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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.35-36 Canoas dez. 2011

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

A latência na atualidade: considerações sobre crianças encaminhadas para psicoterapia

 

Latency today: considerations on children in psychotherapy

 

 

Denise SteibelI; Ana Elisa Hallberg; Bianca SanchoteneII; Paula von Mengden CampezattoIII; Milena da Rosa SilvaI; Maria Lúcia Tiellet NunesIII

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul
II Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia
III Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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RESUMO

A latência é o período do desenvolvimento menos abordado pela literatura psicanalítica e menos compreendido, apesar de corresponder à idade na qual ocorre a maior procura por atendimento psicológico. Além disso, questiona-se um possível encurtamento do período da latência em nossa cultura. Partindo desses apontamentos, este estudo tem como objetivo descrever os conflitos e as defesas de crianças que buscaram atendimento psicoterápico em um serviço-escola, verificando se estas apresentariam as características típicas da latência. Foi realizado um estudo de caso coletivo com oito crianças com idade entre 7 e 9 anos, o qual consistia em um encontro de testagem para a aplicação dos testes psicológicos CBCL, Teste de Bender, Desenho da Figura Humana e Teste das Fábulas. Como resultado, foi possível identificar que algumas crianças apresentaram características típicas da latência, demonstrando intenso uso de mecanismos de defesa a fim de lidar com os conflitos advindos do Complexo de Édipo.

Palavras-chave: Crianças, Psicanálise da criança, Técnicas projetivas.


ABSTRACT

The latency period is the least developed on psychoanalytic literature and also the least comprehended, although is the age which constitutes the largest proportion of psychological demand care in childhood. Moreover, the issue about a possible shortening of the latency period in our culture is being thought. Based on these ideas, the present study aims to describe the conflicts and the defenses of children who sought psychotherapy at a service-school, verifying if such children would present the characteristics of a work of latency. This was a collective case study with eight children aged between 7 and 9 years, which consisted on a testing date for application of psychological tests CBCL, Teste de Bender, Desenho da Figura Humana e Teste das Fábulas. As a result, it was possible to identify some children who had typical features of this period, showing intense use of defense mechanisms to deal with conflicts derivated from the Oedipus complex.

Keywords: Children, Child psychoanalysis, Projective techniques.


 

 

Introdução

A infância é o período da vida no qual o indivíduo é inserido na cultura e, portanto, necessita adaptar-se às normas sociais e ser capaz de estabelecer relações interpessoais (Resende, 1996). Cada etapa do desenvolvimento infantil, contudo, é marcada por tensões próprias e muitas delas se refletem em sintomas físicos e/ou psicológicos. Essas tensões podem se extinguir com o decorrer do desenvolvimento ou persistir, invadindo outras etapas, aprisionando o crescimento. Nessas ocasiões, pensamos que o tratamento psicoterápico pode se fazer necessário para que o desenvolvimento emocional siga seu curso normal.

Estudos epidemiológicos sugerem que de 10% a 20% das crianças brasileiras sofrem de doenças psiquiátricas em algum momento de sua infância e esses transtornos tendem a ser persistentes se não atendidos efetivamente. Destas crianças que necessitam de tratamento, somente 10% a 20% chegam a receber algum tipo de atendimento psicológico e/ou psiquiátrico (Fleitlich-Bilyk & Goodman, 2004).

Especificamente em relação aos desafios psicológicos colocados às crianças em idade escolar, Ferreira e Araújo (2001) afirmaram que elas precisam superar os conflitos que vinham sendo lentamente elaborados durante as fases anteriores: ligação, controle e identificação. Durante esta etapa, o manejo da frustração, a perda da onipotência e a ligação simbiótica com os pais dão lugar ao interesse pelo mundo e pelo contato com crianças de igualidade ou idade semelhante. Entretanto, nem sempre os conflitos se acomodam tão facilmente e muitas crianças possuem indicação de psicoterapia para auxílio e acompanhamento na elaboração dos mesmos.

De acordo com a teoria do desenvolvimento psicossexual de Freud (1905), no início da vida, o recém-nascido traz consigo "germes de moções sexuais" que sofrem repressões progressivas até serem contidas pelos diques do asco, vergonha e exigências morais. A energia das moções sexuais, contida pelos diques e pela repressão, se volta, através de processos sublimatórios, para fins educacionais, realizações culturais, entre outros. Este processo, que conta com o estímulo das regras culturais e educacionais, é também orgânico ou hereditário, pois pode ocorrer sem o auxílio da cultura e inaugura o que ficou conhecido como período de latência.

Este é o período do desenvolvimento menos estudado psicanaliticamente, e menos compreendido, embora corresponda à maior porção da procura para atendimento clínico na infância (López, 2004; Sarnoff, 1995; Urribarri, 1999). A maior incidência de procura por atendimento para crianças nessa fase pode estar ligada ao fato de coincidir com o início da vida escolar. Assim, as dificuldades até então apresentadas pela criança, contidas pelo ambiente doméstico, mostram-se com mais evidência pela mudança de ambiente e pela separação de um objeto cuidador mais presente.

De acordo com Sarnoff (1995), há duas definições de latência comumente utilizadas: latência como uma faixa etária, representando o período que vai dos 6 aos 12 anos de idade; e latência como um estado psicológico. Essa segunda definição, conforme o autor caracterizaria a latência como um período durante o qual a criança experimenta uma complexa reorganização da estrutura defensiva do ego. Um estado de tranquilidade e educabilidade seria mantido como uma consequência de um equilíbrio entre defesas e tensões. Trachtenberg (1991) defi ne a latência como "o período da defesa, da repressão, da dissociação rígida que marca dois mundos: o das crianças, que é o mundo edípico e pré-edípico, colorido de intensas ansiedades paranóides, e o mundo adulto, o das responsabilidades e integrações" (p.44). Não se trata, no entanto, de um estágio universal e encontra-se facultativamente presente, de acordo com questões sociais e culturais (Sarnoff, 1995).

Durante o período de latência, segundo Wolff (2009), acontece um processo de maturação progressiva durante o qual vai acontecendo a formação de novas estruturas psíquicas. A resolução do Complexo de Édipo é vista como um desses processos que auxilia na elaboração progressiva e complexa dos desenvolvimentos que acontecem ao longo do período. Luz (2007) refere que a criança, quando não se desenvolve da maneira esperada pela etapa da latência devido à falta dos diques culturais, tem como resultado uma evolução distorcida, causando alteração das funções do ego e regressão a fases anteriores de fixação libidinal. Dessa forma, a criança tem maiores dificuldades de lidar com as exigências do meio, podendo apresentar desequilíbrio emocional. A dificuldade em resolver a situação edípica não a deixará pronta para exercer autocontrole, deixando-a menos segura para enfrentar as angústias e ansiedades ocasionadas pelas novas exigências sociais.

O período de latência tem sido descrito mais pelo que deixa de acontecer do que pelas ocorrências próprias desta etapa, por aquilo que surge e que se complexifica (Urribarri, 1999). Muitas vezes, conforme o autor, esse período é visto como uma "aborrecida espera" (1999, p. 258) do grande período de mudanças da adolescência, o que retira qualquer importância do período da latência e ignora suas profundas modificações e implicações futuras. De acordo com Urribarri (1999) e Enck (2007), não obstante a latência se instale a partir da resolução do Complexo de Édipo e venha a dar suporte à adolescência, caracterizá-la unicamente assim seria empobrecedor e reducionista.

Macedo (2006) refere que entre a sexualidade infantil e a sexualidade adulta (genitalidade) se interpõe o período de latência. Neste período o indivíduo se prepara para a vivência da sexualidade não mais de forma parcial, mas possibilitando a primazia da genitalidade. Aquilo que é da ordem do desejo edípico fica inativo frente à intensidade do recalcamento. Entretanto, tudo isso não pode ser entendido como ausência de sexualidade, mas uma espécie de desvio da mesma. Ao mesmo tempo em que algo é renunciado, alienado, algo se constrói e oferece novas possibilidades, novos prazeres. Há um importante acréscimo de domínio e autonomia, os quais se expressam em aprendizagens, atividades, expansões, relações, complexificações diversas, tanto intra como intersubjetivamente (Enck, 2007). A criança é impulsionada a explorar os prazeres da alfabetização, jogos, coleções e brincadeiras em grupo (Macedo, 2006). Neste sentido, Urribarri (1999) desenvolveu o conceito de trabalho da latência, utilizando o termo 'trabalho' no sentido de esforço para a organização, diferenciação e ampliação do aparelho psíquico, e também quanto à exigência de tramitar a pulsão em um novo ordenamento dinâmico e estrutural desse aparato. Destaca o termo trabalho como sendo mais propício do que período, pois a importância das modificações estão centradas no aparato mental e não no aspecto cronológico. O autor ainda destacou que o aspecto característico do trabalho da latência é a afluência de diversos mecanismos ao fim sublimatório. Essa mudança no aparelho psíquico, segundo Wolff (2009) mostra-se através da dissimulação, ocultação, isolamento e deslocamento que desvia as pulsões para tomarem outros destinos. Nesse processo percebe-se o uso de mecanismos de defesa típicos da latência como sublimação, formação reativa, repressão e defesas obsessivas.

Estes mecanismos da latência, de acordo com Anna Freud (1987), auxiliam o ego a manter os impulsos sexuais longe da consciência. A repressão faz com que nenhum aspecto do impulso sexual possa ser observado na superfície, exceto por sua ausência. A formação reativa, por sua vez, resulta em deixar aparecer algo, mas através de uma contraparte: uma grande exigência de disciplina, ordem e obediência. Seguindo esta linha, Enck (2007) afi rmou que, como resultado da dissolução do Complexo de Édipo, as defesas do ego se opõem aos impulsos sexuais e os canalizam, marcando seu curso com uma espécie de dique. Neste sentido, é pertinente citar os 'diques psíquicos' descritos por Freud (1905): a repugnância, a vergonha e as exigências morais. Tais forças psíquicas seriam erigidas neste momento a fim de desviar o curso da energia advinda dos impulsos mencionados.

De modo semelhante, Porto (1991) destacou que o equilíbrio intrapsíquico na relação com os pais, adquirido durante a latência pelo efeito da repressão, é mantido através de um trabalho permanente. Porém, este equilíbrio pode ser rompido quando alguma situação estimula as tensões edípicas. Frente ao reaparecimento de impulsos fálicos, a criança lança mão de defesas como as obsessivas e a formação reativa, vindas da organização anal-sádica – à qual ela pode regredir (Porto, 1991; Sarnoff, 1995).

O que caracterizaria a latência normal, conforme Urribarri (1999), seria "o atuar conjunto e subordinado de diversos mecanismos defensivos aos fins sublimatórios" (p. 260). Assim, a organização psíquica da latência não se caracterizaria unicamente pela utilização intensa da repressão, da formação reativa e da sublimação, pois estes mecanismos já existiam antes, mas sim por sua configuração dinâmica que orienta esses mecanismos a serviço da sublimação. Desta forma, favorecem o desenvolvimento e a ampliação egóica, a simbolização, a autoestima e a inserção social. A maneira como a criança vivencia o período de latência tem uma influência direta na maneira como ela enfrentará e processará psiquicamente o que a puberdade lhe reserva (Macedo, 2006).

Esse conjunto de defesas torna possível a descarga de impulsos através da fantasia. Porto (1991) ainda refere que, na etapa da latência, as fantasias são como mecanismos de defesa, agindo a serviço do ego, já que ao utilizar a fantasia como defesa, a criança mostra um funcionamento psíquico em que a atividade mental prepondera sobre a atividade motora.

Em relação às expressões da fantasia no período de latência, Sarnoff (1995) afirmou que o latente é menos capaz de expressar abertamente fantasias que tenham a ver com o seu relacionamento com os pais ou com outros adultos do seu ambiente. Contudo, as fantasias básicas diante das quais a atividade defensiva é ativada giram ao redor de conteúdos ligados ao ciúme e aos relacionamentos sexuais e agressivos com adultos e irmãos. Durante o início da latência, as fantasias típicas dizem respeito a tomar o lugar de um dos membros do casal parental em sua relação com o outro. A criança estaria constantemente explorando suas identificações com cada um dos pais e, na fantasia, vivendo os papéis daquele com quem se identifica, sendo que o medo de punição acompanharia estas fantasias. No decorrer dos anos, estas fantasias continuariam a existir, mas com menor ênfase. Ao redor dos seis ou sete anos, quando a criança começa a se sentir mais independente em relação aos seus pais, as fantasias predominantes passariam a se relacionar com sentimentos de ser pequeno, vulnerável e sozinho. Isso seria demonstrado, principalmente, através do medo de monstros. Já por volta dos nove ou dez anos, a independência em relação aos pais é ainda maior e começa uma necessidade de confronto, bem como o temor deste confronto e da perda do amor dos pais. As fantasias predominantes seriam de desafio, com intensa culpa e dúvida, e de um mundo ideal em que o latente seria muito poderoso, talvez um artista famoso ou esportista campeão. Assim, começam a surgir também preocupações com a identidade sexual (Sarnoff, 1995).

Wolff (2009) coloca que o período de latência é dividido em três fases: inicial, intermediária e final. Na fase inicial surgem os conflitos relacionados à conflitiva edípica; na fase intermediária em relação à rivalidade fraterna e preocupações com sentimentos de solidão e separação; na fase final estão relacionados à busca por individuação e crises de identidade sexual.

Percebe-se que Sarnoff (1995) destacou uma evolução no decorrer do período da latência, com alterações nas fantasias e defesas predominantes em cada período – o que, é importante frisar – não corresponde rigidamente a idades cronológicas, segundo o autor. Urribarri (1999) também diferencia dois momentos distintos na latência: latência inicial e tardia. O primeiro se caracteriza pela fragilidade do equilíbrio intersistêmico e pela emergência de angústia frente aos impulsos, onde a luta que o ego empreende está destinada a controlar o pulsional e a limitar a descarga. O latente desta primeira etapa teria pouca tolerância tanto em relação à sua crítica quanto à crítica externa, o que também provoca angústia, desânimo e perda da autoestima. A gradual maturação biológica, as novas capacidades intelectuais e as facilitações do entorno social possibilitariam uma ampliação de recursos e uma estabilidade funcional que inaugurariam a latência tardia.

A respeito da distinção, sempre tênue, entre normalidade e patologia na latência, Sarnoff (1995) afirmou que a estrutura egóica da latência produziria uma intermitência entre estados de excitação e estados de calma. A patologia estaria na exacerbação destas polaridades, manifestas tanto em um comportamento constantemente calmo quanto em uma excitação consistentemente inapropriada.

No desenvolvimento normal, como consequência do Complexo de Édipo e inveja do pênis, a criança entra em uma etapa de calma sexual na qual se reforça o superego, que passa a atuar com maior severidade sobre as atividades do ego. Na realidade esta calmaria é só aparente, pois ela é interrompida por excitações sexuais esporádicas, mostrando que a libido sexual, não está completamente adormecida, mas perde seu aspecto genital, voltando-se para atividades sublimatórias (Luz, 2007). A energia é utilizada para a estruturação do ego, a expansão intelectual e o aumento dos conhecimentos. O latente mostra forte desejo de aprender, dominando e canalizando sua agressividade e apoiandose no crescente aumento de conhecimentos intelectuais. Codificando e organizando informações, a criança pode formular hipóteses e trabalhar na resolução de problemas e planejamento de conhecimento.

O aumento da capacidade simbólica juntamente com mudanças cognitivas contribui para a organização da estrutura básica e para os desenvolvimentos que ocorrem ao longo da fase. A repressão das moções sexuais é responsável por certa calma que permite acontecer à aprendizagem, e na sua falha da repressão ou em seu excesso surgem os sintomas (Wolff, 2009).

Luz (2007) destaca que algumas situações podem ser estressantes para uma criança nessa idade como a separação diária da família, a necessidade de adaptação à cultura e ao sistema escolar, a crescente exigência em dominar novas habilidades como um maior controle de impulsos e adaptação a um novo papel social. Segundo o autor, tornam-se sintomáticas, sem tempo de elaborar adequadamente estas tarefas requeridas pelo processo de desenvolvimento do período de latência, as crianças que são submetidas à superestimulação sexual e sobrecarga de informações para as quais não estão com o psiquismo preparado.

Quanto às manifestações da latência nas sociedades ocidentais contemporâneas, Enck (2007) questiona se estaria havendo um encurtamento do período da latência em nossa cultura, destacando observar um encurtamento da infância e um prolongamento da adolescência. Cada vez mais cedo, principalmente com as meninas, as brincadeiras infantis são substituídas pelas maquiagens, roupas de adolescentes, festas e interesse por meninos. Assim, o trabalho da latência vem sendo dificultado, quando não impedido, em nossa cultura. Guignard (2005) ao falar de sexualidade e psicanálise na sociedade atual, afirma que psicanalistas de crianças têm observado o desaparecimento do período de latência, referindo que este fenômeno gera repercussões em todos os meios socioculturais, assim como na estrutura psíquica de cada indivíduo. A autora observa que o período que era marcado pela estruturação do recalque sexual e de sua sublimação em ideal de ego, hoje é observado como um período tomado pelo que ela chama de síndrome de hiperatividade, onde tudo pode e deve ser atingido rápido e a qualquer custo. Entre os fatores que estão trazendo consequências significativas para o encurtamento da latência, Wolff (2009) cita o amadurecimento precoce, a ausência de limites e de respeito às diferenças e o desenvolvimento hormonal precoce, estimulado por uma erotização prematura.

Essa relação da cultura com as manifestações da latência encontra respaldo na obra de Freud, na qual ele refere que os diques que canalizam as pulsões sexuais também são construídos pela educação (Freud, 1905). Assim, a cultura seria capaz de alterar as formas de manifestação da latência, ou até promover a inexistência desta.

A partir do que foi exposto acima, o presente estudo tem como objetivo descrever os conflitos e as defesas de crianças que iniciaram atendimento psicoterápico em um serviço-escola, verificando se tais crianças apresentariam as características de um trabalho de latência, conforme descrito na literatura.

 

Método

Os participantes deste estudo foram selecionados dentre as crianças avaliadas para um estudo maior, intitulado "Efetividade de Psicoterapia Psicanalítica de Crianças de 5 a 12 anos" (Campezatto, Steibel, Hallberg, Sanchotene, Susin, Ferreira, Oliveira, Rosa, & Nunes, 2009). Para o estudo referido acima, foram convidadas todas as crianças que iniciaram psicoterapia no Serviço de Atendimento do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia (IEPP), durante o ano de 2009. Dentre essas crianças, foram excluídas aquelas que não concluíram a triagem, as que foram encaminhadas para atendimento fora da instituição ou que não aceitaram participar do estudo. Assim, foram avaliadas um total de quinze crianças, sendo selecionadas para o presente estudo aquelas que tinham idade entre 7 e 9 anos, por estarem em início da vida escolar, momento que a literatura coloca como coincidindo com o período de latência, e que concentra o maior índice de procura por atendimento psicológico em clínicas-escola (Campezatto & Nunes, 2007). Os responsáveis pelos participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, no qual foram garantidas a confidencialidade e a liberdade para deixar o estudo a qualquer momento. O estudo não prevê nenhum prejuízo para o atendimento da criança, ao contrário, os testes podem foram disponibilizados para os terapeutas, podendo estes usá-los como material em prol do entendimento dinâmico da criança e de seus pais. A privacidade e a confidencialidade dos dados foram asseguradas, e em nenhum momento da apresentação dos dados da pesquisa as participantes foram identificadas. A pesquisa preocupou-se em estar de acordo com os procedimentos éticos em relação aos participantes, sendo ela aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUCRS (Ofício 1179/05-CEP).

Para o presente artigo, participaram da analise sete meninos e apenas uma menina com idade entre 7 e 9 anos, bem como seus pais ou responsáveis. Este pode ser considerado um achado inicial deste trabalho, uma vez que mostra semelhanças a outras pesquisas em clínicas-escola, nas quais a busca por atendimento no período da infância é mais comum por meninos do que por meninas (Campezatto e Nunes, 2007).

Foi utilizado um delineamento de estudo de caso coletivo (Stake, 1994). Este estudo baseou-se na análise de dados provindos das avaliações realizadas na pesquisa maior supracitada e de dados complementares obtidos dos prontuários dos pacientes. Ao final da triagem, realizada com todos os pacientes que chegam à instituição, foram convidadas para participar da pesquisa as famílias que preenchiam os critérios citados acima. Para as que aceitaram foi marcado um encontro de testagem no Ambulatório do IEPP, antes da primeira sessão de psicoterapia. Esse encontro, com duração aproximada de uma hora, consistia na aplicação do Teste da Figura Humana, Teste Bender e Teste das Fábulas. Neste encontro, enquanto a criança realizava pedia-se para que os pais preenchessem individualmente o questionário CBCL. Caso um dos pais não estivesse presente no dia, pedia-se que o responsável levasse o questionário para casa para ser preenchido e que no primeiro dia de psicoterapia entregasse na secretaria da instituição. Os testes psicológicos que foram realizados por um psicólogo, membro do grupo de pesquisa, devidamente treinado para a tarefa.

Alguns instrumentos utilizados no estudo foram utilizados a fim de compreender a psicodinâmica dos casos, embora tenham sido considerados desfavoráveis para aplicação no contexto clínico pelo Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos, tais como o Teste das Fábulas e o CBCL, mencionados a seguir.

Prontuário eletrônico do serviço de atendimento do IEPP

Trata-se de uma ficha eletrônica que é preenchida pela psicóloga responsável pela triagem do paciente, na qual constam informações sobre o caso, como motivo da consulta, sintomatologia, principais mecanismos de defesas, entre outros. No presente estudo, esse material foi utilizado para acessar o motivo da busca de atendimento.

Ficha de informação sobre a criança

Este é um instrumento desenvolvido por Nunes, Silva e Feil (2008), que busca coletar dados de identificação da criança, bem como alguns eventos estressores. Essa ficha foi preenchida por um dos pais ou responsável.

Child Behavior Check List – CBCL

O CBCL (Achembach & Rescorla, 2001) é um questionário autoaplicativo que tem por objetivo avaliar as áreas sociais e comportamentais de crianças e adolescentes, bem como as competências relacionadas a estas áreas, a partir de informações fornecidas pelos pais. Esse instrumento foi preenchido por ambos os pais ou responsáveis, separadamente.

Teste gestáltico viso-motor Bender

O teste tem como objetivo avaliar a maturação visomotora da criança e também aspectos emocionais (Cunha, 2000). Trata-se de nove figuras que são apresentadas uma de cada vez e as quais a criança deve reproduzir em folha branca utilizando lápis preto, sem o auxílio de borracha. Esse instrumento foi utilizado para avaliar possíveis alterações cognitivas significativas e descartar indícios de prejuízo neurológico.

Desenho da figura humana

Este é um teste amplamente conhecido e que possui diversos sistemas de avaliação, sendo alguns destinados à compreensão de conflitos emocionais e outros à compreensão das habilidades cognitivas. Nesta pesquisa foi considerado o viés cognitivo descrito por Wechsler (2003), complementando o teste Bender na avaliação de possíveis alterações cognitivas significativas. Para a execução da tarefa foi fornecida uma folha branca e lápis preto para a criança. Foi solicitado que a mesma desenhasse uma pessoa do sexo feminino e em seguida, em outra folha, uma pessoa do sexo masculino.

Teste das fábulas

Este é um instrumento projetivo que possui o intuito de analisar o desenvolvimento emocional, relacionado à consolidação de algumas tarefas de desenvolvimento da criança, como a fase da separação-individuação, rivalidade fraterna, questões edípicas, medos e ansiedades infantis. Os conflitos relativos a essas tarefas são representados em dez fábulas diferentes. Na aplicação desse instrumento a criança é convidada a escutar o início dessas fábulas, uma de cada vez, e dar uma continuação e um final a cada uma. Através desse instrumento foram avaliadas as ansiedades e conflitos das crianças participantes (Cunha & Nunes, 1993).

 

Resultados e discussão

A análise do Teste Bender foi realizada conforme o manual do instrumento e mostrou que nenhuma das crianças apresentava indícios significativos de lesão cerebral ou neurológica. De modo semelhante, a análise do Desenho da Figura Humana demonstrou que nenhuma das crianças apresentava alterações cognitivas relevantes, classificando-se todos os resultados na faixa entre médio fronteiriço e médio superior.

A análise dinâmica das respostas das crianças ao Teste das Fábulas mostrou que essas poderiam ser vistas como pertencendo a dois distintos grupos, de acordo com os conflitos e defesas predominantes. O primeiro grupo foi constituído por crianças que apresentavam como principal conflitiva a questão edípica. Já o segundo grupo foi formado por crianças que demonstravam ainda não estarem vivenciando a conflitiva edípica, ou estarem num estágio muito inicial da mesma.

A tabela 1 é representativa da divisão dos dois grupos:

 

 

O grupo 1 foi formado por três participantes do sexo masculino, com idades entre 7 anos e 5 meses e 9 anos e 10 meses (P1, P2 e P3), sendo caracterizado pelo uso de defesas típicas do período de latência. Consideramos aqui como típicas as defesas edípicas já citadas na introdução: repressão, dissociação rígida, defesas obsessivas e formação reativa (Porto, 1991; Sarnoff, 1995). Baseado nisso, percebeu-se que as crianças desse grupo apresentavam ansiedades intensas frente à conflitiva edípica e lançavam mão de defesas predominantemente anais para enfrentá-las.

Podemos ilustrar os aspectos acima mencionados com os exemplos abaixo. As histórias desenvolvidas pelos participantes P1 e P3 a partir da Fábula 8, que suscita a conflitiva edípica, propõem um castigo ao personagem por este ter saído sozinho com a mãe, demonstrando terem se identificado com o temor à castração, característico da conflitiva proposta.

Fábula 8: ... o papai está brabo. Por quê?

P1: Porque os dois saíram sozinhos [...] não quiseram sair com o papai.

E: E o que aconteceu?

P1: O papai deixou de castigo [...] o filhinho.

Fábula 8: ... o papai está brabo. Por quê?

P3: Não sei. Porque eles não falaram nem para o pai dele que eles iam passear [...] eles iam sair e não falaram para o pai da criança e ele chegou.

E: E o que aconteceu?

P3: Daí ele só xingou, a criança ficou de castigo e ponto final.

E: E como acaba esta história?

P3: Depois ela saiu e brincou. Aí da próxima vez que eles saíram ele falou para o pai dele, que ele ia sair com a mãe dele.

Ainda ilustrando a marcante presença dos aspectos edípicos deste grupo, destaca-se a história contada pelo participante P2 a partir da Fábula 4, que aborda conflitos ligados à hetero ou autoagressão, culpabilidade e autopunição. A narrativa faz referência a um personagem que perdeu o pai em um acidente, e que finaliza a história com um triunfo edípico, já que o personagem e sua mãe "viveram felizes para sempre" (sic). O triunfo, manifestado pela ausência de culpa do personagem em relação à morte do pai e à sua união com a mãe, constitui-se como uma defesa maníaca, característica do período anal do desenvolvimento.

Fábula 4: ... Quem é que morreu?

P2: Posso dizer o filho, o pai, ou a mãe assim? [...] Foi o pai.

E: E como foi isso?

P2: Foi num acidente de carro [...] ele tava dirigindo e não viu, e dobrou em um penhasco, daí bum, caiu. E morreu. [...] ficou chorando e ponto final.

E: E como acabou esta história?

P2: Daí eles vivendo felizes para sempre.

Frente a um conflito importante, o sujeito tende a regredir e buscar defesas que o auxiliem a enfrentar a dificuldade, ajudando-o a retomar o curso do desenvolvimento normal. No caso desta faixa etária, a conflitiva edípica se apresenta, gerando culpa e necessidade de reparação, desencadeando a regressão à etapa anterior – anal – e às suas defesas de controle e onipotência (Trachtenberg, 1991).

Cabe ressaltar que estas crianças compõem o grupo psicodinamicamente mais evoluído, apresentando defesas esperadas para o enfrentamento desta etapa do desenvolvimento. Entretanto, são também crianças sintomáticas, que buscaram tratamento por estarem apresentando algum tipo de sofrimento. Assim, as crianças do grupo 1 apresentam defesas que ora dão conta da ansiedade, ora não. Os recursos apresentados por estas crianças tornam-se visíveis no exemplo abaixo, referente à Fábula 5, que suscita ansiedades relativas aos sentimentos de culpa, autopunição e medo.

Fábula 5: ... De que ela tem medo?

P2: Do monstro [...] Hummm do fantasma, porque ela viu num filme e se apavorou muito e ficou com medo.

E: E como termina?

P2: Ela tentando esquecer daquilo, e conseguindo esquecer, e foi dormir.

A fábula acima sugere a presença de conflitos relacionados à angústia de castração, porém acompanhado de recursos egóicos que aplacam essa angústia. Isto porque, mesmo atemorizado, o personagem conseguiu entregar-se ao sono, o que não ocorreria se estivesse dominado pela ansiedade.

Porém, conforme referido anteriormente, há situações em que as defesas utilizadas pelos participantes não são suficientes para aplacar suas ansiedades. Isto pode ser ilustrado pela Fábula 5 contada pelo participante P1:

Fábula 5:... De que ela tem medo?

P1: O cachorro do policial [...] que ele vai morder [...] o cachorro mostra os dentes para ele e ele fica com medo.

E: E o que acontece?

P1: Daí ele pega a sai correndo.

E: E como que termina esta história?

P1: O cachorro sai mordendo ele.

Outras defesas típicas e que aparecem muito ligadas à sintomatologia dessas crianças são as defesas anais de cunho obsessivo, aparentes, por exemplo, na fala repetitiva da seguinte história, desenvolvida a partir da Fábula 10. Essa fábula, catártica, possibilita ao participante retomar o controle frente aos conteúdos ansiogênicos suscitados na testagem ligados a sentimentos de agressividade, culpabilidade e autopunição.

Fábula 10: ... Com o que ela sonhou?

P3: Com monstro, assim lobisomem, lobo.

E: E como foi isso para ela?

P3: Ela tava no mato andando e tinha um monte de lobo vindo, daí ela correu, perdeu o casaco e ela ficou sem, daí encontrou uma casinha, que tinha um cara, e o cara ajudou ela a sair, como o cara era o lobisomem, mas ela não sabia, daí ela acordou e disse que susto.

E: E como acabou a história?

P3: A criança tava no mato e de noite, com um monte de lobo, e daí ela tava com um casaco, e como uma tinha galhinho, daí o casaco prendeu no galho e ela continuou correndo, daí ela achou uma casa que tinha um cara, daí o cara cuidou, cuidou, cuidou, mas que ela não sabia que ele era o lobisomem, daí ela correu, correu, correu, daí ela viu um lobo, mas quando viu vinha um caçador para pegar os lobos, e ele matou o lobo.

Ainda que a sintomatologia e os recursos egóicos apresentados por essas crianças estejam adequados às capacidades esperadas neste período do desenvolvimento, lembramos, novamente, que os participantes deste estudo fazem parte de uma população clínica. Isso fica ilustrado na Fábula 6 – que sugere ansiedades de castração – desenvolvida pelo participante P1, a qual propõe um questionamento sobre a mudança do elefantinho que o menino da história possuía. A história apresentada refere-se a um elefantinho que, embora estivesse crescendo, também estaria 'fraco' e acabaria morrendo, fazendo lembrar a vulnerabilidade ou fragilidade em que o sujeito estava.

Fábula 6:... Porque está diferente?

P: Por causa que ele ficou maior [...] ele ficou maior, ele ficou mais barrigudo com a tromba e ficou mais grande.

E: Como que foi isso?

P1: Ele ficou com fome e as pernas deles ficaram fracas.

E: E aí, o que aconteceu depois?

P1: Daí ele resolver sair gritando atrás do elefante.

E: E como ele estava se sentindo.

P1: Ruim.

E: Por quê?

P1: Porque o elefantinho dele estava diferente.

E: E como acabou esta história?

P1: O elefantinho no fim morreu.

Já as crianças do segundo grupo, formado por quatro meninos e uma menina com idades entre 7 anos e 2 meses e 9 anos e 9 meses (P4, P5, P6 P7 P8 ), mostraram um funcionamento predominantemente oral e anal, demonstrando ainda não estarem vivenciando a conflitiva edípica, ou estarem num estágio muito inicial da mesma. Embora algumas destas crianças apresentassem defesas anais, semelhantes às utilizadas pelas crianças do primeiro grupo, estas visavam dar conta de conflitos anteriores ao Édipo. Deste modo, não demonstravam uma regressão, mas sim que seu desenvolvimento estava fixado em etapas anteriores. Conforme descrito na literatura, Ferreira e Araújo (2001) referiram que, durante esta etapa de vida, o manejo da frustração, a perda da onipotência e a ligação simbiótica com os pais deveriam dar lugar ao interesse pelo mundo e pelos seus iguais. Neste segundo grupo de participantes, as ansiedades apresentadas, todavia, referiam-se predominantemente à separação da mãe, com temores de destruição e agressão, como pode ser visto na história desenvolvida pelo participante P5, na Fábula 1, a qual suscita fantasias relativas ao processo de separação-individuação.

Fábula 1: ... o que vai fazer o filhote passarinho? Ele já sabe voar um pouco...

P5: Voar.

E: Voar pra onde?

P5: Pra outra árvore.

E: E como o passarinho se sentiu?

P5: Com medo, ele tentou fugir e não conseguiu.

E: Como assim?

P5: A mãe coruja pegou ele e eles foram montar um ninho.

E: E como acaba essa história?

P5: Eles conseguiram fazer um ninho e no próximo vento que deu o ninho não caiu mais.

De acordo com Enck (2007), um importante acréscimo de domínio e autonomia é esperado em crianças desta faixa etária. No entanto, a predominância de ansiedades relativas à separação da mãe é marcante neste grupo, também podendo ser ilustradas pelas histórias desenvolvidas pelo participante P4 a partir das Fábulas 3 e 4. A Fábula 3 aborda temas como simbiose e rivalidade fraterna, e a história desenvolvida salienta a tristeza do cordeirinho com o desmame, e a incapacidade de aceitar que o cordeirinho menor ficasse com o leite, de forma que os dois foram comer capim. Já a Fábula 4, como referido anteriormente, se refere à hetero ou autoagressão, culpabilidade e autopunição, da qual se destaca a sensação de perda de um objeto bom e provedor.

Fábula 3:... o que o cordeirinho vai fazer?

P4: O que vai comer capim? Bah, eu não sei (risos). Ele fica triste que não vai mais poder mamar na mãe dele, mas acaba o leite dela e os dois têm que comer capim fresco.

E: Então os dois comem capim?

P4: Aham, aí eles vêem como capim é bom.

Fábula 4: ... Quem é que morreu?

P4: Uma velhinha [...] Todo mundo na cidade amava ela e por isso passou em todas as ruas o corpo dela.

E: E por que amavam tanto ela?

P4: Porque ela era muito querida com todos, tratava como se fosse da família [...] E ela fazia comida pra todo mundo.

E: Mais alguma coisa?

P4: Não, essa não ta boa.

E: Por quê?

P4: Não sei, termina assim.

Destaca-se que todas as crianças deste grupo apresentaram intensa ansiedade, a qual foi mobilizada já nas primeiras fábulas, anteriores àquela sugestiva do conflito edípico. As respostas à Fábula 8, que propõe mais especificamente esta conflitiva, apontam para um funcionamento pré-edípico: não é a rivalidade com o pai/mãe, ou seja, a triangularidade que está em questão, mas sim o temor da perda do amor do genitor, dentro de uma relação ainda dual. A fábula desenvolvida pelo participante P4 ilustra este funcionamento ainda anterior à confl itiva edípica.

Fábula 8: ... o papai está brabo. Por quê?

P4: Porque ele tinha uma coisa, ele tinha que arrumar o quarto e não arrumou, saiu sem arrumar.

E: E por isso o pai ficou bravo?

P4: É [...] E também porque ele faltou aula pra passear, mentiu pra mãe dele que não tinha aula.

E: E aí, como resolveram?

P4: Ele disse a verdade, que não tinha aula, contou pra professora o que tinha acontecido e tudo resolvido.

E: E o pai dele?

P4: Deixou ele de castigo, aí ele aprendeu a lição.

Frente às ansiedades já mencionadas, os três participantes mostraram utilizar defesas regressivas, na linha da negação e onipotência. Isso pode ser ilustrado pela história desenvolvida pelo participante P7:

Fábula 3:... o que o cordeirinho vai fazer?

P7: Vai comer capim e depois vai perguntar para a mamãe por que não tem leite suficiente e se o outro vai ter leite para os dois. No outro dia o filho da mãe carneiro levantou e foi tomar seu leitinho escondido e o outro cordeirinho pegou ele no flagra e então perguntou para ele por que só ele podia tomar leite, então os dois tomaram leite e fizeram as pazes.

Uma única menina pertencia a este grupo. Ela mostrou, através do desenvolvimento das fábulas, um funcionamento na linha psicossomática, com intenso isolamento afetivo e pensamento concreto. Isso pode ser ilustrado com o descrito a seguir em sua historieta da fábula 5, a qual deveria provocar a expressão de ansiedade, culpa, autopunição e medo.

Fábula 5: ... De que ele tem medo?

P6: De trovoada? [...] Só.

E: E o que vem depois?

P6: Ela ta amassando um papel. No final ela ta amassando um papel.

E: E como termina?

P6: Termina ela amassando um papel.

Dessa forma, pode-se perceber que a participante P6 não desenvolve sua própria história na Fábula 5, limitando-se a referir o medo (trovoada), e depois passando a descrever a lâmina, demonstrando a utilização de defesas mais rígidas frente a este estímulo, impossibilitando a criatividade e a expressão de suas projeções, de seus próprios medos. Além disso, destaca-se que a utilização da fantasia como defesa é uma das características principais do trabalho da latência (Porto, 1991). A impossibilidade desta menina de fantasiar, portanto, demonstra sua dificuldade em estabelecer tal trabalho.

Um dos participantes demonstrou um funcionamento muito distinto dos demais. Trata-se de uma criança com poucos recursos egóicos, que mostrou uma desorganização muito grande, e um funcionamento que remete a uma possível estruturação psicótica. Essa criança utilizava-se de defesas regressivas como onipotência e negação da realidade, mostrando sinais de depressão, impotência e conflitos significativos com as figuras parentais.

Estes conflitos ficaram bem evidentes na narrativa desenvolvida a partir da Fábula 1, que suscita fantasias, defesas e conflitos relativos ao processo de separação/individuação. O menino, mostrando seu temor diante das figuras parentais e impossibilidade de estabelecer sua individuação fala apenas:

Fábula 1: ... o que vai fazer o filhote passarinho? Ele já sabe voar um pouco...

P8: Depois de um pouco acabou (...) o pássaro voou, de repente um falcão apareceu antes que o pobre passarinho pudesse fugir, ele encontrou um ninho cheio de ovos e achou que o ninho era dele. Mas daí, era do falcão o ninho.

A forma como esse participante (P8), respondeu ao estímulo da Fábula 8, que aborda a conflitiva edípica, demonstrou o quanto ele ainda está longe de vivenciar esta etapa, diferenciando-se dos demais participantes desse estudo, os quais vivenciavam um processo pré-edípico ou edípico. Ao ser apresentado o estímulo o sujeito foge do tema e reage respondendo:

Fábula 8: ... o papai está brabo. Por quê?

P8 : O rádio tá quebrado (...) eu acho que você... não sei de nada.. O que você quer? Eu quero mil moedas.

Em sua verbalização percebe-se também uma negação intensa da realidade como defesa, o que faz com que a sua história fique sem uma coerência lógica, evidenciando assim, os aspectos mais psicóticos desta criança. Cabe ressaltar que ainda no início da testagem, frente à forte angústia e agitação mobilizadas no participante, a pesquisadora propôs interromper a testagem. Mesmo mostrando-se desorganizado ele não quis interromper, insistindo em finalizar a tarefa. A partir de então, sem maiores estímulos por parte da aplicadora, falou apenas frases curtas e que fugiam do tema proposto pela fábula, deixando aparecer com mais evidência sua desorganização. Por exemplo, na Fábula 5, cujo tema proposto é o medo, ele reage apenas com a fala:

Fábula 5: ... De que ele tem medo?

P8: Que horror...

Diante destes sinais de um funcionamento bastante regressivo, entendemos que o participante P8 está longe de elaborar um trabalho de latência, como seria esperado em crianças com um funcionamento neurótico.

 

Considerações finais

A latência é um processo, um trabalho, e não uma fase. Apesar do que foi sugerido por Freud em algumas passagens de sua obra (Freud, 1905), os conflitos não ficam adormecidos, mas, ao contrário, são utilizadas intensas defesas para lidar com eles e promover a resolução do Édipo. Sendo assim, podemos pensar que não se pode esperar da latência um período de "calmaria", mas no máximo de uma calmaria aparente, pelo sucesso dos mecanismos defensivos. Por ser um processo fundamental para o desenvolvimento, podemos pensar que as crianças em idade escolar que vivenciam a latência dispõem de mais recursos para lidar com as exigências do mundo externo nesta fase da vida, como regras e normas a serem seguidas.

Em um estudo em uma população de baixa situação sócio-econômica, Luz (2007) buscou caracterizar os elementos do desenvolvimento psicoafetivo em crianças escolarizadas entre 6 e 12 anos. Entre os resultados obtidos, destacamos dois considerados por nós mais significativos. Um deles é que a dificuldade de repressão da energia libidinal (não ingresso na latência) interfere nas relações interpessoais e tem como consequência a não interação com companheiros de brincadeiras e o não desenvolvimento da capacidade de buscar atingir metas. O segundo é que 88% dos pesquisados mostraram a autoestima em alto nível, cumprindo as tarefas escolares propostas. No entanto, mesmo neste grupo, a capacidade de aprendizagem sofreu grande interferência diante da forte angústia e ansiedade apresentada na adaptação ao grupo de pares, de dominar novas tarefas e de adquirir controle emocional. Os mecanismos de defesa mais presentes foram negação, fantasia e sublimação.

Comparadas aos dados acima (Luz, 2007), as crianças do presente estudo apresentaram as mesmas dificuldades de repressão da energia libidinal que caracterizaria o ingresso na latência. Pela sintomatologia apresentada as crianças deste estudo mostram ainda não haverem, todas elas, atingido completamente essa etapa. Os mecanismos de defesa mais presentes, foram defesas anais ou até mesmo orais, como negação, onipotência e isolamento. Principalmente no grupo de crianças pré-edípicas houve sinais de fixações anteriores a conflitiva edípica, que foram identificados através dos funcionamentos psicossomáticos, ansiedade de separação, temor da perda de amor em uma relação diádica e não triádica, e até mesmo em um funcionamento mais da linha psicótica. Destacase que se trata de um grupo de crianças clínicas, comparadas a um grupo de crianças escolarizadas, mas ainda assim a capacidade de aprendizagem se mantém preservada, não havendo alterações cognitivas significativas em nenhum das crianças testadas.

Assim, através deste estudo realizado com crianças clínicas em idade escolar, foi possível identificar que, mesmo com as alterações culturais – fator que vem sendo discutido como um responsável pela possível extinção da latência – algumas crianças ainda apresentam características típicas deste período. Isto foi demonstrado pelo grupo 1 apresentado acima. Já o grupo 2 demonstrou não estar utilizando defesas da latência, mostrando-se fixado na etapa anterior ao Complexo de Édipo. O participante P8, por sua vez, mostrou-se mais distante de trabalho de latência, apresentando um funcionamento mais desorganizado, na linha da psicose.

Destaca-se novamente que este é um grupo clínico de crianças e que, por apresentarem sintomas relevantes o suficiente para que seus familiares tenham buscado um acompanhamento psicológico, seria esperado que estas demonstrassem entraves no seu desenvolvimento. O fato de procurarem tratamento mostra que não estão conseguindo organizar suas defesas de forma a dar conta dos conflitos enfrentados. De qualquer modo, algumas destas crianças (grupo 1) podem ser consideradas como latentes, mesmo que ainda não tenham alcançado a relativa estabilidade da latência tardia (Urribarri, 1999).

Mesmo que se encontre com mais frequência na literatura, achados que referem o encurtamento da latência como consequência de uma erotização precoce, este estudo mostra que as dificuldades dessa etapa, podem também acontecer pela não elaboração da conflitiva edípica, causando atrasos ou mesmo dificuldades para o ingresso na fase de latência, tendo como consequência sintomatologias graves, com fixações anais e orais.

A partir do presente estudo, ainda foi possível pensar na relevância de uma avaliação para conhecer o nível de funcionamento da criança que chega ao tratamento. Uma boa avaliação inicial possibilita uma maior compreensão do contexto social, familiar e escolar em que a criança está inserida e de que forma isso influencia seu desenvolvimento. No caso de crianças em idade escolar, podemos perceber que a avaliação é uma ferramenta fundamental para que as defesas intensas comuns da latência não mascarem ou encubram questões importantes que possam vir à tona de forma violenta e abrupta na adolescência.

Avaliando e compreendendo profundamente os conflitos e as defesas utilizadas pela criança, tem-se uma maior probabilidade de construir hipóteses relevantes a respeito do seu funcionamento que podem nortear o tratamento e auxiliar a criança a (re) estabelecer o curso normal do desenvolvimento.

Assim, o estudo realizado permitiu novos olhares e considerações a respeito do processo de latência, como também a respeito das formas de manifestações de conflitos e defesas de crianças em idade escolar que chegam ao tratamento psicoterápico. É preciso destacar como uma limitação deste estudo o pequeno número de participantes, o que não permite generalizações, mas aponta para a idéia de que o trabalho de latência não está "extinto" em nossa realidade. Além disso, a análise qualitativa desses oito casos possibilitou uma compreensão singular de cada caso.

 

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Endereço para contato
E-mail: denise_steibel@hotmail.com

Recebido em maio de 2011
Aceito em setembro de 2012

 

 

Denise Steibel: Psicóloga, Mestre e Doutoranda em Psicologia pela UFRGS, Psicoterapeuta Psicanalítica pelo IEPP, Membro Aspirante da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.
Ana Elisa Hallberg: Psicóloga, especialista em Psicologia Clínica pelo IEPP.
Bianca Sanchotene: Psicóloga, psicoterapeuta psicanalítica em formação pelo IEPP.
Paula von Mengden Campezatto: Psicóloga, especialista em Psicologia Clínica pelo IEPP, mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS, Doutoranda em Psicologia pela PUCRS – bolsista CNPq.
Milena da Rosa Silva: Psicóloga, doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora do Instituto de Psicologia da UFRGS.
Maria Lúcia Tiellet Nunes: Psicóloga, doutora em Psicologia pela Universidade Livre de Berlim, professora titular da Faculdade de Psicologia da PUCRS.