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Revista Brasileira de Psicodrama

versão impressa ISSN 0104-5393versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.24 no.2 São Paulo dez. 2016

https://doi.org/10.15329/2318-0498.20160024 

COMUNICAÇÕES BREVES

 

Espontaneidade na terceira idade

 

Spontaneity in older people

 

Espontaneidad en la tercera edad

 

 

Catarina BarbosaI; Rosane RodriguesII

IInstituto Sedes Sapientiae (DPSedes). catarinaalvesbarbosa8@gmail.com
IIInstituto Sedes Sapientiae (DPSedes). rosateatros@gmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta uma discussão sobre uma sessão sociopsicodramática fundamentada nos conceitos de espontaneidade/criatividade. Trata-se de um recorte de um trabalho realizado em uma Unidade Básica de Saúde da cidade de São Paulo, em que a autora investiga como a Metodologia Socionômica pode atuar na perspectiva de saúde da terceira idade e, em consequência, potencializar ações espontâneas, bem como facilitar a criação e o fortalecimento de vínculos nessa faixa etária.

Palavras-chave: terceira idade, velhice, espontaneidade, criatividade


ABSTRACT

This article presents and discusses a sociopsychodrama session based on the concepts of spontaneity/creativity. The study refers to part of a work that took place in a Basic Health Unit in São Paulo, in which the author aims at investigating how the Socionomic Methodology can work on healthcare for older people, and, as a result, enhance spontaneous actions and facilitate the development and strengthening of bonds in this age group.

Keywords: older people, old age, spontaneity, creativity


RESUMEN

Este artículo presenta y discute una sesión sociopsicodramática fundamentada en los conceptos de espontaneidad/creatividad. Se trata de un artículo de un trabajo realizado en una unidad básica de salud, en São Paulo, en el que la autora investiga como la Metodología Socionómica puede actuar con una perspectiva de salud para la tercera edad y, en consecuencia, potencializar acciones espontáneas, así como facilitar la creación y el fortalecimiento de vínculos en ese grupo etario.

Palabras clave: tercera edad, vejez, espontaneidad, creatividad


 

 

INTRODUÇÃO

Vamos despertar um olhar ao nosso envelhecer? Pensando nisso, este estudo reflete sobre a possibilidade de potencializar ações espontâneas e criativas na terceira idade. Teve origem na pesquisa que fundamentou a monografia de conclusão do Curso de Especialização em Psicodrama, cujo título é "Sociopsicodrama com grupo de Terceira Idade - Psicodrama e Terceira Idade como Fontes de Sabedoria", apresentada ao Departamento de Psicodrama do Instituto Sedes Sapientiae, em novembro de 2014.

O interesse pelo tema surgiu a partir da história pessoal de uma das autoras e também da constatação do quanto, na perspectiva da saúde/doença, essa faixa etária é pautada por uma cristalização de atitudes e costumes socioculturais. As questões que se colocam são: a espontaneidade diminui com a idade, a ponto de esgotar-se ao longo da vida? Poderia converter-se em conservas, isto é, em comportamentos que surgem da ansiedade do homem quando se sente ameaçado no contato com o novo e se cristalizam, proporcionando-lhe segurança?

A pesquisa foi realizada no centro de convivência de uma Unidade Básica de Saúde de São Paulo, utilizando-se de intervenções sociopsicodramáticas, que buscam atender às demandas do grupo, constituído de pessoas inter-relacionadas, não tomadas como indivíduos privados, mas atores de papéis sociais de uma mesma cultura. É o verdadeiro sujeito da intervenção e, ao focalizá-lo, todos os participantes podem ser beneficiados. O grupo em questão, autodenominado "Raios de Sol", era composto por senhoras de 60 a 85 anos, em sua maior parte viúvas, aposentadas, de classe C e nível fundamental de escolaridade.

O idoso na sociedade contemporânea

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS, 1986), saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas ausência de doenças ou enfermidades.

Com a queda da taxa de fecundidade e o aumento da expectativa de vida, graças ao avanço da medicina e da tecnologia, a população mundial está vivendo mais. A OMS e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS, 2005) definem a idade de 60 anos como marco para o início do envelhecimento, porém se faz necessário reconhecer que não há como estabelecer uma idade para o início da velhice, por ser um fato subjetivo. Todos nós somos afetados, de alguma forma, pelos determinantes biológicos, históricos, culturais, sociais, geográficos, entre outros. Transformações físicas, diminuição da vitalidade, depressão, doenças degenerativas, desvalorização da pessoa experiente e madura são exemplos de aspectos dessa fase da vida.

O Brasil também está passando por um processo de transição demográfica e, essa faixa etária mais que dobrará, de 14 para estimados 32milhões, do ano de 2000 até 2025 (Sene Costa, 1998).

O envelhecimento ativo, além de aumentar a expectativa de uma vida saudável, oferece oportunidade às pessoas de perceber e se apropriar de seu potencial para o bem-estar físico, social e mental ao longo da vida. Ajudar as pessoas a permanecer autônomas e ativas à medida que envelhecem é uma das questões centrais na política de saúde brasileira.

 

APRESENTAÇÃO DA PRÁTICA

Foram realizados dezenove encontros quinzenais, com duas horas de duração, no formato de grupo aberto. A unidade funcional era composta pela diretora (primeira autora do presente artigo) e pelo ego-auxiliar (C). Para este estudo, foi selecionado o 14º encontro, por retratar o conflito do grupo e trazer a sua solução.

As participantes do grupo confeccionaram bonecas utilizando garrafas Pet e jornal e, inspiradas pelo sentimento de um sonho não realizado, foram instruídas a criar um personagem.

Ao caminharem durante o aquecimento corporal, a participante Kátia (nome fictício) parou em um dos cantos da sala, dizendo que sua cabeça estava oca e não sabia o que estava fazendo ali. Foi estimulada a voltar e a andar em seu ritmo. Depois da apresentação das bonecas, houve a eleição daquela que mais as representasse, tanto esteticamente quanto pelo sentimento motivado por sua confecção:

• Jacira, confeccionada por Telma, cujo sonho era ser professora de cabeleireiro;

• Manezinho, confeccionado por Kátia, que não tinha grandes sonhos;

• Alice, idealizada por Márcia, que almejava ser professora de História;

• Luiza, feita por Fernanda, que queria ser administradora;

• Lili, confeccionada por Rosa, que sonhava em ser professora primária.

Jacira foi a boneca eleita pelo grupo, e o sentimento de Telma, que a confeccionou, era ode privação. Telma relatou que, na época em que se casou, era modelo para penteados.Chegou a matricular-se em um curso para cabeleireiros, comprou uniforme e todos os materiais, porém seu sonho não se realizou, por causa do marido. Ela escolheu Kátia, para o papel do marido, e o ego-auxiliar (C), para o papel de professora do curso de cabeleireiro, dando início à dramatização.

Cena 1 - No salão de cabeleireiro estava a professora (C). Telma entrou muito feliz e a professora disse estar contente com sua matrícula, pois ela levava jeito para a profissão.

Cena 2 - Em casa, Telma comunicou ao marido (Kátia) que havia se matriculado no curso. Ele ficou contrariado.

Houve uma troca de papéis e o marido (Telma) disse que ela já tinha muitos afazeres, além de costurar e criar os filhos. Telma (Kátia) se calou, não encontrando argumentos diante do marido. Ao solilóquio, respondeu que se sentia insegura.

Na sequência, a diretora abriu para que outras pessoas experimentassem o papel de Telma. Márcia entrou no papel de Telma. O marido (Telma) perguntou-lhe aonde ela ia trabalhar. Telma (Márcia) respondeu que poderia montar o salão de cabeleireiro no local onde ela costurava. O marido (Telma) discordou, balançando a cabeça. Aos pedidos de solilóquio, Telma (Márcia) respondeu que se sentia magoada, e o marido (Telma), desvalorizado por não ter sido avisado antes.

Márcia saiu de cena, Telma voltou ao seu papel e Kátia, ao do marido. O marido

(Kátia) disse estar bravo por ela ter gasto dinheiro com todas aquelas coisas. Telma disse sentir-se chateada.

A diretora utilizou-se da técnica do espelho com Telma, e Fernanda a substituiu. O marido (Kátia) perguntou a Telma (Fernanda) sobre as crianças e esta respondeu que sua mãe cuidaria delas. Ele reclamou que ela morava muito longe e Telma (Fernanda) respondeu que contrataria uma empregada e, concluído o curso, poderia ajudá-lo mais nas despesas. O marido (Kátia) disse que ela já o ajudava o suficiente com o trabalho de costura e ela perguntou: "E meu sonho?". A cena foi congelada e as respostas deles aos pedidos de solilóquio foram: desanimada e nervoso.

Kátia foi para a plateia e Telma, que estava assistindo em espelho, voltou ao papel do marido, dizendo que ela deveria deixar as crianças crescerem um pouco mais. Rosa tomou o papel de Telma e disse que tentaria ser mais calma e compreensiva, ficaria lavando, costurando e criando os filhos.

Kátia, na plateia, disse que aos 16 anos seu pai tentou obrigá-la a estudar alfaiataria. Ela se recusou e, quando a família mudou para São Paulo, formou-se em alta costura.

Telma retomou o seu papel e finalizou a cena guardando o material do curso. Disse que continuou posando como modelo para penteados, porém sem mágoas.

A boneca Jacira foi colocada em uma cadeira para que dissessem a ela o que tinham vontade naquele momento. Falaram das perdas, ressaltando o lado positivo das coisas, como o fortalecimento, o recomeço, não deixar de sonhar e não guardar mágoas.

Em círculo, de mãos dadas, saíram do contexto dramático com as seguintes palavras: recomeço, fé e esperança; aprendizagem; sonho que passou sem mágoas; continuidade; relembrar o passado com tristezas e alegrias; crescimento com a perda.

No compartilhamento, falaram da importância da amizade, de sempre procurar ajudar as pessoas e compartilhar o que se tem. E as palavras finais foram: amor, perdão, união, harmonia, companheirismo, sucesso, amizade e gratidão.

 

REFLEXÕES A PARTIR DA PRÁTICA

Moreno (1975) defende que a doença está relacionada ao desenvolvimento insuficiente da espontaneidade ou mesmo à sua falta. Ser espontâneo, em psicodrama, é dar uma resposta original, adequada e integrada e, por isso mesmo, difícil. Ajudar o sujeito a libertar-se das conservas demanda uma educação de forma gradual. Ele deixou sua teoria aberta, aguardando a realização de pesquisas que a comprovem ou reprovem.

No início do trabalho com este grupo, as participantes eram caladas, não conseguiam se expressar com facilidade nem representar no contexto dramático. Aos poucos foram perdendo a timidez e, a partir do oitavo encontro, todas começaram a falar ao mesmo tempo, sem que conseguissem se ouvir, denotando, assim, a falta de conjunção do novo com o adequado, o que integra o conceito de espontaneidade. Foi proposto um jogo dramático para expressão de uma espontaneidade natural, isto é, aquela que proporciona respostas oportunas. Compartilharam que se sentiam desvalorizadas quando não eram ouvidas, porém reconheceram que lhes faltava paciência para ouvir.

Moreno mencionou a necessidade de um processo de aquecimento preparatório para atingir estados espontâneos. Essa etapa foi utilizada exaustivamente, através de dispositivos de arranque físicos e mentais. O autor também defende que os graus de disposição espontânea para proceder a estes diferem de pessoa para pessoa. A participante Kátia, que demonstrou estado de confusão no aquecimento, da plateia disse "não" ao personagem autoritário e, ao final da dramatização, apresentava um semblante excepcionalmente relaxado. Sua contribuição foi importante para o grupo, ao fazer emergir a mulher que não perde a perspectiva de seu sonho, trazendo a resolução do conflito.

Ao focalizar a plateia, houve o resgate do tema protagônico, desvelado pelo coinconsciente grupal, que as fazia adotar condutas de subordinação, sobre as quais não tinham consciência. Num grupo, os estados coinconscientes podem aparecer "como tema ou como sintoma" (Knobel, 2011). A partir daí, possibilitou-se o início de desconstrução da submissão, trazendo outro olhar de mulher.

Podemos pensar que as participantes nasceram e se casaram em uma época em que as mulheres tinham pouca expressão na sociedade. Eram, de forma geral, mais submissas e, como consequência, deixaram para trás sonhos e desejos, cumprindo o papel dependente/obediente delas esperado.

As atitudes de submissão, demonstradas pelo aspecto coletivo do papel de esposa, estavam, portanto, de acordo com o esperado, a partir desse contexto social. Elas, ao denunciarem o direito à igualdade, sem que soubessem, estavam de acordo com a visão moreniana de homem, ou seja, o ser espontâneo, que convive de maneira integrada, aceitando que todas as diferenças possam estar incluídas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aproximadamente um século antes de a OMS (2005) definir o conceito de saúde como o conhecemos hoje, Moreno já concebia o homem como gênio em potencial. O núcleo central de sua teoria é a espontaneidade.

Para Moreno, a consciência humana surgiu num ambiente que apresenta todas as condições favoráveis ao aparecimento e desenvolvimento do fator "E" (espontaneidade), ou seja, o universo é aberto, sempre com a possibilidade de algum grau de novidade e que, além de se transformar, está em constante evolução.

Um aspecto importante do desenvolvimento humano é que a criança, por estar vivenciando grande número de novas experiências, o faz com maior intensidade do que em outros períodos da vida. À medida que desabrocha sua inteligência e memória, aprende modos de conduta padronizados e o mundo deixa de parecer-lhe uma novidade, fazendo com que utilize menos sua espontaneidade. Sendo assim, podemos concluir que o fator "E" apresenta frequência pouco uniforme durante toda a nossa vida.

A espontaneidade não é liberdade, mas condição prévia para que o homem possa ser livre. Conforme Erich Fromm, citado por Martin (1996), mais importante que a "liberdade de" travas e conservas é a "liberdade para", a liberdade construtiva vivenciada pelo grupo em questão, que ajuda a transformar o mundo, com todos os indivíduos cooperando uns com os outros.

Demonstrou-se, assim, o já mencionado por Moreno (1975), de que a espontaneidade não diminui com a idade, apenas entra em desuso, conforme aumenta o uso das conservas culturais. Ela se dá no momento presente e depois desaparece, porém nunca se esgotará, pelo fato de criar-se no instante, para cada circunstância.

 

REFERÊNCIAS

Knobel, A. M. (2011). Coconsciente e coinconsciente em psicodrama. Revista Brasileira de Psicodrama, 19(2),139-152.         [ Links ]

Martin, E. G. (1996). Psicologia do encontro: J. L. Moreno. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

Moreno, J. L. (1975). Psicodrama. São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Organização Mundial de Saúde (OMS) (1986). Charter for Health Promotion. First International Conference on Health Promotion, Ottawa. Recuperado de http://www.who.int/hpr/archive/docs/ottawa.html        [ Links ]

Organização Mundial de Saúde (OMS), & Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) (2005). O envelhecimento ativo: Uma política de saúde. Brasília, DF: Organização Pan-Americana da Saúde.         [ Links ]

Sene Costa, E. M. (1998). Gerontodrama: A velhice em cena. São Paulo: Ágora.         [ Links ]

 

 

Recebido: 15/07/2016
Aceito: 17/11/2016

 

 

Catarina Barbosa: Psicóloga, Psicoterapeuta e Trabalho com Grupos - Psicodramatista no foco socioeducacional. Av. Parada Pinto, 3420, Mandaqui, CEP 02611-001. São Paulo, SP. Tel.: (11) 95242-4652.
Rosane Rodrigues: Psicóloga e Psicodramatista Didata Supervisora nos focos socioeducacional/psicoterápico. Doutora em Pedagogia do Teatro. Diretora de Teatro de Reprise. Rua Otávio Tarquínio de Sousa, 1289, apto. 12, Campo Belo, CEP 04613-003. São Paulo, SP. Tel.: (11) 99966-9225.

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