permanece sem resposta a absolvição de 16,7% dos acusados, mesmo com exame médico-legal positivo e concordante com o crime sexual alegado pela adolescente.
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Correspondência para:
Jefferson Drezett
Rua Pedroso Alvarenga 1255 conjunto 64. Itaim Bibi. São Paulo - SP, Brasil
CEP 045331-012
E-mail: jefferson@drezett.com.br
Recebido em: 25/nov./2010
Modificado em 13/jan./2011
Aceito em 29/Jan./2011
Trabalho realizado no Centro de Referência da Criança e do Adolescente - Ordem dos Advogados do Brasil. São Paulo, Brasil.