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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.27 no.2 São Paulo jul./dez. 2019

https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190020 

https://doi.org/10.15329/2318-0498.20190020
ARTIGO ORIGINAL

 

Psicodrama, ética e o outro

 

Psychodrama, ethics and the other

 

Psicodrama, ética y el otro

 

 

Pedro Luís Tizo Santos1,2,*, Leandro Carvalho de Bitencourt1

1.Associação Paranaense de Psicodrama – Curitiba (PR), Brasil.

2.Universidade Federal do Paraná - Departamento de Psicologia – Curitiba (PR), Brasil.

 

 


Resumo

A problemática da ética está presente na vida do psicólogo e no dia a dia de todo psicoterapeuta, psicodramatista ou não. Incitados por questões encontradas na prática profissional, a partir de um resgate bibliográfico do sentido do termo ética no âmbito do psicodrama e de seu confrontamento com a ética proposta por Emanuel Levinas, filósofo da ética, os autores deste artigo articulam o significado último da ética presente no pensamento de Jacob Levy Moreno, e como esta funda os princípios básicos do conceito de Homem-Deus moreniano e, por consequência, toda a prática e pontos fundamentais da teoria. Em última instância, fica clara a necessidade de uma abertura constante ao pensar ético.

Palavras-chave: ética; psicologia; psicodrama; filosofia; fenomenologia.


Abstract

The issue of ethics is present in the life of the psychologist and in the daily life of every psychotherapist, psychodramatist or not. Provoked by issues found in professional practice and through a bibliographic research of the meaning of the term ethics in the scope of Psychodrama, and its confrontation with ethics proposed by Emanuel Levinas, philosopher of ethics, the authors of this article articulate the true meaning of ethics present on Jacob Levy Moreno’s thought, and how it serves as basis for the morenian concept of Man-God and, consequently, all practice and fundamental points of the theory. Finally, the necessity of a constant openness to ethical thinking becomes clear.

Keywords: ethics; psychology; psychodrama; philosophy; phenomenology.


Resumen

La problemática de la ética siempre está presente en la vida de un psicólogo y en el día a día de cualquier psicoterapeuta, ya sea psicodramático o no. Provocado por temas encontrados en la práctica profesional, mediante una investigación bibliográfica del significado de la ética dentro del psicodrama y su confrontación con la ética propuesta por Emanuel Levinas, el filósofo de la ética, los autores de este artículo articulan el verdadero significado de la ética presente en el pensamiento de Jacob Levy Moreno, y cómo eso sirve de base para el concepto moreniano de Hombre-Dios y, por consiguiente, toda la práctica y articulaciones fundamentales de la teoría. Finalmente, queda clara la necesidad de una apertura constante para pensar la ética.

Palabras-clave: ética; psicología; psicodrama; filosofía; fenomenología.


 

 

 APRESENTAÇÃO

Não há muito tempo, os autores do presente trabalho se depararam com situações em que reflexões éticas em sua prática do psicodrama se mostraram imperativas. Com essa preocupação, que é, de fato, presente no cotidiano de qualquer psicoterapeuta sério, inclusos a estes os psicodramatistas, evidenciou-se a necessidade de buscar as bases éticas que regem o trabalho psicodramático, dentro e fora do consultório.

Atualmente, tem-se observado que em várias instâncias da sociedade, inclusive no âmbito das discussões entre psicólogos, há falta de respeito, agressões físicas, verbais e emocionais, a exclusão de minorias e outras vezes até de maiorias, a aniquilação do outro enquanto possibilidade de ser diferente. Além disso, o rompimento de vínculos é visto a todo o tempo por discordâncias ideológicas e falta de diálogo. A pretensão do conhecimento das posições, das regras e até do outro, impede a possibilidade desse diálogo. Dentro desse contexto, os pesquisadores acreditam ser necessária a reflexão sobre o que vem a ser ética, principalmente na prática profissional do psicólogo, que propõe basear suas ações nela.

Os objetivos deste trabalho são estabelecer um entendimento daquilo que já foi escrito em psicodrama sobre ética bem como evidenciar contrastes encontrados em diferentes bases teóricas e proposições práticas, e também propor um novo olhar para o tema com a ajuda de um filósofo desconhecido por muitos psicoterapeutas, Emanuel Levinas (1906-1995).

Essa necessidade é percebida pelos autores que notam um distanciamento, que se fará mais esclarecido ao longo da discussão do texto, entre um primeiro Moreno, aquele de Convite ao encontro e As palavras do Pai que é um Moreno mais filosófico, com primazia da responsabilidade pelo outro e pelo mundo, e a prática psicodramática contemporânea, que por vezes parece priorizar o método. Como então pensar um posicionamento primeiro, anterior à prática psicodramática em si?

É a ideia dos autores que isto pode ser feito através da criação de uma tensão com um autor da filosofia que se preocupou em toda sua obra com a questão ética. Levinas (1991/2004) traz profundas discussões da ética como a filosofia primeira, como aquela que inescapavelmente ampara toda ação humana. Tem um pano de fundo muito semelhante ao de Moreno, que, sendo de família judaica, testemunhou os horrores da Primeira Grande Guerra e, posteriormente, experienciou na carne os horrores da Segunda Guerra Mundial. Também se assemelham nas origens filosóficas, sendo que o hassidismo tem impacto sobre suas obras.

 

METODOLOGIA

Tendo em vista a necessidade apresentada, realizou-se um estudo bibliográfico de cunho exploratório (Gil, 2008). Esse tipo de pesquisa tem como finalidade proporcionar uma visão geral de um tema, e quiçá abrir novos caminhos para discussões mais enriquecedoras. Com o intuito de capturar o máximo de material possível, foi realizado o levantamento de todos os artigos publicados desde a reformulação da Revista Brasileira de Psicodrama, seguindo um rigoroso padrão de busca pela palavra "ética", que foi buscada na revista em quatro instâncias: no título, subtítulos, nos subtítulos contidos ao longo do corpo do texto, nos resumos e, por fim, nas palavras-chave do artigo. O mesmo foi feito para artigos nas plataformas PePSIC e SciELO com novo padrão, onde foram procuradas as palavras Psicodrama, Psychodrama, Ética, Ético, Éticas, Ethic e Ethics, e de onde foram colhidos artigos complementares que não estavam presentes na revista. Para livros, a seleção foi feita utilizando a plataforma Google, pesquisando-se as palavras Psicodrama, Psychodrama, Ética, Ético, Éticas, Ethic e Ethics. Obras de Jacob Levy Moreno foram consultadas e utilizadas, principalmente no que concerne à discussão realizada após o levantamento acima delimitado, com o intuito de problematizar o entendimento acerca do tema e flexibilizar um diálogo com o outro autor proposto, Emmanuel Levinas. Desde suas primeiras obras, Moreno escreveu as bases fundamentais para o entendimento de seu posicionamento ético e entra nas especificidades do tema em psicoterapia ao longo de seus escritos, encontrando sua culminação quando escreveu sobre o Código de Ética Psicodramático.

Utilizando esse sistema de buscas, deparou-se com citações de um texto de 1962 de Moreno intitulado Code of ethics for group psychotherapy and psychodrama: Relationship to the Hippocratic oath (Código de ética para a psicoterapia de grupo e psicodrama: Relacionamento com o juramento de Hipócrates), texto ainda não traduzido e publicado no Brasil. Devem-se agradecimentos a Jonathan D. Moreno por, gentilmente, conceder uma cópia digital de tal escrito que não se encontra disponível na íntegra nas plataformas pesquisadas.

Com esses resultados e já tendo em mente a vontade e orientação do mestre (Moreno) em expandir a sua criação, a proposta foi buscar mais escritos sobre ética em meio a contemporâneos de Moreno. Foi escolhido dentre eles o "filósofo da ética", Emanuel Levinas. Dentre a vasta obra de Levinas, foram escolhidos dois de seus livros, intitulados: A humanidade do outro homem e Entre nós: Ensaios sobre alteridade, por sua disponibilidade, acesso e coerência. O primeiro é seu escrito inicial sobre a outridade após seu livro Totalidade e Infinito e o último é seu escrito final e mais maduro acerca da ética. Como apoio para a leitura e compreensão, foram utilizados outros escritos, mas especialmente o livro Compreender Levinas, de Hutchens (2007/2009).

 

PSICODRAMA E ÉTICA, UMA REVISÃO

Em 1962, quando Moreno escreveu o Código de ética para psicoterapia de grupo e psicodrama, ele o fez em uma relação íntima e direta com o Juramento de Hipócrates, um juramento realizado pelos médicos em seu exercício da medicina. Moreno era médico (Marineau, 1989/1992) e muito provavelmente a sua utilização de tal juramento provém, parcialmente, dessa proximidade com a categoria. Ele cita a seguinte passagem se referindo ao Juramento de Hipócrates (Moreno, 1959/1974): "esse juramento se manteve durante séculos e é uma parte inseparável de nossa ética médica" (p. 24).

Existe, porém, um outro possível motivo: a validação do psicodrama como ciência. Em seu início, o psicodrama muito foi criticado por sua posição idealista no tratamento das relações (Moreno, 1989/2014). Moreno pode ser, em alguns momentos, visto como um otimista, como muito bem elucida Brito (2007), e até ser criticado. Sua proximidade com a religião judaica e suas empreitadas religiosas em sua juventude também dificultaram a fomentação e reconhecimento do seu caminho científico. Mas não é o caso, principalmente no que se refere ao homem e suas responsabilidades. Brito (2007) bem esclarece o fato de que Moreno, pelo contrário, desejava sair de uma ideia totalizadora de Bem e Mal inalcançáveis ao ser humano e restritos a um Deus da Teodiceia.

Moreno desejava, sim, trazer essa "criação" do bem, como obra do próprio humano. Moreno, segundo Brito (2007), reflete sobre o contraponto entre o Bem e o Mal, que ". . . saem do domínio tanto de Deus como da Natureza, e colocam-se à disposição dos seres humanos, que podem escolher e até atribuir o que lhes acontece a forças divinas ou naturais, e qualificá-las como boas ou más" (p.89). A autora ainda complementa a ideia moreniana de que, dessa forma ". . . Deus perde seu status de ser supranatural para constituir-se como dimensão da experiência humana" (p. 89).

O criador do psicodrama expôs o seu código de ética a outros profissionais que trabalhavam com grupos na época (Moreno, 1962), explicitando que era um código em processo de formulação e aberto a críticas e sugestões, estas últimas sendo muito bem acatadas por seus colegas. O código foi elogiado, criticado positivamente e, em menor grau, encontrou negações e desacordos. Uma referência direta à ética do psicoterapeuta de grupo, descrita na monografia de 1962, pode ser encontrada em seu livro Psicoterapia de grupo e psicodrama nas páginas 101 e 102 (Moreno, 1959/1974), salientando os dez pontos centrais do código, já reformulados após a adesão de algumas opiniões apresentadas ao escrito de 1962. Apesar da rica discussão anterior e posterior ao código não estarem presentes, esta pode servir de base para o entendimento do que será dito a seguir. Seu código de ética para atendimento de grupos é, portanto, posterior e menos completo do que seu Projeto Socionômico.

Há de se evidenciar que o próprio Moreno (1959/1974) deixou claro que, apesar de ter formulado um código enumerado, o mesmo não é rígido e completo, mas serve como orientação para que se atinja um alto grau de responsabilidade na condução do grupo.

Considerando que o que foi citado até agora serviu como base para o pensamento da ética no psicodrama, ou melhor, no atendimento psicodramático, o que se seguiu nos escritos encontrados não fugiu muito da ideia central, ou seja, apesar de muitos textos e artigos martelarem sobre uma profunda necessidade de separação de como a postura ética deve mudar em modalidades de aplicação de psicodrama: bipessoal, grupos, sociodrama (Aguiar, 2011; Baptista, 2012; Brito, 2007; Guimarães, 2002; Menezes & Santos, 2013; Moreno, 1994/1998). Poucos foram aqueles que levaram suas presas até o cerne do que é a ética em si, e como esta deve influenciar o comportamento do terapeuta (ou psicodramatista, que atue em qualquer área) em quaisquer situações em que este se encontre.

Ao argumentar sobre o início do exercício da profissão, Baptista (2012) apresenta que:

É neste momento que o psicodramatista irá encarar a socialização profissional como uma "iniciação" à cultura psicodramática e uma "conversão" do indivíduo a uma nova concepção do Eu e do mundo, ou seja, o assumir de uma nova identidade e de uma ética correspondente a ela. (p. 76)

O que no psicodrama se refere à fase de atuar como psicodramatista. A autora complementa a sua colocação quando reflete que, ao iniciar a formação em psicodrama, ". . . inicia-se o processo de formação do papel de psicodramatista, por meio das etapas do desenvolvimento desse papel; a partir daí é que será construída a identidade do psicodramatista e sua postura ética" (p. 77). Muito se discute na formação em psicodrama de como deve ser a postura do diretor e dos egos auxiliares e a atenção para cada contexto em que estes estão inseridos, inclusive vem a fazer parte de um role-taking, role-playing e role-creating dos que estão em processo de aprendizagem.

Sobre os grupos, Menezes e Santos (2013) trazem que "Bustos (1998/1999) salientou que o grupo pode construir o seu próprio código de ética e o diretor deve respeitar esse processo" (p. 176). As autoras escrevem um artigo que cita uma aproximação da ética do assistente social e da ética do psicodramatista, pois ". . . ambas se complementam na medida em que veem o homem em seu contexto sociocultural . . ." (p. 176) e argumentam sobre a dificuldade em entender o limite entre o psicodramático e o sociodramático.

Novamente, corroborando com o código de ética escrito por Moreno sobre o atendimento de grupos e publicado na monografia de 1962, o escrito de Guimarães (2002) traz a necessidade de que o psicodramatista, tendo em vista todas as articulações teóricas e práticas do psicodrama, tenha uma postura ética "muito flexível e ao mesmo tempo firme" (p. 90). Ela também atenta para algo muito importante: "A preservação da técnica não deve sobrepujar a da ética profissional e psicológica . . ." (p. 99). De fato, sobrepujar a ética em favor da técnica seria nada mais do que conservar uma postura cristalizada de instrumentalidade por sobre a égide da espontaneidade moreniana, o que mesmo há mais de meio século, Moreno pareceu ter o cuidado em não fazer. Afinal de contas, o seu código é aberto. "A ética tem, portanto, um caráter dinâmico e sua apreciação tem que ser igual e obrigatoriamente dinâmica" (Perazzo, 1996, p. 84).

Em suma, o que está sendo dito então, parece traduzir esta dinamicidade da ética, que deve, em seus diversos contextos e dependendo dos mais variados papéis envolvidos, adaptar-se para se tornar sempre uma construção conjunta e que acolha a todos os participantes dos atos que a criam. As colocações então, apesar de muito bem-feitas e fundamentadas na prática, se não tomado o devido cuidado, parecem alegar um caráter de objetividade dessa ética. Segundo Vieira (2002):

A consciência do indivíduo alicerçada somente na objetividade leva-o à escravidão, fazendo com que ele perca sua capacidade de transcendência, "pois é entre as verdades objetivas desmistificadoras e o insaciável querer ser, constitutivo do humano, que se instaura a liberdade poética (Durand). (p. 100)

Valle (2002) dá um importante apontamento da preocupante situação quando traz a precária condição sociopolítico-econômica da contemporaneidade, em especial nos países subdesenvolvidos onde essas condições ficam mais evidenciadas. Sendo o homem um ser coletivo desde seu início, "começa-se a ouvir um clamor coletivo, iniciando de forma tímida movimentos em busca de uma ética" (p. 96). Esta parece então estar deturpada ou completamente perdida. Afinal, o que é ética? E mais, de que bases saem os jargões éticos utilizados atualmente, mesmo dentro do psicodrama?

Parece também que em meio a toda a preocupação que existe com a ética nos grupos, "especialidade" do psicodrama, a ética no atendimento bipessoal, atendimento exercido por muitos psicoterapeutas formados ou em formação em psicodrama, não é pensada. O que isso significa? Que enquanto psicoterapeutas psicodramatistas atendem pacientes individualmente, a ética muda para a ética pragmática da profissão? Profissão que é de psicólogos para a grande maioria. Moreno (1994/1998) parece apontar esse perigo, pois ". . . a moralidade filosófica do psicodrama como movimento social teve que passar pela difícil transformação em ética profissional do psicodrama enquanto psicoterapia, uma transformação que alguns considerarão infeliz" (p. 132).

Dentro do que foi encontrado até então, muito pouco se diferencia da proposta base que Moreno, em 1962, deixou recomendado em seu ensaio. A ética psicodramática toma parte de conversas e estudos ao longo de sua história como teoria, abordagem metodológica e as direções que devem ser tomadas na ética de grupo, mas pouco se expandiu sobre o assunto, com notáveis exceções.

Apesar disso tudo, Moreno (1994/1998) ainda traz que "seria desejável, de um ponto de vista estético, identificar algumas conexões entre a filosofia moral psicodramática e as normas éticas que devem governar a prática da terapia psicodramática" (p. 132). É a tentativa dos autores a seguir.

Weschsler (2011) apresenta que ". . . falar em ciência seria falar de ética e uma ciência na qual não existisse uma interdependência entre a racionalidade dos fins e dos meios, entre forma e conteúdo, não seria uma ciência ética" (p. 28). Ao fazer isso, aponta o perigo da não reflexão sobre o que de fato é ética, bastante característica do pensamento ocidental contemporâneo, que tende a instrumentalizar algo que deveria ser a priori. Ela o faz retomando as preocupações que Edmund Husserl explicita em seu livro A crise das ciências europeias e fenomenologia transcendental, em que a ontologia é devidamente criticada, por ter se tornado imperante na época e estar provocando tal instrumentalização.

Quem complementa esta ideia é Aguiar (2011), quando atenta para a necessidade de uma reflexão sobre a prática, ao passo que novos recursos técnicos e perspectivas estão sendo alcançados. Descreve ele: "acredito que essa mirada é fundamental para que nos desvencilhemos tanto de uma epistemologia reducionista, que nos enrede no cientificismo (que se sobrepõe à verdadeira ciência), quanto da tentação tecnicista (que nos trai para um fazer ‘benfeito’ meramente operacional)" (p. 56). Acrescentando, Aguiar parece dar um tapa na cara dos "desavisados": "Ao estabelecer normas em vez de discutir princípios, ela se confundiria com outra categoria estanque: a moral" (p. 57). Corre a prática um sério perigo?

Em contraponto ao comum movimento tecnicista que se tem encontrado, as colocações de Almeida (2002) sobre a criação moreniana parecem um presente. Para ele, "o ideal messiânico se transformou no decorrer da História, deixando de se caracterizar pela busca da redenção do povo de Israel, para propugnar pela justiça para todos os povos. Uma utopia que está na raiz da sociatria moreniana" (p. 69). O autor ressalta que, por conta de uma ética brotar desse ideal messiânico, ela causa espanto ao estar  ". . . acima das regras estabelecidas pela sociedade disciplinada e obediente" (p. 70). Ele volta a reiterar esta posição quando argumenta que:

A ética do ato criador assim o é pelo seu compromisso com uma escolha, definindo-se pela lealdade com as expressões da espontaneidade e os jogos da criatividade. De parte dos psicodramatistas, ter esta ética é manter-se, com firmeza e perseverança fiel ao discurso moreniano da revolução criadora. (p. 75)

E a revolução criadora ". . . consistiria no rompimento com padrões de comportamento estereotipados e com valores introjetados sem crítica" (Gonçalves, 2002, p. 45).

Enquanto terapeutas e estudiosos do psicodrama, observa-se que Almeida tentava resgatar é que, antes de tudo, o projeto socionômico moreniano e a sua revolução criadora vêm primeiro que qualquer estabelecimento de códigos ou jargões éticos da categoria, estando então muito mais ligados à sua ideia primeira de um Deus-Eu humano e de uma corresponsabilidade e cocriação por parte dos indivíduos. Pensando assim, fica mais claro o que Bustos (1999) aponta quando afirma que "para Moreno, a ética é um compromisso imediato e cotidiano com a realidade, ou não passará de um recurso retórico que serve de equilíbrio e apoio necessários aos valores que denunciamos" (p. 69). O que interessa, ao que parece, para o criador do psicodrama, é o comprometimento com o mundo. A relação com o mundo se dá, de maneira saudável como apresenta o psicodrama, através da espontaneidade. "A ética do psicodrama tem de ser uma ética da espontaneidade . . ." (Weil, 2002, p. 7) e só a espontaneidade dá braços para a criatividade.

Ao fazer um paralelo entre a proposta moreniana e o conceito do Acaso, Scagliarini (2007) sugere que, assim como as Deusas do Acaso jogam os sujeitos em um redemoinho incontrolável, assim o é quando, ao encarar os desafios do psicodrama moreniano, os psicodramatistas são forçados a encarar seus limites e questionar suas crenças, implicando que o manejo com o outro é um manejo, de certa forma violento e "disruptivo", mas que coloca-os novamente em lugar de uma abertura com o mundo. Para ela, Moreno aperfeiçoa seu método, justamente quando está "numa contínua busca de resolução do embate entre interioridade do ator e a demanda de relação com outro ator . . ." e que isto promoveria um Homem-Deus ". . . um Homem que se abre para a novidade e não a teme . . ." (p. 175).

Por fim, resgata-se um último pensamento: "O homem moreniano, apesar de Deus, não se faz solitário, se faz Deus na relação com o outro" (Bragante, 2002, p. 107). Pensa-se com isso que, o que é ética não depende somente de um sujeito, e sim de seu relacionamento com o Outro. Só aí acessa-se o Deus-Eu, só aí pode-se brincar de criar, só aí é espontâneo. E se é Deus, não seria este completamente responsável por todos? "Porque o Deus-‘Eu’ sou eu, e porque do meu ponto de vista todo o universo está contido ‘na minha cabeça’, eu não posso escapar da responsabilidade pela totalidade do universo" (Moreno J. L. citado por Moreno J. D., 1994/1998, p. 136). Só que totalizar o universo consiste, segundo Levinas, talvez na grande questão, por estar incompleto.

 

LEVINAS E INTERLOCUÇÕES TEÓRICAS

O entendimento de Deus no sentido moreniano como sendo um Eu que cria e tem espontaneidade, a todo momento coloca este Eu em um relacionamento com o outro e sua possibilidade de ser Deus-Eu nesse relacionamento. O sentido que Levinas dá para a responsabilidade primeira que surge no relacionamento face a face também toma uma conotação do Divino (Levinas, 1991/2004), mas um divino diferenciado daquele prescrito pela Teodiceia (assim como Moreno), pois o outro, enquanto absolutamente Outro, em pura e completa Outridade, que nunca se consegue captar por completo, ou seja, longe da racionalidade ontológica, dá ao Eu uma visada do Infinito, e reitera, uma visada. O Infinito sim, tem a conotação de divino para Levinas (1991/2004) e parece se apresentar em Moreno (Moreno, 1920/1992) da mesma forma e através da responsabilidade, como o contato do homem com o cosmos: "A responsabilidade é o elo que nos une e que nos liga ao cosmos" (p. 14). Daí, abre-se a possibilidade de diálogo entre esses dois autores.

De acordo com o psicodrama, o sujeito é constituído de papéis e quanto melhor percebe e desempenha esses papéis melhor é para si mesmo, já que "a percepção do papel é cognitiva . . ." (Fox, 1987/2002, p. 114). No entanto, se para Levinas o sujeito só encontra a Outridade do outro se o reconhece antes de colocar-lhe as "máscaras" que o envolvem (Levinas, 1991/2004), como seria possível entender esse ser ético dentro do psicodrama? Os autores recorrem nesse momento para a compreensão de homem cósmico moreniano, em que antes de um ser envolvido e permeado por papéis, existe o ser cósmico anterior já sendo chamado pela responsabilidade ao universo (Moreno, 1920/1992).

Para Levinas (1991/2004), "a proximidade do outro é significância do rosto. Este significa, de imediato, para além das formas plásticas, que não cessam de o recobrir como máscara de sua presença na percepção" (p. 193), em outras palavras, rosto, para Levinas é aquilo que
aparece do outro destituído das máscaras que a percepção, majoritariamente intelectualizada, tendem a atribuir. É a ". . . própria vulnerabilidade" (p. 193) do outro. Estar em contato com o outro nesse face a face "elege", segundo o autor, o Eu a responsabilizar-se por ele. Esse chamado primeiro é, para Levinas, a própria ética. Ele se expressa sobre o seu sentido de verdadeira relação também através dessa vulnerabilidade. Segundo Levinas (1972/2012): "Na vulnerabilidade encontra-se, portanto, uma relação com o outro, que a causalidade não esgota. É uma relação anterior a toda afecção pelo excitante" (p. 100).

Isso pode se tornar especificamente problemático na relação terapêutica, pois, como coloca Dedomenico (2011):

Agarramo-nos a uma identidade déspota, a um EU-tirano, que com seu conhecimento tudo explica e codifica. Habitar essa zona de incerteza no limite de quem se é na relação com o outro implica deparar-se com nossa própria diferença, com o outro que se é. A fim de diminuir a estranheza e a violência desse encontro, rapidamente apropriamo-nos de uma verdade para explicá-la, de um conceito para defini-la ou de uma estrutura para dar-lhe forma, de um saber-poder que se apresenta em uma máscara. Assim, na posição de especialistas em determinado assunto, ao explicarmos o outro a partir de uma verdade
que já se tem, colocamo-lo numa camisa de força e o enclausuramos dentro de uma identidade definida por um saber-poder que
se naturalizou ao longo dos séculos. (p. 99)

A proporção da responsabilidade levinasiana talvez possa ser melhor expressa com a seguinte citação ao trazer novamente o face a face: ". . . este em-face do rosto na sua expressão – na sua mortalidade – me convoca, me suplica, me reclama: como se a morte invisível que o rosto de outrem enfrenta – pura alteridade, separada de algum modo, de todo conjunto – fosse ‘meu negócio" (Levinas, 1991/2004, p. 194). O Eu é responsável então pela morte do Outro, sendo que para o autor, a violência e até o homicídio do outro podem ser duas consequências da permanência do em-si-mesmo ontológico, de um Ser-aí, de um Dasein. O perigo que alguém corre em se manter em seu Dasein é exatamente o de usurpar o lugar do outro no mundo enquanto o faz, cometendo assim o ato violento. Pois se reclama seu lugar ao mundo, nada garante que não esteja reclamando o lugar de outrem. Levinas (1991/2004) reitera: "O temor de cada um por si, na sua própria mortalidade, não consegue absorver o escândalo da indiferença ao sofrimento de outrem" (p. 244).

Com o que se lida, segundo a proposta levinasiana é a sua busca para a preservação da alteridade, sendo que "para que a alteridade que desconserta a ordem não se torne logo participação na ordem, para que permaneça aberto o horizonte do além, é preciso que a humildade da manifestação já seja afastamento" (Levinas, 1991/2004). É o que Levinas vai chamar de Vestígio. É retraimento anterior à entrada, não é ". . . uma palavra a mais: é a proximidade de Deus no rosto do meu próximo" (p. 89).

Resumidamente, há de apontar que Levinas (1991/2004) enxerga a proposição do Ser e do Ente como uma proposição fundada na racionalidade ocidental, pois o movimento do Ser é um constante voltar a si, um ato de assimilar constantemente o Vivido a si mesmo, como expõe quando esclarece que:

À guisa de preocupação em ser, à guisa de ser-aí, à guisa de ser-no-mundo, à guisa de ser-com-os-outros, à guisa de ir-para-a-morte, importa no "acontecimento" deste ser deste ser mesmo. Enquanto que na paz ética a relação vai ao outro inassimilável, incomparável, ao outro irredutível, ao ato único. Só o único é absolutamente outro. (p. 246)

A infinidade dada pela unicidade dita por Levinas já tem início por aqui.

Hutchens (2007/2009) admite no pensamento levinasiano que "a redução do outro ao mesmo emancipa o eu da necessidade de admitir a diferença" (p. 65), e que isso por si só já é uma violação da ética como postura primeira e constitui ato violento.

Moreno (1920/1992) tem uma ideia, em primeira mão, mais totalizadora dessa responsabilidade quando não distingue e não compara a responsabilidade que sente pelo mundo:

Eu sou responsável por todas as coisas que acontecerão no futuro e por todas as coisas que aconteceram no passado e, mesmo que eu não tenha qualquer ajuda para fazer as coisas, para remover a razão de ser do sofrimento ou para fazer qualquer outra coisa, eu tenho agora, uma aliança operacional com o mundo inteiro (p. 14).

O que parece o ajudar a fugir das propostas éticas de posições conhecidas do pensamento filosófico, como o consequencialismo, termo derivado do Utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, proposto por Anscombe (1958), e a Deontologia, pois segundo Hutchens (2007/2009), "estar livre, distanciado e com poder é a própria humanidade do eu subordinado a universais" (p. 66).

O consequencialismo, de maneira muito simplificada e segundo Hutchens (2007/2009) é uma posição onde "se for decidido que um valor específico tem mérito moral, ou seja, que é, em última instância, algo bom para ser feito pelas pessoas ou recebido por elas dos demais, então será correto fazê-lo" (p. 49), o julgamento moral da ação parece aqui ser altamente operante. Já a deontologia, também de forma simplória e aqui, segundo o mesmo autor, seria a postura da atenção às regras e normas antes mesmo da avaliação do que deve ser feito ou não: se uma norma indicar para que se alimente um faminto deve-se fazê-lo independentemente das condições, mas se a norma indicar que deve-se ignorá-lo, há necessidade de ater-se à norma, mesmo que tenha condições de atender a um pedido.

Ambos Moreno (1920/1992, 1959/1974) e Levinas (1972/2012, 1991/2004) contrariam essas duas posições ao colocarem antes de tudo o posicionamento responsável do homem perante o universo. Existem, porém, outros pontos de proximidade entre os autores.

Moreno (1920/1992), em sua colocação sobre nossa responsabilidade no livro As Palavras do Pai escreve claramente que ". . . sou responsável por todas as coisas que acontecerão no futuro e por todas as coisas que aconteceram no passado" (p. 14). Só nessa colocação Moreno se posiciona em relação ao presente "sou" em relação ao futuro, "acontecerão" e em relação ao passado "aconteceram". Com isso, pode-se até ponderar sobre o pensamento da temporalidade em Moreno como intrinsicamente ligada ao cosmos. E cosmos sendo aquilo que permite o Eu ser Deus-Eu, regando-o de espontaneidade. Essa espontaneidade está ligada diretamente às raízes hassídicas e com o contexto existencialista que dá base às ideias de Moreno (Scagliarini, 2007).

O argumento utilizado por Fonseca Filho (1980/2008) é justamente este, ao sermos mais que seres biológicos, psicológicos, sociais e culturais, e regidos por um princípio unificador, um princípio de religare, somos seres cósmicos, responsáveis.

Levinas (1991/2004) também liga a temporalidade pela responsabilidade que o Eu tem com o outro, pois como um passado imemorial é "responsabilidade anterior a toda deliberação lógica que a decisão racional requer" (p. 219), ou seja, é um ". . . passado que não é feito de representações . . .", e como visada do futuro um "pensamento que pensa mais do que pensa ou pensamento que, ao pensar, faz melhor que pensar, pois ele já se percebe responsabilidade por outrem cuja mortalidade – e por conseguinte, a vida – me dizem respeito" (p. 204). A obrigação para com outrem é tal, que é ". . . anterior a todo contrato – referência a um passado que nunca foi presente! . . ." e é ". . . sobre um morrer pelo outro – referência a um futuro que jamais será meu presente . . ." (p. 299). O autor indica que a partir daí, da mesma forma como coloca Moreno, o Eu está ligado a todos os que são, a todos que já morreram e todos os que ainda não nasceram – o infinito já anteriormente mencionado, Deus. "É permitido aproximar a ideia de Deus, partindo do absoluto que se manifesta na relação a outrem" (p. 267). Hutchens (2007/2009) traz uma passagem importante para a compreensão dessa posição levinasiana quando cita que "a temporalidade insular do eu é interrompida pelo surgimento imprevisível da outra pessoa vinda do futuro e o passado imemorável que ela traz consigo" (p. 103).

Atenda-se aqui para o ponto que é, possivelmente, a mais interessante convergência entre as duas propostas sobre responsabilidade, o fato de que essa responsabilidade é a priori desigual. Moreno (1920/1992) traz que sua aliança operacional com o todo do mundo é vigente: ". . . mesmo que eu não tenha qualquer ajuda para fazer as coisas . . .", e ainda sugere que "não existem limites para a responsabilidade nem responsabilidade parcial" (p. 14); o que faz pensar que Moreno se coloca responsável pelo mundo antes de que qualquer um se responsabilize por ele, algo que Levinas (1991/2004) também sugere. Para este, ". . . a alteridade do outro homem em relação ao eu é inicialmente – e se ouso dizer, ‘é positivamente’ – rosto do outro homem obrigando o eu, o qual de imediato – sem deliberação – responde por outrem" (p. 214). Ele esclarece que esse de imediato significa ". . . ‘gratuitamente’, sem se preocupar com reciprocidade" (p. 214).

Os autores contrariam a corrente ocidental de um pensamento ético embasado no avaliar das consequências e do cumprir rigorosamente a regra, pois colocam a relação da responsabilidade como o estágio primeiro. Para ilustrar essa "desigualdade" na atribuição da responsabilidade, Levinas (1991/2004) recorre a um dos maiores escritores de todos os tempos, o russo Fiódor Dostoiévski: "Todos os homens são responsáveis uns pelos outros. E eu mais que todo mundo" (p. 148). Essa frase expõe bem o que os dois parecem pensar.

O protagonismo moreniano, sendo aquele que ". . . pode redescobrir e recuperar a espontaneidade" (Moreno, 2000/2001, p. 131), o chamado a ser espontâneo e criativo, e a responsabilidade levinasiana, não necessariamente se confundem, assim como para Moreno, o sujeito deve (e pode) ser o protagonista de sua vida, ele mesmo o coloca a priori como ser em relação e corresponsável por todos os outros. Moreno (1934/2008) aponta que: "Há ampla evidência que a espontaneidade da criança tem ‘alguma relação’ com sua chegada ao mundo" (p. 55). A própria espontaneidade moreniana sustenta que, como seres essencialmente sociais, esse protagonismo se dá nesse meio, e é assim, responsável por ele. Levinas (1991/2004), inclusive, direciona-nos que a única possibilidade de ser a si mesmo é através da resposta ao chamado da responsabilidade que o rosto de outrem incita. Sobre esse despertar em cada um, argumenta que ". . . não é nem reflexão sobre si nem universalização; despertar que significa responsabilidade por outrem a nutrir e a vestir, minha substituição a outrem, minha expiação pelo sofrimento e, sem dúvida, pela falta de outrem" (p. 97). No momento em que se responde a esse chamado, é possível ser verdadeiramente único, "protagonista": "Expiação a mim atribuída sem possibilidade de evasiva e à qual se eleva, insubstituível, minha unicidade de eu" (p. 97).

De fato, ao se aproximar do ser espontâneo-criativo, o sujeito está se tornando um Deus-Eu aos olhos de Moreno, o que, levando em consideração o já dito anteriormente, novamente dialoga com a colocação levinasiana, pois a relação com este outrem dá fonte interminável e imensurável de espontaneidade.

A diferença crucial entre os dois autores, como já indicada anteriormente, ocorre na extensão da análise da responsabilidade que propõem. Levinas problematiza a sua ética ao redor do Rosto de outrem, que representa a infinidade de unicidades, já Moreno a coloca no homem como sendo responsável por todas as coisas. Aqui começa o que se difere, pois, ao fazer sua análise a partir do face a face, Levinas (1991/2004) também traz a questão do terceiro que se insere em todas as relações e a delicada unicidade que cada um possui. Ele discorre sobre a presença do terceiro que também é um outro:

Ali está a origem do teorético, ali nasce a preocupação com a justiça que é fundamento do teorético. Mas é sempre a partir do Rosto, a partir da responsabilidade por outrem, que aparece a justiça, que comporta julgamento e comparação daquilo que, em princípio é incomparável, pois cada ser é único, todo outrem é único. (p. 144)

Levinas (1991/2004) complementa sua posição sobre o terceiro quando este não está aí por acidente e que em certo sentido ". . . todos os outros estão presentes no rosto de outrem" (p. 147), o que aponta a constante preocupação com a justiça ética. Ele aprofunda ainda mais a questão quando incita que as interações entre o outro e o terceiro são da preocupação de todos enquanto responsáveis, pois perante essas interações não se pode ficar indiferente. É uma diferença, em princípio, de um entendimento de universalização entre Totalidade (com Moreno) e Infinidade, através de unicidades (Levinas).

A ética como base para a justiça em Levinas atribui a esta um caráter dinâmico e em constante mudança e avaliação, pois o autor entende que a justiça vem sempre a ". . . se tornar sempre mais sábia em nome, em memória da bondade original do homem para com seu outro . . . . Ela sabe que não é tão justa quanto é a bondade que a suscita" (Levinas, 1991/2004, p. 294). Ou seja, no entendimento moreniano, a replicação de um ato espontâneo que foi responsável por postura ética em dada situação "sabe" que nunca será tão verdadeiro no momento em que se fala sobre ele ou o estabelece como padrão. A postura ética verdadeira necessita de espontaneidade constante. A justiça deve ser sempre a revisão da justiça, e a espera de uma justiça melhor. Mesmo, e talvez especialmente, em terapia.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os autores pensam então que a ética que deve permear a conduta humana e, por consequência, a conduta profissional e a conduta dentro dos grupos, é espontâneo-criativa, a ética da revolução criadora. Essa forma ética deve ser constantemente reformulada e repensada, pois aquilo que foi padrão ético em determinado momento passado, não necessariamente o é no momento atual. E por que isso é proposto? Pelo simples fato de que o humano se renova e se modifica constantemente. As relações e o modo de ser no mundo sofrem influências constantes que modelam a conduta e subjetividade dos sujeitos. A ética deve adaptar-se a essas modificações constantes, pois, caso contrário, tornar-se-á cristalização e por consequência, obsoleta.

Cada sujeito é um ser único, sem igual, e a postura ética apresentada aqui é a de reconhecer essa unicidade. Como acrescenta Dedomenico (2011), "se pudermos falar de uma ética no psicodrama, seria a ética do acolhimento da diferença, sem deixar de ser ele próprio sendo outro" (p. 101). Assim como em grupo, deve-se entender que existem várias unicidades que o compõe. As condutas éticas devem acompanhar essas diversidades e adaptar-se a elas. É interessante pensar que a responsabilidade tão comentada até agora ". . . não é a privação do saber da compreensão e da captação, mas a excelência da proximidade ética na sua socialidade, no seu amor sem concupiscência" (Levinas, 1991/2004, p. 197), o que vale para tanto para Moreno quanto para Levinas.

Os autores notam a explicitação de uma violência na ética proposta por Levinas, violência que o Outro provoca, invariavelmente, ao permanecer Alteridade. Mas, como ponto de reflexão e confluência, a utilização de palavras no Convite ao encontro de Moreno (Marineau, 1989/1992), mote do psicodrama, remete a uma violência necessária para se colocar no lugar de outro. Afinal, não há nada de confortável em se arrancar os olhos. Posicionamento ético para Moreno então não é algo de simples adoção, mas sim uma atitude que a priori pode ser desconfortável, pois é estranha ao sujeito.

É interessante notar que a fenomenologia da ética levinasiana bebe de uma historicidade fenomenológica pela qual o autor estava atravessado. Cabem a trabalhos posteriores ou a outros autores se aprofundar no tema da fenomenologia e fazer uma arqueologia desse pensamento, que tem início, principalmente, nas figuras de Edmund Husserl e Martin Heidegger.

Uma ética verdadeiramente humana, na qual é possível de fato encontrar unicidade própria, sem procurá-la, em que o sujeito se torna protagonista de sua vida através da responsabilidade que tem para com os outros, é o resgate que está proposto. Para Levinas (1991/2004), "a humanidade da consciência não está absolutamente nos seus poderes, mas na sua responsabilidade" (p. 153). Essa é uma ética que deve ser proposta (resgatada) a toda e qualquer interação humana e tem um sobrepeso especial não só na postura psicodramática, como em qualquer proposta psicoterápica, pois propaga-se a psicoterapia como algo que respeita e preserva a subjetividade alheia, mas ao tentar encaixar a prática em padrões, corre o risco de fazer tudo menos isso.

Ficou evidente para os autores a necessidade de retomarem-se as bases filosóficas do pensamento moreniano para que, em um mundo em constante mudança e crise, estabeleçam-se novamente bases para um ser ético além da prática.

Ao parar para pensar, é assim que se pode cumprir a ordem primeira do mestre do psicodrama: Sê espontâneo!

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

Conceitualização, Santos PLT e Bitencourt LC; Metodologia, Santos PLT e Bitencourt LC; Investigação, Santos PLT e Bitencourt LC; Escrita – Primeira Redação, Santos PLT e Bitencourt LC; Escrita – Revisão e Edição, Santos PLT e Bitencourt LC.

 

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*Autor correspondente: pedro.tizo.psico@gmail.com

Santos PLT https://orcid.org/0000-0003-2953-659X

Bitencourt LC  https://orcid.org/0000-0001-9471-3818

Recebido: 13 Nov 2018 – Aceito: 04 Nov 2019

Editora de Seção: Leila Kim

Trabalho apresentado no XX Congresso Brasileiro de Psicodrama.

 

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