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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.40 Canoas abr. 2013

 

ARTIGOS TEÓRICOS

 

O desafio de se tornar mãe de múltiplos bebês: reflexões sobre o processo de singularização dos filhos

 

The challenge of becoming a mother of multiple babies: reflections on the process of children's singling

 

 

Maria Consuêlo Passos; Célia Maria Souto Maior de Souza Fonsêca; Albenise de Oliveira Lima

Universidade Católica de Pernambuco

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RESUMO

Este trabalho discute a relação da mãe com múltiplos bebês concebidos por reprodução assistida, levando em conta suas dificuldades de atender simultaneamente as necessidades primárias deles. Aborda esse contexto, observando alguns impasses relativos à busca feita pelos pais por essa modalidade de procriação e a sua repercussão no nascimento, acolhimento e cuidados com os bebês. Em seguida, discute o processo de tornar-se mãe de vários bebês e as condições necessárias para que estes amadureçam. Por fim, ressalta os distintos aspectos que devem ser levados em conta quando se trata da singularização da mãe com cada um dos filhos, de modo que a mesma tenha a possibilidade de diferenciar cada criança, ponto central no processo de subjetivação. Trata-se de estudo teórico, baseado na concepção de Winnicott sobre a relação mãe-bebê e, especificamente, da preocupação materna primária, da continuidade do existir, da ilusão e desilusão, entre outros.

Palavras-chave: Nascimentos múltiplos, Relação mãe-bebê, Reprodução assistida.


ABSTRACT

This work discusses the role of being a mother of multiple babies conceived by assisted reproduction, considering its difficulties in answering simultaneously to their primary needs. It approaches such context by observing some of the impasses regarding parents' search for this reproductive modality and its repercussions on birth, receiving and caring for the babies. Then, it discusses the process of becoming a mother of several babies and required conditions for them to mature. At last, it highlights distinct aspects which must be considered when it comes to singling, so that the mother has the possibility to differentiate each child, which is a key point to subjectivation process. It is a theoretical study based on Winnicott's conception on mother-baby relation, specifically on primary maternal concern, on the continuity of existing, illusion and disillusion, among other concepts.

Keywords: Multiple births, Mother-baby relation, Assisted reproduction.


 

 

Introdução

Ser mãe de múltiplos bebês tem despertado o interesse de estudiosos (Winnicott, 1982; Braga & Amazonas, 2006; Dornelles & Lopes, 2010; Giaretta, 2008; Marquez, 2010) do amadurecimento humano, que refletem sobre as necessidades da criança, que precisa ser acolhida e satisfeita pela mãe. Winnicott (1982), em especial, parte da premissa de que, ao nascer, um bebê precisa de um adulto, em geral a mãe, que atenda suas necessidades, reconheça-o como filho-(a), e, sobretudo, que se ofereça como objeto de identificação e de estímulo para suas ilusões primárias, condições indispensáveis para que a criança seja investida de afetos e que constitua um vínculo primário, matriz dos demais que formará ao longo da vida. É neste contexto que surge a indagação a respeito das possibilidades de uma mãe que dá à luz três ou mais filhos simultaneamente e que precisa oferecer a todos as condições para que eles possam dar continuidade ao processo de amadurecimento iniciado na gestação.

Em outros termos, como podemos pensar as condições de uma mãe para acolher a angústia de um bebê, amamentar, cuidar, e ainda respeitar as diferenças entre eles? Esta indagação nos remete diretamente a Winnicott (1956/2000), para quem a mãe precisa ser suficientemente boa para cada um dos seus filhos. Para esse autor, a mãe suficientemente boa não é aquela que oferece mais do que o bebê precisa. Ela sabe que há momentos em que a frustração se mostra como a experiência mais adequada para aquele filho, e, quando sentida na medida suportável, vai favorecer o desenvolvimento de recursos internos necessários ao processo de amadurecimento. Mas como fazê-lo na medida certa? Como atender a este singular que reclama, quando tudo em volta é plural? Afinal, como é possível sê-lo em tais circunstâncias? É esta inquietação que mobiliza o debate que empreenderemos aqui, fruto de reflexões teóricas, que pretende discutir a importância não apenas da frustração, como da identificação e da continuidade do existir, entre outros aspectos a serem considerados quando se estuda o amadurecimento do bebê.

Considerações sobre a maternidade e o nascimento de múltiplos

O nascimento de múltiplos bebês, na maioria das vezes, nos remete às questões ligadas à infertilidade humana e aos processos de reprodução assistida, aqui definida como "a intervenção do homem no processo de procriação natural, com o objetivo de possibilitar que pessoas com problemas de infertilidade e esterilidade satisfaçam o desejo de alcançar a maternidade ou a paternidade" (Freitas, Siqueira & Segre, 2008, p.93).

Apesar do peso atribuído aos fatores biofisiológicos, sabe-se que existem outros fatores, psíquicos e sociais demandando a atenção de diferentes especialistas, haja vista o aumento de nascimentos múltiplos, fruto de reprodução assistida. Para Thomé e Duarte (2012), com base em dados da Pesquisa do Registro Civil 2010, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cresceu o número de gestações de gêmeos, trigêmeos e até quadrigêmeos no País, impulsionado pela popularização dos métodos de reprodução assistida; em sete anos, houve um aumento de 17% desses nascimentos. Anualmente, nascem mais de 51 mil múltiplos no Brasil. Nesse sentido, a medicina, as biotecnologias, a psicologia e a psicanálise vêm sendo solicitadas para contribuir com o desvendamento desta problemática.

Para Braga (2005), ajudar casais inférteis na satisfação do desejo por um filho é razão suficiente para o desenvolvimento de procedimentos seguros e eficientes que servem, hoje, não só a esses casais, mas também àqueles que lidam com a temática, em especial naquilo que diz respeito às condições psíquicas que têm os pretendentes a assumir a parentalidade quando, em vez de um filho, surgem múltiplos. É o caso veiculado, recentemente, na mídia brasileira, de um casal que rejeitou um dos filhos1, sob a alegação de que não tinha condições de criá-lo. Tal situação gerou grande repercussão e suscitou muitas indagações a respeito do direito dos pais de doar um dos filhos. Além disso, na ocasião, surgiram muitas interrogações a respeito de qual seria o bebê a ser excluído pelos genitores.

De acordo com Ribeiro (2004), um filho pode ser hiperinvestido e outro pouco investido, dependendo das demandas de um dos pais ou mesmo do casal, o que poderá ocasionar dificuldades futuras para a criança, no plano das relações ou mesmo no processo geral de amadurecimento. Para a autora, a concepção, em tais condições, possivelmente deixará marcas não apenas na história do casal, mas também na história do futuro bebê. Vários profissionais são convocados a participar desse processo, e não sem motivos, o médico especialista em reprodução humana assume aí posição de destaque, dada a importância e o simbolismo que passa a ter para o casal, vindo a fazer parte, juntamente com os pais, da vida desse futuro bebê, ou dos futuros bebês.

Como não poderia deixar de ser, essa modalidade de procriação repercute na constituição subjetiva dos filhos, e para pensarmos tal questão, é necessário uma pequena incursão por alguns dilemas que ocupam as mães quando se utilizam das técnicas de reprodução assistida (Braga & Amazonas, 2006; Melamed & Quayle, 2006; Dornelles & Lopes, 2010). O uso dessas técnicas traz uma marca narcísica negativa, no sentido de que ele indica a impossibilidade de gerar espontaneamente o filho, e isso exige dos pais um longo e difícil processo de superação da falta e de elaboração da impotência diante do desejo de procriar (Balmaceda et al., 2001; Makuch, 2001; Ribeiro, 2004).

Assim, a aceitação desse tipo de procriação depende de uma série de condições que exigem um trabalho psíquico nas diferentes etapas do processo. Inicialmente, a tomada de decisão implica o reconhecimento da impossibilidade de gerar um filho, levando os pais a experimentarem profundos abalos na autoestima, expressos, principalmente,por um sentimento de impotência diante de um desejo que os acompanha de longa data. Tudo isso gera grande dificuldade em tomar a iniciativa de procurar outros recursos na tentativa de viabilizar a procriação. No caso das tecnologias médicas, sabe-se que o processo é longo e, muitas vezes, repleto de frustrações. Além do que, os custos são muito altos, o que afasta um grande contingente de candidatos a futuros pais. Embora esse tratamento seja oferecido em alguns serviços públicos, ainda é muito pequena a oferta – seis instituições em 117 existentes – e concentrada na região sudeste (Freitas, Siqueira & Segre, 2008).

O segundo momento é marcado pelo uso dos procedimentos médicos, e cada caso demanda um diferente tratamento. Aqui os futuros pais vivem momentos de muita tensão e expectativa, pois nem sempre estes procedimentos são bem sucedidos.2 Quando o são, resultam em muita satisfação, embora muitas vezes ainda permaneça grande ambivalência, suscitada pela fantasia de que o filho só parcialmente é do casal. Há, também, o medo da perda desses filhos durante a gestação e um sentimento de fragilidade a eles atribuído após o nascimento; discorrendo sobre essa realidade, Gomes (2004) afirma que a relação dessas mães com seus bebês é sempre marcada por muita ansiedade e pelo medo de que eles venham a morrer, dada a gravidade da saúde – geralmente internados em UTI pré-natal – e pelo fato de elas não conseguirem se colocar como fonte de vida para esses filhos, sentimento este, reforçado pelo ambiente de muita tecnicidade e precisão em que tudo acontece. Outro momento significativo é marcado pelo nascimento do filho, ocasião em que é realizado o desejo de procriar, no entanto, é mantida uma certa incompletude, manifesta sobretudo pelas características físicas apresentadas pelo bebê, que nem sempre contempla as expectativas e o ideal do casal (Oliveira, 2006; Ribeiro, 2004).

A partir daí, é empreendido um longo percurso subjetivo, com vistas à formação dos laços parentais, movimento iniciado muito antes de o bebê nascer, mas que exige agora, com a presença deste, um trabalho psíquico indispensável à sua inserção numa cadeia familiar. Isto significa que os pais precisam também, simultaneamente, recriar seu lugar e função nessa cadeia. Para que essas transformações aconteçam, é necessário um processamento psíquico que depende, por sua vez, do desejo e investimento que eles fazem na futura parentalidade. São estes que possibilitam o processo filiativo e a criação das funções e dos lugares complementares na família (Maluf, 2008).

Toda essa experiência do casal em relação ao desejo de procriação e a via seguida para tal realização repercute nos processos de subjetivação na família. Tanto no que se refere à qualidade e expressão da parentalidade, quanto na constituição subjetiva dos filhos. Para o debate e detalhamento desta questão seria necessário um exame minucioso das repercussões deste processo no amadurecimento da criança, questão que não é fundamental neste momento (Barros & Pachuk, 2001; Maluf, 2008; Machuk, 2006; Ribeiro, 2004; Tort, 2001).

Do singular ao plural: transitar sempre, "sem perder a ternura jamais"

Para pensar o espaço de constituição do ambiente que sustenta a continuidade da existência do bebê, é necessário observar a relação mãe-bebê em seus aspectos que possibilitam a oferta das condições de que o bebê necessita para sobreviver nos primeiros momentos da sua existência. Nesse sentido, é fundamental uma reflexão que leve em conta a mãe como elemento primário capaz de oferecer tais condições. No contexto que aqui examinamos o acento se faz nas possibilidades dessa mãe de reconhecer as necessidades de cada um dos bebês e ser capaz de singularizar suas ofertas.3 Vejamos algumas concepções a esse respeito.

Segundo Loparic (2006, p.26), Winnicott produziu uma mudança na clássica relação mãe-bebê apresentada por Freud. Para esse autor, ele focaliza o "bebê no colo da mãe" e não mais "o bebê na cama da mãe", como o faz a Psicanálise clássica. É como se, neste sentido, Winnicott tivesse deslocado a ênfase da Psicanálise clássica, mais especificamente do complexo de Édipo, para a relação ambiental estabelecida entre mãe e filho, valorizando substancialmente a ação do ambiente na vida do indivíduo. Neste sentido, a noção de ambiente, naquela etapa primeira da existência, assume importância tal que, num dado momento, mãe e ambiente funcionam, para a criança, como a mesma coisa. Winnicott (1987/2002) diz:

O recém-nascido e a mãe constituem um tema bastante amplo, e, no entanto, eu não gostaria que me fosse atribuída a tarefa de descrever o que se sabe sobre o recém-nascido considerado isoladamente: o que está em discussão é a psicologia, e gosto de partir do princípio segundo o qual, ao considerarmos um bebê, também consideramos as condições ambientais e, por trás delas, a mãe. (p.29)

Essa enunciação resume, desde já, uma dimensão muito importante que coloca a mãe como agente primário no processo de singularização de seus filhos à medida que consegue atender ao que cada um necessita, e assim diferenciá-los. Em outros termos, ao atender as particularidades de cada filho, a mãe propicia a eles que possam amadurecer a partir das suas próprias características. Além disso, ao responder às solicitações do filho, ela assume sua posição como representante do ambiente primário de cada bebê. Esse ambiente precisa ser entendido a partir de duas perspectivas. "a) ele não é externo nem interno; b) ele é a instância que sustenta e responde à dependência: o bebê necessita totalmente de um outro que ainda não é um outro, separado ou externo a ele" (Dias, 2003, p. 131).

Assim, para Dias (2003), as duas realidades colocadas em evidência – a "do si-mesmo e a do mundo externo – são construídas ao longo do processo de amadurecimento no interior da relação mãe-bebê" (p.131). Nesse sentido, e a título de ilustração, a autora faz referência ao pensamento de Winnicott (1987e, p.9) acerca do Eu Sou, transcrevendo-o literalmente: "[...] não significa nada, a não ser que eu, inicialmente, seja juntamente com outro ser humano que ainda não foi diferenciado". De acordo com este ponto de vista, pode-se dizer que nos primórdios da vida do bebê, o amadurecimento se dá num ambiente inter-humano, onde circulam a mãe e seu bebê. Nesse caso, trata-se de um espaço onde não há ainda duas pessoas, mas cada um ainda é parte do outro.

De início, ao tratar da noção de ambiente, o autor assume postura solitária e decidida, tendo que envidar esforços no sentido de alertar os psicanalistas de sua época para a importância desta sua contribuição. Assim afirma Winnicott (1979/1983a): "[...] a Psicanálise está agora bem estabelecida e podemos nos permitir examinar o fator externo tanto bom como mau e, especialmente, a parte desempenhada pela mãe no estágio bem inicial, quando o bebê ainda não separou o 'eu' do 'não eu'" (p.227).

O princípio dessa separação depende da dedicação da mãe, que precisa oferecer um ambiente seguro e acolhedor, o que, em termos winnicottianos, seria a base para um desenvolvimento humano saudável. É preciso lembrar também que o tempo da gravidez é considerado necessário para que a mãe consiga preparar-se para oferecer ao filho as condições que favorecem sua "continuidade de ser" (Winnicott, 1960/1983, p.53).

Diante dessa constatação, surge uma inquietação relativa às possíveis dificuldades dessa mãe de acolher e responder às necessidades do bebê seja por razões de saúde, ou mesmo pelas condições que estamos tentando examinar aqui: a imposição que tem a mãe de lidar com múltiplos bebês, etc. Será que há preparação para isso ou a mãe terá que enfrentar o acaso da situação? Quais as condições para que ela assuma tal contexto? Levando em conta que o pai precisa dar suporte à maternagem da mãe, como ele atua nesta situação de filhos múltiplos?

De acordo com a posição de Winnicott (1965/1983), o ambiente se adapta "às necessidades que surgem do ser e dos processos de amadurecimento" (p.167), já que é das necessidades de continuar a ser que decorrem todas as outras. Portanto, o "ambiente facilitador" nada mais é que a "mãe suficientemente boa", capaz de reconhecer e atender às necessidades do seu bebê, por identificar-se com ele e colocar-se à sua inteira disposição num gesto de total entrega. Tal condição deixa-a alerta não só para identificar a necessidade por ele sentida naquele momento, como também, para entender como se expressa e o que pode fazer para satisfazê-la.

Assim, para que possa se oferecer ao seu bebê, a mãe precisa ser espontânea e acreditar na capacidade dele de amadurecer. Neste sentido, sua dedicação deve indicar que ela está apenas facilitando a emergência de um potencial que já existe na criança. Na verdade, cada bebê traz consigo a chave de seu próprio amadurecimento, que terá curso a partir das facilitações do ambiente (Winnicott, 1983; Dias, 2003).

Nessa perspectiva, o recém-nascido precisa ser visto a partir de suas singularidades, ou seja, seu ritmo, a atenção solicitada, o carinho que pede, o tempo de espera que suporta, e a contrapartida disso é uma mãe que também precisa agir de modo singular com cada filho. Os momentos iniciais da relação mãe-bebê exigem que ela revele a expressão máxima de sua sensibilidade para captar os pedidos do bebê, e intensifique suas atividades para tentar dar conta das solicitações deste. Trata-se, pois, de um momento especial de dedicação em que a mãe se devota integralmente ao filho. A esse respeito, Winnicott (1968/2002), afirma que "a adaptação da mãe às necessidades da criança não tem relação com a sua inteligência [...] o que a orienta é sua capacidade de identificar-se com o bebê. E essa aptidão vem da sua própria experiência de ser cuidada" (p. 55). Esta asserção nos remete a duas observações que parecem cruciais. Em primeiro lugar, o reconhecimento de que a mãe terá mais facilidade de identificar-se com seu bebê se ela viveu com sua própria mãe essa mesma condição e, em segundo, que as marcas subjetivas constituídas por ela junto a ele, dependem de uma dedicação singular a cada filho. Quando se trata de mãe de múltiplos, o primeiro aspecto assinalado permanece idêntico. No que tange às marcas subjetivas de cada criança, tudo depende das identificações da mãe com esses filhos.

Elementos para pensar a maternagem e o amadurecimento do bebê

A noção de "preocupação materna-primária" foi pensada por Winnicott para tratar de uma característica da mãe que ele via, em grande parte, como responsável pelo início do amadurecimento da criança. Trata-se de uma experiência vivida durante algumas semanas depois do nascimento do bebê que, quando passa, as mães não se recordam de tê-la vivido. Seria um estado psicológico especial que tem como característica central uma dedicação absoluta ao bebê, o que a leva a se desinteressar por tudo que acontece à sua volta. Seria como um estado de suspensão, em que mãe e bebê estão intimamente ligados, e sua sensibilidade a torna capaz de atender ao bebê, não o deixando ser invadido por sentimentos de privação e, por outro lado, permite-lhe não se comportar de maneira exagerada, antecipando-se às necessidades de seu filho. Para Winnicott (2002):

Ela consegue esperar que o gesto espontâneo surja porque 'sabe' de muitas coisas sutis, como por exemplo, que, para ser trasladado de um lugar para outro, um bebê precisa ser preparado e o movimento total requer tempo; ela sabe também que é mais importante respeitar a recusa do bebê de mamar do que forçá-lo, por disciplina ou por temor da desnutrição, porque, em termos do amadurecimento, 'o não alimentar' constitui a base do alimentar. (p.55)

É só a partir das sutilezas que a mãe aprende, junto ao bebê, a respeitar o tempo dele e permitir que entre em contato com suas próprias necessidades, fazendo delas e da possibilidade de atendê-las uma fonte de criatividade de si e do mundo. À mãe que consegue sustentar essa relação, mas que, às vezes, falha Winnicott (1956/1993) chamou de "mãe suficientemente boa". Vale ressaltar, porém, que a falha e a ausência têm sua relevância no desenvolvimento, apenas quando o bebê já é capaz de suportá-las. Com isso ele evidencia que ser suficiente não é ser tudo, e que esta dimensão tem um caráter próprio a cada relação. Uma mãe pode ser suficiente para as necessidades de um bebê e não ser para outro, cujas solicitações, embora muito próximas, têm particularidades e limites próprios. Assim, embora a concepção de mãe contenha a ideia genérica de que sua função é cuidar e educar igualmente todos os filhos, isso jamais poderá ocorrer quando levamos em conta que cada encontro pressupõe uma combinação de desejos e realizações próprias.

Essa identificação, já tão comentada aqui, tem por princípio não apenas contribuir para que o bebê possa se expressar, ainda que primariamente, e que, encontrando acolhimento na mãe possa desenvolver uma espécie de sintonia que vai marcar o desenvolvimento do seu self. Mas serve também para que ele crie, progressivamente, um conhecimento de si e uma confiança nas suas expressões humanas mais espontâneas. (Winnicott, 1971/1975).

Se a mãe falha com seu bebê – e é natural que isso aconteça – a participação do pai pode ser antecipada. Se essa entrada é naturalmente posterior à entrada da mãe, em casos especiais é o cuidado atento e vigilante do pai que pode amenizar falhas ambientais existentes. Dias (2003), discute a importância do pai e afirma:

Existem casos em que os homens são mais maternos que suas mulheres, e há relatos clínicos em que a aptidão do pai para o cuidado materno amenizou falhas ambientais devidas a uma patologia da mãe, e salvou a criança de distúrbios que poderiam ter sido ainda mais graves do que os que realmente advieram. (p.140)

Esse ponto de vista, fundamentado em uma concepção winnicottiana, esclarece a participação do pai nos primeiros momentos da relação mãe-bebê. É interessante notar que, embora sua participação não seja intensa numa primeira fase, ela não deixa de ser muito importante. O pai não está distante, muito menos ausente, ele está em vigília, pronto para atuar a qualquer momento. Isto mostra o quanto o pai precisa estar sensível e disponível para discernir sobre o apoio e sustentação que precisa oferecer à mulher, à mãe e ao bebê. Assim Winnicott (1982) se refere ao pai:

[...] é o pai ser necessário para dar à mãe apoio moral, ser um esteio para a sua autoridade, um ser humano que sustenta a lei e a ordem que a mãe implanta na vida da criança. Ele não precisa estar presente todo o tempo para cumprir essa missão, mas tem de aparecer com bastante frequência para que a criança sinta que o pai é um ser vivo real. (p.129)

Sobre o difícil processo de diferenciação na relação da mãe com seus múltiplos bebês

Quando pensamos na relação da mãe com seus múltiplos bebês, imediatamente surge a indagação de como ela vai conseguir dar conta dessa tarefa tão cansativa e complexa, que é atender às necessidades de tantos bebês, simultaneamente. As condições psíquicas inerentes a essa tarefa, não obstante estarem intrinsecamente associadas aos cuidados físicos, ainda demanda novas contribuições teóricas. De certo modo, é difícil separá-los, embora às vezes seja necessário criar fronteiras entre os diferentes desempenhos, para que se torne possível estudá-los.

Com o propósito de discernir e analisar os primórdios desta relação mãe-bebês, procuramos observar algumas chaves que nos permitem uma aproximação maior das condições psicológicas que lhes são inerentes. Chegamos à verificação de três aspectos que consideramos fundamentais para que essa relação propicie o amadurecimento recíproco e, em decorrência, a diferenciação e singularização dos filhos. O primeiro diz respeito ao ambiente primário, representado pela mãe. Se seguirmos os princípios do senso comum, este nos dirá que a mãe precisa ser igual com todos os filhos, sem privilegiar o pedido de ninguém. No entanto, a lógica que regula o amadurecimento psíquico infantil nos diz exatamente o contrário: é preciso que a mãe saiba privilegiar as necessidades específicas de cada bebê e procurar atendê-las em seu tempo, ou seja, naquele tempo justo que dimensiona o encontro entre o pedido do bebê e a possibilidade da mãe de reconhecê-lo e atendê-lo. Mas, e se todos pedem a atenção da mãe ao mesmo tempo, o que ela fará para responder e singularizar sua atenção? Aí parece haver uma real dificuldade, que exige da mãe um trabalho psíquico de reconhecimento das suas possibilidades e limites, ao mesmo tempo em que precisa observar que, embora os pedidos possam ser de uma mesma ordem, a maneira como cada um expressa seu pedido, e espera que ele seja atendido, é diferenciada.

Tudo isso significa que a mãe precisa responder diferentemente aos bebês, não só por meio de suas condições subjetivas, que devem colocá-la frente às características de cada um, mas, sobretudo, porque eles fazem pedidos diferentes e assimilam de forma peculiar as respostas recebidas. Para que isso aconteça, é necessário que a mãe tenha feito o trabalho de elaboração das suas experiências primárias como filha, ressignificando seu lugar na cadeia familiar, o que implica a assunção do lugar de mãe. É necessário também – caso os filhos tenham nascido a partir da utilização de tecnologias reprodutivas – que esta mãe tenha elaborado o luto relativo à impossibilidade prévia de ter filhos. Por fim, é fundamental que haja uma parceria com quem ela possa assumir as funções parentais e se sentir apoiada nessa difícil tarefa de gerar, reconhecer e criar os filhos.

Essa parceria, quase sempre representada pelo genitor da criança, embora geralmente tenha um lugar físico de retaguarda, em relação à mãe, simbolicamente tem uma representação importante, já que deve servir de suporte para as realizações da mãe. Essa função de apoio e de complementaridade apresenta um sentido simbólico que instaura, desde cedo, a possibilidade de diferenciação da criança. Isso significa que, silenciosamente, a presença de um pai ou de alguém que faça a função de terceiro, favorece a abertura de um espaço entre a mãe e o bebê, de modo que essa criança possa alcançar suas condições primárias de subjetivação e de autonomia, ampliando seu espaço individual e de encontro com o outro.

O segundo aspecto diz respeito às peculiaridades próprias a uma relação em que a não exclusividade nos cuidados maternos podem levar os bebês (irmãos) a terem mais cedo uma percepção da presença do outro. Essa presença não se faz sozinha, mas vem acompanhada da maneira como a mãe, e depois o pai lida com os vários bebês e como atendem às suas necessidades. Esta visão tão remota do outro, do semelhante, configurar-se-ia como os primórdios da relação fraterna e de seus desdobramentos (Passos, 2011). Pensamos que esse compartilhar de um espaço semelhante, mesmo que não seja percebido pelos bebês, poderá gerar na mãe uma visão paradoxal do igual e do diferente, por meio da qual ela poderá, paulatinamente, oferecer o que todos precisam, cuidando para lhes apresentar um olhar diferente.

É curioso como, muitas vezes, ao ver um bebê chorando, o outro começa também a chorar, e essa sinfonia parece revelar tantas coisas: tensão, desconforto, disputa pela atenção da mãe, solidariedade com os irmãos, etc. Isso parece ser um signo de que já existe – ainda que de forma primitiva – uma percepção da existência do semelhante. Tal percepção pode levar o bebê a apaziguar suas exigências de "pronto atendimento" da mãe. Ele pode iniciar mais cedo a frustração de não ter todos os seus pedidos atendidos, apaziguando assim sua tentativa de satisfação imediata. Ficamos a perguntar: seria esta uma possibilidade inerente aos nascimentos múltiplos?!...

Nesse caso, é possível discernir que, desde muito cedo, a presença do semelhante pode significar um princípio de futura diferenciação de si e do outro, não só pelo efeito da imagem desse outro para o bebê, mas também pela presença da mãe lidando com os diferentes bebês. A isso podemos acrescentar a importância das marcas sensoriais no início da relação mãe-bebê. As crianças e a mãe "criam" suas sensorialidades. Há os que gostam mais de sugar o seio, outros que não o aceitam, ainda aquele que requer mais cuidado porque não gosta de se alimentar, enquanto outro é mais voraz, etc.

De acordo com Winnicott (1956/1993), no início, tudo é sensorialidade. A criança fusionada à mãe desde o início da vida começa a adquirir os primeiros sinais de diferenciação à medida que ambas começam a dimensionar os signos sensoriais que marcam o lugar de cada uma. Assim, sugando o seio da mãe, a criança, paulatinamente, observa o corpo desta como um objeto de gratificação. Ao mesmo tempo, o ninar que faz adormecer o bebê também passa a ser percebido como um movimento externo vindo da mãe. É preciso ressaltar ainda que estes movimentos dependem sobremaneira, da empatia dela para com cada um dos seus bebês, pois só assim ele conseguirá criar a si mesmo e crescer, baseado no suporte da mãe.

O terceiro enfoque diz respeito à capacidade que tem a mãe de se dedicar inteiramente aos seus bebês e de manter empatia com cada um deles. Isso significa que os investimentos de afeto precisam seguir as peculiaridades de cada parceria mãe-bebê, o que exige um trabalho psíquico necessário à configuração dos laços de afeto que prosseguirão ao longo de todo processo de amadurecimento. Essas diferenças de investimentos não são especificadas apenas pela quantidade de afeto, mas pela qualidade marcada pelas peculiaridades que surgem de cada parceria. Alguns indicadores são importantes nestas especificidades, entre eles podemos apontar o sexo de cada bebê, os nomes que eles recebem e os significados destes para os pais, enfim, as semelhanças físicas que cada um apresenta com um dos pais ou mesmo com um parente ainda presente, ou mesmo já ausente, sem desconsiderar as características da própria criança.

Esta relação de afeto – instituída primariamente – enseja uma estética baseada no ser criativo do bebê. Essa estética só terá sentido se for originada em um ambiente que permita ao bebê criar a sua própria existência, para dela prosseguir recriando-a permanentemente. E tudo isso depende do empenho da mãe em criar um ambiente primário como sustentação, para que o bebê prossiga criando sua própria condição de estar no mundo. Quanto mais facilitador for esse ambiente inicial, maior será a capacidade criativa do bebê em buscar as condições de saúde psíquica que ele necessita para amadurecer em um espaço que deverá se transformar permanentemente, reinventando uma estética necessária a sua condição de ser e de crescer.

 

Considerações finais

Por fim, podemos supor que, embora seja estafante – tanto física como psiquicamente – para a mãe acolher, cuidar e se oferecer a vários bebês simultaneamente, cada presença impõe uma experiência diferente, baseada no amor, empatia e, consequentemente, em tonalidades de afeto e de investimento que possibilitem a formação dos laços e a continuidade do amadurecer da criança. É preciso salientar, entretanto, que a presença destas condições que diferenciam cada bebê para a mãe e vice-versa, não significa que haja uma mesma intensidade de afeto e de identificação. As intensidades de afeto parecem diferentes, mas o fundamental é que, em cada parceria ela possa assegurar as condições necessárias a uma existência criativa do bebê.

Em situações onde há falhas ambientais primárias (Winnicott, 1983a), a criança poderá criar defesas que lhe permitam manter "intacta" a relação na família. Entretanto, dependendo da natureza e intensidade das defesas, ela pode adoecer psiquicamente e exigir condições especiais para o trato com as figuras parentais.

Pensamos que o grande desafio de cuidar de múltiplos bebês exige da mãe diferentes facetas, que podem ser sintetizadas na história da procriação destas crianças. Em outros termos, tal história depende dos seguintes aspectos: elaboração do luto pela infertilidade; a demanda e os investimentos dos futuros pais/mães em relação aos seus filhos; a escolha da forma de procriar; a disposição para cuidar, reconhecer e nomear os filhos; as condições psicossociais necessárias para a educação destes e, principalmente, a criação de um contexto no qual a criatividade de cada filho favoreça a emergência de futuros sujeitos.

É importante ressaltar, ainda, que o desafio das mães só adquire sentidos se houver reciprocidade no que tange às expressões das crianças, mesmo que estas se manifestem de forma rudimentar, condizente com suas experiências primárias. Desta forma, o desafio das mães torna-se ainda mais complexo se o consideramos a partir do seu caráter inevitável de entrelace entre o desejo materno e a tendência da criança a atualizá-lo na constituição de sua própria existência.

 

Referências

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Endereço para contato
E-mail: mcpassos@uol.com.br

Recebido em abril de 2012
Aceito em maio de 2013

 

 

Maria Consuêlo Passos: Doutora em Psicologia Social pela PUC-SP. Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco; pesquisadora de Psicanálise, Família e amadurecimento humano.
Célia Maria Souto Maior de Souza Fonsêca: Psicóloga, mestra em psicologia Clínica pela UNICAP-PE e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco; pesquisadora de Família e Interação Social.
Albenise de Oliveira Lima: Doutora em Família e Saúde pela Universidad de Deusto, Espanha. Docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco; pesquisadora de Família e Desenvolvimento Humano.
1 Matéria publicada na Folha de São Paulo – Casal fez tratamento para engravidar e teve três meninas. Pai que desejava apenas dois bebês, queria deixar, na maternidade, a menina que tinha insuficiência pulmonar. As meninas foram geradas por fertilização in vitro (quando o óvulo já fecundado é colocado no útero da mãe) e nasceram prematuras, no dia 24.01.12, numa maternidade de Curitiba. O médico Karam Abou Saab, que implantou os embriões na mãe, falou do ineditismo para ele, do fato de um casal recusar filhos após tratamento, dizendo que havia informado o casal sobre o método de tratamento. (Collucci, 2011).
2 No Brasil, a Reprodução Assistida ainda carece de uma legislação específica para o disciplinamento da matéria. O que existe neste sentido tem sido produzido pelo Conselho Federal de Medicina. A mais recente é a RESOLUÇÃO CFM Nº 2.013/2013 (Publicada no D.O.U. de 09 de maio de 2013, Seção I, p. 119). Adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, como dispositivo a ser seguido pelos médicos e revoga a Resolução CFM nº 1.957/10.
3 De acordo com o referencial winnicottiano, em seus primórdios o bebê depende, de forma absoluta, de sua mãe. Aos poucos ele vai adquirindo 'certa' autonomia, em função do processo gradual de separação inerente à relação mãe-filho.